sábado, 22 de setembro de 2012

[conto #033] De Chapéu Vermelho

DE CHAPÉU VERMELHO

Em um lugar muito distante daqui, havia uma mulher que morava no meio da floresta, tendo apenas o filho como companhia. Ele era um garoto ainda jovem, que gostava de brincar pelos campos e auxiliar no trabalho dos camponeses. Embora ainda pequeno, se empenhava tanto em ajudar e era tão bom com todos, que com frequência ganhava presentes, como doces e brinquedos. Um dia, como fizera doze anos, um dos camponeses lhe dera um chapéu vermelho, dizendo:
-- Já és um homem e deves abandonar as brincadeiras de menino; toma este chapéu e o usa, como prova de que estás crescendo.
De forma que o garoto passou a usar sempre o chapéu. O usava com tanta frequência, que as pessoas passaram a chama-lo de O Garoto de Chapéu Vermelho.
Um dia, enquanto O Garoto de Chapéu Vermelho brincava perto de casa, sua mãe o chamou da porta de casa. Trazia na mão uma cesta de piquenique, de onde vinha um cheiro delicioso. Quando o Garoto se aproximou, ela disse:
-- Meu filho, chegou hoje uma carta de sua avó, onde ela diz que está doente. Preparei alguns remédios e estou enviando a ela junto de uma carta e um pouco de comida. Você pode leva-los para mim?
-- Claro, mamãe. - o Garoto pegou a cesta - Vou agora mesmo.
-- Não se demore, para que chegue lá antes do anoitecer. E não se desvie do caminho nem fale com estranhos. E nem coma os doces que estou enviando para a sua avó.
-- Pode deixar, mamãe.
-- E lembre-se de sempre ir pela estrada principal. O caminho que passa por dentro do bosque é perigoso.
-- Sim senhora.
O Garoto seguiu pelo caminho que levava à estrada. Mas quando chegou à encruzilhada, decidiu que iria seguir pela estrada do bosque enquanto ainda era de manhã, e quando chegasse a tarde voltaria para a estrada principal. O caminho do bosque era muito mais bonito, mais fresco, e mais rápido - seguia em linha reta, enquanto a estrada grande fazia diversas curvas e desvios. Por isso adentrou o bosque, cantarolando alegremente.
Enquanto andava, ele ia colhendo algumas flores e frutas silvestres para dar para a avó. Em um momento avistou um lugar em que cresciam lindas rosas vermelhas, e foi pegar algumas. Quando voltou para a trilha, havia um homem sentado sobre um tronco, observando-o.
A princípio o Garoto se assustou, por achar que fosse um fantasma; mas logo percebeu que era apenas uma pessoa comum, e ficou mais tranquilo.
-- Bom dia. - disse o Garoto.
-- Bom dia. - disse o homem.
O Garoto estava a ponto de seguir seu caminho, mas o homem o deteve, dizendo:
-- O que faz um garoto tão pequeno andando sozinho pelo bosque?
-- Estou indo para a casa da minha avó.
-- E ela mora perto daqui?
-- Mais ou menos. Se for por esse caminho até o meio do dia, e voltar para a estrada grande à tarde, devo chegar antes de anoitecer.
-- É um pouco longe, então. Eu estou indo para esse lado também, posso te acompanhar?
-- Claro.
O homem passou a caminhar ao lado do Garoto, que continuava cantarolando e colhendo flores.
-- Belo chapéu, esse seu.
-- Foi um presente de um camponês, amigo de minha mãe. Ando sempre com ele.
-- Se usa um chapéu como esse, é porque já não é um menino. Quantos anos você tem?
-- Farei treze em breve.
-- E já tem uma prometida?
-- Não, não tenho.
Continuaram seguindo, até que chegou o meio do dia e eles chegaram a uma das trilhas que levaria de volta à estrada principal. Os dois pararam, e o homem disse:
-- Nossa jornada juntos termina aqui. Meu caminho continua pela floresta.
-- Sim, senhor.
-- Apenas por curiosidade, me diga: a casa da sua avó fica na primeira vila no caminho da estrada principal?
-- Não, fica um pouco antes. Na verdade, é fora da estrada, em uma clareira na floresta. Se eu fosse direto por esse caminho, chegaria direto a ela; indo pela estrada, terei que tomar uma trilha em determinado ponto. Mas é o caminho mais seguro.
-- Sim, é verdade. E a sua avó é muito velha? Não é ruim para ela morar sozinha?
-- Não sei quantos anos ela tem, mas muitas mulheres da idade dela ainda têm filhos pequenos, portanto não é vellha; mas está doente, e por isso estou levando remédios e coisas gostosas para alegra-la.
-- Entendo. Enfim, adeus, garoto. Muito cuidado na sua jornada.
-- Terei cuidado.
E eles seguiram por caminhos diferentes.

