sexta-feira, 25 de julho de 2014

[conto #061] Aquela que o Levará

AQUELA QUE O LEVARÁ

Havia chovido, então a rua estava molhada e o ar estava úmido. Havia pequenas poças pelo asfalto, refletindo a luz dos postes. Gabriel ia a pé, levando a bicicleta, cuja corrente quebrara. Passou ao lado do cemitério, e se deteve um instante para olhar.
Uma garota estava parada, de pé, em meio às lápides. Ela olhou para ele, e o olhar dos dois se encontrou.
Ela devia ter mais ou menos a idade dele. Era muito branca, tinha cabelos longos e usava roupas escuras. Mais do que isso ele não saberia dizer, por causa da pouca luz do outro lado do muro.
O muro baixo, que separava as lápides do mundo dos vivos.
Eles ficaram se olhando por quase um minuto completo. Então a garota voltou a olhar as lápides, e Gabriel seguiu seu caminho pela rua deserta.

* * * * *

Havia chovido, então a rua estava molhada e o ar estava úmido. Havia pequenas poças pelo asfalto, refletindo a luz dos postes. Gabriel pedalava a sua bicicleta, pela rua deserta que ao longe parecia brilhar. Ao passar ao lado do cemitério, ele parou a bicicleta e olhou.
A mesma garota estava sentada no muro do cemitério. Parecia esperar alguém.
Talvez esperasse por ele.
Agora, ao alcance da luz, ele podia vê-la melhor. Usava um vestido preto e estranho, era muito branca, e segurava uma enorme e ameaçadora foice.
A morte.
Ele sempre se perguntara de onde surgira aquela representação da morte com uma foice, mas ali estava ela. Só que não era um esqueleto usando um manto negro, e sim uma garota adolescente, de certa forma bonita, usando um vestido gótico.
Que estranha forma de morrer, ele pensou.
Porque se a morte estava ali diante dele, então aquele só podia ser seu fim.
Estranhamente, ele não pensou em fugir. Ficou parado diante dela, segurando a bicicleta. Esperando.
Aceitando.
Mas a garota não se moveu. Continuou apenas olhando para ele. Era assustadora em certas formas, e bela em outras. Uma garota sozinha na escuridão da noite, trazendo a morte consigo.
Nesse momento um homem se aproximou pela rua. Parecia bêbado, vinha falando sozinho e tropeçando em si mesmo. Gabriel olhou para o homem. A menina olhava para Gabriel.
Quando o homem estava muito perto, a menina se levantou. Era muito alta, mas a foice era ainda maior do que ela. Foi em direção ao bêbado, que cantarolava, parecendo incapaz de vê-la. E com um único movimento da foice, cortou fora sua cabeça.
Gabriel não se moveu, paralisado por fascínio e terror. A cabeça do homem caiu no chão, e só depois o corpo caiu também. Uma quantidade considerável de sangue vazou do corpo e escorreu pelos paralelepípedos molhados, formando uma mancha vermelho-escura.
A garota voltou-se para ele.
Gabriel ainda pensou que o medo seria um sentimento bastante razoável de se sentir naquele momento. Mas tudo o que sentia era uma enorme fascinação pela garota pálida à sua frente, com sua foice prateada e seus olhos tranquilos.
Lentamente, ela se aproximou dele. Mas ao invés de ataca-lo, ficou apenas parada, a poucos passos de distância.
— Você não sente medo?
A voz dela era como um sopro frio na noite. Ele sentiu um arrepio ao ouvi-la.
— Não.
— Eu vou te matar.
— Eu sei. - ele largou a bicicleta, e ela caiu no chão - Mas eu não sinto medo de morrer por suas mãos.
Os dois ficaram se olhando por um longo tempo. Então ela lhe deu as costas, e foi novamente em direção ao cemitério. Pulou o muro baixo, e desapareceu na escuridão da noite.

* * * * *

Havia chovido, então a rua estava molhada e o ar estava úmido. Havia pequenas poças pelo asfalto, refletindo a luz dos postes. Gabriel ia a pé pela rua deserta. Parou diante do muro do cemitério, e ali ficou, esperando. Não havia ninguém ali daquela vez.
Após alguns minutos, a garota apareceu.
Dessa vez, não veio de dentro do cemitério. Surgiu no meio da rua, em meio a um redemoinho de névoa, e não carregava sua foice. A chuva fina recomeçou a cair, criando cristais dourados em seus cabelos. Gabriel se aproximou dela.
— Qual é o seu nome?
— Eu não tenho nome. - a mesma voz que era como um sopro.
— Você é um fantasma?
— Não.
— Você é a morte?
— A morte não é uma pessoa, para que eu possa ser ela. Mas eu a carrego comigo.
— Por que você mata pessoas?
— Porque sinto fome.
— Você é o que?
— Sou alguém que traz a morte ao mundo.
— Você é humana?
— Sim. - ela pareceu hesitar - Ou era, há muito tempo atrás.
Os dois ficaram em silêncio, se olhando. Ela parecia se tornar mais humana quanto mais ele olhava para ela.
— Eu posso tocar em você? - ele disse.
Ela demorou a responder.
— Ninguém nunca tocou em mim.
— Se eu te tocar, eu vou morrer?
— Não sei.
Lentamente, ele estendeu a mão e tocou no rosto dela. Ele esperava encontrar uma pele fria como gelo; mas ela tinha um calor suave, por baixo das gotas frias de chuva.
Mas quando ele se aproximou mais, ela desapareceu. Tudo o que restou foi o fantasma de seu calor, que desapareceu instantes depois.

* * * * *

Havia chovido, então a rua estava molhada e o ar estava úmido. Havia pequenas poças pelo asfalto, refletindo a luz dos postes. Gabriel estava sentado no muro do cemitério, esperando.
Mas quem apareceu não foi a garota. Foi um homem.
Ele era alto, e pálido como um cadáver. Sua roupa também era preta, e ao contrário da garota, tudo o que havia nele era assustador.
Gabriel se levantou depressa. Aquela pessoa claramente não era humana.
— Olá, Gabriel. - ele disse, e sua voz era de uma frieza de túmulo - Esperando alguém?
O rapaz não respondeu. Ficou parado, olhando para o homem. Sentia que, se desviasse o olhar ou corresse, seria seu fim.
— Você parece assustado. - o homem se aproximou - Gostou de tocar na sua amiga ontem? - ele estendeu a mão - Por que não me toca também, para ver o que acontece?
De alguma forma, Gabriel sabia que um toque daquela pessoa era mais mortal do que a foice que a garota usava. Mas não recuou, mesmo quando a mão se aproximou dele.
E então, outra mão, menor e não tão branca, segurou o braço que se aproximava. A mão da garota.
Ela surgira ali ao seu lado, e segurara o braço do homem antes que tocasse em Gabriel. Os dois se olharam de forma fria.
— Olá, minha criança. Vim cumprimentar o seu amigo.
—  Vá embora.
— E o que você pensa em fazer com ele?
— Vá embora. Agora.
O homem suspirou, e acabou por se afastar.
— É assim. Nós criamos as crianças, e depois que crescem, elas esquecem tudo o que fizemos por elas. - ele lhes deu as costas e saiu andando pela rua - Você ainda vai precisar muito de mim, minha pequena.
E então ele desapareceu. Os dois ficaram sozinhos ali.
— Ele... É seu pai?
— Não.
— É seu chefe?
— Não. Ou talvez, de certa forma, seja.
Os dois ficaram em silêncio. A garota o olhava.
— Eu preciso matar você.
— Eu sei.
— Eu devia ter te matado desde a primeira vez que você me viu.
— Eu sei.
— Não está em meu poder escolher.
— Tudo bem.
Novamente, o silêncio. Ela fez um gesto, e a foice surgiu em sua mão. Mas então uma névoa a envolveu, e ela se transformou em uma pequena faca prateada.
— Vai doer? - ele perguntou.
— Não.
Ela se aproximou dele, e dessa vez foi ela a lhe tocar o rosto, da mesma forma suave que ele fizera da outra vez. Ele retribuiu o toque, e pensou ver lágrimas prateadas surgirem no canto dos olhos dela.
— Foi bom conhecer você. - ele falou. Queria que ela soubesse disso.
E pela primeira vez, ele a viu sorrir. Um sorriso suave, tímido, mas sincero. Então ela se aproximou e tocou seus lábios nos dele, suavemente; e o calor macio que vinha dela conseguiu tornar insignificante o frio da lâmina em seu peito. E no segundo seguinte, ele já não existia.
A garota deitou o corpo dele no chão, sobre as pedras úmidas do calçamento. Uma lágrima caiu de seus olhos sobre ele. Era a primeira vez que ela via lágrimas em si mesma.
Com um último olhar para o rosto dele, ela desapareceu.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto faz parte de uma série de contos sobre essa menina-morte, embora um não necessariamente tenha relação com o outro. Os outros dois contos já publicados dessa série são Pequena Morte e Caçadores de Chuva.

