quinta-feira, 23 de abril de 2009

[conto #009] Menino

MENINO

Era afinal um bom jardineiro. Minha mulher se encantou pelo trabalho dele, e o contratei para vir duas vezes por semana. Era um homem da minha idade, imagino que ela estivesse interessada em outras coisas além da habilidade dele com as plantas; mas, enfim, ela que dê para quem quiser. Eu tinha problemas maiores.
E, se ela estava interessada nele, eu estava interessado em outra coisa. O jardineiro tinha um filho. Menino bonito, uns dez anos. Ficava correndo atrás do cachorro enquanto o pai trabalhava. Eu ficava na varanda, olhando. Esperando.
Não demorou nem um mês para que surgisse a chance, e eu realmente não tinha pressa. O pai estava cuidando do quintal, o filho ficou sozinho no jardim. Eu estava sentado na porta, e o chamei. Ele foi até mim, amedrontado.
-- O que é?
-- Está com fome?
-- Não, senhor.
-- Quer bolo de chocolate?
-- Não, senhor.
Mas ele queria. Sorri e passei a mão pelos cabelos dele.
-- Vem, pode comer.
-- Papai falou pra eu não incomodar o senhor nem a sua mulher.
-- Você não incomoda. E eu não conto pro seu pai.
Peguei-o pela mão e o levei para dentro de casa. Ele comeu o bolo, feliz como um bichinho. Eu só olhava.
-- Quantos anos você tem?
-- Vou fazer dez mês que vem.
Como eu imaginara. Ele acabou de comer e já se levantou para ir embora. Eu o detive.
-- Ei, não vai me agradecer?
Apesar de não ser muito educado, ele me respeitava. Parou e se virou para mim.
-- Obrigado, senhor.
-- Vem aqui.
O menino chegou perto; eu o segurei de leve, para evitar que ele fugisse.
-- Gostou do bolo?
-- Gostei.
-- Muito?
-- Sim.
-- Então, me dá um beijo.
Ele achou aquilo estranho, mas me deu um beijo no rosto. Eu ri.
-- Acho que o bolo estava melhor do que isso, não?
Como ele não entendesse, peguei a mão dele e a coloquei sobre meus lábios.
-- Quero um beijo aqui.
Aquilo o assustou, ele balançou a cabeça, quis se afastar; eu o segurei com mais força e sorri.
-- Vamos, é só um beijinho. Ninguém vai saber.
-- Não quero.
Fiquei sério, assumi um ar mais severo.
-- Eu te fiz um agrado e você não quer retribuir. Então, vou dizer ao seu pai que você me desobedeceu e se comportou mal, e ele vai te castigar.
Quase senti pena do menino. Estava perdido, não sabia o que fazer. Olhava para os lados, buscando ajuda, mas não havia nada nem ninguém ali que pudesse ajudá-lo. Seu pai estava no quintal, minha mulher tinha ido fazer compras; ninguém ia aparecer tão cedo.
-- Não precisa ter medo. - eu o puxei para perto – É só um beijinho.
Segurei seu rosto e cheguei perto. Ele não fugiu, mas fechou os olhos, e estava quase chorando.
Afinal, o beijei. Ele tinha um cheiro bom de criança, e gosto de chocolate. No início ele não queria abrir a boca, mas acabou cedendo. Me afastei para que ele pudesse respirar, e depois o beijei de novo; dessa vez foi mais fácil, ele viu que não era tão ruim, e não tentou fugir mais.
Não avancei mais do que isso, seria imprudente. Quando o soltei, ele estava vermelho.
-- Viu? Não foi tão difícil. E foi bom, não foi?
Ele balançou a cabeça.
-- Foi nojento.
Eu ri.
-- Pode ser. Mas foi gostoso.
-- Posso ir?
-- Você vai contar isso pro seu pai? Ou pra alguém?
-- Não.
-- Não mesmo?
-- Não, senhor.
-- Então, pode ir.
E ele saiu correndo pela porta.