* * * * *

A avó do Garoto de Chapéu Vermelho estava na cozinha da casa, preparando um chá, quando bateram na porta. Pensando que podia ser seu neto, mas estranhando que ele chegasse tão cedo, ela abriu a porta e se deparou com um homem desconhecido - o mesmo homem que o Garoto encontrara no bosque.
-- Boa tarde. - ele disse, tirando o chapéu - Estava procurando o caminho para a estrada, mas me perdi. A senhora poderia me indicar o caminho? É a primeira casa que encontro em horas de caminhada.
-- Oh, sinto muito por ter se perdido. - ela o olhou com pena - Vê esse caminho à direita? Basta segui-lo, e chegará na estrada. Se seguir à esquerda, em mais uma hora encontrará uma vila.
-- Ah, que bom... Acho que consigo chegar antes do anoitecer. A senhora poderia me dar um pouco de água? Não quero abusar da sua boa vontade, mas estou andando há horas e...
-- Claro, sem problemas. - ela entrou em casa - Espere um momento.
Ele viu, pela porta, ela entrar na cozinha e abrir o barril onde ficava a água. Tossia um pouco e estava pálida, mas era realmente jovem, apenas alguns anos mais velha do que ele. Então ele entrou silenciosamente e, antes que ela o percebesse, a agarrou com força e pressionou uma faca contra seu pescoço.
-- Se se mexer ou gritar, eu te mato. - ele disse, e ela parou de lutar, aterrorizada - Muito bem. Agora tranque a porta.
Seguida por ele, ela foi até a porta e a fechou. Ele a agarrou novamente e a arrastou para o quarto.
-- Muito bem. - ele a jogou na cama - Vamos nos divertir um pouquinho, enquanto aquele lindo garotinho não chega.

* * * * *

O Garoto de Chapéu Vermelho chegou à casa da avó pouco antes do anoitecer. Estava cansado, mas quando avistou a casa foi correndo pelo caminho até ela; mas chegando na entrada conteve sua vontade de gritar pela avó e bater na porta desesperadamente; afinal, já era um homem. Por isso respirou fundo e bateu na porta com calma, como sua mãe lhe ensinara a fazer.
-- Entre. - ele ouviu uma voz indefinida dizer, e empurrou a porta, que não estava trancada. Entrou e foi para o quarto, seguindo a voz que o chamava. Havia uma pessoa deitada na cama, completamente coberta pelos lençóis.
-- Oi meu querido. - a pessoa disse, com uma voz fraca e rouca - Como você cresceu.
-- Vovó? - o Garoto receava em chegar perto, pois estava achando que havia algo errado com a avó, algo que ele não sabia definir.
-- Venha aqui, meu netinho. Me deixa ver o que a sua mãe mandou para mim.
-- Ela mandou uns remédios para que a senhora melhore mais rápido... - ele se aproximou, com cautela - E também tem bolinhos e geléia...
Quando ele se aproximou da cama, a pessoa que estava deitada o puxou bruscamente, se revelando: era o homem que ele encontrara na floresta.
-- Você!
-- Muito obrigado pelos doces, netinho. - ele jogou o Garoto na cama - Mas agora eu quero comer você.

