quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

[conto #039] A Menina que Seguia o Sol

A MENINA QUE SEGUIA O SOL

Há muito tempo atrás, existiu uma menina que tinha muito medo da noite. Tanto medo que, assim que o sol começava a se pôr e as primeiras estrelas surgiam no céu, ela se escondia dentro de casa, embaixo dos cobertores, para não ter que ver o céu negro pontilhado de estrelas, muito menos a lua, a jogar seus raios sobre o chão.
Ela tinha medo do céu negro e desconhecido; medo das estrelas, pontinhos estranhos de luz em algum lugar distante; medo da lua, de sua forma que mudava mas sempre se repetia, de sua luz pálida; sentia medo do frio escuro e saudades do calor do sol. Na floresta em que morava, quando era noite de lua nova, tudo ficava tão escuro que ela não poderia ver os montros se aproximando, e quando era noite de lua cheia, havia sombras criadas pela luz branca, que se moviam de forma assustadora, como fantasmas do chão.
Durante muito tempo a menina sentiu medo todas as noites, e todas as noites ela passou escondida em sua casa, no colo de sua mãe ou embaixo das cobertas. Até que um dia, ao sair cedo para brincar na praia, ela ficou assistindo ao sol nascer, e o viu subir, e viu todo o seu caminho pelo céu. E quando ele estava prestes a se pôr, ela percebeu que, se ele estava sumindo dali, ele devia estar indo para um outro lugar, um lugar em que seria sol quando na casa dela fosse noite. E ela teve uma ideia: "Se eu seguisse o sol, seguisse ele sempre, para aonde quer que ele fosse, então nunca mais seria noite, e eu nunca mais teria que ficar em um lugar com aquele céu escuro e aquelas luzes sombrias".
Naquela noite, deitada no colo de sua mãe, ela perguntou para aonde o sol ia quando se punha. A mãe disse que ele ia para uma outra terra, um outro país, que ninguém ali conhecia. A menina então perguntou como se fazia para seguir o sol, mas a mãe riu, dizendo que era impossível: o sol andava muito mais rápido do que qualquer pessoa, do que qualquer animal, do que qualquer coisa aqui na terra. Mas a menina não se importou.
"Se eu andar bem rápido" - pensou - "tenho certeza de que conseguiria seguir o sol até qualquer lugar em que ele fosse".
Pensando nisso, ela arrumou suas coisas e, logo que o dia começou a clarear, sem que ninguém a visse, saiu de casa e começou a andar para dentro da floresta, na direção oposta à que o sol nascia.
No início ainda estava muito escuro, mas ela não sentiu medo, pois sabia que o sol estava logo atrás dela. Aos poucos, começou a clarear. Quando era meio-dia, o sol chegou ao ponto mais alto no céu, e não havia mais nenhuma sombra. Ela ficou feliz, pois gostava da luz; mas então percebeu, muito triste, que o sol estava andando muito mais rápido do que ela. Daquele jeito, ela estaria no meio da floresta, sozinha, quando a noite chegasse. Muito triste, e assustada com a ideia de estar sozinha quando a luz se fosse, ela voltou correndo para casa.
Os dias seguintes ela passou pensando em formas de seguir o sol. "Talvez", pensou, "se eu for de bicicleta, eu consiga andar tão rápido quanto ele". Assim, muito cedo em uma manhã, ela pegou novamente suas coisas, subiu na bicicleta e seguiu, o mais depressa possível, na direção oposta à que o sol nascia.
Dessa vez, quando o sol chegou ao seu ponto mais alto no céu, ela estava muito mais longe de casa. Mas se ele chegara até ali, queria dizer que ainda estava indo muito mais rápido do que ela; caso contrário, ele nunca deveria mudar de posição no céu. Desolada por sua segunda tentativa não ter dado certo, ela voltou novamente para casa.
Mais dias se passaram, e ela não conseguia descobrir uma forma de andar mais rápido do que o sol. Precisava de algo que a fizesse ir muito mais rápido do que a pé ou de bicicleta, mas não conhecia nada que fosse rápido assim. Talvez sua mãe estivesse certa; talvez fosse impossível seguir o sol. Talvez o destino dela fosse ter que suportar as noites, com suas sombras assustadoras, com seus barulhos fantasmagóricos.
Um dia, surgiu ali um viajante. Veio andando pela praia, usando um terno marrom e carregando uma grande mala. Parou à porta da casa dela pedindo água, e enquanto sua mãe o atendia, ela começou a conversar com ele.
"Qual é o seu nome?"
"Eu não tenho um nome"
"E o que tem na sua mala?"
"Muitas coisas"
"E de onde você vem?"
"De muito longe"
Era a primeira vez que ela conhecia alguém sem nome e que vinha de muito longe, então começou a contar sua vida para ele, quem era ela e como queria poder seguir o sol, para que nunca mais fosse noite. Contou sobre suas tentativas de seguir o sol, e como percebera que aquilo era impossível.
"Mas não é impossível", ele disse. "Eu tenho algo que pode fazer você andar tão rápido quanto o sol". E abriu a mala, tirando de dentro dela um grande balão.
A menina nunca tinha visto um balão, e não sabia para que servia aquilo. O viajante explicou que as pessoas podiam entrar na cestinha presa ao balão, e ao enchê-lo de gás, ele voava, levando as pessoas para o céu. E que lá no céu ele andava muito mais rápido do que qualquer coisa na terra, e podia seguir o sol.
"E lá no céu", ele disse, "dizem que existe um lugar em que o sol nunca se põe, e você não precisaria nunca mais fugir da noite. Se você quiser, eu te dou o meu balão, para que você vá procurar esse lugar".
Muito feliz, a menina aceitou. Guardou o balão dentro de casa, e no dia seguinte, bem cedo, o levou para a praia. Entrou na cestinha e o encheu de gás, como o viajante a ensinara. Quando a manhã já estava clara, o balão começou a subir.
Ele subiu e subiu, cada vez mais alto. Quando chegou acima das nuvens, ele começou a andar na mesma direção que o sol. No início ia devagar, mas depois começou a ficar cada vez mais rápido, até que o sol parou de se mexer no céu, ficando sempre na mesma distância atrás dele. A menina percebeu que agora estava andando tão rápido quanto o sol, e que nunca mais seria noite; e nunca na sua vida ela se sentira tão feliz.
Passou-se muito tempo, muitos e muitos dias, mas para a menina aquele tempo todo fora um único grande dia sem noite. Até que ela avistou, no horizonte, saindo de uma nuvem, uma escada que subia pelo céu. Ela parou o balão ao lado da escada e desceu da cestinha, pisando no primeiro degrau. Olhou para cima: a escada parecia não ter fim, subindo sempre para o céu. Ela começou a subir, degrau por degrau.
Ela subiu por muito tempo, por dias e dias, mas estranhamente, nunca ficava de noite. O sol se movia no céu até sumir, mas nunca escurecia: sempre havia uma luz vinda de algum lugar, uma luz tão clara e brilhante quanto a luz do sol. E a menina subia e subia, em direção ao topo do céu.
Depois de muitos e muitos dias, a menina avistou o fim da escada. O último degrau dava para um grande terraço cujo chão era dourado como o sol. Ela chegou até ali e começou a andar pelo terraço. No início não havia nada, apenas o chão dourado para todos o lados que ela olhasse, e o céu sempre azul acima dela. Ela andou e andou até avistar, ao longe, um grande castelo dourado. Correu para lá e, quando chegou, viu que ali havia pessoas, muitas pessoas, e todas também eram douradas e usavam roupas douradas. Quando ela chegou às portas do castelo, uma mulher que usava um vestido dourado foi até ela, e a pegou pela mão, e a levou para dentro. E no castelo a menina ganhou roupas douradas e sapatos dourados, e uma coroa dourada, e tudo nela brilhava tanto que ela começou a brilhar também. E quando ela já estava brilhando tanto quanto as outras pessoas naquela cidade, ela pôde sair do castelo e se juntar aos outros.
Muitos dias se passaram, e a menina vivia muito feliz na cidade em que nunca era noite. Porém, com o tempo, ela começou a sentir saudades de sua mãe, e das coisas que existiam abaixo das nuvens. Disse isso para as pessoas no castelo, e elas lhe disseram que, se quisesse, poderia ver as pessoas no chão, através do grande lago dourado que havia no castelo.
"Porém", as pessoas disseram, "o tempo lá embaixo passa muito mais rápido do que aqui. Talvez nada do que você conheceu ainda exista".
A menina foi até o lago, mas quando olhou para baixo não conseguiu encontrar sua mãe. Onde antes ela morava tudo estava diferente: havia outras casas, outras pessoas. Havia menos árvores e mais prédios, e até as roupas das pessoas eram diferentes. Ela procurou o cemitério da cidade, e encontrou lá o túmulo de sua mãe.
"Que triste é viver em um dia eterno", ela disse, "se todos que importam para nós têm que enfrentar a escuridão. Que triste é viver para sempre, se vivemos sozinhos!".
E quando disse isso, percebeu que o castelo dourado na verdade era uma prisão, que suas roupas douradas serviam apenas para afasta-la do que realmente amava, e que as pessoas douradas eram apenas pessoas que haviam fugido do que era real. E ela correu para fora do castelo, até o fim do terraço, e de lá se jogou. E começou a cair e cair, e enquanto caía seu vestido dourado se desfez, e o dourado de sua pele se desfez, e ela evaporara muito antes de chegar ao chão.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