* * * * *

Essa é a semana de aniversário de 6 anos desse blog! Em comemoração a esses tantos anos de contos malucos e fanfics pornográficas, estou publicando um post por dia, todos os dias. Esse foi o último post dessa semana de aniversário, espero que todos tenham gostado!

* * * * *

É gente, por incrível que pareça, o Contos de Vitoria completa mais um ano!
Eu comecei esse blog apenas como um "laboratório de escrita", por assim dizer - e de certa forma, é o que ele é até hoje. Nunca esperei que alguém fosse se interessar em ler, muito menos que fossem ficar esperando que eu publicasse alguma coisa. Por isso, o fato de eu ter milhares de visualizações de página todos os anos, e algumas centenas todos os meses, me surpreende e me alegra muito. Principalmente levando-se em conta o tipo de coisa que eu escrevo, o tempo que eu passo sem escrever, e a qualidade instável do material publicado (não leiam minhas poesias, por favor).
Muito obrigada a todos os que leem, gostam, não gostam, releem, pedem fanfics, reclamam e me mandam sugestões. Vocês moram no meu coração =)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

[fanfic #009] [capítulo #001] [U2] Ausência

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AVISOS:
  • História não recomendada para menores (temas adultos)
  • Contém sexo hétero e gay




AUSÊNCIA

CAPÍTULO 1

Inglaterra, 1996

— Não, Ali, eu sei que... Não, não, eu sei... Mas... Não, eu já disse que... Vai ser só... Que droga, você quer me escutar? Eu já disse que houve um atraso na... Será que eu não posso falar duas palavras sem que você me interrompa? Ah, quer saber? Foda-se se você não acredita em mim! Faça o que bem entender!
Bono bateu o fone no gancho, xingando Deus, o mundo, e Ali. Adam entrava na sala, e disse:
— O Bono está nervoso, mandem parar o mundo. O que aconteceu?
— Ela! – Bono disse, nervoso – A Ali, aquela...
— Aquela mulher com quem você é casado há treze anos e com quem tem duas filhas?
— Que droga, Adam. – Bono se acalmara um pouco – Por que você sempre tem que me lembrar desses detalhes?
— Porque eu sou seu padrinho de casamento. – Adam pôs a mão sobre o ombro de Bono – Vai com calma, Bono. Todo casal briga de vez em quando.
— Eu sei. – Bono suspirou – É só que... Ultimamente, a Ali anda tão... Ela mudou muito nos últimos tempos.
— As pessoas mudam, é natural.
— Eu sei, mas ela mudou de um jeito que... Ela não confia mais em mim.
— Porque você dá motivo pra isso. Você também mudou muito, Bono. E não foi pra melhor.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Bono confirmou o que Adam dissera.
Eles haviam acabado a gravação daquele dia – que já devia estar pronta há duas semanas – e estavam saindo a pé de um bar, quando Bono disse:
— Podem ir indo, eu vou passar em um lugar.
— Aonde você vai? – disse Larry.
— A um lugar. – disse Bono, já descendo a rua.
— Espero que não seja um daqueles lugares que sua mulher reprovaria. – disse Adam.
— Não enche, Adam.
Bono seguiu, sem hesitar, até o lugar em que costumava ir com certa regularidade sempre que estava na Inglaterra – embora já fizesse um tempo que não aparecia; mas, quando chegou na porta, hesitou. Lembrou-se do que Adam dissera, lembrou–se de Ali. Uma coisa era quando alguma fã invadia seu quarto, e ele ainda estava tomado pela excitação de um show; outra, bem diferente, era procurar outra mulher sem motivo algum. Certo, ele tinha motivos: estava há quase um mês longe de casa, e esse tempo todo sem sexo estava deixando ele louco. Mas isso não era um motivo que justificasse o que estava prestes a fazer, e ele sabia disso.
Por um instante ele esteve prestes a voltar. Chegou a dar um passo para trás. Mas, nesse momento, a porta se abriu e um homem saiu, alegremente. Duas belas garotas acenaram para ele, pedindo que retornasse em breve; e em seguida voltaram suas atenções para Bono.
— Olá, Bono. – disse uma delas – Não quer nos agraciar com sua presença?
Que se danem os motivos, Bono pensou. E, além do mais, a culpa era de Ali por não estar ali. Ele seguiu as mulheres para dentro da casa.
Era um lugar grande, com três andares. No térreo havia um grande salão com um bar, onde os clientes escolhiam as garotas, e onde de hora em hora havia algum tipo de show; no primeiro andar, ficavam os quartos comuns; e o segundo andar era reservado aos clientes especiais. Eram os melhores e maiores quartos, os mais luxuosos e caros. E esse era o andar para homens como Bono.
O lugar já estava lotado. Bono se sentou em uma das mesas, e logo a dona da casa foi lhe dar as boas vindas.
— Bono, querido. – disse a mulher, sentando–se na mesa de Bono – Que prazer ver você aqui. Fazia tempo que não aparecia.
— Oi, Dolly. Só vim pra dar uma olhada. Não vou levar ninguém.
— Ora, Bono, o que é isso... Você nunca sai daqui de mãos vazias. Eu tenho umas meninas novas, dê uma olhada, tenho certeza de que vai gostar...
— Obrigado, não estou interessado.
— Hum... – ela deu um sorrisinho malicioso – Não vai me dizer que se rendeu aos encantos daquele belo rapaz que toca guitarra na sua banda...
Bono abriu a boca para responder; mas nesse momento algo chamou sua atenção, e ele parou. Do outro lado do salão estava uma garota muito diferente das que andavam por ali. Parecia quase uma garota normal, não uma prostituta. Mesmo suas roupas eram quase normais. E era muito nova, com longos cabelos negros e olhos azuis brilhantes.
Dolly seguiu o olhar de Bono, e sorriu.
— Gostou?
— Quem é ela?
— O anjo da casa. Angel. Chegou há duas semanas.
— Angel... – ele sorriu – Linda...
— É a nossa peça mais cara. Você perdeu. Ela chegou aqui virgem.
— Virgem?
— Virgem.
— Quantos já pegaram?
— Três. Não é pra qualquer um.
Não era mesmo. Ela andava pelo salão como se flutuasse, sequer olhava para os clientes. Bono a seguiu com o olhar, até que ela desapareceu por uma porta.
— Certo. – Bono suspirou, vencido – Eu quero ela.
— Ótimo. – a mulher sorriu – Você quer que ela venha pra cá ou quer encontra-la no quarto?
— No quarto. Não quero que me vejam com alguém.
— Certo. Eu vou mandar ela subir.
A mulher se foi, e voltou quinze minutos depois.
— Tudo pronto. Pode subir. A mandei para o quarto 205. É o nosso maior.
— Certo. – Bono se levantou com um sorriso.
— Olha – disse Dolly, enquanto o acompanhava até o elevador – vá com calma, certo? Ela é um pouco tímida. E é uma garotinha.
— Pode deixar.

