sábado, 12 de janeiro de 2013

[conto #041] O Filho do Vento

O FILHO DO VENTO

O vento a perseguia por mais que ela corresse. Podia vê-lo ao olhar para trás, podia senti-lo ao respirar. Os braços dele quase a enlaçavam, mas ela se desvencilhava e corria mais, sempre mais, sempre fugindo, sempre.
De repente um obstáculo, uma pedra no caminho, e a queda direta ao chão. Sequer tocara o solo e já era envolvida pelo sopro frio, pela cortante paixão não correspondida. Debateu-se e gritou, mas o vento arrancou suas roupas, entrou por sua boca, invadiu seu corpo, enroscou-se por toda ela como se aquela agonia fosse a fonte de seu próprio prazer. E afinal cessou, desaparecendo, deixando no chão apenas um corpo inconsciente e desamparado.
Quando ela acordou, no dia seguinte, descobriu que dera a luz a um filho, que jazia no chão, aos prantos. Acalentou-o, beijou-o, mas não podia ama-lo sem odia-lo, pela lembrança que lhe trazia. A criança era metade ela, e metade vento; seu ser quase etéreo ora se desfazia quase por completo, ora era sólido como tudo o que há no mundo.
Atormentada, ela correu com o filho até o penhasco no fim do mundo, e ali jogou-se, com ele nos braços. Mas antes de chegar ao chão a criança desfez-se em ar, em brisa, em algo mais suave do que o vento, e envolveu a mãe em um abraço tão apertado que seu corpo se partiu e se desintegrou. O filho soprou suave as partículas do corpo da mãe, a fazendo cair como pó sobre todo o Mar que havia no fim do mundo, fecundando as águas com sua própria essência. E então, quando não havia mais nada de sua mãe nele, ele se misturou a seu pai, e os dois se tornaram um novo ser, um ser que era ora ar, ora vento; ora calmaria, ora tempestade; ora amor, ora paixão.
Nas areias da praia, confuso e sozinho, o homem, o único homem de toda a Terra, viu o mar agitar-se por um motivo que ele não podia ver e então novamente se acalmar; e então, de suas ondas, algo se ergueu e aos poucos tomou forma, uma forma que ele nunca vira, como não havia igual no mundo. A forma de uma mulher.
Não havia, nas terras do fim do mundo, outro ser semelhante ao homem, porque ele não pertencia àquele lugar. Todos os outros seres tinham um par, mas não ele; era sozinho. E então surgiu a mulher e saiu do mar, e ele entendeu que ela era como ele, era aquilo que faria com que ele não fosse mais sozinho.
Ela saiu do mar lentamente, como se receasse deixar para trás a matéria de que fora feita; mas ao ver o homem, foi até ele sem receio. Ele com medo, mas decidido a protege-la; ela compreensiva, disposta a se deixar proteger, mesmo que isso não fosse necessário. E eles tomaram para si as terras do fim do mundo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