[conto #038] A Aldeia

A ALDEIA

As pessoas se acostumam.
Coisas que para outros seriam insuportáveis, são apenas parte da vida quando vividas com frequência.
Ela nascera na aldeia e de lá, como todos os outros, nunca saíra. Seus antepassados haviam construído as primeiras casas no meio da floresta, e desde então, uma vez nascido ali, ali você morreria.
Era apenas um grupo de dez viajantes que se perdera na floresta. Após três dias, e com o grupo reduzido à metade, eles perceberam que jamais sairiam dali. Construíram então uma pequena casa para se abrigar da noite, e ali conseguiram viver, pelo resto de suas vidas.
Havia apenas uma mulher no grupo, que gerara a toda a aldeia.
Mas isso fora há pouco mais de cem anos, quando as vítimas escolhidas eram aleatórias e o medo era constante para todos. Muitas coisas haviam mudado. Havia um pacto, agora. Um acordo. Se uma pessoa fosse levada, todos os meses, por vontade própria, então ninguém mais morreria durante o resto do mês. Um acordo justo.
Por isso, em todas as noites de lua cheia, todas as jovens virgens da aldeia eram amarradas em cruzes na beira da floresta, e lá deixadas até o amanhecer. Sempre, uma era levada, e graças a isso o resto da aldeia podia viver.
Aquela era a quinquagésima noite em que ela seria oferecida. Uma data importante para todas que passavam por ela. Já sobrevivera a quarenta e nove noites; se sobrevivesse a mais uma, teria permissão para se casar e deixar de ser oferecida.
Ela estava sentada em seu quarto, se olhando no espelho rudimentar pregado na parede. Sua irmã, de nove anos, a ajudava a arrumar os cabelos. As jovens oferecidas deveriam estar impecáveis. Havia certo orgulho em ser escolhida. Ninguém sabia como era a morte, o que acontecia com as vítimas, mas ser escolhida significava que havia algo de especial na pessoa. Sobreviver um número suficiente de noites para se casar significava apenas que em breve ela se tornaria uma geradora de novas oferendas.
-- Como ele é? - a criança perguntou pela centésima vez.
-- Ele quem? - ela fingiu não entender.
-- O vampiro.
-- Eu já te disse que não sei. Nós não o vemos.
-- Mas como ele leva uma de vocês e ninguém vê?
-- Ele é só uma sombra passando. Uma hora a pessoa está lá, no momento seguinte não está.
Era tudo o que ela sabia, mas a irmã não estava satisfeita. Mas, é claro, era difícil entender; ela só entendera quando passara por aquilo pela primeira vez.
-- Vamos. - disse sua mãe, abrindo a porta do quarto, e ela se levantou. Seu pai, seu irmão mais velho e seus oito irmãos mais novos, dos quais seis eram meninas, estavam esperando na sala. Na aldeia, as famílias eram incentivadas a terem filhas, muitas filhas; uma família que gerasse mais meninos do que meninas era considerada amaldiçoada. Se não houvesse um número suficiente de garotas virgens na aldeia, todos estariam em perigo.
Os pais saíram na frente, e ela os seguiu, de braços dados com o irmão. Os meninos mais novos vinham logo atrás, seguidos pelas meninas, que ainda eram jovens demais para serem oferecidas. Pela aldeia, as outras jovens também saíam de suas casas, seguindo a mesma formação. Algumas já estavam sendo amarradas. Ao longe, o sol se punha por detrás das árvores.
Ela chegou à sua cruz, onde seus pais já preparavam as cordas. Olhou ao redor, cumprimentando as outras garotas, e avistou o irmão de uma delas, de quem gostava e com o qual já trocara olhares e até algumas poucas palavras. Ele sorriu para ela, ela sorriu de volta.
-- Venha. - disse seu pai. Ela se encostou à cruz, como de costume, e seus braços foram amarrados de forma que ficassem esticados, como a imagem de Cristo. Em seguida foi amarrada pela cintura, e por último suas pernas foram presas juntas. Os nós não apertavam a ponto de machucar, mas a impediam de se mover.
As famílias permaneceram ali por mais algum tempo, mas o sol sumia no horizonte, e começava a chegar a hora perigosa. Aos poucos, mas com certa pressa, todos começaram a se retirar. Seus pais e irmãos se despediram e se afastaram depressa. O rapaz que ela admirava foi até ela, quando já não havia quase ninguém ali, e lhe fez uma reverência.
-- É sua quinquagésima noite?
-- Sim.
-- Assim que o sol nascer pela manhã e você voltar para casa, irei até lá e lhe pedirei em casamento. Antes de um mês você será minha mulher.
Disse isso e saiu depressa, sem esperar resposta. Ela apenas conseguia sorrir. Sobrevivera a quarenta e nove noites; o vampiro não a apreciara, com certeza sobreviveria a mais aquela noite.
Poucos minutos depois, o sol sumiu totalmente. A lua cheia surgiu no céu, iluminando a floresta com sua luz branca. De frente para ela estava a floresta escura. Estava tão próxima das árvores que, se não estivesse amarrada, poderia estender a mão e toca-las.
O tempo passava. Ela já aprendera a contar as horas conforme a posição da lua no céu, e por mais que estivesse acostumada, passar a noite inteira ali era entediante. A ansiedade a impedia de dormir, eram raras as vezes em que ela conseguia adormecer por mais de uma hora. As vezes ela olhava para os lados, para as outra jovens, mas geralmente elas estavam perdidas em seus próprios pensamentos, ou olhando ansiosamente para a floresta. Mesmo quando seu olhar encontrava o de alguma das outras, não havia sorrisos ou palavras; havia apenas o silêncio, o olhar as vezes assustado, as vezes apenas curioso.
Muitas horas se passaram. Devia ser por volta de meia noite, talvez uma da manhã.
E então ela ouviu. As outras deviam ter ouvido também, pois a tensão se espalhou entre elas. Parecia com um leve farfalhar, como o som de passos que não chegam a ser audíveis, mas que é possível perceber - escutar sem escutar. Ela desviou o olhar da floresta, abaixando a cabeça, por puro instinto. Ele estava ali.
Demorou algum tempo - ele estava escolhendo. E então novamente a sombra passando, como em todas as noites. Mas dessa vez não passou: ficou ali, em frente a ela, e de repente estava sobre ela, e dessa vez tudo era diferente, o frio, o escuro, o medo. Demorou alguns instantes ainda para ela perceber que fora a escolhida.
Não era justo, foi tudo o que ela conseguiu pensar. Não era justo. Depois de tanto tempo, tanto tempo - sua última noite. Por que ela? Havia jovens mais atraentes, mais jovens - por quê?
Ela esperou. A escuridão ao seu redor continuava, assim como o frio. Perguntava-se como seria. Se seria rápido. Se seria doloroso. Se ela chegaria a ver o ser que eles chamavam de vampiro. Se ele seria tão assustador quanto as pessoas costumavam imagina-lo. Se teria algo de humano, ou se pareceria algum tipo de animal.
A escuridão absoluta durou por algum tempo, e então cessou. Ela não estava mais amarrada à estaca, nem na beira da floresta. Estava em um lugar escuro, então só podia ver sombras, mas percebeu que não havia árvores em volta. Parecia um lugar fechado, e o chão era de terra. Ela olhou ao redor. Não havia ninguém.
Aquilo era estranho, e ela estava confusa, mas o medo passara. Levantou-se e olhou ao redor, tentando inutilmente enxergar o suficiente para descobrir onde estava. Deu um passo, com as mãos estendidas para não bater em nada, e imediatamente algo surgiu da escuridão e a segurou, jogando-a de volta no chão. Ela caiu, mas não se machucou, e logo se viu amparada por braços. Braços que pareciam humanos.
Não ver quem a segurava, mais do que saber que só podia ser seu captor, era aterrorizante, o tipo de terror que não te permite nem mesmo gritar. Ela ficou imóvel, sem sequer respirar, esperando o que quer que fosse; mas então aquilo a soltou, e de repente uma luz ofuscante iluminou tudo ao redor.
Ela teve que fechar os olhos. Foi preciso algum tempo para que conseguisse abri-los, mas mesmo antes de fazê-lo percebera que a luz vinha de alguma tocha ou fogueira. Quando afinal conseguiu olhar, viu uma espécie de homem parado diante dela, com uma tocha nas mãos.
"Uma espécie" de homem, porque aquele ser claramente não era humano, embora parecesse com um. Era mais pálido do que uma pessoa poderia ser, mas de uma forma estranha, como se fosse uma estátua de gesso. Seus olhos tinham a íris quase branca, seus lábios não tinham cor, e havia algo em seu olhar que o fazia parecer mais com um animal selvagem do que com um ser racional. E, de alguma forma, era belo, absurdamente belo, mais do que qualquer pessoa que ela já vira. Tinha os cabelos longos, seu corpo estava todo coberto por roupas negras, e seu olhar era o de uma pessoa faminta diante de um banquete.
-- Quem é você? - ela perguntou, já superados o terror e o medo, apenas curiosidade em seu olhar e sua voz.
Ele deixou a tocha sobre um suporte na parede. Parecia que eles estavam em uma caverna, pois as paredes eram de pedra e o teto era muito alto. Estavam no meio de um longo corredor, e não era possível ver a saída. Em silêncio, ele se aproximou dela e se ajoelhou ao seu lado. Ela o olhava com curiosidade. Ele tocou no rosto dela, mas sem delicadeza; parecia estar testando a textura de sua pele. Então disse:
-- Sou aquilo que seu povo chama de vampiro. - a voz dele era profunda, escura e fria como a noite - Sou o senhor dessa floresta que vocês, humanos, invadiram. Sou mais antigo do que a memória da humanidade, e não tenho um nome que possa ser pronunciado por qualquer ser existente. Alimento-me do sangue daqueles que têm uma existência mortal, e só existo enquanto é noite.
-- Por que me escolheu?
-- Porque a escolhi.
-- Vai me matar?
-- A morte sempre foi o seu destino; apenas lhe darei a honra de que ela seja útil a um ser superior a você.
-- E como vai me matar?
-- Morderei seu pescoço e me alimentarei de você. - ela podia ver os caninos grandes e afiados como os de um animal - Beberei seu sangue até que nada mais reste dele em seu corpo.
-- Será doloroso?
-- Será o momento mais prazeroso que terá em sua breve existência.
Ela fechou os olhos quando ele se aproximou, esperando que ele a mordesse; mas, ao invés disso, ele a beijou. Ela abriu os olhos e se debateu, mas ele era muito mais forte, e ela acabou por aceitar. Quando ele se afastou, ela tentou lhe dar um tapa, mas ele apenas segurou seu pulso, com indiferença.
-- Por que me beijou?
-- Por que um homem beija uma mulher?
-- Você não é um homem. E achei que tivesse me trazido aqui para me matar.
-- Está com tanta pressa para morrer? Sou um homem, assim como os homens da sua miserável vila também o são.
-- Você é um vampiro. Vampiros não são humanos.
Ao invés de argumentar, ele a fez se deitar no chão e se deitou sobre ela. Ela tentou se soltar, mas era inútil.
-- Não ofereça resistência. - ele rasgou parte do vestido dela.
-- Não oferecerei, se não me machucar.
-- Não a machucarei.
O vestido que ela escolhera com tanto cuidado foi feito em pedaços. Ele se despiu diante dela, e seu corpo era como seu rosto, branco como gesso. Mas não era um corpo frágil; era o corpo de um homem, um homem forte, selvagem, possivelmente violento, e de uma perfeição e beleza não-humanas. Um corpo que a fez se encolher, com medo, mas que a surpreendeu desde o primeiro toque, demonstrando suavidade apesar da ausência de delicadeza, calor apesar da frieza, doçura apesar da não-humanidade. Beijos e toques que haviam sido aperfeiçoados durante milhares de anos a seduziram, e ela se deixou levar, entregando-se aos seus braços por livre e espontânea vontade.
Depois de se satisfazer, ele se deitou ao lado dela. Demorou um pouco para que ela se recuperasse, e mais um tempo para que ela decidisse o que deveria dizer; mas por fim disse:
-- Deita-se com todas as jovens que escolhe?
Ele apenas a olhou com seus olhos frios, e não respondeu.
-- Há tantas coisas que quero perguntar. - ela disse - Tantas coisas que desejo saber sobre você. Mesmo sabendo que esse conhecimento de nada me servirá, pois em breve morrerei.
-- Não faça perguntas. Não agora.
-- Vai me matar agora?
-- Eu disse - ele se levantou - para não fazer perguntas.
Em silêncio, ele foi andando, nu, pelo corredor de pedra, até desaparecer na escuridão. Ela chamou por ele:
-- Não me deixe sozinha aqui! Volte!
Houve o som de passos que paravam, e então ele retornou.
-- Por que me chama de volta?
-- Tenho medo de ficar sozinha.
-- Deveria temer minha presença. Sabe que irei te matar.
-- Fui preparada para ser morta por você desde que nasci. Mas a solidão me assusta.
-- Levante-se e venha comigo então.
Ela se levantou e o seguiu. Ele pegou a tocha que estava na parede, e eles foram andando pelo corredor que parecia não ter fim.
-- Por favor, me dê algo para vestir.
-- Pelo tempo que lhe resta, permanecerá nua.
-- Que lugar é esse? Uma caverna?
Ele se voltou para ela e lhe deu um tapa no rosto. Ela caiu no chão.
-- Eu a mandei não fazer mais perguntas por agora.
Um pouco trêmula, ela se levantou e voltou a segui-lo em silêncio. O corredor acabava em um grande salão de pedra, que deu a ela a certeza de que estavam em uma caverna. Havia uma enorme cama ali, além de outros móveis.
-- Então você não é tão selvagem assim. - ela disse - Você dorme aqui? Mora aqui?
Assim que fez as perguntas ela se lembrou do tapa anterior, mas era tarde. Outro tapa, ainda mais forte, a jogou no chão e a deixou com o lábio sangrando.
-- Desculpe. - ela murmurou, levantando-se. Percebeu que sua mão direita também sangrava, mas não tinha onde limpa-la. Pela primeira vez até então, sentiu vontade de chorar.
Mas não chegou a chorar. O vampiro a puxou para si, de forma violenta, e lambeu o sangue de seus lábios. Em seguida pegou sua mão e bebeu o sangue que a sujara. Mas era pouco, e aquilo atiçara seu apetite; ele a abraçou com força e tentou morder seu pescoço. Ela lutou e se debateu, assustada pela violência e pelo ataque súbito, mas ele facilmente a dominou.
-- Não resista a mim.
-- Não assim. Por favor, não assim.
-- Achei que ansiasse pela morte.
-- Não a anseio, apenas aguardo por ela.
-- Então a aceite agora.
Ele estava prestes a morde-la, mas subitamente se afastou e a empurrou, fazendo-a cair sobre a cama.
-- Você não é pura. - junto ao tom frio, agora havia ódio - Foi tocada por outro.
-- Não - ela estava confusa - nenhum outro me tocou além de você.
-- Seu corpo não foi tocado, mas seu coração sim. Posso sentir em seu sangue, você deseja a outro, ama a outro. Posso provar em seu sangue assim como você poderia provar vinagre misturado ao vinho.
-- Eu... Eu... Não sabia que... - ela se encolheu, mas então se levantou e o encarou - Essa seria minha última noite. Passei quarenta e nove noites me oferecendo a você, e você nunca me escolheu. Tinha certeza de que não me escolheria hoje também. Assim que o sol nascesse um rapaz da aldeia iria à minha casa me pedir em casamento, e nos próximos dias eu estaria casada com ele. Por que esperou cinquenta noites para me escolher? Havia jovens mais belas do que eu dessa vez, enquanto em outras vezes eu fui a mais bela. Por quê?
Ela estava pronta para outro tapa, ou para outro ataque súbito, mas ele apenas a olhou com frieza e se afastou.
-- Meus motivos não dizem respeito a nenhum mortal.
-- Não sou mais mortal ou imortal, sou apenas alguém que aguarda a morte. Diga-me seus motivos! Diga-me quem você é, de onde veio, que lugar é esse e se há outros como você! Diga-me por que se alimenta de nosso sangue! Diga-me ou mata-me, porque não o temo mais!
Lentamente, ele se virou novamente para ela. Ela esperava que houvesse novamente ódio em seus olhos, mas o olhar dele era impenetrável e não demonstrava nenhuma emoção.
-- A ausência de temor é apenas uma ilusão tola. Não se julgue mais forte do que é.
-- Não sou forte, apenas não o temo. Não temo um ser que se diz superior mas sente ciúmes e inveja, como o mais fraco dos homens humanos sentiria quando a mulher que deseja ama a outro.
Ele foi até ela e lhe deu outro tapa. Em seguida passou a mão diante de seus olhos, fazendo com que ela caísse em um sono profundo.