* * * * *

Quando o Garoto acordou, estava preso dentro da despensa, com as mãos e os pés amarrados. Sua avó estava ao seu lado, também amarrada, mas desmaiada.
-- Vovó! Vovó! - ele tentou chegar até ela, mas não conseguiu, e começou a chorar - Vovó, acorda!
Mas ela não se movia. O Garoto ficou chorando sozinho, no escuro, por um longo tempo; até que a porta se abriu, e o homem apareceu, dizendo:
-- A vovó ainda está dormindo? Que pena... Eu queria ter mais uma conversinha com ela, mas acho que vou ter que ficar com você mesmo.
Ele agarrou o Garoto pelo braço e o arrastou para fora dali. O Garoto gritava e se debatia, mas amarrado como estava jamais conseguiria fugir. O homem o levou novamente para o quarto, mas o menino gritava tanto e tão alto que o irritou: ele pegou a faca e a encostou na garganta do garoto, fazendo com que ele se calasse.
-- Escute bem. - ele disse - Se você ficar quietinho e fizer tudo o que eu mandar, eu prometo que vou ser muito bonzinho e vou matar vocês bem rápido quando me cansar de brincar. Agora, se você for um mau menino, eu vou te machucar tanto que...
Mas ele foi interrompido por um som alto de tiro e por uma bala que lhe atravessou a cabeça e o deixou caído no chão em meio a uma poça de sangue.
Aterrorizado, o Garoto recuou e acabou caindo no chão. Olhava fixamente para o corpo no meio da poça de sangue, até que ouviu uma voz vinda da janela:
-- Essa foi por pouco heim. - ele se virou, e viu uma garota na janela, segurando uma espingarda - Você está bem?
O Garoto tentou responder, mas percebeu que não controlava sua voz. A garota pulou a janela e olhou para o corpo, sem muito interesse.
-- Já tinha visto esse cara andando pela floresta, achei ele bem suspeito. Como ele conseguiu entrar aqui? Ele te conhecia? - o Garoto apenas balbuciou sons sem sentido - O que foi? O gato comeu sua língua?
Ele respirou fundo, tentando parar de tremer, e afinal conseguiu falar:
-- E-eu encontrei ele na floresta...
E ele contou o que acontecera. A garota balançou a cabeça.
-- Você é estúpido? Fica contando sua vida para um estranho que conhece na floresta? Sua mãe não te ensinou nada?
-- Ele... Ele não parecia mau...
-- Eles nunca parecem. Preste atenção nas coisas ao seu redor, você não é mais uma criança. - ela olhou em volta - Então, onde está sua avó?
Eles soltaram a avó do Garoto, que já recobrara a consciência. A garota se livrou do corpo do homem, e no fim da tarde, disse que iria partir.
-- Fique mais um pouco. - disse a avó - Ainda não te agradecemos por ter salvado nossas vidas.
-- Não precisa agradecer. E tenho que ir, meus pais estão me esperando.
-- Afinal - disse o Garoto - o que você estava fazendo por aqui?
-- Sou caçadora, filha de caçadores. Estava caçando na floresta aqui perto quando ouvi seus gritos. Você teve muita sorte.
-- Quantos anos você tem?
-- Quinze, por quê?
-- Eu posso me casar com você em agradecimento.
Ela riu.
-- Quem sabe, quando se tornar um homem de verdade. - ela foi andando pelo caminho que levava à estrada priincipal - Adeus, Garoto de Chapéu Vermelho. Cuide da sua avó.
-- Cuidarei.
E ela se foi.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