* * * * *

Bono deu uma leve batida na porta e entrou. O quarto era enorme e ricamente decorado, a cama era grande e convidativa, as paredes eram cobertas por espelhos. Mas não foi nada disso que chamou sua atenção. Foi a garota sentada em uma cadeira, logo à sua frente.
Ela era ainda mais bonita vista de perto. Bono gostava de escolher garotas de “olhos espanhóis”, como os de Ali; mas aqueles olhos azuis que ele via agora eram simplesmente maravilhosos. Ele nunca vira uma prostituta tão bonita. E de aparência tão inocente.
— Olá. – ele disse, trancando a porta atrás de si.
A primeira reação da garota foi de espanto.
— Você... – ela exclamou, incrédula. Bono sorriu.
— Bono, a seu dispor.
Ele beijou a mão dela, e ela se levantou. Ainda parecia surpresa, quase assustada.
— Angel. – disse Bono, ainda segurando a mão da garota, e a analisando de cima a baixo – Você é realmente linda.
Ela corou.
— Obrigada.
Mesmo se Bono não fosse um especialista em mulheres, ele facilmente perceberia que a garota estava tensa. E ele não era o tipo de cliente que se preocupava só com o próprio prazer. Disse:
— Vamos beber alguma coisa?
— Se o senhor quiser...
A voz dela era pouco mais que um sussurro. Bono riu.
— Vamos, nada de “senhor”. – ele passou a mão pelo rosto dela, carinhosamente – Me chame de “você”.
— Sim, senhor. – ela corou ainda mais – Digo... Sim.
— Vamos ver. – ele foi até o pequeno bar do outro lado do quarto – O que você vai querer? Vinho, uísque, champanhe...
— Tanto faz. O que você quiser.
Ele encheu duas taças com vinho e voltou para junto de Angel. Entregou uma taça a ela, dizendo:
— Vamos brindar.
— À que?
— A essa noite.
Eles brindaram, mas Angel praticamente não bebeu.
— Não gostou do vinho?
— Gostei... É só que... Eu não costumo beber.
— Você vai se acostumar rápido. – ele pegou a taça e a levou aos lábios dela – Vai te ajudar a relaxar.
Angel acabou bebendo tudo. Bono colocou as taças vazias sobre a mesa e se voltou para a garota.
— Você gosta de música?
— Gosto.
Bono ligou o som, colocando um disco de músicas românticas.
— Dança comigo?
Ele a abraçou, sem esperar resposta, e a puxou para junto de si. Os dois começaram a dançar, e logo a garota parecia mais calma: apoiou a cabeça no ombro de Bono e deixou que ele a guiasse.
— Quantos anos você tem?
— Dezoito.
— É bem novinha.
— Você... Gosta de meninas mais novas?
— Não tenho tara por garotinhas. – ele se afastou um pouco para poder olhar para ela – Mas uma garota como você deixa qualquer homem louco.
Ela sorriu. Bono tocou no rosto e nos cabelos dela e se aproximou mais. Angel passou a mão pelo rosto dele, encantada, e ele tentou conseguir um beijo. Ela quase aceitou, mas então se lembrou do motivo que os trouxera ali, e se afastou.
— Não. Nada de beijos.
— Por favor, querida. – ele buscou os lábios dela – Eu pago o dobro pelos beijos.
— Não é questão de dinheiro. – ela o evitou.
— Certo. – Bono suspirou – Sem beijos, então.
Como não podia beijá-la na boca, Bono se contentou em beijá-la no pescoço, no rosto, nos ombros. No início ela parecia um pouco perdida, mas logo começou a corresponder aos carinhos. Não demorou muito para que Bono se empolgasse e a mandasse abrir sua calça. Angel obedeceu, e logo ele estava gemendo e murmurando coisas, enquanto ela o tocava.
— Ah, isso é bom... – ele passava as mãos pelo corpo dela com desespero – Você é tão gostosa...
Ela tirou a camisa dele, e ele a fez se ajoelhar. Ela deixou que ele implorasse um pouco, e então fez o que ele queria. Bono adorava aquilo, e deixou que durasse bastante tempo; podia acabar assim, mas ainda queria mais, então se afastou.
Angel se levantou e esperou que Bono se recuperasse, abraçada a ele. Ele teve que respirar profundamente algumas vezes, até sentir que era capaz de falar novamente.
— Isso foi incrível. – ele a puxou para si – Eu amo sua boca.
Ele beijou o pescoço dela, enquanto a encaminhava para a cama. A soltou e se deitou, dizendo:
— Eu quero te ver nua.
Por um momento ela hesitou, mas logo recuperou o ar profissional. Subiu nele, com o corpo dele entre suas pernas, e abriu o zíper do vestido, tirando-o lentamente. Quando tirou o sutiã, Bono quase perdeu o fôlego.
— Você é perfeita... – ele agarrou os seios dela – Perfeita...
Angel deixou que Bono brincasse com seus seios durante um tempo, mas então o empurrou de volta para a cama. Tirou o resto da roupa e se deitou sobre ele. Bastaram algumas carícias para que ele se empolgasse novamente: a jogou na cama e subiu nela, invertendo as posições. Beijou todo o corpo da garota, explorando cada parte. Estava desesperado por um beijo na boca, precisava daquilo, queria sentir outra língua junto da sua; mas a garota o negou novamente. Ele não tinha mais tempo para preliminares, queria se saciar, e queria agora.
A garota se inclinou para a cabeceira da cama e pegou uma camisinha. Bono deixou que ela colocasse nele, e então a empurrou de volta para a cama. Entrou nela lentamente e parou por um momento, saboreando a sensação. Começou a se mover devagar, mas seu corpo exigia mais, e logo ele alcançara um ritmo rápido.
Houve várias mudanças de posição; a mesma inquietação que Bono tinha no palco, ele demonstrava na cama. Só quando estava sentado, com a garota em seu colo, ele pareceu satisfeito. Passaram-se mais dez minutos; Bono mordeu os lábios e fechou os olhos, a respiração acelerada, e em seguida gritou, apertando a garota contra si em um abraço sufocante.
Angel ainda sentia os gritos ecoarem pelo quarto quando ele saiu de dentro dela e se deitou na cama. Ela se deitou ao seu lado e esperou.
Demorou tanto para que ele abrisse os olhos que ela chegou a pensar que ele dormira. Mas aos poucos a respiração de Bono voltou ao normal; ele abriu os olhos e olhou para a garota ao seu lado.
— Hum... – ele deitou no peito dela – Isso foi ótimo...
Ela ficou em silêncio, o olhar distante, parecendo perdida em outro mundo. Bono olhou para ela e beijou seu rosto e seu pescoço.
— Você gozou?
— Ahm... Não.
A pergunta parecia tê-la deixado um pouco confusa, como se ela nunca tivesse sido questionada sobre aquilo. Bono desceu a mão para entre as pernas dela, mas ela o afastou, parecendo assustada.
— Não.
— Eu quero te dar isso.
— Não precisa.
Bono se ergueu um pouco.
— Qual o problema?
— Nenhum. – ela se afastou e se sentou na cama – Eu só não quero.
— Não quer sentir prazer?
— Não é pra isso que eu sou paga. – ela parecia estar quase chorando.
— Você nunca sentiu?
— Isso não importa. Você já teve o que queria. Vá embora, por favor.
Aquela atitude deixou Bono surpreso, para dizer o mínimo. Ele olhou para ela, atônito.
— Geralmente as garotas me pedem para ficar.
— Mas eu não sou como elas.  – agora, o tom dela era ríspido – Eu não quero, não você. Vá embora, por favor.
Ele nunca fora rejeitado daquela forma. Ou nunca nos últimos doze ou treze anos.
— O que houve? – ele tocou nos cabelos dela – Eu fiz algo de errado?
Ela se levantou bruscamente e se afastou.
— Não. Eu só estou pedindo pra você ir embora. Já fiz o meu trabalho, você não tem que ficar aqui.
Bono ainda pensou em dizer alguma coisa, mas desistiu. Levantou-se e se vestiu, em silêncio. Angel ficou mexendo distraidamente em um copo, sem olhar para ele. Quando já estava na porta, ele se voltou para ela.
— Você devia ser um pouco mais calorosa. Não adianta só ser bonita.
Angel olhou para ele, mas nada disse. Bono saiu, fechando a porta atrás de si.

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quarta-feira, 23 de julho de 2014