* * * * *

Mal os primeiros raios de sol surgiram, e as famílias já corriam para a beira da floresta, para chorar pela vítima e se alegrar pelas sobreviventes. Conforme chegavam e encontravam as filhas, os pais as desamarravam depressa, e elas se jogavam nos braços dos familiares. Mas uma das cruzes estava sem ninguém, e àquela família só restava chorar.
O irmão da garota ao lado da cruz vazia não sorria, e não abraçou a irmã com tanto entusiasmo quanto os outros. Mesmo depois que todos haviam ido, ele ficou ali, olhando a cruz vazia. Olhou para a floresta, que mesmo de dia era escura e assustadora. E tomou uma decisão.
Mais tarde, naquele mesmo dia, um grande grupo de pessoas estava reunido ao redor de uma clareira, onde aquele mesmo rapaz falava coisas que nunca ninguém ali havia sequer pensado.
-- Até quando? Quanto mais iremos aguentar? A cada mês, a cada lua cheia, vemos um monstro levar nossas filhas, nossas irmãs! Não pode continuar assim! Quantas mais têm que morrer para que façamos alguma coisa?
-- Cale-se, jovem estúpido! - gritou um ancião - Você não era vivo quando o pacto não existia! Não lembra o terror que era, quando a qualquer dia, qualquer um da aldeia poderia ser levado! Famílias inteiras foram mortas em uma única noite! Quer que as coisas voltem a ser assim?
-- Vocês não entendem que não temos que nos submeter a isso? Somos muitos, e o vampiro é poderoso mas é apenas um! Não precisamos voltar ao terror de outros tempos, mas também não precisamos nos curvar diante dele! Se nos juntarmos podemos vencê-lo!
Os jovens da aldeia aplaudiam e davam vivas. Alguns homens mais velhos se juntaram a eles. Os outros apenas assistiam, com um olhar reprovador.
-- Tolos! - gritou outro ancião - Vão matar a todos! Vão trazer a maldição para esta aldeia!
Mas os jovens não ouviram. Apenas bradavam gritos de guerra, enquanto seu líder começava a expor os planos para a batalha.

* * * * *

Acordar foi como emergir de um lago escuro. Ela abriu os olhos e se viu deitada sozinha na enorme cama, coberta por luxuosos lençóis vermelhos. O salão de pedra estava iluminado por várias tochas.
Ela se sentou e passou a mão pelo pescoço. Não havia sinal de mordidas. Ela se levantou, enrolando-se no lençol, e rodeou a cama, olhando ao redor. Havia uma grande arca, uma mesa, alguns outros objetos, tudo parecendo saído de algum castelo. Tomada pela curiosidade, ela foi até a arca e a abriu. Dentro, centenas de joias e peças de ouro, uma riqueza com a qual ela nunca sequer sonhara. Fechou a tampa e olhou ao redor, receosa de que o vampiro se enfurecesse ao ver que ela estava mexendo naquelas coisas.
No chão, próximo à cama, havia um caixão fechado. Ela ficou olhando aquilo, intrigada, quando de repente a tampa se abriu e o vampiro saiu. Estava nu como ela, mas não se preocupou em se cobrir. Ela queria perguntar o porquê de ele dormir em um caixão, mas conseguiu se conter a tempo. Ele foi até ela e puxou o lençol que a cobria.
-- Eu disse que pelo tempo que lhe resta, ficará nua.
Sem esperar a reação dela, ele se afastou. Ela disse:
-- Estou com sede. E com fome.
-- Você não conhece sede. - ele pegou uma taça que estava sobre a mesa e a encheu com algo que estava em uma garrafa - Não a verdadeira sede.
Ele bebeu. Em seguida fez um sinal para que ela se aproximasse. Ela obedeceu, e quando estava próxima, ele a puxou para si e a beijou.
Dessa vez, o beijo tinha gosto de sangue, e ela tentou de todas as formas se afastar, mas foi inútil. Ele a pegou no colo e a colocou sobre a mesa. Ela protestou, e ele sorriu com os olhos.
-- A mesa é o lugar para você, já que será meu alimento. - ele a deitou - Em breve.
Por mais que ela quisesse resistir, bastavam alguns beijos para que estivesse seduzida, e mais uma vez ela se entregou a ele.
Mais uma vez, após ter o que queria, ele se afastou com indiferença. Disse:
-- As perguntas que tem, poderá fazê-las agora. Porque o momento se aproxima.
Ela se levantou também e o encarou.
-- Por que se alimenta de sangue?
-- Porque é o que sou: um vampiro. Essa é a nossa natureza.
-- "Nossa"? Há outros vampiros então?
-- Sim.
-- E onde eles estão?
-- Em outros lugares. Espalhados pelo mundo.
-- Onde está sua família?
-- Não temos família.
-- Nenhum vampiro tem família? Mãe, pai, irmãos?
-- Não.
-- Mas então, como surgiram? De onde vieram?
-- Temos apenas o nosso criador.
-- E quem é esse criador?
-- O vampiro que nos mordeu, que nos tornou vampiro. Cada um de nós possui seu criador, nosso mestre, pai, irmão e amante. Aquele que nos deu a imortalidade.
-- Espera. - ela tentava absorver tudo o que ele dissera - Então, você... Você nem sempre foi um vampiro? Outro vampiro te mordeu, e então você se tornou igual a ele?
-- Sim.
-- E o que você era antes de ser mordido?
-- Eu era um humano. Um homem humano.
Aquilo era simplesmente absurdo demais, irreal demais, para ser entendido e aceitado imediatamente.
-- Você era... Humano? Humano como... Como meu pai, meu irmão...
-- Sim.
-- Há quanto tempo você... Você se tornou vampiro?
-- Pouco mais de dez mil e trezentos anos.
-- Dez... Mil...
-- Eu não era um homem como você conhece. Nenhum de nós era. Aquela era a aurora dos tempos, o início da humanidade. Nada do que existia então continua a existir hoje. Eu vi nascer os pais da humanidade, vi as primeiras cidades surgirem do pó e ao pó retornarem, vi idiomas nascerem e morrerem, vi a humanidade descobrir e reinventar a escrita centenas de vezes. Diante de mim, as vidas dos mais antigos anciões nada significam. Diante de mim vocês são como a areia soprada pelo vento.
O entendimento da grandeza daquele ser diante dela fez com que ela fosse tomada por um tipo diferente de respeito e admiração. Não era mais a reverência do medo, e sim a reverência da criança diante do ancião. Ela se aproximou, ajoelhou-se diante dele e beijou sua mão.
-- Eu não tinha ideia de quem você realmente era. Perdoa-me.
-- Não há o que perdoar. Levante-se. Sei que ainda tem perguntas a fazer, e seu tempo está se esgotando.
Ela se levantou e o encarou.
-- Onde você nasceu? Onde vivia quando deixou de ser humano?
-- Nasci em um lugar que hoje chamam Egito, e lá vivia quando fui criado.
-- Como foi? Por que te transformaram?
-- Nossas razões não seriam entendidas por mortal algum.
-- Mas como foi? Conte-me.
-- Não há muito para contar. Eu estava caçando com outros de minha tribo, quando fomos atacados por um ser que desconhecíamos. O nome "vampiro" não existia então. Ele matou a todos, exceto eu. Como havia sido mordido, eu me tornei o que sou hoje. Deixei então o meu povo e segui vagando pelo mundo, a princípio em companhia do meu criador, e então, quando estava pronto, sozinho.
-- Então, qualquer humano pode se tornar um vampiro?
-- Sim. Quem for mordido e continuar vivo, irá se tornar um de nós. Mas nós não criamos novos vampiros, exceto em situações excepcionais.
-- Por quê?
-- Porque se muitos dos nossos começassem a surgir, em breve teríamos que criar humanos da mesma forma que humanos criam gado, para podermos nos alimentar. E isso, além de desagradável, não é da nossa natureza. Somos caçadores. A presa que se oferece, que se entrega sem resistência, não nos agrada.
-- Não entendo. Se é assim, porque aceita as oferendas que fazemos? Porque me aceitou?
-- Foi um acordo feito com seus antepassados. Não deixei de caçar, apenas não caço em sua aldeia. E uma jovem virgem e bela é mais do que alimento para mim.
Para a surpresa dele, ela deu um breve riso.
-- Você, apesar de muito superior a nós, ainda é em parte humano. - ela tocou nele - Seu desejo por nós, o ciúme que sente quando a jovem que toma deseja a outro... Isso faz com que parte de você ainda seja humano. Isso o torna ainda mais belo.
Novamente ele sorriu, apenas com os olhos. Ela o abraçou, mesmo sem saber se ele permitiria.
-- Eu gosto de você. - ela disse - É uma pena que tive tão pouco tempo para te conhecer.
Ele permitiu o abraço, e a abraçou de volta.
-- Já anoiteceu. - ele disse - Vamos para a floresta.
-- Para que?
-- Quero te dar o direito de ver o céu pela última vez.