* * * * *

O menino ficou bastante tempo sem aparecer. Fiquei preocupado: se ele não viesse, não poderia ir atrás dele. E não queria desistir.
Mas minhas preocupações, afinal, não eram necessárias. Um dia, três semanas depois do ocorrido, levantei-me de manhã e fui até a varanda. Lá estava o menino, sentado em um banquinho, fitando o pai, que podava uma árvore.
Naquele dia, o menino não desgrudou do pai nem por um segundo. No outro também não. Um dia, ao chegar em casa, vi minha mulher e o jardineiro aos beijos. Fingi não ter visto nada, e contratei o homem para vir diariamente, de segunda a sexta.
Só depois de dois meses surgiu outra chance, mas essa foi a melhor que eu poderia ter. Minha mulher tinha viajado, o jardineiro saíra para comprar adubo e deixou o filho sozinho, brincando no jardim. Cinco minutos depois, começou a chover.
Eu estava na janela do quarto, vendo tudo. Vi quando o menino correu para a varanda, tentando se proteger da chuva forte. Era a hora. Desci e abri a porta da sala, dizendo:
-- Entre, você está se molhando.
O menino me olhou, amedrontado, e não se moveu. Eu suspirei e disse, tentando não parecer impaciente:
-- Está todo molhado. Vamos, entre. Depois você pega uma gripe e vai dar trabalho para o seu pai.
Parecia que o ponto fraco dele era o pai. Ele hesitou por um momento, mas acabou entrando.
-- Viu, se molhou todo. Vem cá, vamos trocar essa roupa.
Ele me seguiu até meu quarto, inocentemente. Assim que entramos, tranquei a porta: sabia que ninguém iria chegar, mas ele podia tentar fugir. Guardei a chave no bolso, sem que ele percebesse, e disse:
-- Tire a roupa.
O menino me olhou assustado.
-- Pra quê?
-- Pra tomar banho. Você pegou friagem, é bom tomar um banho quente. - abri a porta do banheiro e apontei para a banheira – Já usou uma dessas?
-- Não, senhor.
-- Você vai adorar. Vai tirando a roupa enquanto eu preparo o seu banho.
Enquanto eu enchia a banheira, fiquei assistindo a ele se despir. Tinha um corpinho delicioso, e tive que usar todo o meu auto-controle para não ficar excitado.
-- Pode vir.
Ele veio, tímido. Entrou na banheira com certo temor, mas logo viu que era bom, e sorriu de satisfação. Eu também estava satisfeito: queria que ele relaxasse, não queria machucá-lo. E nada melhor para isso do que um banho quente.
Fechei as cortinas enquanto ele se secava no banheiro. O chamei para o quarto, e ele veio, enrolado na toalha.
Eu sentei na cama e o chamei para perto. Ele veio sem hesitar: todo o seu receio desaparecera. Coloquei as mãos sobre seus ombros e disse:
-- Está melhor agora?
-- Sim, senhor.
-- Gostou do banho?
-- Sim.
As coisas estavam indo muito bem, e eu não queria estragar tudo sendo impaciente. Por isso, fui muito suave quando disse:
-- Eu ficaria muito feliz se você retribuísse o que eu te fiz.
O menino ainda permaneceu de cabeça baixa por um tempo; e, então, olhou para mim.
-- O que o senhor quer que eu faça?
-- Sente na cama.
Ele obedeceu. Eu sorri e passei a mão por seu rosto.
-- Quero que você me beije.
Provavelmente ele já esperava aquilo. Sentou-se muito reto e olhou para mim.
-- Sim, senhor.
Eu o abracei com carinho. Passei a mão por seu rosto, delicadamente, e fiquei olhando para ele por alguns momentos. Então ele fechou os olhos, e eu o beijei.
Dessa vez foi ainda melhor. Ele retribuiu ao beijo, e ficamos vários minutos naquilo. Então abri meu zíper e baixei a calça. Peguei a mão dele e disse:
-- Segura isso aqui.
Ele se afastou imediatamente.
-- Não! Isso não!
-- Ande, querido, não é nada demais, você só tem que segurar...
-- Eu sei o que o senhor vai querer depois! - ele se afastou antes que eu pudesse segurá-lo – Não vou fazer isso!
Deixei que ele corresse para a porta. Ele tentou abrí-la, e se desesperou quando não conseguiu.
-- Deixa eu sair!
-- Você nem se vestiu. Vai sair pelado pela casa?
Fui até ele, calmamente. Seria difícil fazê-lo colaborar, mas não iria deixar passar daquele dia. Se fosse preciso, seria do pior jeito.
-- Vem cá.
-- Me solta!
O segurei e o arrastei de volta para a cama. Ele tentava se soltar de qualquer jeito, mas era muito pequeno. Tive vontade de rir do seu desespero. Claro que seria muito mais excitante com ele lutando, mas eu realmente não queria ter que machucá-lo. Seria uma pena.