[conto #060] O Caminho de Pedras

O CAMINHO DE PEDRAS

Eram os primeiros dias de outono, e já começava a esfriar. O chão da floresta aos poucos se transformava em um mar de folhas secas, e o vento do fim do dia soprava cada vez mais forte.
Sendo o mais velho dos sete irmãos, cabia a João ir com o pai para a floresta. Enquanto o pai caçava, o garoto cortava lenha. Nos dias mais quentes, iam também sua mãe e sua irmã Maria, a segunda mais velha e apenas um ano mais nova do que ele. As duas colhiam frutos, raízes e ervas; mas agora era frio, e pouco havia para ser colhido. Por isso, João e o pai iam sozinhos na maioria das vezes.
Naquela noite, João completava catorze anos.
Ele não se lembraria da data, não fosse por sua irmã. A menina se jogou em seus braços quando ele entrou, recebendo-o com beijos e carinhos.
— Feliz aniversário, João! Eu e mamãe fizemos um bolo pra você!
Fazia muito tempo que nenhum dos filhos ganhava um bolo no dia do aniversário, pois os tempos eram difíceis; por isso, a visão daquele bolo fez lágrimas brotarem nos olhos do garoto, mas ele depressa as enxugou. Já era um homem, afinal; não podia chorar na frente dos irmãos.
— Obrigado, Maria. Obrigado, mãe. Não era preciso.
— Claro que era, irmão. - disse Maria - Afinal, você agora é um adulto. Esse bolo não é apenas uma comemoração pelo seu aniversário, é também um agradecimento por você ter sempre cuidado de nossa família.
— Obrigado, minha irmã.
Após comer o bolo com os irmão e ajudar o pai a empilhar a lenha e preparar a caça, João foi se deitar. Aquele fora um dia muito cansativo, e teria que acordar antes do sol no dia seguinte, para adentrar novamente a floresta. Assim seria até que começasse a neve, quando então teriam que ficar em casa, sobrevivendo daquilo que haviam conseguido juntar. No último inverno, a mais nova de suas irmãs, recém-nascida, não resistira e morrera de fome e frio. Ele não deixaria que isso acontecesse novamente.
Ele se despiu e se deitou. Apesar do frio, ele tinha um grosso cobertor, capaz de aquece-lo até na mais fria das noites. Também era parte de seus privilégios como primogênito o fato de ter um quarto só para si, enquanto seus irmãos mais novos dividiam quartos e camas.
Pouco depois de as luzes da casa terem sido apagadas, ele ouviu a porta do seu quarto abrir. Virou-se na cama, e viu Maria entrar, carregando uma vela. A menina fechou a porta e aproximou-se de sua cama, pé ante pé, sem produzir ruído.
— O que houve, Maria? - ele disse, mas Maria colocou um dedo sobre os lábios dele, e ele se calou. Ela deixou a vela sobre a mesinha de cabeceira, e João insistiu - Está sentindo alguma coisa? Quer que chame mamãe?
Mas Maria apenas se ajoelhou ao lado da cama e disse:
— Feliz aniversário, João.
— Obrigado. - ele estava confuso - Mas você já me deu os parabéns.
— Mas ainda não lhe dei seu presente.
— Não desejo presentes, Maria. Tenho você e nossos irmãos, o que mais posso desejar?
— Por favor, João - ela sussurrava - se me ama, aceite o presente que lhe trago.
— Claro que a amo, e ficarei feliz em aceitar qualquer presente que me der.
— Jura por Deus que aceitará o que eu tenho para você?
— Juro.
Em silêncio, Maria se levantou. Afastou-se alguns passos, sem tirar os olhos de João. E então, lentamente, deixou a camisola escorregar por seu corpo, ficando nua diante dele. João se sentou na cama.
— Maria, o que...
Ela foi até ele e subiu na cama. A luz da vela parecia criar contornos irreais para o corpo dela, além de lhe dar uma palidez suave como a da lua. Ela colocou a mão dele sobre sua cintura, e ele pôde sentir seu calor, suave e convidativo como a primeira luz do sol depois das noites de inverno. A pele dela era macia como o mais macio dos tecidos que ele jamais tocara, e quando ela se aproximou, ele pôde sentir seu perfume, uma mistura de todos os cheiros doces da primavera.
— Não, Maria. - ele tentou afasta-la - Somos irmãos. Isso é pecado.
— Eu quero ser aquela que te tornará um homem, meu irmão. - ela se abraçou a ele - Você jurou por Deus que aceitaria o presente que eu tenho para você. Desonrar um juramento também é pecado, e quem há de decidir qual pecado é maior?
O perfume e o calor dela tornavam quase impossível formar pensamentos coerentes. João ainda tentou afasta-la mais uma vez, mas ela juntou seus lábios em um beijo casto, mas coberto de promessas. Antes mesmo de perceber o que fazia, ele a puxava para si em novos beijos e a deitava em sua cama, e perdia-se completamente nela.
No dia seguinte, ao acordar sozinho em sua cama, por um momento ele acreditaria que tudo não passara de um sonho profano. Mas então veria a mancha de sangue no lençol; o sangue do pecado de sua irmã, uma prova incontestável do que acontecera. E quando seu pai viesse bater à sua porta, ele ainda estaria chorando, enquanto murmurava inutilmente uma oração.

* * * * *

No fim daquela tarde, João foi para o quintal, guardar a lenha que colhera na floresta. Acabara de empilhar os primeiros troncos no depósito, quando virou-se e deu de cara com Maria, que o assistia a poucos passos de distância. Por um segundo ele teve vontade de se jogar nos braços dela e pedir perdão; mas tudo o que fez foi continuar guardando a lenha, como se sequer a tivesse visto.
— Como foi o dia, irmão? - Maria disse, da mesma forma que dizia todos os dias - Colheu muita lenha?
— Sim. - ele disse, sua voz fria como gelo.
— João? Por que não olha pra mim?
Ele não respondeu. Continuou a guardar a lenha no depósito, até que, ao se virar de costas para a irmã, se viu abraçado pelos mesmos braços delicados que o haviam enlaçado com tanta paixão na noite anterior.
— Se me odeia, irmão - ela disse, e ele podia sentir a dor em suas palavras - basta dizer-me, e irei embora. Irei para longe, e jamais terás notícias minhas novamente. Mas não pedirei seu perdão, pois tudo o que fiz ontem faria de novo hoje e quantos dias mais eu viver, porque te amo.
— Não pode me amar, Maria. - ele não olhava para ela - Sou seu irmão, e esse amor que você sente é pecado aos olhos de Deus.
— Você não me ama, João? Não me desejou ontem? Não passou o dia hoje desejando que tudo acontecesse de novo mais mil vezes? - ele não respondeu - Eu irei novamente ao seu quarto essa noite. Se me amas, deixe a porta aberta e me espere. Mas se não me ama, se seu amor por Deus é maior do que seu desejo por mim, então tranque a porta, e no próximo amanhecer já estarei longe daqui, levando comigo meu pecado mortal.
Com isso ela o soltou e correu de volta para a casa. João ficou ainda um longo tempo parado ali, deixando que o vento frio levasse embora suas lágrimas.
Naquela noite, ao entrar em seu quarto, ele trancou a porta.
Como em todas as noites, ele rezou, despiu-se e se deitou. Mas, apesar do cansaço que sentia, não dormiu. Ficou olhando para a porta, esperando por algo que ele não sabia exatamente o que era.
Talvez ela não viesse. Talvez tivesse se arrependido.
E mesmo que viesse, tudo o que encontraria seria uma porta fechada. E no dia seguinte, quando todos acordassem, encontrariam sua cama vazia, e ela já não estaria ali. Nunca mais a veriam. Ninguém, nunca mais, teria notícias dela.
Ele ouviu passos no corredor.
A pele dela, pálida como a luz da lua. Seus cabelos soltos, sobre os ombros nus. Seus seios, doces e pequenos.
Pela estreita fresta da porta, ele pôde ver a luz de uma vela.
Os lábios rosados, macios, doces. Sua cintura fina e delicada, sua pele macia e quente. O calor de seu corpo, no qual ele mergulhara, quente acolhedor, febril...
A maçaneta da porta foi virada, mas o trinco impediu que a porta abrisse. Após um segundo de hesitação, a maçaneta foi girada novamente - como se a pessoa não acreditasse que realmente estava trancada. Em seguida o silêncio, e então o som dos passos se afastando.
João pôs-se de pé com um salto e vestiu apenas a calça antes de abrir a porta. Ali, no corredor, olhando-o assustada, estava Maria. Lágrimas escorriam por seu rosto rosado.
Sem se importar com o barulho que podia estar fazendo, João foi até ela e a puxou para si. A vela caiu no chão, apagando-se e deixando tudo na mais completa escuridão. Ele carregou Maria para seu quarto, e antes mesmo de trancar a porta já a estava prendendo em um beijo desesperado.
A camisola de Maria era de um tecido pesado e grosso, e João sabia que um bom marido jamais deveria remover as vestes da esposa. Mas ela não era sua esposa, nem era ele um bom marido; de forma que arrancou as roupas de ambos, e foi em uma tempestade de pele junto a pele que ele a tomou para si.
Dessa vez, ao contrário da noite anterior, ele não se preocupou em se conter. Não houve, dessa vez, nenhum sinal de culpa ou timidez, e a única coisa que calou seus gritos foram os beijos dela; e no fim da noite, quando ela fez menção de se levantar, ele a impediu.
— Fique.
— Tenho que ir. - ela se sentou na cama - Você precisa dormir, pois em breve papai virá te chamar para ir com ele à floresta.
— Então prometa-me que virá novamente na próxima noite.
— Eu prometo.
Ela o beijou uma última vez, e se foi.