* * * * *

Ela estava na beira do penhasco, olhando o céu. Sentia o vento bater em seu rosto. Sentia o coração bater em seu peito. Sentia-se viva.
Atrás dela, o vampiro apenas a observava, em silêncio.
-- É lindo. - ela se voltou para ele - É a primeira vez que vejo a floresta fora da aldeia.
-- E ainda é muito pouco perto do que há no mundo.
-- Gostaria que me levasse para conhecer o mundo. - ela voltou a olhar o céu - Cada segundo vale a pena se sabemos que há tantas belezas desconhecidas.
Os dois ficaram algum tempo em silêncio; então ele disse:
-- Você é diferente das outras.
-- Diferente? De quem?
-- Das outras jovens que me foram oferecidas. Elas imploravam por sua vida, ou apenas aceitavam a morte. Mas você é diferente.
Ela não entendia exatamente o que ele queria dizer, mas percebeu que era algo bom, e sorriu. Foi até ele e o abraçou.
-- Eu quero que você me tome uma última vez. Quero ser sua aqui, no meio da floresta, sob a lua cheia.
Ele atendeu àquele pedido. A tomou para si, e quando ela estava entregue a seus braços, finalmente a mordeu. A luz da lua fazia o sangue que pingava no chão parecer mais escuro do que de fato era; ele a bebia devagar, saboreando cada gole. Ela estava em uma espécie de êxtase hipnótico, apenas parcialmente consciente.
De repente, o som distante, mas para ele alto e claro, de pessoas andando pela floresta. À sua procura. Ele soltou a garota e olhou na direção das árvores. Ela protestou, pediu para que ele continuasse, mas ele tocou seu pescoço e a fez parar de sangrar. Deixou-a deitada no chão, naquele estado semiadormecido, e adentrou na floresta.
Após algum tempo ela despertou. Sentia-se confusa, era difícil lembrar o que estava fazendo ali ou o que acontecera. Quando se levantou, lembrava-se de que fora mordida, mas não entendia o porquê de ainda estar viva e sozinha ali. Olhou ao redor, e parecia ver o lugar por onde o vampiro passara, o caminho que seguira - como se estivesse ligada a ele e pudesse senti-lo. Correu para a floresta, procurando por ele, e logo chegou a um local com uma cena assustadora: vários homens de sua aldeia estavam mortos no chão, parecendo completamente secos, sem sangue. O vampiro estava próximo a eles, com um dos jovens em seus braços, ainda bebendo seu sangue. Em meio aos corpos ela avistou o rapaz que a prometera em casamento, e correu até ele.
-- Não! - ela se ajoelhou e o tomou em seus braços - Não, não... Por quê... Por que fez isso, por quê...
O vampiro nada disse até ter terminado de beber o sangue do homem em seus braços; então olhou ao redor, como se verificasse se ainda havia algum resquício de sangue que tivesse deixado escapar, e só depois se voltou para a garota. Ela o olhava com ódio, com lágrimas em seus olhos.
-- Por que fez isso? Por que os matou? Você já tinha a mim!
Ele sorriu, um sorriso breve, quase demoníaco. Apesar do escuro, ela podia ver que ele se transformara - sua pele parecia viva, parecia haver sangue e calor em seu corpo, e ele parecia quase tão jovem quanto ela. Apenas seus olhos continuavam mostrando sua natureza não humana, animalesca.
-- Fazia tempo que eu não tinha um banquete como esse. - ele se aproximou dela - Não me olhe com esse ódio no olhar. Essas pessoas invadiram a floresta a minha procura. Descumpriram o trato. A punição para isso é a morte. Espero que os outros aprendam.
-- Eles apenas queriam me salvar! - ela se levantou - Ele me amava, fez isso por mim!
-- Não confunda o amor com a estupidez. Nada do que fizessem poderia lhe salvar, e eles sabiam disso. Essas crianças foram tolas, e isso lhes custou a vida.
Com raiva, ela se jogou sobre ele e começou a lhe bater. Sabia que seria inútil, mas não importava. Queria poder mata-lo, despedaça-lo com suas próprias mãos.
-- Não há nada que o mate? - ela gritava - Nada que mate um monstro como você? Como Deus pôde permitir o surgimento de criatura tão maldita?
Sem demonstrar irritação ou impaciência, ele a segurou e a jogou no chão.
-- Há coisas que me matam. Jamais disse que não havia. Mas nada que esteja ao alcance de vocês.
Subitamente, ela se levantou e saiu correndo pela floresta. Não queria fugir, queria apenas ficar o mais longe possível dele. Não permitiria mais que ele provasse uma única gota de sangue dela. Ela chegou novamente ao penhasco em que estava antes e, com um último olhar breve para a lua, se jogou.
Ela tentou manter os olhos abertos, enquanto caía e caía, eternamente. Podia ver o chão escuro se aproximar com uma velocidade assustadora. Mas muito antes do impacto, foi envolta por trevas e frio, e de repente estava de volta à beira do penhasco, sob a lua.
-- Tento entender - disse o vampiro - o que faz uma pessoa escolher a morte lenta e dolorosa provocada por uma queda como essa, ao invés da morte rápida e prazerosa que eu lhe ofereço.
-- Não tenho medo, nem da dor nem da morte. - ela se levantou e o encarou - Ao contrário de você, que deve temer tanto a morte que escolheu para si uma vida imortal! Se hoje voltasse a ser humano, tenho certeza de que morreria pelo simples terror da morte! Você se diz superior a nós, mas apenas aqueles que aguardam o fim estão realmente vivos!
Sem palavras ou reações, ele a segurou, deitou-a no chão e a mordeu novamente. Ela se debateu, obrigando a si mesma a não cair naquele torpor hipnótico; mas a sensação dele bebendo seu sangue era prazerosa demais para ser suportada por alguém consciente, e ela desmaiou.

* * * * *

Ela abriu os olhos. Estava claro, mas era um tipo de claridade que ela nunca vira. Como se houvesse luz no escuro. Como se as sombras brilhassem.
Sentia-se estranha. Seu corpo era estranho. Sua própria mente, seus pensamentos - tudo estranho, tudo diferente. Levantou-se, percebendo que estava deitada na mesma cama que o vampiro a deitara antes. Estava de volta à caverna.
Quando seus pés tocaram o chão, a sensação que teve era a de que estava tocando o solo pela primeira vez. O chão parecia mais real, a terra parecia mais terra, as pedras eram mais sólidas do que normalmente seriam. O ar ao seu redor era mais vivo, mais existente - como se anteriormente as coisas tivessem a consistência de um sonho, e só agora ela estivesse realmente desperta.
Ela se levantou, ouvindo o som da própria respiração, dos seus pés tocando o chão, do ar se movendo ao seu redor e correndo pelos corredores até a entrada da caverna, para então se misturar ao vento que soprava na floresta - um vento aquecido pelo sol, pois era dia. Ela ouvia tudo, sentia tudo. Cambaleou, assustada, e percebeu que andar era quase flutuar, que ela era leve, que seus pés não deixavam pegadas. Podia sentir cada som da floresta, cada ser vivo, cada folha de árvore, cada pulsar de coração; estava prestes a gritar, em pânico, quando sentiu algo surgir atrás de si, e se viu envolvida por braços fortes, quentes, reconfortantes.
-- Não tenha medo. - o vampiro disse, suavemente, e sua voz, mesmo fria, tinha um calor suave.
-- O que está havendo? - ela ainda estava muito assustada - Eu morri? Isso é a morte?
-- Não. Você está viva. Nunca esteve tão viva quanto agora. - ele a virou para si - Pode sentir?
-- Eu sinto... Tudo. - ela começava a entender o que acontecera - Eu sou... Um vampiro?
-- Sim.
-- Por quê? Por que não me matou?
-- Porque apenas uma pessoa que não teme a morte pode se tornar imortal.
-- Eu... Eu não quero... Ser imortal...
-- Não a obrigarei a isso. Entenda, você não é invulnerável. Apenas não envelhecerá, não adoecerá, e seu corpo irá se recuperar da maioria dos ferimentos. Mas não de todos, e por isso ainda poderá ser morta. E a luz do sol a queimará até que só restem cinzas. Se quiser dar fim a sua vida, basta permitir que a luz do sol toque sua pele.
A vontade dela era falar, gritar, que aquilo não era o bastante, que ela queria ser humana, queria morrer humana; mas uma sede de séculos travou sua garganta, uma sede que também era fome, e ela caiu de joelhos no chão, com as mãos no pescoço, em agonia.
-- O que... É isso...
-- É a sede. A verdadeira sede. - ele se ajoelhou também - Não tenha medo. Não lute contra isso. Apenas aceite. Tome aquilo que deseja.
Ao olhar para ele, em meio às névoas daquela sede devastadora, ela podia ouvir as batidas do seu coração, e o sangue fluindo com força por cada veia, cada artéria em seu corpo; era quase como se o visse sob a pele. E de repente, ela estava abraçada a ele, mordendo seu pescoço, e beber aquele sangue era como provar o mais puro dos vinhos, o mel mais doce, que saciava seu corpo e acalmava seu coração.

* * * * *

As pessoas se acostumam.
Só havia se passado dois dias, mas já era toda uma vida. Tornar-se um vampiro não fora uma transformação; fora uma ressurreição. Aquela era sua única vida agora.
Eles não estavam mais nus. Ele vestia novamente as roupas pretas que cobriam todo o seu corpo; ela vestia um longo vestido negro, belo como nunca vira igual, e que a tornava ainda mais branca. Branca como um vampiro, ela pensou ao ver seu reflexo no espelho.
-- Para aonde iremos?
-- Para longe. - ele lhe estendeu a mão - Para lugares em que haja sangue suficiente para nós. Para que você veja tudo o que exista no mundo, tudo o que eu já vi e que um dia verei.
-- Veremos outros como nós?
-- Eventualmente. Mas nós nunca andamos juntos, somos seres solitários. Você também, daqui a alguns séculos, sentirá a necessidade da solidão, e então nos separaremos.
-- Já saberei de tudo o que você sabe quando esse momento chegar?
-- Você nunca saberá de tudo o que sei, pois dez mil anos nos separam; mas saberá muito mais do que qualquer humano sonhará em saber.
Ela segurou sua mão, e sorriu. Os dois caminharam pela floresta, até uma clareira banhada pelo luar. E ali desapareceram.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu havia assistido ao filme Underworld: Evolution, havia gostado bastante, e estava cheia de pensamentos sobre vampiros e coisas góticas. Nesse mesmo dia, comecei a ler o livro Coisas Frágeis, de Neil Gaiman, e ao ler a introdução do livro me veio uma vontade louca de escrever um conto (alguns autores tem esse poder de nos contaminar com o desejo de escrever). Misturou-se a essa vontade os meus sentimentos noturnos e meus pensamentos sobre vampiros, e a história nasceu por si mesma - me veio na cabeça a imagem da aldeia no meio da floresta, dominada por um vampiro, um cenário possivelmente copiado do filme A Vila. O único trabalho que tive foi dar a forma final à história (Como será a personagem principal? Como será descrito o vampiro? Ela morre ou vira vampiro?), o que por sinal fiz bem rápido, mas todo o enredo - a história da aldeia, o sacrifício das virgens, o vampiro que domina a floresta - surgiu por mágica na minha cabeça.
Com essa história eu também consegui uma coisa inédita, que foi escrever um conto mais longo do que costumo fazer (foram 10 páginas no word) sem me perder ou deixar coisas "costuradas" na história. O tema não é muito original (na verdade, nada nesse conto é minimamente original), mas eu amo histórias de vampiro desde que me lembro, e tinha muita vontade de escrever algo assim.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

[fanfic #005] [07 Ghost] A Última Noite

AVISOS:
  • esta é uma fanfic baseada no anime 07 Ghost.
  • esta é uma fanfic yaoi (ou shounen-ai?); traduzindo, é uma história com temática gay (Teito/Mikage).
  • essa fanfic se passa durante o primeiro episódio do anime.
 