[conto #032] Que Veio do Mar

QUE VEIO DO MAR

Ele estava brincando na praia, próximo às pedras, procurando conchas. Já enchera os bolsos delas, quando avistou a concha mais bonita e mais diferente que já vira: era grande, quase do tamanho de sua mão, e tinha um formato estranho, como uma rocha em miniatura, cheia de reentrâncias e cavernas no seu interior.
Ela estava bem no limite onde as ondas batiam na areia, e ele correu para pega-la antes que voltasse para o mar. A virou para todos os lados, curioso. Nunca vira nada parecido com aquilo. Teve a impressão de que havia algo em seu interior, e a sacudiu próxima ao ouvido. O que ouviu, além de um toc-toc de algo se movendo dentro, foi um gritinho agudo e muito baixo, que não teria escutado se não tivesse quase encostado a concha no ouvido. Aturdido, ele ficou olhando para ela, tentando descobrir de onde viera o barulho.
Algo se moveu, parecendo estar tentando sair do interior da concha por uma das pequenas aberturas. Ele continuou olhando, esperando, e logo surgiram primeiro dois bracinhos muito finos, depois uma cabeça com fios de cabelo cor de mar, e por fim um corpo tão pequeno e fino que pareceria minúsculo mesmo ao lado da menor das bonecas.
A criaturinha se arrastou para fora da concha e se sentou em uma das reentrâncias, parecendo ter dificuldades para se mover. Afastou os cabelos azuis-verdes-brancos do rosto, e olhou ao redor com olhos redondos que pareciam ocupar metade de seu rosto. Por fim percebeu a existência do outro, estranho ser que segurava sua concha sem sequer pedir autorização.
Os dois se olharam por um longo tempo. A menina da concha logo perdeu o interesse pelo menino que segurava a concha, e a escalou até a parte mais alta, de onde olhou ao redor como se procurasse alguma coisa. Quando viu o mar, logo a frente, pareceu muito satisfeita; pulou para a mão do menino, empurrou a concha para que ela caísse na areia - o outro só olhava, sem tentar impedir ou ajudar - e em seguida pulou ela mesma. Caiu como cairia uma folha de uma árvore, tão lentamente que parecia flutuar. Acabou indo parar um pouco longe da concha, e teve que correr antes que uma onda a pegasse. Por fim começou a empurrar a concha pela areia, tentando leva-la de volta ao mar.
Nesse momento o outro saiu de seu estado de fascinação inerte, e resolveu que queria a menina com sua concha para si. Abaixou-se e pegou a concha de novo, para desespero da pequena criaturinha, que se viu perigosamente próxima às ondas sem nenhuma proteção. Percebendo o perigo, o menino a pegou também, colocando-a de volta no lugar de onde a vira sair, e no qual ela depressa se refugiou. E então a levou para casa, como sabia que não devia fazer, e como desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo.
A noite o encontrou trancado no quarto, olhando para o pequeno aquário vazio onde colocara a concha. Desde que a trouxera, a pequena menina não aparecera, mas ele sabia que ela estava ali; podia escuta-la se movendo no interior, quando prestava bastante atenção. Sabia que mais cedo ou mais tarde ela apareceria.
Naquele dia ela não apareceu, e nem nos próximos, até se completar uma semana. No oitavo dia, quando o menino nem vigiava mais, ela por fim se mostrou. Apareceu assustada por um dos buracos na concha, olhando ao redor, e ao ver o menino, fez uma cara que poderia indicar raiva - embora fosse dificil identificar expressões em um rosto tão pequeno. Mas por fim saiu da concha, e começou a andar pelo aquário, explorando o lugar. Foi andando até bater de cara no vidro, o que por um momento a assustou muito; mas após apalpar aquele parede quase invisível e identificar seus limites, ela pareceu absorver depressa sua nova situação. Voltou para junto da concha e se sentou ali, esperando.
O menino pensou que talvez ela estivesse com sede, e colocou uma tampinha com água ao seu lado, mas ela se aproximou, tocou com o dedo na água, e não bebeu. Ele pensou que talvez, como ela viera do mar, preferisse água salgada; misturou um pouquinho de sal na água, mas ela continuou não bebendo. Então pensou por fim que misturar sal na água não era exatamente o mesmo que água do mar, e foi correndo até a praia, escondido; voltou trazendo uma garrafa cheia de água. Colocou a água na tampinha, e dessa vez a reação da criaturinha foi diferente: pegou a água com as mãos e a jogou na cabeça, em seguida a passando pelo corpo, como se tomasse banho. Fez isso até que a água acabasse. O garoto pegou então uma vasilha pequena, encheu com a água, e colocou no aquário; a menina prontamente mergulhou na água, e ali ficou a noite inteira.
Com o tempo, o menino foi aprendendo seus hábitos. Ela não só passava o tempo todo embaixo d'água, como parecia poder respirar melhor dentro d'água do que fora, o que fez com que ele enchesse o áquario até a metade com água do mar. Ela também gostava de comer algas e pequenos peixes, que ele arrumava sem dificuldades. Mas embora tivesse tudo o que precisava, ela parecia a cada dia mais triste.
A princípio, era uma tristeza quase imperceptível. Mas conforme os dias passavam, ela comia cada vez menos, nadava cada vez menos, se movia cada vez menos. Ficava o tempo todo deitada num canto no fundo do aquário, ou dentro de sua concha. Por fim, chegou o dia em que parou de comer, e passou a só dormir. Ele fazia de tudo para acorda-la, para tentar distrai-la, mas foi inútil.
Um dia, quando ele acordou, a encontrou boiando no aquário, com o rosto voltado para dentro d'água. Ele se desesperou. A colocou na palma da mão e encostou nela de leve com o dedo, tentando fazer com que ela reagisse, mas foi inútil. Parecia, porém, que ainda respirava. Ele pegou também a concha e correu para a praia, que ainda estava deserta. Colocou a concha na areia, bem perto de onde as ondas chegavam, e colocou a inerte criaturinha ao lado. Mas ela continuou sem se mover.
Ele tentou de tudo: jogou água do mar sobre ela, tentou coloca-la de volta na concha, a cobriu com algumas algas. A hora do almoço veio e passou, e ela ainda estava ali. Apenas quando começava a escurecer ela se moveu, e só muito depois conseguiu se levantar. Olhou ao redor, parecendo não acreditar que estava de volta à praia, e começou a arrastar a concha para a água com todas as forças. Quando finalmente chegou ao lugar onde as ondas se quebravam, e a água começou a querer puxa-la para o mar, ela entrou na concha e esperou. O menino ajudou, a empurrando de levinho. E logo uma grande onda veio e a levou de volta para as profundezas do mar.
Mesmo muitos anos depois, o menino voltaria todos os dias à praia, na esperança de reve-la. Mas ela nunca mais voltou, e nem sua concha foi vista por qualquer um acima do mar.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