* * * * *

Maria escondeu-se dentro de um dos armários, ouvindo. Todos os seus irmãos dormiam, mas seus pais conversavam na cozinha.
— Eu não quero acreditar, mulher. - dizia o pai - Mesmo você tendo me dito, e mesmo eu tendo visto com meus próprios olhos, não quero acreditar.
— Abra seus olhos, homem. - a mãe respondeu - Eu já estava desconfiada, isso deve estar acontecendo há meses. Maria pecou, pecou com o próprio irmão. O mal abateu-se sobre essa casa.
— Mas eles são irmãos! João é um rapaz tão bom, como pôde...
— O demônio o tentou e ele não resistiu. E Maria se ofereceu a ele como instrumento do diabo. Agora o pecado está sobre todos nós.
— E o que faremos? Entregaremos nossos próprios filhos para serem queimados na fogueira?
Após um instante de hesitação, a mãe disse:
— Seria o certo a se fazer, mas não posso. Por pecadores que sejam, são nossos filhos. Nossos dois filhos mais velhos. Mas eles não podem continuar nessa casa.
— O que faremos, então?
— Vamos leva-los conosco para a floresta, para tão longe que eles jamais achem o caminho de volta, e os abandonaremos lá. Se Deus perdoar o pecado deles, eles sobreviverão; caso contrário, morrerão. Será uma morte menos certa do que se os entregarmos para a igreja.
— Se você acha melhor assim, é assim que faremos. Amanhã os levarei comigo para a floresta, e os abandonarei lá. E que Deus tenha piedades deles.
Pouco depois, eles se retiraram para o quarto. Apenas depois que não havia mais som algum na casa, Maria saiu de seu esconderijo e seguiu para o quarto do irmão, onde João a esperava. Mas não disse nada sobre a conversa que ouvira, nem deixou que ele percebesse sua preocupação. Apenas o amou com uma paixão ainda maior do que a habitual, como se aquela fosse a última noite de ambos na Terra.
No dia seguinte, cedo pela manhã, os dois irmãos mais velhos saíram para a floresta, acompanhados dos pais. Os irmãos mais novos ficaram sozinhos na casa.
Eles andaram por horas, por caminhos que tanto João quanto Maria desconheciam, até chegar a uma clareira.
— Fiquem aqui e colham a lenha - disse a mãe deles - enquanto eu e seu pai vamos em busca de carne. Maria, se encontrar algo que possamos comer, colha e guarde ao abrigo de animais. Voltaremos no fim da tarde para buscar vocês.
Assim eles fizeram; mas as horas passavam e o sol descia, e seus pais não voltavam.
— Eles já deviam ter voltado. - disse João - Em breve anoitecerá, e faz cada vez mais frio. Será que aconteceu alguma coisa?
— Eles não voltarão.
— O que?
— Eles nos abandonaram aqui. Eu os ouvi planejando isso, ontem a noite.
— Mas por que eles fariam uma coisa dessas?
— Porque eles sabem sobre nosso segredo.
E ela contou tudo o que tinha escutado na noite anterior. João ficou desesperado; o frio aumentava, e já estava escuro.
— E agora, o que faremos? Mesmo de dia, seria muito difícil encontrar o caminho pra casa. Agora à noite, é impossível. E não temos nenhuma chance de sobreviver sozinhos na floresta. Se não morrermos congelados, morreremos de fome.
— Calma. - ela foi até ele e o abraçou - Eu fiz um plano, ontem. Enquanto vinhamos pra cá, eu fui jogando aquelas pedras brancas do jardim pela estrada, marcando o caminho. Elas brilham à noite, irão nos ajudar a encontrar o caminho de volta pra casa.
Embora não tivesse muita esperança de que aquilo fosse funcionar, João seguiu Maria para a estrada por onde haviam chegado na clareira. Após alguns minutos procurando, ela encontrou o início do caminho de pedras, que brilhava sob a luz fraca das estrelas.
Eles seguiram a trilha de pedras. Andaram por horas e horas; o frio queimava a pele e fazia os ossos doerem, e Maria se abraçou a João, buscando um pouco de seu calor. Até que, quando já era quase meia-noite, eles avistaram as luzes da casa. Correram até lá e bateram na porta, desesperados. Quem abriu a porta foi o pai deles, parecendo aliviado por vê-los a salvo.
— Meus filhos! - ele abraçou os dois - Minhas crianças, vocês estão bem, graças a Deus...
— Como conseguiram voltar sozinhos? - disse a mãe, olhando para os dois com desconfiança.
— Foi Deus, mamãe. - disse Maria, aos prantos - Deus nos guiou, iluminou o caminho para que encontrássemos nossa casa.
— O que aconteceu? - disse João - Por que nos abandonaram na floresta?
Seus pais trocaram um olhar.
— Nós também nos perdemos. - disse a mãe deles - Conseguimos voltar para casa, mas não conseguimos encontrar a clareira onde havíamos deixado vocês.
— Me perdoem, meus filhos. - o pai deles os abraçou novamente - Eu nunca mais os deixarei assim. Nunca mais.
— Eu sei, papai. - Maria correspondeu ao abraço, com um suspiro triste - Eu sei.

* * * * *

— Isso deve acabar.
— O que? Por quê?
— Você viu o que aconteceu, Maria. Eles deixaram a gente para morrer na floresta. Mais um pouco, e poderiam ter entregado a gente para a Inquisição.
— Mas nós sobrevivemos e eles acreditam que Deus nos perdoou. Não há o que temer.
— As coisas não são tão simples. Mamãe não está tão convencida assim que fomos perdoados. Se nos virem juntos de novo...
— Não me deixe, João. - ela o abraçou - Por favor. Eu não poderia suportar ficar sem você.
Com um suspiro, João correspondeu ao abraço.
— Eu sei. Eu também não poderia viver sem você.
— Eu te amo.
— Eu também te amo.

* * * * *

O inverno avançava, impiedoso.
Embora não faltasse comida, o frio intenso era torturante. As crianças mais novas, muito pequenas, sofriam mais do que os adultos. Até que o mais novo ficou doente, à beira da morte.
— Deus está nos punindo, marido! - dessa vez, era João quem ouvia a conversa de seus pais - Eu sei que aqueles dois continuam no pecado! Ganharam uma segunda chance, e reincidiram! Deus vai nos levar um por um se continuarmos permitindo que isso ocorra!
— Eu não os abandonarei novamente na floresta!
— Então os entregarei para a Inquisição!
— Não! Não permitirei isso!
Nesse momento, João saiu de seu esconderijo e interveio.
— Pai. Mãe.
— João!? - os dois se voltaram para ele, sobressaltados - O que está fazendo aqui? - disse seu pai - Não devia estar dormindo?
— Me perdoem. Eu ouvi tudo o que disseram. Sei que planejam abandonar eu e Maria na floresta.
— Meu filho, eu nunca...
— Não, pai. O que a mamãe disse é verdade. Eu e Maria pecamos antes, e continuamos a pecar. Se foi nosso pecado que trouxe a doença para meu irmão, então nós devemos deixar essa casa. Eu não irei me opôr.
— Meu filho... - disse a mãe dele - Por quê, meu filho, por que você e Maria cederam a essa tentação tão terrível?
— Sinto muito, mãe. Eu amo Maria, e prefiro morrer do que ficar sem ela. Por isso, deixaremos essa casa ao amanhecer. Tudo o que peço é que nos deem um pouco de pão, para que tenhamos a mínima chance de sobrevivência. Prometo que vocês nunca mais ouvirão falar de nós e de nossa desgraça.
O pai dele começou a chorar; uma lágrima caiu pelo rosto da mãe, mas ela depressa a enxugou.
— Está certo. Amanhã, lhes entregarei uma cesta com um pouco de pão, e nada mais. Vão para longe, e que Deus tenha piedade de vocês.