A ÚLTIMA NOITE

-- ... Não me diga que vai dormir aqui?
-- Qual o problema? – Mikage sorriu – É nossa última noite aqui.
-- E daí?
-- E daí que temos que fazer ela ser especial. – ele segurou a mão de Teito – Nunca mais estaremos aqui, Teito. Nem sabemos com que frequência poderemos nos ver a partir de amanhã. Temos que aproveitar. Fazer qualquer coisa que a gente queira.
-- Do que está falando? – apesar de manter o tom de protesto, ele se deitou ao lado de Mikage – O que temos pra fazer aqui?
Ao invés de responder, Mikage sorriu e tocou no rosto de Teito. Em seguida se aproximou, mas Teito o empurrou gentilmente, o afastando.
-- Não.
-- Por quê? – ele segurou a mão de Teito e a beijou – Já nos beijamos outras vezes.
-- Está cheio de gente aqui, Mikage. – Teito sussurrava – Se formos pegos, seremos expulsos. Se alguém desconfiar...
-- Ninguém vai desconfiar, estão todos dormindo. – ele também sussurrava – Não tenha medo.
-- Não estou com medo. Só acho que...
Mas antes que ele dissesse o que achava, Mikage o beijou. Teito resistiu por um breve instante, mas acabou se entregando. Quando eles se afastaram, estavam ambos um pouco vermelhos, e Mikage tinha um brilho diferente nos olhos.
-- Teito – ele foi para cima do garoto – gosto de você.
-- Eu também gosto de você – ele sorriu – Mikage.
Os dois voltaram a se beijar, e Mikage subiu a mão por dentro da camisa de Teito. Dessa vez, o garoto resistiu com mais firmeza.
-- O que está fazendo?
-- Nada. – ele tirou a mão, mas em seguida beijou Teito novamente – Confia em mim.
-- Para. – Teito o afastou – Não.
-- Por que não?
-- Porque não. Não podemos. Nós nunca...
-- É por isso que temos que fazer agora. – ele tocou no rosto de Teito – Se não for agora, não sabemos se será algum dia.
-- Não, Mikage. Por favor.
-- Não precisa ter medo, eu...
-- Não estou com medo. – ele segurou o rosto de Mikage – De verdade. Eu confio em você. Eu amo você. Mas não podemos correr um risco desses justo agora, quando estamos prestes a nos formar. Nós não vamos nos separar, nada pode nos separar. De uma forma ou de outra, estaremos juntos.
Mikage pareceu um pouco triste por um momento, mas então sorriu.
-- Está bem. É melhor assim. – ele deu mais um beijo em Teito – Mas vou dormir aqui com você.
-- Está bem.
Eles se deitaram, e dormiram nos braços um do outro.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu sou apaixonada por 07 Ghost e pela relação entre o Teito e o Mikage (esse "amor de amigos" grande demais rsrs). Fiz essa fanfic logo que acabei de assistir ao anime, e antes de ler o mangá (estou acompanhando o mangá atualmente). Quando fui reler para publicar, acabei achando meio bobinha, e talvez eu tenha mexido um pouco na personalidade dos personagens. Vou tentar melhorar nas próximas.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

[conto #037] Cartas

CARTAS

A primeira carta chegou em um dia comum, que poderia ser qualquer dia, em uma hora também comum, que poderia ser do dia ou da noite. Não havia nada demais na carta. Ela apenas dizia "vá até a ponte".
A ponte ficava em frente à casa. Ela guardou a carta no bolso e foi até lá. Não havia ninguém, como não costumava haver ninguém. Tudo normal em um dia normal. Na ponte havia outra carta.
"Pule no rio".
Ela pulou. O rio era fundo mas calmo, e ela se deixou arrastar pela correnteza, como um ser inanimado, até ficar presa em uma árvore que sempre estivera ali. Nos ramos da árvore, outra carta.
"Suba até a margem e vá até a floresta".
Ela saiu do rio, como fora ordenado, e foi andando em direção à floresta, que ficava um pouco longe mas que podia ser vista de onde ela estava. Após quinze minutos de caminhada, chegou até as primeiras árvores. Talvez fosse um pouco complicado encontrar a próxima carta, já que havia muitas árvores e ela poderia ter chegado até ali de qualquer direção; mas, para sua sorte, a carta estava presa a um galho da árvore bem à sua frente. Ela a pegou.
"Ande em linha reta e pare na trigésima árvore".
Obediente, ela seguiu em linha reta, pela floresta. Era uma floresta comum, com o tipo de árvore mais comum que é possível existir em uma floresta. Ela parou na trigésima árvore. Outra carta.
"Ande até a montanha".
A montanha podia ser vista dali, ao longe. Ela andou e andou, por horas e horas, por sóis e luas, até chegar à montanha. Na base da montanha, havia uma enorme caverna. Em frente à caverna, outra carta.
"Entre na caverna e caminhe em direção ao interior".
Mais uma vez ela obedeceu. Entrou na caverna, que era uma caverna comum, e seguiu andando para o seu interior escuro, até que não houvesse mais nenhum sinal de luz do dia e ela não pudesse ver mais nada.
E então ela parou.
No escuro, ao longe, ela podia distinguir uma forma. Era uma mancha indefinida, esbranquiçada, imóvel. Ela voltou a andar, e conforme se aproximava, a mancha ficava mais nítida. Lembrava o contorno de uma pessoa, mas muito mais alta e branca do que qualquer pessoa que ela já vira. Ela parou novamente, e aquilo começou a lentamente se mover, em direção a ela.
Quando estava a poucos metros de distância, ela pôde ver melhor o que era aquilo: um ser humanóide, com mais de dois metros de altura e muito magro, branco como cal. Não tinha olhos e tinha uma boca sempre aberta que ocupava metade do rosto, em formato perfeitamente redondo, com várias camadas de dentes.
Ela gritou. Gritou e tentou correr, mas bastou dar as costas para a criatura, e sentiu o ser pular sobre ela. Caiu no chão, e antes que pudesse se virar, o ser colocou a boca sobre a cabeça dela, indiferente aos gritos, e quando estava com toda a cabeça dentro da boca ele fechou os dentes, arrancando a cabeça do pescoço. Ela ainda estava viva quando ele começou a mastigar.
O corpo ficou caído no chão, esperando para também ser comido.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

[carta #003]

Para alguém especial.

Nós nos conhecemos faz tanto tempo, e eu nunca lhe disse o que você significa para mim, o quanto você é especial e quantas vezes você me salvou de me tornar outra coisa que não eu mesma. Lembro de quando vivíamos na aurora dos tempos e toda a maldade era inocente, toda a coragem tinha medo, e tínhamos escravos para fazer por nós tudo o que poderíamos delegar a outro alguém. Aqueles tempos eram agitados, violentos, incendiários, mas parecem um mar calmo quando vistos de cima. São como um sol fervente que parece uma estrela calma vista da Terra.
E sim, você é especial há tanto tempo que hoje já faz parte de mim.
Somos como duas árvores que cresceram juntas, cujas raízes e ramos se entrelaçaram de tal forma que não é possível separa-las. Somos parte uma da outra sem deixar de sermos nós mesmas, e continuaremos próximas mesmo que estejamos distantes, pois nossas raízes cruzam dimensões e universos até um passado em que estaremos sempre juntas. Nossas vidas se confundem de tal forma que há tempos não sei pensar em mim sem pensar em você, não sei lembrar de mim sem lembrar de você; porque no passado e no futuro, nossas vidas estão unidas.
Lembro de como lutávamos no início, até que unimos nossas forças por um bem maior, por querermos mudar o mundo mais do que queríamos domina-lo. Lembro de quando amávamos as mesmas pessoas e queríamos as mesmas coisas. Lembro de quando subíamos nas montanhas mais altas para tocar o céu, de quando voávamos mais alto do que todos os pássaros, de quando possuíamos reinos e castelos, tesouros e amores, quando navegávamos por todos os mares e lutávamos contra todo o mal do mundo. Lembro de quando criávamos pequenos mundos, com o poder de pequenos deuses, realizando milagres a cada dia.
Quero que saiba que estamos aqui hoje por sermos quem éramos, por termos algo em que nos apoiar, e se o mundo não roubou minha alma, foi graças a você. Pelas vezes em que um riso fez o céu se abrir e afastou as nuvens, pelas vezes em que nos carregavamos no colo, pelas vezes em que corríamos pela areia e mergulhavamos no mar. Por cada uma dessas vezes hoje sou quem sou, e quero que saiba, principalmente, que tudo o que você era pra mim antes você continua sendo hoje, e assim sempre será.