* * * * *

Passou-se algum tempo; um dia, cheguei em casa mais cedo e peguei minha mulher na nossa cama, com o jardineiro. Ótimo, estava esperando por isso. Fiquei assistindo, parado na porta, e só depois de alguns minutos os dois perceberam minha presença. Tentaram falar qualquer coisa, inventaram desculpas; eu quase ri da cena, era tão rídiculo.
-- Você. - disse para o jardineiro – Lá para baixo. Agora.
Desci e esperei. Logo, o homem desceu também. O menino, que estava brincando no quintal, vira a cena e correra para junto do pai.
-- Você está demitido. - eu disse, calmamente – Tem sorte de eu não te dar um tiro.
-- Senhor, eu...
-- Só estou sendo generoso com você – interrompi – porque seu filho já pagou no seu lugar. Agora, vá embora.
Ele olhou para mim e para o menino, sem entender. O garoto estava agarrado na calça do pai, olhando para o chão. Logo iria começar a chorar. O jardineiro o pegou no colo e foi embora. Mais tarde, em casa, talvez o garoto tenha contado tudo, talvez não; mas isso não era importante. Depois desse dia, nunca mais os vi; nem o pai, nem o filho.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto é horrível. Na época em que o escrevi gostei muito, porque foi um dos primeiros em que escrevi explicitamente com a temática de pedofilia, mas agora acho que ficou um pouco cru demais e a reação dos personagens ficou pouco natural. Tive muitas dificuldades para escreve-lo, e não o escrevi todo de uma vez, o que talvez explique os problemas em sua estrutura final. Não foi inspirado por nada específico, apenas levemente baseado em outra coisa que escrevi anteriormente.

terça-feira, 14 de abril de 2009

[conto #008] O Homem do Jardim

O HOMEM DO JARDIM

O encontrei pela primeira vez sentado no portão de sua casa. Eu tinha oito anos e ia todos os dias ali, roubar flores. No jardim dele cresciam rosas e margaridas, jasmins e copos-de-leite, um infinito de cores que eu roubava todos os dias sem remorsos. Pulava a cerca de madeira, me embrenhava pelo jardim e arrancava meia dúzia de flores, para depois exibi-las e enfeitar meus cabelos. Consciente de que estava praticando o mais vil dos atos.
Mas agora eu havia sido pega. Ele estava ali, olhando para mim.
Meu primeiro instinto foi sair correndo. Mas antes que o fizesse ele me chamou:
-- Ei, você.
Congelei. Ele me chamou novamente:
-- Vem cá.
Obedeci. Caminhei lentamente para ele, pensando em tudo de horrível que iria me acontecer. Ele vai me matar, me bater, vai contar pra minha mãe...
Parei diante dele. Era um velho, devia ter mais de sessenta anos. Mas era tão bonito. Tinha a pele muito morena, quase negra, e curtos cabelos brancos como neve, parecendo espinhos sobre sua cabeça. E seus olhos eram verdes e vivos, mais vivos do que eu jamais vira.
-- Quer uma flor?
A voz dele era tão calma. Mas suas palavras eram tiros em minha alma corrompida. Balancei a cabeça, dizendo que não.
-- Pode pegar. - ele fez um gesto, indicando as flores – Se você não levar, ninguém vai vê-las. Elas vão murchar e morrer sozinhas.
Isso era verdade. Nunca tinha visto ninguém entrar na casa.
-- O senhor não tem raiva de mim?
Ele riu, de um jeito que não chegava a ser um riso.
-- E por que teria?
-- Porque eu roubei suas flores.
Mais um riso-não-riso, e ele balançou a cabeça.
-- Ladrões de flores têm cem anos de perdão.
Hesitante, caminhei até a roseira e tirei uma linda rosa branca. Senti seu perfume, toquei suas pétalas, e me virei para o velho do jardim.
-- Obrigada.
Saí correndo. Só parei ao chegar na escola. Foi quando percebi que estava chorando.