* * * * *

— Por quê, João? Por quê?
Maria chorava, encolhida de encontro ao irmão. Faltava poucas horas para o amanhecer. A primeira noite deles na floresta, e eles já estavam quase sem comida. Ambos tremiam de frio.
— Mamãe estava certa, Maria. Nós estávamos trazendo o pecado e a ira de Deus para nossa casa. Eu não podia permitir que nossos irmãos sofressem por nossa culpa.
— Nós vamos morrer.
— Se essa for a vontade de Deus, então que seja. - ele a apertou com mais força contra si - Eu prometo que não te deixarei. Estarei ao seu lado até o último instante.
— Estou com medo.
— Eu também.
Com o nascer do sol, o frio se dissipou um pouco. Eles se levantaram e seguiram andando pela floresta. Onde estavam, já não havia estradas ou trilhas, e era impossível saber para onde estavam indo. Ao menos não estava nevando, mas não havia uma única fruta nos arbustos, nem um animal que pudessem caçar.
Após horas de caminhada, quando o sol se aproximava novamente do horizonte, João avistou algo que parecia uma estrada, ladeada por pequenas pedras coloridas. Os dois passaram a segui-la, e estranhamente, quanto mais andavam por ela menos frio parecia fazer. Até que a terra se tornou menos seca e pequenas flores começaram a brotar; eles ouviram o som de animais, e um sol mais forte começou a brilhar, como se fosse primavera.
— O que é isso? - disse Maria, olhando encantada ao redor - O que está acontecendo?
— Eu não sei. - João também estava maravilhado - Será que morremos? Talvez tenhamos morrido, e estejamos chegando no Paraíso.
No fim da estrada, havia uma grande clareira, e ali o sol brilhava forte e as árvores estavam carregadas de flores e frutos. No meio dela havia uma casa de pedra, com as paredes cobertas por plantas e flores decorando as janelas. De onde eles estavam, podiam sentir um cheiro delicioso de bolo e pão.
Os dois se aproximaram, João com cautela, Maria com certo desespero. Tentavam espiar pela janela, para saber quem morava na casa, quando a porta se abriu e uma mulher apareceu.
A mulher devia ter por volta dos trinta anos, e era muito bonita. Olhou para os dois com curiosidade, e então sorriu.
— Ora essa, o que duas crianças fazem sozinhas nessa parte da floresta? Vocês se perderam?
— Não - disse Maria - nossos pais nos abandonaram, porque não tínhamos comida e íamos morrer de fome. A senhora pode nos dar um pouco de comida?
— Claro. Quais são seus nomes?
— Meu nome é Maria, e meu irmão se chama João. - ela olhou para João, e viu que ele olhava fixamente para a mulher - João? O que foi?
— ... Nada. - ele disse, parecendo um pouco perdido.
— Meu nome é Morgana. - a mulher disse - Entrem. Vocês parecem tão fracos, precisam se alimentar e se aquecer. Passem essa noite aqui.
Eles entraram na casa. Ali era aquecido e acolhedor, e havia doces e pães sobre a mesa.
— Comam à vontade. - Morgana disse - Não façam cerimônia.
— Você vive sozinha? - disse João, enquanto Maria já se sentara e começava a comer.
— Sim.
— Então por que fez tanta comida?
— Porque estava esperando vocês.
— Você sabia que a gente vinha?
— Talvez soubesse. - ela sorriu - Mas vamos deixar as perguntas para quando vocês já estiverem alimentados. Vamos, coma.
João acabou juntando-se a Maria, e os dois comeram mais do que já tinham comido durante a vida inteira. Depois tomaram um banho quente, e Morgana lhes deu roupas novas para vestir. Maria estava tão cansada e satisfeita que assim que saiu do banho, foi para o quarto que Morgana lhe dera e dormiu imediatamente; mas João queria saber mais sobre aquela mulher estranha que morava sozinha no meio da floresta.
— Eu agradeço por tudo o que fez por nós. - ele disse - Mas quem é você, e por que vive aqui sozinha?
— Sou apenas uma mulher solitária - ela preparava um chá - que encontrou abrigo no coração da floresta.
— E por que somente aqui é primavera, enquanto no resto da floresta é inverno?
— Porque é sempre primavera em meu coração.
— Você é uma bruxa?
— Sim. - ela sorriu - Quer chá?
Ele aceitou, um pouco confuso pela forma como ela respondera.
— Mas se você é uma bruxa - ele disse, enquanto bebia o chá - então você é má?
— Sim. - ela sorria para ele - Sou tão má quanto um garoto que se deita com a própria irmã.
João quase engasgou, e ficou muito vermelho.
— Como você...
— Eu sabia quem vocês eram mesmo antes de chegarem aqui. Como disse, estava esperando vocês. Mas não se preocupe, eu não os julgarei. Entendo o amor de vocês, e não culpo sua irmã por se apaixonar por um rapaz tão bonito.
Ele tentou disfarçar seu embaraço bebendo mais chá.
— Você nunca se casou? - ele perguntou.
— Não. Tive muitos amantes, mas abandonei todos quando fugi para a floresta.
— E por que fugiu?
— Porque a igreja me perseguia, e eu seria queimada viva. Assim como vocês.
Eles ficaram algum tempo em silêncio.
— Eu não sei o que fazer. - João disse, pensativo - Temo por mim, e por minha irmã.
— Vocês podem viver aqui comigo. Vivo sozinha, como disse. Vocês teriam minha proteção, e em troca poderiam trabalhar para mim.
— Não sei se posso aceitar. Nem sei se Maria irá aceitar.
— Converse com ela, amanhã. Mas saiba que serão muito bem vindos.

* * * * *

Após muito conversarem e refletirem, os dois irmãos aceitaram ficar morando com Morgana. Afinal, viajar pela floresta durante o inverno significaria a morte; e mesmo que conseguissem chegar à cidade, não tinham nada, nem ninguém. Viveriam como mendigos, e se a igreja descobrisse que eram irmãos e amantes, seriam condenados à morte.
Ali, com Morgana, era sempre primavera. Sempre tinham comida, e o sol sempre brilhava. Maria a ajudava a cozinhar e a cuidar das plantas; João buscava água no poço, cortava lenha e alimentava os animais da floresta que iam até ali em busca de calor e comida.
Um dia, quando fazia pouco mais de um mês que eles estavam morando ali, João acordou no meio da noite. Maria estava deitada ao seu lado, dormindo profundamente; agora, eles compartilhavam o mesmo quarto e a mesma cama. Sentindo-se sem sono, ele se levantou e foi em direção à sala, sem levar nenhuma luz consigo.
Quando passava pelo corredor, a luz de uma vela surgiu ao seu lado, e ele se voltou para a porta do quarto de Morgana, de onde a claridade vinha. Ela estava ali, usando uma camisola leve e absurdamente indecente, como ele nunca vira mulher nenhuma usar. Carregava uma pequena vela, e o olhava com curiosidade.
— João? O que faz aqui? Não está se sentindo bem?
Ele podia ver o suave contorno de seus seios sob o tecido fino, e seu olhar se prendeu ali por um tempo. Os cabelos dela estava solto, caindo em ondas douradas sobre os ombros.
— Não sei. - ele disse afinal - Acho que tem alguma coisa errada comigo.
Ela sorriu. Estendeu a mão para ele, dizendo:
— Venha aqui.
Como se hipnotizado, ele segurou a mão dela e deixou que ela o conduzisse para o quarto. Ela fechou a porta e deixou a vela sobre a mesa.
— Não há nada errado com você. - ela se aproximou e tocou o rosto dele - É apenas um menino. Um jovem rapaz, em busca de alguém que acalme seu coração.
— Eu tenho Maria.
— Mas ela não é suficiente para você, não é? - ela tocou no peito dele - Seu corpo pede mais, assim como seu coração.
Ele tocou o rosto dela, afastando seus cabelos, e a beijou. Os beijos dela eram tão diferentes dos de Maria. Mais experientes, mais selvagens. Seus lábios escondiam segredos e promessas. Ela deixou a camisola escorregar por seu corpo e cair ao chão, expondo-se para ele, oferecendo-lhe um mundo desconhecido. Um mundo no qual ele se perdeu completamente durante toda a noite.
Após aquela noite, não havia outra coisa em que ele pensasse que não fosse Morgana. Mesmo quando Maria o procurava, era o corpo da outra que ele desejava, os beijos dela que buscava; e quando a irmã dormia, ele se levantava e ia para o quarto da outra, onde poderia realmente se saciar, se satisfazer com plenitude.
Ainda amava Maria; a amava tanto quanto antes, talvez até mais. Mas apenas ela não era o suficiente para ele, principalmente agora que provara do sabor de outra mulher. No início, dissera para si mesmo que estava apenas curioso por conhecer outra mulher, mas essa desculpa logo se mostrara vazia e tola. Estava apaixonado, e sabia disso. Estava completamente apaixonado por Morgana.
A temia o que aconteceria caso Maria descobrisse.
Nos primeiros dias daquele novo amor secreto - pois que agora sentia-se com Morgana da mesma forma que se sentira com Maria na casa de seus pais - sua irmã de nada desconfiou. Mas conforme as semanas passavam, ficava mais difícil esconder suas ausências durante a noite, ou mesmo sair do quarto sem que ela percebesse. Mais difícil também era esconder seus olhares de desejo para aquela mulher tão misteriosa e bela, a qual ele por vezes se pegava olhando longamente.
E afinal, Maria descobriu.
João nunca saberia como ou quando, exatamente, ela descobrira. Mas um dia, enquanto ele a ajudava no jardim, ela disse:
— Devemos partir.
— O que?
— O inverno já acabou, já começou a primavera. Será mais fácil sobreviver na floresta nessa época.
— Mas por quê? E pra onde pretende ir? Iremos morrer de fome na cidade.
— Que seja! - ela se voltou para ele, com lágrimas nos olhos - Melhor morrer de fome ao seu lado, do que te perder completamente para aquela bruxa!
— Do que está falando?
— Estou falando de todas as noites que você passou na cama dela, e de como lhe entregou seu coração! Ela já o tem quase por completo. - ela apontou a pequena pá que usava para cavar a terra - Mas eu te matarei e morrerei contigo, antes de te ver deixar de me amar!
— Não seja tola, Maria! - ele a abraçou - Eu te amo mais do que tudo. Nada vai fazer eu deixa de te amar, nunca. Sinto muito se te fiz sofrer.
— Vamos embora, João. - ela se agarrava a ele com desespero - Por favor, vamos embora. Aquela mulher é má. Ela representará nosso fim. - ele hesitou, e ela olhou em seus olhos - Se eu pedir para que você a deixe e vá embora comigo, você fará isso por mim?
Ele queria responder que sim, que faria tudo por ela; mas os olhos verdes e as curvas de Morgana dançavam diante dele, sedutores, irresistíveis.
— Por favor, minha irmã. - ele a abraçou contra si - Me dê apenas mais um tempo. Meu coração se desvencilhará dela, e então eu serei novamente só seu.
Maria se afastou dele, chorando.
— Eu já o perdi. Você não pode decidir entre eu e ela.
— Maria...
Mas ela correu para a casa, não querendo ouvir suas palavras.