[conto #031] Apenas Alguns Milhões de Anos

APENAS ALGUNS MILHÕES DE ANOS

Nós estávamos sentado no alto da torre, contemplando o mar. Esperando.
-- Você sabe que não sou muito boa nessas coisas - eu dizia - mas eu só queria que você soubesse que eu gosto muito de você.
Como se não fosse mais do que óbvio. Como se eu não demonstrasse isso o tempo todo.
-- Eu sei. - uma longa pausa - Também gosto de você.
Isso numa voz baixa, quase um murmúrio. Ele também não era bom nessas coisas. Na verdade, começava a suspeitar de que ele era pior do que eu.
-- Tipo - eu disse - nós estamos juntos há tanto tempo, de uma forma ou de outra, e você me faz bem de um jeito que nenhuma pessoa me fez. Não é que você tenha algo de especial, pelo contrário, você é até normal demais... Mas acho que é justamente por isso. A gente se completa.
-- Verdade.
-- Mas também é justamente por isso que... Não dá pra continuarmos. Não assim. Eu quero conquistar o mundo e você só quer ter uma vida normal. Acaba que nenhum de nós consegue o que quer.
-- Mas teve vezes em que deu certo, não teve? - ele estava quase me deixando perceber o quanto estava desesperado - Lembra daquela vez na Grécia? Deu tudo certo, não deu? E teve aquela outra vez, no Alasca...
-- Você morreu pisoteado por mamutes.
-- Sim, mas fora isso deu tudo certo!
-- Deu tudo certo porque não foi você que teve que recolher os pedaços esmagados da pessoa que mais amava! Você não imagina o que foi aquilo! - respirei fundo, me controlei - Escuta. Isso não importa. Quantas vidas já passamos juntos? Dezenas. A maioria foi muito boa, mas a verdade é que nos falta uma vida em que os dois consigam conquistar seus objetivos! Este mundo não tem mais muito tempo, talvez só o suficiente para duas ou três vidas não muito longas, e eu não quero que ele acabe sem ter feito alguma coisa realmente importante aqui.
-- Você fez muitas coisas importantes aqui. Você descobriu aquele novo tipo de motor, você venceu o torneio de artes marciais, você ajudou aqueles judeus a escaparem dos campos de concentração...
-- Mas eu nunca morri por uma grande causa. Nunca deixei meu nome na história. Eu quero deixar ao menos um dos meus nomes na história.
-- Mas para quê?
-- Porque é pra isso que fui feita. - suspirei - Porque é assim que deve ser.
Ficamos em silêncio. No horizonte, um dos sóis já nascera. Em breve, os outros dois nasceriam também.
-- Você sabe que vamos acabar nos encontrando. - ele disse por fim - É inevitável. Mesmo que eu vá muito depois de você. Fomos feitos da mesma parte do universo e estaremos sempre juntos, até voltarmos para o lugar de onde viemos.
-- Eu sei. - o abracei - Mas se tudo der certo, só vamos nos encontrar quando eu já tiver conseguido realizar meus sonhos.
-- Então, ficaremos uma vida inteira separados?
-- É só uma vida. Já tivemos tantas.
-- Mas é uma vida inteira! Eu não vou conseguir nascer e viver sem você perto de mim...
-- Uma vida passa tão rápido. E você vai conseguir aguentar. Pense que mais cedo ou mais tarde, nos reencontraremos.
O soltei e fui até a beira da torre. O grande pássaro veio voando pelos céus, saído do segundo sol, e parou à minha frente. Eu me virei uma última vez.
-- Em breve nos veremos.
-- Eu estarei te esperando.
-- E eu sempre estarei lá por você.
Subi nas costas do pássaro, que me levou embora para o sol longínquo.


SOBRE A HISTÓRIA

Agradecimentos à Le por me dar a ideia para o conto.