* * * * *

Demorou uma semana para que eu voltasse lá. Só pulei a cerquinha quando tive a certeza de que o velho não estava por perto. Estava recolhendo uma tulipa quando ouvi a voz dele atrás de mim:
-- Essas são lindas, não são?
Não sei como não gritei. De onde ele surgira? Me preparei para fugir, mas novamente ele me chamou:
-- Espere.
Parei. Teria ele algum poder mágico? Porque quando falava, eu não conseguia me mover.
-- Da próxima vez – ele disse, indo até a cerca – use o portão.
Balancei a cabeça, concordando. A culpa me faria concordar com tudo. Segurei firmemente a flor roubada e saí correndo pelo portão.

* * * * *

Aos poucos, comecei a me acostumar com ele. Às vezes eu chegava e ele já estava lá. Às vezes ele aparecia no meio da minha empreitada entre as plantas. Mas sempre aparecia. Eu sempre recolhia as flores em silêncio e ia embora o mais rápido possível.
Um dia cheguei um pouco mais cedo, na esperança de que ele só acordasse depois que eu fosse embora. Mas, quando eu estava quase terminando, ele apareceu.
-- Bom dia. - ele disse.
-- Bom dia.
Eu não conseguia falar com ele sem ficar vermelha.
-- Você quer um pedaço de bolo de fubá?
Meus olhos responderam por mim. Ele sorriu.
-- Entre, eu te dou um pedaço.
A perspectiva de entrar na casa dele me tirou a vontade de comer bolo.
-- Não, obrigada. Eu tenho que ir pra casa.
Ele não fez perguntas, talvez soubesse o que se passava em mim; os velhos e as crianças sempre compreendem uns aos outros. Apenas disse:
-- Então, leve um pedaço pra casa.
Isso eu podia fazer. Ele entrou e voltou um minuto depois, com uma cestinha de onde vinha o cheiro de bolo quentinho.
-- Tome. - ele me entregou a cesta – Tem pro seu pai e pra sua mãe também.
-- Obrigada.
Coloquei as flores na cestinha e saí, cantarolando. Na esquina, olhei para trás e avistei o velho. Ele acenou para mim, e acenei de volta.

* * * * *

Ele me conquistou com bolos e flores.
Com o tempo, aceitei comer bolo enquanto conversava com ele, na escada da varanda. No início a conversa se resumia a ele perguntar e eu responder com monossílabos. Nunca perguntou nada em particular; eram coisas como “você gosta de chuva?” e “qual a sua cor preferida?”. Aos poucos, comecei a dar respostas mais elaboradas, e logo era eu quem fazia as perguntas.
-- Quantos anos você tem? Você mora aqui há quanto tempo? Você não sai nunca? Você é casado? Onde estão seus filhos? Por que você cuida das flores?
Ele sempre me respondia, embora por vezes sua resposta não fosse exatamente uma resposta. Quando perguntei se ele era casado, ele disse “talvez”. Eu fiquei satisfeita com a resposta. Nem me passou pela cabeça perguntar o que era ser talvez casado.
-- Seus filhos não vêm te visitar?
-- Não. Às vezes.
-- Vêm ou não vêm?
-- Eles moram muito longe.
-- Ninguém vem te visitar?
-- Você vem.
-- Só eu?
-- Só.
Achei que isso devia ser triste.
-- Você não queria que outras pessoas viessem te visitar?
-- Pra que? Eu tenho o meu jardim. E tenho você.
E ele tinha, mesmo. Eu estava completamente encantada por suas conversas e seus bolos e suas flores. Chegava cedo à sua casa, e lá ficava até o sol subir.
Às vezes, ele parecia muito cansado. Nesses dias se sentava na escada, e nós não conversavamos; ele ficava apenas me assistindo brincar entre as flores. Algumas vezes eu fazia um buquê e dava pra ele. Ele sempre ria sem rir: devia ser estranho ganhar de presente suas próprias flores. Mas ele parecia ficar feliz quando eu fazia isso.