* * * * *

Naquela manhã, quando João acordou, os pássaros não cantavam. Ele olhou pela janela: chovia lá fora, e embora não fizesse frio, o ar estava pesado. As plantas ao redor da casa estava murchas, e não haviam flores.
Confuso e preocupado, ele se levantou. Maria não estava ao seu lado. Ele saiu do quarto, em busca dela, e ao chegar na sala deparou-se com Morgana caída no chão, morta, em meio a uma poça de sangue.
— Não! - ele gritou, e se ajoelhou ao lado dela, a segurando contra si - Não, não, não...
Ao levantar o rosto, avistou Maria, parada na porta da frente, olhando para ele com olhos frios. Carregava uma adaga comprida, cuja lâmina estava manchada de sangue. Seu vestido também tinha uma grande mancha vermelha.
— Maria! - ele gritou - O que você fez? O que você fez, Maria?
— Você não pôde se livrar do feitiço dela sozinho, então eu o salvei. - ela disse, e sua voz estava tão fria quanto seus olhos - Você é meu novamente.
João se levantou e foi até ela. Maria deixou cair a adaga e estendeu os braços para ele; mas ao invés de abraça-la, ele lhe deu um tapa no rosto. Em seguida saiu da casa, para a chuva torrencial que caía, e seguiu o caminho de pedras, afastando-se da casa quase correndo.
— João! - Maria gritou, mas a chuva abafava o som de sua voz - João!
Ele não se deteve; continuou a se afastar, sem olhar para trás, sem querer ver a irmã nunca mais. Ouviu ela correr para ele, ouviu o som de seus passos se aproximando na terra molhada, ouviu ela gritar seu nome; mas não se voltou nem por um momento.
Até sentir a lâmina atravessar sua carne e se enterrar profundamente dentro dele.
Ele tentou gritar, mas o ar sumiu de seus pulmões, e uma onda de sangue surgiu em sua boca. A lâmina foi puxada para fora de seu corpo, e ele se virou a tempo de ver Maria golpear novamente, dessa vez rasgando seu peito. Ele caiu, e ela continuava a gritar seu nome a cada golpe, a cada vez que a lâmina descia e rasgava a carne. Ele tentou chamar o nome dela, mas se engasgava com a água e a lama e seu próprio sangue; e ela continuou a gritar seu nome mesmo quando ele já não podia ouvir.
— Você é meu, irmão. - disse Maria, quando parou de golpeá-lo - Vamos ficar juntos para sempre. Eu te amo mais do que tudo no mundo.
Ela se deitou ao lado dele e cortou os próprios pulsos, em cortes longos e verticais, que subiam das mãos até a metade dos braços, abrindo completa e irremediavelmente as artérias. Seu sangue jorrou em pulsos, e ela se abraçou ao irmão, mergulhando para sempre com ele naquele chão, manchando eternamente o caminho de pedras.

SOBRE A HISTÓRIA

Eu tinha planejado um final completamente diferente, não tenho a menor ideia de como a história acabou desse jeito.
Esse conto é baseado (obviamente) na história de João e Maria, e uma das fontes de inspiração para ele foi um filme pornô que assisti quando era adolescente (não pergunte). Ele acabou lembrando um pouco o conto Neve, por causa da questão do incesto, pela inversão dos papéis de vilão e mocinho e por ser baseado em um conto de fadas. Só no final da história eu pensei que podia ter posto o papel de sedutor maligno no João ao invés da Maria, o que faria a história ser completamente diferente. Talvez eu experimente escrever essa ideia algum dia.

* * * * *

Hoje é o aniversário de seis anos do blog, e para comemorar, essa semana estou publicando um post por dia, todos os dias. Muito obrigada a todos que me leem, seus psicopatas pervertidos lindos. Eu escreveria mesmo que ninguém lesse esse blog, mas me dá muito mais vontade de escrever quando eu vejo que o número de visitas superou minha expectativa =)

terça-feira, 22 de julho de 2014

[fanfic #009] [Prólogo] [U2] Ausência


AVISOS:
  • História não recomendada para menores (temas adultos)
  • Contém sexo hétero e gay


AUSÊNCIA

PRÓLOGO

Estados Unidos, 1980

A garota acordou com uma sensação de intenso bem estar. A despeito das marcas em seu corpo, ela não sentia dor. Ou sentia, mas a lembrança do que a causara era muito agradável.
Ela se virou para olhar o homem ao seu lado. Um belo homem, sem dúvidas. A pele branca era coberta por pelos negros, e ele estava nu. Um jovem, uma criança ao dormir. Na noite anterior ele a fizera queimar, mas agora era um anjo, e aquele era seu céu. Ela queria abraça-lo, deitar em seu peito, beija-lo; mas isso o acordaria, e ainda era cedo. Ele precisava descansar.
Com um suspiro, ela levantou da cama. Foi para o banheiro e tomou um longo banho. A água fria lavou os vestígios que restavam sobre seu corpo, e ela sorriu. Estava limpa.
As toalhas do hotel eram macias, não machucavam seu corpo ainda sensível. Fechou os olhos enquanto se enxugava, e quando os reabriu viu que o jovem anjo estava parado na porta, assistindo.
— Bom dia.
— Bom dia. – a voz dele era maravilhosamente grave – Acordou cedo.
— Você também.
Houve um momento de mútua contemplação. Os olhos dele eram a coisa mais bela que ela já vira, de um azul celeste espetacular. Ele se aproximou e a abraçou, com uma expressão maliciosa. Sempre tinha aquele olhar sensual, provocante.
— Dormiu bem?
— Muito bem.
— E como se sente?
— Ótima. – ela se encostou no peito dele – Melhor do que nunca.
Ele passou a mão pelos cabelos úmidos dela.
— Ainda está doendo?
— Está, mas é bom. – ela olhou para aqueles olhos azuis – Me dá a certeza de que não foi um sonho.
O orgulho que os olhos dele demonstravam a fez sorrir. Ela sabia que não se arrependeria, sempre soubera. No instante em que o vira pela primeira vez, ela soubera que seria ele.
— Vou tomar um banho. – ele disse, indo para o chuveiro.
— Você tem algum compromisso hoje à noite?
— Tenho show. – ele respondeu, acima do barulho do chuveiro.
— E amanhã?
— Também. Parece que as pessoas gostaram, então estamos aproveitando.
— Eu tenho certeza de que gostaram. Vocês foram ótimos.
Ela assistia enquanto ele se ensaboava. Era um exibicionista incorrigível. Ela suspeitara disso quando o vira no palco. Agora, enquanto o assistia se exibir apenas para ela, tinha certeza.
Ele terminou de se lavar e saiu do chuveiro. Ela voltou para o quarto, enrolada em uma toalha, e instantes depois ele apareceu, sem se preocupar em se cobrir; afinal tinha um corpo perfeito, e era uma pena que não pudesse se exibir daquela forma em público. Jogou–se na cama e chamou a garota para o seu lado.
— Então – ela disse, deitando a cabeça no peito dele – você tem namorada?
— Tenho, mas ela ficou na Irlanda. E, pelo que eu vejo – ele pegou a mão direita dela – você está noiva.
— Você vê bem. Vou me casar daqui a três dias.
— Uau. – ele riu – Seu noivo não vai gostar quando descobrir que você não é mais virgem.
— Eu me entendo com ele.
— Você devia estar cuidando dos preparativos da festa, ao invés de ir fazer sexo com um roqueiro maluco que acabou de conhecer.
— Devia. Mas é bom fazer uma loucura de vez em quando.
— Se você não gosta do seu noivo, por que vai casar?
— Eu gosto dele. Eu o amo. Ele é o homem da minha vida.
— Se fosse mesmo, você estaria com ele agora, não comigo.
— Eu sei que parece estranho. Mas eu sentia que tinha alguma coisa errada. Eu ia me casar virgem, com o homem que eu mais amava, e que me amava também... Mas eu sentia que não devia ser com ele. E quando eu te vi, no show, eu tive a certeza de que tinha que ser você.
O orgulho brilhava novamente nos olhos dele.
— Obrigado. Foi uma honra pra mim.
Eles repetiram o que tinham feito na noite anterior. Quando, horas depois, se despediram, havia em ambos marcas que pela manhã não estavam lá.
— Você vem ver o show dessa noite?
— Não posso. Tenho que cuidar dos preparativos para o casamento.
— Então, não vamos mais nos ver?
— Não.
Ele estava triste. Gostara dela. Ela tinha os olhos iguais aos de sua namorada. Quando estivera com ela, quase sentira que era a sua amada quem estava ali.
— Escuta – ela arrumava o colarinho da camisa dele – eu tenho que te falar uma coisa.
— Fale.
— Eu tenho a certeza de que sua banda vai fazer muito sucesso. Daqui a alguns anos todos vão conhecer vocês, vocês vão conquistar o mundo. Vão ser uma das maiores bandas de rock do planeta.
— Nossa. – ele riu, e ela adorava aquele riso – Você é muito otimista.
— Não. Eu tenho certeza do que estou dizendo. E me prometa uma coisa. – ela olhava nos olhos dele – Me prometa que, quando isso acontecer, quando você conseguir tudo o que sempre sonhou, você não vai deixar de ser quem você é hoje. Não vai permitir que o sucesso mude você.
— Certo. Eu prometo.
E ele estava sendo sincero. Ela o beijou, e foi embora.