sábado, 20 de outubro de 2012

[conto #036] Sob o Olhar do Tempo

SOB O OLHAR DO TEMPO

Naquele dia, fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Eu costumava acordar quando ainda havia estrelas no céu e correr sozinha para a praia, na hora mais fria do dia. Sentava na areia gelada e esperava, olhando o mar escuro, até o céu se tornar vermelho, até as nuvens se afastarem do horizonte e o sol surgir. Ficava sentada na areia até que o gelo sumisse do ar, até que minha respiração não se condensasse mais, até que a luz inundasse tudo ao redor.
Eu costumava me sentir segura com o calor do sol. Costumava me deitar logo depois que ele se punha, e me levantar antes dele para recebe-lo.
Fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
E eu ainda lembrava de como ele era quente.
Por alguma razão, as pessoas costumam pensar que os imortais, por terem a mesma aparência eternamente, não se tornam mais velhos. Como se eu fosse ter vinte e poucos anos para sempre. Mas a verdade é que há um peso de setenta e cinco anos sobre mim, sinto o passar de cada dia, de cada hora. Uma vida sem cessar em que todas as horas são escuras, em que o que antes era vida agora é morte, em que as estrelas do céu são os únicos deuses que me acompanham.
Uma vida de temor por ser eterno em um universo finito.
O que acontecerá conosco quando todas as estrelas se apagarem e nosso mundo não mais existir?
Era uma madrugada fria e fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Quando o vi.
Ele podia ter qualquer idade, qualquer sexo, qualquer aparência. Quando o vi, não foi seu corpo físico o que me prendeu. Foi a alma imortal em uma existência mortal, a mente grande demais para um corpo tão pequeno, a enorme força contida em um ser tão frágil. O que ele viu em mim foi um deus preso a um corpo físico, alguém insaciável, alguém cuja existência desafiava toda a existência.
A noite chega e estou em sua janela, te olhando no escuro, te sentindo sem ver. Posso sentir que sentes minha presença. Posso sentir o calor da sua pele como podia sentir o calor do sol antes mesmo de toca-lo. Sei que você tem medo do seu desejo, luta consigo mesmo, e seu desespero me diverte, me emociona, me faz chorar e sorrir.
Estou sentada sobre a mesa apenas olhando você, deitado em sua cama, consciente de minha presença mas sem coragem de pedir o que mais quer, sem coragem de ir contra aquilo que acredita certo, lutando para convencer seu corpo de que tudo não passa de uma ilusão louca. Nós dois sabemos que é inevitável, nós dois sabemos que sua razão perderá, que você pode lutar consigo mesmo por cinquenta anos e vencer algumas batalhas, mas o destino é mais forte e você será meu. Haverá noites em que apenas te olharei da janela, haverá noites em que você chorará sozinho e sairá pelas ruas tentando fugir de si mesmo, mas em todas as outras, e serão muitas outras, eu me deitarei ao seu lado quando você derrotar a si mesmo e tomarei todo o seu sangue para mim, até que não lhe reste nada, até que tudo o que você possa fazer seja negar as horas da noite quando surgir o dia, pois eu já não existirei.
Ele é uma mistura de sim e não, de medo e coragem, daquilo que existe e que não deveria existir. São os últimos raios de sol que tocaram minha pele, antes de eu mergulhar para sempre na noite profunda.
Quando o sol surge, eu já não existo. Todas as cores do dia nada significam para mim.
Já corri por todos os campos, já escalei todas as montanhas e já desci todos os vales, apenas para descobrir que as estrelas nos assistem indiferentes, enquanto as amamos.
Todas as pessoas sabem o que é amar algo que sequer sabe da nossa existência. Nesse nosso amor pelo céu, no meu antigo amor pelo sol e minha paixão estranha pelas estrelas, somos todos vítimas de uma paixão não correspondida que atormenta nossos caminhos. O céu apenas nos olha em silêncio, indiferente ao fato de nascermos e morrermos. Perguntando-se sem interesse o que acontecerá com aqueles que não morrem jamais, quando todo o universo morrer.
Um dia você morrerá nos meus braços, e eu estarei novamente sozinha com a noite, como sempre foi e sempre deve ser.
Somos deuses sem poderes, somos pequenos demais para termos a eternidade.
Naquele dia, fazia cinquenta anos que ele surgiu das trevas da noite, pouco antes do nascer do sol, enquanto eu esperava a luz. Fazia cinquenta anos que ele me tornara parte da noite, sobre as areias brancas e sob as nuvens que se afastavam do horizonte, e quando o primeiro raio vermelho surgiu nós já não existíamos.
Nós fazemos parte da noite assim como as estrelas fazem parte do céu, e os seres que vivem e morrem são para nós o mesmo que nós somos para as estrelas. Um movimento insignificante e breve, um suspiro de vida que se vai da mesma forma que a neblina some ao calor do sol.
Quando eu o vi pela primeira vez, fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Mas me lembro do seu calor, assim como o universo se lembrará do calor das estrelas quando elas não mais existirem, quando só restarmos nós vivendo em uma rocha fria, pela eternidade.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

[conto #035] Chocolate

CHOCOLATE

Quando ela acordou, não havia ninguém em casa. Ela se levantou e olhou em todos os cômodos, mas a casa estava vazia. Olhou pela janela, para a rua, mas tudo estava deserto. Como se todas as pessoas tivessem sumido de repente.
Sem entender o que estava acontecendo, ela se apoiou na mesa, tentando acordar completamente. Mas a textura da mesa de repente mudou, e ao olhar, ela percebeu que o que antes era granito e ferro se tornara chocolate.
Ela se afastou, assustada. Tentou se beliscar, mordeu a ponta do dedo, qualquer coisa que a fizesse acordar, mas foi inútil: aparentemente, já estava bem acordada. Aproximou-se novamente da mesa e a analisou atentamente. Definitivamente, era chocolate, embora o formato de mesa continuasse o mesmo, inclusive nos desenhos do que antes fora uma pedra de granito. Ela quebrou um pedaço da ponta da mesa e o mordeu de leve. Chocolate.
Ela se sentou no sofá, pensativa, enquanto comia a mesa. O que estava acontecendo? Em primeiro lugar, onde estavam todas as pessoas do mundo? Em segundo, desde quando mesas se transformavam em chocolate? Ela resolveu sair dali e procurar algum sinal de vida pela rua. Estava começando a ficar com medo.
Quando ela tocou na maçaneta, esta também se transformou em chocolate e quebrou na sua mão. Ela tentou empurrar a porta, mas também esta se transformou em chocolate. Desesperada, ela foi pular a janela, mas ao tocar na janela e na parede elas também se transformaram em chocolate, e ela começava a perceber que isso aconteceria com qualquer coisa que tocasse. Pulou a parede de chocolate e correu para a rua.
Não havia sinal de vida na rua. Nem pessoas, nem animais, nem mesmo um minúsculo inseto, nada. Ela correu durante algum tempo, até que teve que parar para respirar. Colocou a mão na cintura, e imediatamente a blusa que usava se transformou em chocolate. Ela foi obrigada a despedaçar a blusa para tira-la, antes que derretesse em cima dela. E voltou a andar, dessa vez devagar, tomando o cuidado de não tocar em nada pelo caminho.
Continuou andando por muitas horas, até que foi obrigada a parar, exausta. Sentou-se na calçada e tentou pensar, mas parecia impossível formar um pensamento coerente. Todos os seres vivos do mundo haviam desaparecido, exceto ela. Seu toque transformava qualquer coisa em chocolate. Parecia um pesadelo do qual ela não conseguia acordar.
De repente ela ouviu um barulho, e se voltou. De trás de um carro, surgira uma criança. As duas se olharam, a princípio assustadas. Mas então a criança correu para ela e as duas se abraçaram. Ela chegou a se sentir aliviada - havia, afinal, outras pessoas no mundo - quando percebeu que a pele da criança mudou de textura, e viu, horrorizada, a pequena criatura se transformar em uma estátua de chocolate.
Ela se afastou, e com esse gesto os dois braços de chocolate da criança, ainda enlaçados em volta dela, foram arrancados e caíram no chão, se despedaçando. Ela continuou se afastando até tropeçar na calçada e cair sentada no chão. Apoiou as mãos no chão, e viu que a calçada e a rua começavam a se transformar em chocolate, mas o terror não permitiu que se movesse; quando afinal afastou as mãos, já era tarde demais. A transformação continuou, o chocolate se entrenhando nas profundezas até o núcleo da Terra, até que todo o planeta se transformou em uma imensa bola de chocolate, que se aqueceu e derreteu lentamente ao calor do sol.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

[conto #034] Fogo

FOGO

Ela era a mais nova, em seus sete anos, e consequentemente era a ela que escolhiam quando resolviam implicar com alguém. Não bastava empurra-la, chuta-la, colocar as coisas em lugares que ela não alcançaria: eles conseguiam inventar engenhos de crueldade, como segura-la pelas pernas e ameaçarem joga-la do terraço. E não adiantava reclamar da injustiça com os adultos, porque a resposta era sempre:
-- Seus primos só estão brincando com você.
Não importava que ela não queria brincar com eles. Não importava que ela não gostasse que lhe jogassem tinta nos cabelos, que quebrassem seus brinquedos, que se escondessem em cantos escuros para assusta-la. Não importava pedir para que não comessem seu lanche, não sujassem sua roupa nem a colocassem em lugares altos dos quais ela não conseguia descer sozinha. Nada adiantava.
-- Seus primos fazem isso porque eles gostam de você.
Para ela, não importava o motivo. Ela só queria que eles parassem.

* * * * *

Eles a encurralaram na casa abandonada na esquina da rua, como sempre. Ela sabia que logo iriam aparecer gritando e pulando em cima dele, a assustando. Teria que ser mais rápida do que eles.
Ouviu o som dos passos e correu silenciosamente para um dos quartos. Abriu a janela sem fazer barulho, pulou para o quintal e em seguida fechou novamente a janela. Colocou pedaços de madeira prendendo as janelas, para que eles não pudessem sair. Ouviu os risos deles dentro da casa. Correu para a frente e fechou a porta, única saída que restava, e a prendeu com mais pedaços de madeira.
-- Ei prima, cadê você? - ouviu eles dizerem - Aparece aí! A gente não vai te assustar, é sério!
Ela nunca mais cairia naquela história. Pegou a garrafa e jogou a gasolina na porta, nas paredes, nas janelas, ao redor de toda a casa, até  mais do que seria necessário. Lá dentro, os primos começavam a perceber que estavam presos, e batiam na porta.
-- Po, prima, abre aí! Prima!
Ela se afastou, riscou o fósforo, e o jogou na parede. Achara que talvez um só não fosse suficiente, ou que fosse demorar, mas não: em dois segundos, toda a casa estava em chamas. A pouca gasolina que ela jogara antes do lado de dentro fora o suficiente para fazer o fogo entrar, e ela mal ouvia os gritos, em meio ao belo som do crepitar das chamas.
-- Eu só estou brincando com vocês.
Foi o que ela disse, antes de se afastar e ir embora para casa. Tranquila.

