terça-feira, 16 de junho de 2009

[conto #013] Uma Possível Cópia

UMA POSSÍVEL CÓPIA

Eu estou parada no ponto, esperando o ônibus. Estou com os fones no ouvido, mas não ouço nada. O rádio do celular não funciona, e eu não tenho mp3. Mas gosto de ficar com os fones no ouvido. Assim não tenho que escutar as bobagens que as duas adolescentes do meu lado estão discutindo.
-- Oi.
Olho pra baixo. Uma menina de uns cinco anos está me olhando e, por algum motivo, sorrindo pra mim. Tento fingir que não a vi. Não, meu Deus, não hoje.
-- O que você tá ouvindo?
-- Nada.
Ali, no ponto, estão mais umas oito ou nove pessoas, além de mim, da menina, e das duas mulheres que deveriam estar tomando conta dela. Mas ela tinha que vir falar comigo. Eu atraio isso.
-- Qual o seu nome?
Incrível. Ela não percebe que eu não estou a fim de papo. Parece muito comigo quando era pequena, o que é preocupante. Nunca vai se tornar uma pessoa normal.
Digo meu nome. A menina diz o dela.
-- Você não tá ouvindo nada?
-- Não.
-- Então por que tá com os fones no ouvido?
-- Porque eu gosto.
É sempre assim. Pessoas que têm medo de cachorro sempre são atacadas por cachorros, sempre entram borboletas na casa de quem odeia borboletas. Sempre vem alguma criança falar comigo. Como se eu fosse feita de doces.
-- Você é bonita.
Que criança adorável. Pena que seja cega.
-- Obrigada.
-- Você tá esperando o ônibus?
Não, querida, estou esperando um avião pousar aqui e me dar uma carona.
-- Sim.
-- Você vai pra onde?
-- Pra lá.
Digo "pra lá" sem apontar nenhuma direção. A menina nem percebe.
-- Quantos anos você tem?
-- Vinte e um.
-- Eu tenho cinco.
Um carro pára. É minha tia, me oferecendo carona. Graças a Deus.
-- Tchau, moça!
Aceno e entro no carro. Minha tia ri.
-- Ganhou uma amiguinha?
Eu rio.
-- Deus que me livre.
-- Tadinha. Você já foi assim.
-- Eu sei. Mais um motivo pra não gostar de quem é assim agora.
-- Um dia você vai ter filhos, e eles podem ser assim.
-- Eu acho que não.
-- A gente sempre acha que os filhos vão ser uns anjos, mas no final...
-- Acho que não vou ter filhos.
-- Claro que vai.
-- Não acho uma boa idéia. Já tem gente demais no mundo.


SOBRE A HISTÓRIA

Mais um conto baseado em fatos reais. Dessa vez, misturei dois acontecimentos distintos envolvendo meus amigáveis relacionamentos com seres abaixo dos dez anos. Para quem não sabe, eu não sou muito chegada em crianças e sou a favor da auto-extinção da raça humana através da não-procriação.

terça-feira, 9 de junho de 2009

[conto #012] O Desafio

O DESAFIO

As duas têm doze anos, um metro e setenta, e nenhum juízo.
-- Eu duvido que Deus exista!
-- Claro que existe!
-- Duvido! Cadê a prova?
-- Tá na Bíblia.
-- E como eu sei que o que tá na bíblia é verdade? E se for tudo mentira?
-- Mamãe disse que é verdade.
-- Sua mãe não sabe nada.
-- Sabe sim!
-- Não sabe nada.
Vão andando pela rua, discutindo. Falam tão alto que qualquer um ao redor pode ouvir.
-- Eu acho que Deus não existe. Que isso tudo que contam pra gente é tudo mentira.
-- E por que iam mentir desse jeito pra gente?
-- Pra fazer a gente obedecer eles! Eles dizem, se você desobedecer sua mãe Deus castiga, se você matar alguém, Deus castiga. Pra mim isso tudo é besteira!
-- Não fala isso, depois Deus escuta e castiga você.
-- Castiga nada, porque Deus não existe!
-- Existe sim!
-- Vou provar que não existe!
-- Provar como?
Ela se arrepende de ter perguntado. A outra para decidida. Olha para cima, para o céu nublado.
-- Deus! - ela grita, para as nuvens, o mais alto que consegue - Se você existe, então prova!
Algumas pessoas chegam a parar para olhar a cena. A outra quer ir embora o mais depressa possível.
-- Amiga, para com isso, tá todo mundo olhando...
-- Anda, Deus! - ela continua gritando - Se você existe, se tem tantos poderes, então me dá uma prova! Faz cair um raio aqui, faz chover, faz alguma coisa!
-- Amiga...
-- O que é, tá dormindo? Aloooo, Deus? - ela para de gritar - Viu, cadê? Deus não existe.
Houve-se um trovão ao longe. As duas olham para cima. O céu está ficando escuro.
-- Acho que vai chover.
-- Viu? É Deus! Deus está te dando uma prova!
-- Não é nada! Grande coisa, chover. Tinha que ser uma coisa extraordinária para...
Um clarão e um estrondo, anunciando que um raio caiu bem mais perto do que antes. Começa a ventar. A atmosfera fica pesada. Faz frio.
-- Oi, Deus! - ela grita de novo - Eu não acredito em você! Não acredito!
O vento aumenta mais ainda, relâmpagos cortam o céu, começa a chover, um som fantasmagórico é ouvido. As duas gritam e saem correndo. Chegam em casa ensopadas, e ficam olhando, da varanda, a tempestade que cai. Parece que o mundo esta desabando.
-- Eu disse pra você não provocar.
-- Cala a boca.
-- Foi Deus.
Ela cruza os braços, brava.
-- Não foi nada.
-- Ele ficou com raiva de você.
-- Dane-se. To nem aí. Não acredito nele mesmo.
-- Mas ele acredita em você.
-- É. - ela sorri - Eu sou melhor do que ele. Eu não tenho que provar que existo, ele é que tem.
-- Chega. Daqui a pouco ele traz um furacão e leva sua casa embora.
-- Leva nada.


SOBRE A HISTÓRIA

Por incrível que pareça, essa história foi baseada em fatos reais. A menina doida que fica gritando para ver se Deus existe sou eu, e eu fiz mesmo isso, quando tinha uns onze ou doze anos. As consequências foram realmente as que eu descrevo. Lembrando essas coisas agora, não sei se rio ou se me envergonho.