[conto #040] Silêncio

SILÊNCIO

Era a primeira vez que via o mar, mas ela não via o que os outros viam. Tudo o que eles podiam ver era a água, as ondas, a areia. Ela não; além de tudo isso, ela também o via.
Um homem da cor do mar, jovem demais, velho demais, e que carregava o sal do mar ao invés de um coração. Não tinha alma, ou era ele em si sua própria alma; e ela, por ter os olhos puros e prontos para ver um mundo que nunca vira, era a única ali que sabia de sua existência.
Sem que ninguém visse, enquanto ela fazia castelos que em breve ruiriam, ele se aproximou com o mar e lhe estendeu a mão. Ela o seguiu para dentro do mar, sabendo que não havia nada a temer. Ele a queria, mas também a respeitava. Ele era o deus do mar, o senhor de tudo e todos ali, mas ela, ele sabia, era especial, e os dois eram iguais. Como irmãos, como amantes, como seres que se conheciam há muitas eras e sabiam ter o mesmo poder. Ela sabia que o amava, que o admirava, e que tudo era recíproco. Sabia que ele morreria por ela. Sabia que sua vida estava nas mãos dele.
Ela mergulhou, entregando-se ao mar pela primeira vez.
Nenhum outro poderia tomar o lugar dele em seu coração. Ela pertencia a ele. Da mesma forma, nenhuma outra poderia controlar suas ondas, acalmar suas marés ou provocar a fúria de suas tempestades. Os dois se completavam e se atendiam. Os homens da terra não entendiam, jamais poderiam entender. Nenhum outro ser da terra podia ver os espíritos como ela via.
Também havia outros, claro. Espíritos do céu, da terra, dos rios, das florestas. Mas era apenas o espírito do mar, o seu espírito, que conseguia entende-la e completa-la. Ambos eram silenciosos; ela se sentava na areia, ele se integrava ao mar, e ficavam apenas se olhando e ouvindo as palavras sem sons um do outro. Amar era contemplação.
Imortal. Era o que ele era, era o que ela não sabia ser. Porque, se estavam ali agora, era porque já haviam estado juntos antes. Ela era verdadeira demais para acreditar no amor, e por isso ele existia para ela. Estavam juntos há mais tempo do que o tempo existia, e continuariam juntos mesmo depois que tempo não houvesse mais.
Restando pouco para que completasse a idade certa, porém, ela se foi. Não para sempre, como nada é para sempre; apenas foi para o alto, para um lugar em que o mar nunca poderia alcançar, ou nunca nos próximos milhões de anos. Foi para a terra, a terra distante, longe de tudo o que ele já vira, longe dele.
Ele sofreu por muitos e muitos anos.
Imperfeito, apesar de sua perfeição. Era assim que ele era, imperfeito como ela, porque eram iguais. Ela sofreu, ele sofreria. Distantes. Perto demais para suportar uma distância tão longa, tão persistente. Mas ela nunca se esqueceria do seu cheiro, seu sabor. As lágrimas constantes eram uma recordação que não a deixava.
Sempre que o sol brilhava, ela se lembrava dele. Sempre que o sol se punha, ele se lembrava dela. Porque ela era quente como a noite e ele era frio como o dia, e eles se contemplavam em silêncio.
Um silêncio maior do que qualquer palavra que pudesse ser dita.
Após muitos e muitos anos, ela voltou. Ao contrário do que se poderia imaginar, não foi correndo até ele e se jogou em suas ondas. Não. Ainda distante, o contemplou durante bastante tempo. Em silêncio, devagar, aproximou-se; em silêncio, devagar, foi entrando nele, deixando que suas águas frias a envolvessem aos poucos. Apenas quando a água estava em sua cintura se permitiu falar, e suas palavras foram apenas um olá, um eu voltei. Eu senti sua falta. Coisas que não precisavam ser ditas, coisas que era óbvias. Coisas que precisavam ser ditas mesmo assim. Mesmo que um visse todos os pensamentos do outro em seus olhos, mesmo que um soubesse de cada sombra e cada luz na alma do outro. E após ser dito, afinal o silêncio, a permissão para que suas almas se ligassem novamente, com dor como devia ser, com amor como era inevitável.
Finalmente, o mergulho, submergir completamente em seus braços, perder-se, afogar-se, navegar sem rumo por suas águas, ser guiada por suas marés. Ir até o fundo de seu ser, emergir antes que fosse impossível voltar. Sabendo que morrer em seus braços, morrer envolta por ele, seria inevitável um dia; mas não agora. Era cedo.
Aos poucos, ela reaprendeu a doma-lo, a controla-lo. Ele não a obedecia, apenas atendia aos seus desejos. Quando suas águas estavam revoltas, bastava que ela o tocasse suavemente, e se acalmava. Ela tinha o segredo para sua alma, e ele era sua própria alma. Tristeza ou dor não havia enquanto estavam juntos.
Lágrimas houveram, claro. Porque o próprio amor dói, é pesado demais para ser carregado, e por vezes transborda, incontido. As vezes, ela submersa nele, lágrimas saíam de seu rosto e se misturavam à sua essência. Mas então ela fechava os olhos, e eles se entendiam; porque o silêncio e a solidão são mais suaves quando compartilhados.
Todos os anos que ela viveu foram assim, até que o universo se partiu, até que o mundo deixou de existir.
Até que afinal eles se unissem para sempre em um só ser, em infinitas particulas de silêncio vagando na escuridão.