sábado, 22 de setembro de 2012

[conto #033] De Chapéu Vermelho

DE CHAPÉU VERMELHO

Em um lugar muito distante daqui, havia uma mulher que morava no meio da floresta, tendo apenas o filho como companhia. Ele era um garoto ainda jovem, que gostava de brincar pelos campos e auxiliar no trabalho dos camponeses. Embora ainda pequeno, se empenhava tanto em ajudar e era tão bom com todos, que com frequência ganhava presentes, como doces e brinquedos. Um dia, como fizera doze anos, um dos camponeses lhe dera um chapéu vermelho, dizendo:
-- Já és um homem e deves abandonar as brincadeiras de menino; toma este chapéu e o usa, como prova de que estás crescendo.
De forma que o garoto passou a usar sempre o chapéu. O usava com tanta frequência, que as pessoas passaram a chama-lo de O Garoto de Chapéu Vermelho.
Um dia, enquanto O Garoto de Chapéu Vermelho brincava perto de casa, sua mãe o chamou da porta de casa. Trazia na mão uma cesta de piquenique, de onde vinha um cheiro delicioso. Quando o Garoto se aproximou, ela disse:
-- Meu filho, chegou hoje uma carta de sua avó, onde ela diz que está doente. Preparei alguns remédios e estou enviando a ela junto de uma carta e um pouco de comida. Você pode leva-los para mim?
-- Claro, mamãe. - o Garoto pegou a cesta - Vou agora mesmo.
-- Não se demore, para que chegue lá antes do anoitecer. E não se desvie do caminho nem fale com estranhos. E nem coma os doces que estou enviando para a sua avó.
-- Pode deixar, mamãe.
-- E lembre-se de sempre ir pela estrada principal. O caminho que passa por dentro do bosque é perigoso.
-- Sim senhora.
O Garoto seguiu pelo caminho que levava à estrada. Mas quando chegou à encruzilhada, decidiu que iria seguir pela estrada do bosque enquanto ainda era de manhã, e quando chegasse a tarde voltaria para a estrada principal. O caminho do bosque era muito mais bonito, mais fresco, e mais rápido - seguia em linha reta, enquanto a estrada grande fazia diversas curvas e desvios. Por isso adentrou o bosque, cantarolando alegremente.
Enquanto andava, ele ia colhendo algumas flores e frutas silvestres para dar para a avó. Em um momento avistou um lugar em que cresciam lindas rosas vermelhas, e foi pegar algumas. Quando voltou para a trilha, havia um homem sentado sobre um tronco, observando-o.
A princípio o Garoto se assustou, por achar que fosse um fantasma; mas logo percebeu que era apenas uma pessoa comum, e ficou mais tranquilo.
-- Bom dia. - disse o Garoto.
-- Bom dia. - disse o homem.
O Garoto estava a ponto de seguir seu caminho, mas o homem o deteve, dizendo:
-- O que faz um garoto tão pequeno andando sozinho pelo bosque?
-- Estou indo para a casa da minha avó.
-- E ela mora perto daqui?
-- Mais ou menos. Se for por esse caminho até o meio do dia, e voltar para a estrada grande à tarde, devo chegar antes de anoitecer.
-- É um pouco longe, então. Eu estou indo para esse lado também, posso te acompanhar?
-- Claro.
O homem passou a caminhar ao lado do Garoto, que continuava cantarolando e colhendo flores.
-- Belo chapéu, esse seu.
-- Foi um presente de um camponês, amigo de minha mãe. Ando sempre com ele.
-- Se usa um chapéu como esse, é porque já não é um menino. Quantos anos você tem?
-- Farei treze em breve.
-- E já tem uma prometida?
-- Não, não tenho.
Continuaram seguindo, até que chegou o meio do dia e eles chegaram a uma das trilhas que levaria de volta à estrada principal. Os dois pararam, e o homem disse:
-- Nossa jornada juntos termina aqui. Meu caminho continua pela floresta.
-- Sim, senhor.
-- Apenas por curiosidade, me diga: a casa da sua avó fica na primeira vila no caminho da estrada principal?
-- Não, fica um pouco antes. Na verdade, é fora da estrada, em uma clareira na floresta. Se eu fosse direto por esse caminho, chegaria direto a ela; indo pela estrada, terei que tomar uma trilha em determinado ponto. Mas é o caminho mais seguro.
-- Sim, é verdade. E a sua avó é muito velha? Não é ruim para ela morar sozinha?
-- Não sei quantos anos ela tem, mas muitas mulheres da idade dela ainda têm filhos pequenos, portanto não é vellha; mas está doente, e por isso estou levando remédios e coisas gostosas para alegra-la.
-- Entendo. Enfim, adeus, garoto. Muito cuidado na sua jornada.
-- Terei cuidado.
E eles seguiram por caminhos diferentes.

* * * * *

A avó do Garoto de Chapéu Vermelho estava na cozinha da casa, preparando um chá, quando bateram na porta. Pensando que podia ser seu neto, mas estranhando que ele chegasse tão cedo, ela abriu a porta e se deparou com um homem desconhecido - o mesmo homem que o Garoto encontrara no bosque.
-- Boa tarde. - ele disse, tirando o chapéu - Estava procurando o caminho para a estrada, mas me perdi. A senhora poderia me indicar o caminho? É a primeira casa que encontro em horas de caminhada.
-- Oh, sinto muito por ter se perdido. - ela o olhou com pena - Vê esse caminho à direita? Basta segui-lo, e chegará na estrada. Se seguir à esquerda, em mais uma hora encontrará uma vila.
-- Ah, que bom... Acho que consigo chegar antes do anoitecer. A senhora poderia me dar um pouco de água? Não quero abusar da sua boa vontade, mas estou andando há horas e...
-- Claro, sem problemas. - ela entrou em casa - Espere um momento.
Ele viu, pela porta, ela entrar na cozinha e abrir o barril onde ficava a água. Tossia um pouco e estava pálida, mas era realmente jovem, apenas alguns anos mais velha do que ele. Então ele entrou silenciosamente e, antes que ela o percebesse, a agarrou com força e pressionou uma faca contra seu pescoço.
-- Se se mexer ou gritar, eu te mato. - ele disse, e ela parou de lutar, aterrorizada - Muito bem. Agora tranque a porta.
Seguida por ele, ela foi até a porta e a fechou. Ele a agarrou novamente e a arrastou para o quarto.
-- Muito bem. - ele a jogou na cama - Vamos nos divertir um pouquinho, enquanto aquele lindo garotinho não chega.

* * * * *

O Garoto de Chapéu Vermelho chegou à casa da avó pouco antes do anoitecer. Estava cansado, mas quando avistou a casa foi correndo pelo caminho até ela; mas chegando na entrada conteve sua vontade de gritar pela avó e bater na porta desesperadamente; afinal, já era um homem. Por isso respirou fundo e bateu na porta com calma, como sua mãe lhe ensinara a fazer.
-- Entre. - ele ouviu uma voz indefinida dizer, e empurrou a porta, que não estava trancada. Entrou e foi para o quarto, seguindo a voz que o chamava. Havia uma pessoa deitada na cama, completamente coberta pelos lençóis.
-- Oi meu querido. - a pessoa disse, com uma voz fraca e rouca - Como você cresceu.
-- Vovó? - o Garoto receava em chegar perto, pois estava achando que havia algo errado com a avó, algo que ele não sabia definir.
-- Venha aqui, meu netinho. Me deixa ver o que a sua mãe mandou para mim.
-- Ela mandou uns remédios para que a senhora melhore mais rápido... - ele se aproximou, com cautela - E também tem bolinhos e geléia...
Quando ele se aproximou da cama, a pessoa que estava deitada o puxou bruscamente, se revelando: era o homem que ele encontrara na floresta.
-- Você!
-- Muito obrigado pelos doces, netinho. - ele jogou o Garoto na cama - Mas agora eu quero comer você.

* * * * *

Quando o Garoto acordou, estava preso dentro da despensa, com as mãos e os pés amarrados. Sua avó estava ao seu lado, também amarrada, mas desmaiada.
-- Vovó! Vovó! - ele tentou chegar até ela, mas não conseguiu, e começou a chorar - Vovó, acorda!
Mas ela não se movia. O Garoto ficou chorando sozinho, no escuro, por um longo tempo; até que a porta se abriu, e o homem apareceu, dizendo:
-- A vovó ainda está dormindo? Que pena... Eu queria ter mais uma conversinha com ela, mas acho que vou ter que ficar com você mesmo.
Ele agarrou o Garoto pelo braço e o arrastou para fora dali. O Garoto gritava e se debatia, mas amarrado como estava jamais conseguiria fugir. O homem o levou novamente para o quarto, mas o menino gritava tanto e tão alto que o irritou: ele pegou a faca e a encostou na garganta do garoto, fazendo com que ele se calasse.
-- Escute bem. - ele disse - Se você ficar quietinho e fizer tudo o que eu mandar, eu prometo que vou ser muito bonzinho e vou matar vocês bem rápido quando me cansar de brincar. Agora, se você for um mau menino, eu vou te machucar tanto que...
Mas ele foi interrompido por um som alto de tiro e por uma bala que lhe atravessou a cabeça e o deixou caído no chão em meio a uma poça de sangue.
Aterrorizado, o Garoto recuou e acabou caindo no chão. Olhava fixamente para o corpo no meio da poça de sangue, até que ouviu uma voz vinda da janela:
-- Essa foi por pouco heim. - ele se virou, e viu uma garota na janela, segurando uma espingarda - Você está bem?
O Garoto tentou responder, mas percebeu que não controlava sua voz. A garota pulou a janela e olhou para o corpo, sem muito interesse.
-- Já tinha visto esse cara andando pela floresta, achei ele bem suspeito. Como ele conseguiu entrar aqui? Ele te conhecia? - o Garoto apenas balbuciou sons sem sentido - O que foi? O gato comeu sua língua?
Ele respirou fundo, tentando parar de tremer, e afinal conseguiu falar:
-- E-eu encontrei ele na floresta...
E ele contou o que acontecera. A garota balançou a cabeça.
-- Você é estúpido? Fica contando sua vida para um estranho que conhece na floresta? Sua mãe não te ensinou nada?
-- Ele... Ele não parecia mau...
-- Eles nunca parecem. Preste atenção nas coisas ao seu redor, você não é mais uma criança. - ela olhou em volta - Então, onde está sua avó?
Eles soltaram a avó do Garoto, que já recobrara a consciência. A garota se livrou do corpo do homem, e no fim da tarde, disse que iria partir.
-- Fique mais um pouco. - disse a avó - Ainda não te agradecemos por ter salvado nossas vidas.
-- Não precisa agradecer. E tenho que ir, meus pais estão me esperando.
-- Afinal - disse o Garoto - o que você estava fazendo por aqui?
-- Sou caçadora, filha de caçadores. Estava caçando na floresta aqui perto quando ouvi seus gritos. Você teve muita sorte.
-- Quantos anos você tem?
-- Quinze, por quê?
-- Eu posso me casar com você em agradecimento.
Ela riu.
-- Quem sabe, quando se tornar um homem de verdade. - ela foi andando pelo caminho que levava à estrada priincipal - Adeus, Garoto de Chapéu Vermelho. Cuide da sua avó.
-- Cuidarei.
E ela se foi.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