* * * * *

Um dia, ele não apareceu. Eu peguei as flores e sentei na escada, esperando ele chegar. Mas ele não chegou.
Depois de um tempo, cansei de esperar. Talvez ele estivesse dormindo. Talvez tivesse se esquecido de mim. E, para uma criança, ambas as possibilidades eram intoleráveis. Levantei-me decidida e bati na porta.
Eu era insistente, mas de nada serviu minha teimosia, porque ninguém abriu a porta. Chamei por ele, e nada. Talvez ele não estivesse em casa, o que era um crime um pouco menor para mim. Numa última tentativa, girei a maçaneta. E a porta abriu.
Eu entrei na casa com o mesmo cuidado com que invadia o jardim na minha época de ladra. Era uma casa muito bonita, arrumadinha. Passei pela copa, pela sala, pelo corredor, até que cheguei ao único quarto. A porta estava só encostada, e eu a abri devagarzinho.
Ele estava ali, deitado na cama. Virou-se para mim e sorriu.
-- Eu sabia que você vinha.
Fiquei parada na porta, olhando para ele. Não sentia mais raiva por ele ter me esquecido. Ele fez um gesto, me chamando.
-- Vem cá.
Me aproximei da cama, meio tímida, como nas primeiras vezes em que o vira. Ele apontou uma cadeirinha num canto do quarto; a peguei e coloquei do lado da cama, para poder sentar.
-- Por que você não foi lá fora?
-- Porque eu não podia levantar.
-- Por que não?
-- Porque estou velho demais.
-- Não tá não. Levanta.
-- Eu não posso. Você vai ter que pegar as flores sozinha hoje.
Entreguei pra ele o raminho de flores que tinha colhido. Ele riu sem rir.
-- Obrigado.
-- De nada.
Ele tossiu. Tossia muito, toda hora. E parecia estar sumindo.
-- Amanhã você vai estar no jardim?
-- Eu acho que não.
-- E depois de amanhã?
-- Também não.
-- E depois de depois de amanhã?
-- Não.
-- Nunca mais?
-- Nunca.
-- Você vai morrer?
-- Eu acho que sim.
-- Eu não quero que você morra.
Agora, ele não riu, apenas sorriu levemente. Parecia tão fraco. Me perguntei a quanto tempo estaria sozinho.
-- É melhor você ir pra casa. - ele disse.
-- Não quero ir. Quero ficar aqui.
Nunca tinha visto uma pessoa que estava morrendo. Não sabia o que era morte. Mas achava que ele não podia estar sozinho.
Fiquei sentada na cadeira, olhando. Ele só tossia, eu só olhava. Ninguém falava nada. De vez em quando eu pegava água para ele, de vez em quando ele bebia. Mas ficava cada vez mais e mais fraco. Comecei a entender o que era morrer. Ele estava desaparecendo. Eu quase podia ver o seu corpo virando ar.
-- Por que os seus filhos não moram com você?
-- Porque não gostam de mim.
-- Mas você é pai deles. Eles deviam gostar de você.
Ele voltou a rir sem rir, e eu fiquei feliz com isso.
-- E os seus amigos? Por que eles não vêm ficar com você?
-- Eu não tenho muitos amigos.
-- Por que não?
-- Acho que não mereci ter muitos.
-- Mas tem algum, não tem? Cadê ele?
-- Faz anos que não vejo ninguém. Não tenho mais nenhum amigo.
-- Tem sim. Tem eu.
-- Você é minha amiga?
-- Sou. - eu segurei sua mão – Eu vou ficar aqui.
-- Por quê?
-- Porque eu gosto de você. E das flores.
-- Cuida delas pra mim?
-- Cuido. Vou cuidar todo dia.
-- Obrigado.
Silêncio. Eu abri a janela, para que entrasse o cheiro do jardim. E disse, sem saber exatamente o que aquilo significava:
-- Eu amo você.
Continuei segurando sua mão por muito tempo. Ele agora só ficava de olhos fechados, e não falava. A última coisa que murmurou foi “também amo você”, e depois só sua respiração lenta. Eu fiquei sentada ali por muito e muito tempo, vendo o velho do jardim evaporar, vendo a primeira pessoa que eu amara ir embora lentamente.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa história é uma homenagem a uma pessoa que foi embora. Tirei a ideia parcialmente de uma história que li há muitos anos, da qual só lembro a frase "ladrões de flores e de frutas têm cem anos de perdão", e de um conto de Carlos Drummond. A ideia era que fosse uma história bonita e triste, mas ao mesmo tempo doce. Enquanto falava do jardim e da casa, tinha em mente a casa de uma senhora que visitei quando criança, e que hoje já não sei quem era. O "velho do jardim" é baseado em uma pessoa muito especial que já não está aqui.