[fanfic #009] [U2] Ausência - Lista de Capítulos

AUSÊNCIA

segunda-feira, 21 de julho de 2014

[conto #059] O Gato

O GATO

A princesa estava sentada na cadeira de balanço, assistindo ao nascer do sol. Fazia frio, e pequenas gotas de orvalho pingavam das pétalas das flores no jardim. O marquês aproximou-se dela e a beijou.
— Irei até os campos, minha princesa. - ele disse - Estarei de volta para o almoço.
— Sim, meu senhor. Cuidado na estrada.
Ele se foi, e ela ficou vendo sua carruagem se afastar na distância. Uma lágrima caiu por seu rosto.
— Ele acabou de partir, e você já chora?
Ela se voltou. O gato estava ali, com suas botas douradas, as mãos nos bolsos, apoiado na pilastra da varanda.
— Vá embora.
— Por que me manda embora? - ele se aproximou - Por quê, se tudo o que deseja é minha companhia?
A princesa escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. As flores choraram com ela.
— Se eu soubesse antes. - ela disse, entre soluços - Se soubesse, jamais teria me casado com ele. Se soubesse antes que era você, esse tempo todo...
— Que diferença faria? - ele se ajoelhou ao lado dela - Acha que se casaria comigo? Com um gato? Acha que seu pai aceitaria isso?
— Nós poderíamos ter fugido! - ela gritara - Fugiríamos para essas terras do mundo, se seu amor por mim fosse maior do que sua ambição!
Ele a segurou pelos cabelos de forma áspera, e a beijou. Ela tentou se soltar durante algum tempo, mas acabou por aceitar.
— Venha para a minha cama. - ele disse, ao solta-la - Eu a espero.
— Não irei! - ela se encolheu, protegendo-se - Não deixarei que um ser coberto por tão profunda maldade me toque!
O gato apenas riu, e entrou no castelo. A princesa ficou ali, chorando em silêncio.

* * * * *

O marquês não voltara para o almoço, nem para o jantar. Uma forte chuva caía lá fora. A princesa acabara de se deitar, quando a porta de seu quarto se abriu. Mesmo no escuro, ela sabia quem era.
— O que faz aqui? - ela disse, puxando os lençóis para se proteger.
— Meu amo não virá essa noite. - disse o gato - Abrigou-se na casa de um camponês, devido à chuva.
— Ele está bem?
— Sim.
— Que bom. Pode se retirar agora.
Ao invés de se retirar, ele foi até ela e a beijou, subindo na cama. Ela tentou afasta-lo, tentou lutar com ele, mas não teve forças para resistir; em poucos minutos, foi completamente dominada.
No dia seguinte, ela acordaria sozinha na enorme cama, os arranhões em seu corpo únicos indícios de seu crime.

* * * * *

Durante muitas noites, o marquês se ausentava. E sempre, nessas noites, a princesa encontrava abrigo nos braços do gato, que a envolvia com uma paixão e um ardor que seu marido jamais teria.
Com o passar do tempo, ela passou a evitar o marido. Já não correspondia aos seus beijos, e o recusava quando ele a procurava de noite. Ele finalmente parou de procura-la, quando percebeu que ela não o desejava mais; sentia-se triste, mas tinha outras mulheres para o consolar. Devia ser apenas um fase, ele pensou. Logo a princesa voltaria a ama-lo como antes.
Mas os meses se passaram, e a princesa não voltara a amar o marquês. A cada dia, mais amava o gato, seu doce e perigoso gato, que ia e vinha quando queria, que aparecia à noite para toma-la nos braços independente de sua permissão. Tão vivo, tão decidido. Tão diferente do marquês.
Até que, em uma noite de primavera, quando ele surgiu em seu quarto, ela o afastou.
— Não me toque sem ter escutado o que eu tenho a dizer, pois é algo importante. - ela disse - Eu estou grávida. Estou carregando um filho seu. Um ser que é meio humano, meio gato.
Ele riu de felicidade, e pulou para a janela, prestes a gritar a todos os gatos do mundo que teria um filho. Mas a princesa o segurou.
— Se o marquês descobrir, será o nosso fim. Teremos que fugir.
— Fugiremos. - ele a abraçou - Amanhã à noite, te levarei para as terras distantes desse mundo, onde poderemos nos amar livremente, e onde em paz teremos nosso filho.
Ela deixou que ele a beijasse, e se entregou mais uma vez aos braços dele.

* * * * *

Quando o dia amanheceu, o marquês seguiu para o salão do palácio, cuidar de seus afazeres. Mas antes que chegasse lá, foi abordado pelo gato.
— Bom dia, meu amo. - o gato se ajoelhou diante dele - Vim lhe trazer notícias.
— Diga, meu fiel gato.
— Sua amada princesa está grávida. - ele se levantou, com um sorriso nos lábios - Parabéns.
O marquês ficou longos segundos parado, olhando para o gato.
— Impossível. - ele disse por fim - Há meses não a procuro.
— Oh. - o gato aparentou surpresa - Mas então...
— Vou vê-la. - o marquês virou-se em direção aos quartos - Vou esclarecer isso.
— Não é necessário, meu amo. - disse o gato - Se o filho que ela espera não é seu, então deve ser meu.
O marquês parou como se tivesse batido em um muro, e se virou novamente para o gato.
— O que!?
— Só pode ser isso, não? - o tom dele era tranquilo - Se você não a procura há meses, e se eu tenho frequentado a cama dela com regularidade há quase dois anos, então o filho que ela espera só pode ser meu. Eu não senti o cheiro de mais ninguém nela.
— Como... Como... - ele se aproximou ameaçadoramente dela - O que está dizendo? Como ousa... Me trair dentro do meu próprio palácio?
— Seu palácio? Ora, por favor, "marquês". - ele riu - Você não seria nada sem mim. Fui eu quem conquistou esse castelo, essas terras, e a princesa. Você não é nada. Eu lhe entreguei a princesa pronta para se apaixonar por você, e nem isso você conseguiu. Até mesmo um filho eu tive que fazer por você.
Com raiva, o marquês pegou sua espada e avançou para o gato. Mas nunca em sua vida lutara; com um único golpe, o gato o desarmou.
— Foi divertido brincar com você, meu amo. - disse o gato - Mas agora tudo isso será meu, como sempre deveria ter sido. As terras,  o castelo e a princesa. Será tudo meu.
E antes que o marquês pudesse responder, o gato baixou a espada, cortando-lhe a cabeça.

* * * * *

A princesa estava no alto da torre, olhando os jardins onde acontecia o funeral. Tocou a barriga, enquanto uma lágrima caía por seu rosto. O gato se aproximou em silêncio e a abraçou.
— Como pôde? - ela disse - Como pôde matá-lo?
— Foi necessário.
— Não, isso não era necessário! Apesar de tudo, ele era um homem bom, era...
— Mas esse mundo não deve ser governado por homens bons, minha princesa. - ele tocou o rosto dela - Esse mundo pertence a quem está disposto a fazer o que for preciso.
Ele a beijou. Apesar das lágrimas, ela aceitou o beijo, e se abraçou a ele.
— Se você quiser - ele disse - está livre pra partir.
— Não. - ela apoiou a cabeça no peito dele - Eu te amo, e ficarei com você para sempre.
Lá embaixo, o padre terminou de rezar, e o corpo foi sepultado, sem que ninguém chorasse por ele.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu sempre ficava revoltada quando lia a história do gato de botas. Se você ainda é inocente e nunca percebeu, aqui vai a razão: o gato engana, manipula, ameaça, comete assassinatos, e no final é tido como herói e vive feliz para sempre. Mais bizarro ainda, pelo menos pra mim, era o fato de mesmo com todo o seu poder de manipulação, ele se contentar em ser apenas um servo, deixando seu dono ficar com todos os méritos. Essa história é a minha versão de como os planos malignos do gato de botas realmente se concluíram.

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Essa é a semana de aniversário de seis anos do blog! Em comemoração, estou publicando um texto por dia, todos os dias, de segunda a sexta. Esse é o primeiro dos cinco.