[conto #032] Que Veio do Mar

QUE VEIO DO MAR

Ele estava brincando na praia, próximo às pedras, procurando conchas. Já enchera os bolsos delas, quando avistou a concha mais bonita e mais diferente que já vira: era grande, quase do tamanho de sua mão, e tinha um formato estranho, como uma rocha em miniatura, cheia de reentrâncias e cavernas no seu interior.
Ela estava bem no limite onde as ondas batiam na areia, e ele correu para pega-la antes que voltasse para o mar. A virou para todos os lados, curioso. Nunca vira nada parecido com aquilo. Teve a impressão de que havia algo em seu interior, e a sacudiu próxima ao ouvido. O que ouviu, além de um toc-toc de algo se movendo dentro, foi um gritinho agudo e muito baixo, que não teria escutado se não tivesse quase encostado a concha no ouvido. Aturdido, ele ficou olhando para ela, tentando descobrir de onde viera o barulho.
Algo se moveu, parecendo estar tentando sair do interior da concha por uma das pequenas aberturas. Ele continuou olhando, esperando, e logo surgiram primeiro dois bracinhos muito finos, depois uma cabeça com fios de cabelo cor de mar, e por fim um corpo tão pequeno e fino que pareceria minúsculo mesmo ao lado da menor das bonecas.
A criaturinha se arrastou para fora da concha e se sentou em uma das reentrâncias, parecendo ter dificuldades para se mover. Afastou os cabelos azuis-verdes-brancos do rosto, e olhou ao redor com olhos redondos que pareciam ocupar metade de seu rosto. Por fim percebeu a existência do outro, estranho ser que segurava sua concha sem sequer pedir autorização.
Os dois se olharam por um longo tempo. A menina da concha logo perdeu o interesse pelo menino que segurava a concha, e a escalou até a parte mais alta, de onde olhou ao redor como se procurasse alguma coisa. Quando viu o mar, logo a frente, pareceu muito satisfeita; pulou para a mão do menino, empurrou a concha para que ela caísse na areia - o outro só olhava, sem tentar impedir ou ajudar - e em seguida pulou ela mesma. Caiu como cairia uma folha de uma árvore, tão lentamente que parecia flutuar. Acabou indo parar um pouco longe da concha, e teve que correr antes que uma onda a pegasse. Por fim começou a empurrar a concha pela areia, tentando leva-la de volta ao mar.
Nesse momento o outro saiu de seu estado de fascinação inerte, e resolveu que queria a menina com sua concha para si. Abaixou-se e pegou a concha de novo, para desespero da pequena criaturinha, que se viu perigosamente próxima às ondas sem nenhuma proteção. Percebendo o perigo, o menino a pegou também, colocando-a de volta no lugar de onde a vira sair, e no qual ela depressa se refugiou. E então a levou para casa, como sabia que não devia fazer, e como desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo.
A noite o encontrou trancado no quarto, olhando para o pequeno aquário vazio onde colocara a concha. Desde que a trouxera, a pequena menina não aparecera, mas ele sabia que ela estava ali; podia escuta-la se movendo no interior, quando prestava bastante atenção. Sabia que mais cedo ou mais tarde ela apareceria.
Naquele dia ela não apareceu, e nem nos próximos, até se completar uma semana. No oitavo dia, quando o menino nem vigiava mais, ela por fim se mostrou. Apareceu assustada por um dos buracos na concha, olhando ao redor, e ao ver o menino, fez uma cara que poderia indicar raiva - embora fosse dificil identificar expressões em um rosto tão pequeno. Mas por fim saiu da concha, e começou a andar pelo aquário, explorando o lugar. Foi andando até bater de cara no vidro, o que por um momento a assustou muito; mas após apalpar aquele parede quase invisível e identificar seus limites, ela pareceu absorver depressa sua nova situação. Voltou para junto da concha e se sentou ali, esperando.
O menino pensou que talvez ela estivesse com sede, e colocou uma tampinha com água ao seu lado, mas ela se aproximou, tocou com o dedo na água, e não bebeu. Ele pensou que talvez, como ela viera do mar, preferisse água salgada; misturou um pouquinho de sal na água, mas ela continuou não bebendo. Então pensou por fim que misturar sal na água não era exatamente o mesmo que água do mar, e foi correndo até a praia, escondido; voltou trazendo uma garrafa cheia de água. Colocou a água na tampinha, e dessa vez a reação da criaturinha foi diferente: pegou a água com as mãos e a jogou na cabeça, em seguida a passando pelo corpo, como se tomasse banho. Fez isso até que a água acabasse. O garoto pegou então uma vasilha pequena, encheu com a água, e colocou no aquário; a menina prontamente mergulhou na água, e ali ficou a noite inteira.
Com o tempo, o menino foi aprendendo seus hábitos. Ela não só passava o tempo todo embaixo d'água, como parecia poder respirar melhor dentro d'água do que fora, o que fez com que ele enchesse o áquario até a metade com água do mar. Ela também gostava de comer algas e pequenos peixes, que ele arrumava sem dificuldades. Mas embora tivesse tudo o que precisava, ela parecia a cada dia mais triste.
A princípio, era uma tristeza quase imperceptível. Mas conforme os dias passavam, ela comia cada vez menos, nadava cada vez menos, se movia cada vez menos. Ficava o tempo todo deitada num canto no fundo do aquário, ou dentro de sua concha. Por fim, chegou o dia em que parou de comer, e passou a só dormir. Ele fazia de tudo para acorda-la, para tentar distrai-la, mas foi inútil.
Um dia, quando ele acordou, a encontrou boiando no aquário, com o rosto voltado para dentro d'água. Ele se desesperou. A colocou na palma da mão e encostou nela de leve com o dedo, tentando fazer com que ela reagisse, mas foi inútil. Parecia, porém, que ainda respirava. Ele pegou também a concha e correu para a praia, que ainda estava deserta. Colocou a concha na areia, bem perto de onde as ondas chegavam, e colocou a inerte criaturinha ao lado. Mas ela continuou sem se mover.
Ele tentou de tudo: jogou água do mar sobre ela, tentou coloca-la de volta na concha, a cobriu com algumas algas. A hora do almoço veio e passou, e ela ainda estava ali. Apenas quando começava a escurecer ela se moveu, e só muito depois conseguiu se levantar. Olhou ao redor, parecendo não acreditar que estava de volta à praia, e começou a arrastar a concha para a água com todas as forças. Quando finalmente chegou ao lugar onde as ondas se quebravam, e a água começou a querer puxa-la para o mar, ela entrou na concha e esperou. O menino ajudou, a empurrando de levinho. E logo uma grande onda veio e a levou de volta para as profundezas do mar.
Mesmo muitos anos depois, o menino voltaria todos os dias à praia, na esperança de reve-la. Mas ela nunca mais voltou, e nem sua concha foi vista por qualquer um acima do mar.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

[conto #031] Apenas Alguns Milhões de Anos

APENAS ALGUNS MILHÕES DE ANOS

Nós estávamos sentado no alto da torre, contemplando o mar. Esperando.
-- Você sabe que não sou muito boa nessas coisas - eu dizia - mas eu só queria que você soubesse que eu gosto muito de você.
Como se não fosse mais do que óbvio. Como se eu não demonstrasse isso o tempo todo.
-- Eu sei. - uma longa pausa - Também gosto de você.
Isso numa voz baixa, quase um murmúrio. Ele também não era bom nessas coisas. Na verdade, começava a suspeitar de que ele era pior do que eu.
-- Tipo - eu disse - nós estamos juntos há tanto tempo, de uma forma ou de outra, e você me faz bem de um jeito que nenhuma pessoa me fez. Não é que você tenha algo de especial, pelo contrário, você é até normal demais... Mas acho que é justamente por isso. A gente se completa.
-- Verdade.
-- Mas também é justamente por isso que... Não dá pra continuarmos. Não assim. Eu quero conquistar o mundo e você só quer ter uma vida normal. Acaba que nenhum de nós consegue o que quer.
-- Mas teve vezes em que deu certo, não teve? - ele estava quase me deixando perceber o quanto estava desesperado - Lembra daquela vez na Grécia? Deu tudo certo, não deu? E teve aquela outra vez, no Alasca...
-- Você morreu pisoteado por mamutes.
-- Sim, mas fora isso deu tudo certo!
-- Deu tudo certo porque não foi você que teve que recolher os pedaços esmagados da pessoa que mais amava! Você não imagina o que foi aquilo! - respirei fundo, me controlei - Escuta. Isso não importa. Quantas vidas já passamos juntos? Dezenas. A maioria foi muito boa, mas a verdade é que nos falta uma vida em que os dois consigam conquistar seus objetivos! Este mundo não tem mais muito tempo, talvez só o suficiente para duas ou três vidas não muito longas, e eu não quero que ele acabe sem ter feito alguma coisa realmente importante aqui.
-- Você fez muitas coisas importantes aqui. Você descobriu aquele novo tipo de motor, você venceu o torneio de artes marciais, você ajudou aqueles judeus a escaparem dos campos de concentração...
-- Mas eu nunca morri por uma grande causa. Nunca deixei meu nome na história. Eu quero deixar ao menos um dos meus nomes na história.
-- Mas para quê?
-- Porque é pra isso que fui feita. - suspirei - Porque é assim que deve ser.
Ficamos em silêncio. No horizonte, um dos sóis já nascera. Em breve, os outros dois nasceriam também.
-- Você sabe que vamos acabar nos encontrando. - ele disse por fim - É inevitável. Mesmo que eu vá muito depois de você. Fomos feitos da mesma parte do universo e estaremos sempre juntos, até voltarmos para o lugar de onde viemos.
-- Eu sei. - o abracei - Mas se tudo der certo, só vamos nos encontrar quando eu já tiver conseguido realizar meus sonhos.
-- Então, ficaremos uma vida inteira separados?
-- É só uma vida. Já tivemos tantas.
-- Mas é uma vida inteira! Eu não vou conseguir nascer e viver sem você perto de mim...
-- Uma vida passa tão rápido. E você vai conseguir aguentar. Pense que mais cedo ou mais tarde, nos reencontraremos.
O soltei e fui até a beira da torre. O grande pássaro veio voando pelos céus, saído do segundo sol, e parou à minha frente. Eu me virei uma última vez.
-- Em breve nos veremos.
-- Eu estarei te esperando.
-- E eu sempre estarei lá por você.
Subi nas costas do pássaro, que me levou embora para o sol longínquo.


SOBRE A HISTÓRIA

Agradecimentos à Le por me dar a ideia para o conto.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

[conto #030] Pulsar

PULSAR

Os minutos se passavam e sua vida se encurtava a cada respiração. Sabendo que o prazo de validade do seu coração diminuía setenta batidas a cada minuto. Sabendo que coração algum chegava muito além de bater três bilhões de vezes. Sabendo que devia se sentir privilegiada por isso.
Um coração que batia quase involuntariamente mas que, ela sempre suspeitara, poderia parar a um comando de seu pensamento.
Pensar o pensamento proibido, ordenar aquilo que nunca pensara.
Cada relógio marcava uma hora diferente, e havia milhares deles, um para cada hora possível. Havia relógios pregados à parede, pendurados no teto. Havia relógios caídos no chão e sobre a cama. Um para cada batida que seu coração haveria de dar, um para cada horário em que ele poderia deixar de bater.
Três gotas de água pingaram da torneira e ela soube que era dia. Três vezes um segundo, três vezes setenta dividido por um minuto. Três gotas solitárias que se perderam junto às outras, junto ao sangue no coração, junto aos relógio na parede.
Como se cada segundo despejasse uma gota de sangue.
Sangue pingava dos relógios e inundava o chão por seus pulsos abertos como sua alma. Sangue que tingia o piso e escorria até seus pés descalços.
Imóvel. Apenas os ponteiros se movendo em perfeita sincronia. Apenas o coração batendo quase involuntariamente.
Até o tocar do despertador.
Até a última gota de água.
Até o fim do pulsar.

SOBRE A HISTÓRIA

História escrita com base na sugestão da Le, minha irmã. A inspiração veio da palavra dita por ela (minuto), de um artigo sobre batidas do coração achado aleatoriamente no Google, e da foto de um relógio de parede.
Quanto ao tom estranho do texto... Escrever ouvindo Fever Ray não poderia resultar em nada diferente disso.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

[conto #029] Diários do Guardião

DIÁRIOS DO GUARDIÃO

Existe uma criança que se perdeu.
Essa criança esteve em meus braços antes mesmo que seus olhos pudessem entender o que viam, antes mesmo que o mundo tivesse cor. Mas eu fingi não ver, fingi não saber que ela se perderia, e dessa forma não pude salva-la. Por quê?
Eu odeio pessoas fracas porque não posso protege-las, e todas as pessoas que eu amo são fracas. Eu as odeio, porque posso proteger qualquer um de quase tudo, mas não posso proteger alguém de si mesmo. Apenas a própria pessoa é capaz de se proteger de si, e para uma pessoa fraca, isso é impossível.
Existe uma criança que se perdeu.
E eu sou seu guardião.
Eu fingi não ver. Fingi que não havia sombras dentro dele. Fingi que elas não o comiam lentamente. E quando ele chegou à primeira encruzilhada, eu não estava lá e as sombras o levaram para o caminho mais escuro.
Eu estou acostumado a andar por caminhos desconhecidos. As sombras podem cobrir o que está iluminado, mas não podem tocar a luz.
Eu não tenho uma luz pra seguir porque eu sou a luz que guia. Não tenho um deus para amar porque eu sou o deus que é amado. Eu sou aquele que faz com que tristezas sejam esquecidas e sorrisos surjam, não importa a que preço, não importa que eu pague por pecados que não são meus.
Eu sou um guardião.
E minha criança se perdeu.
Quando minha criança chorou, eu a fiz sorrir. Quando o céu estava limpo, eu estava ao seu lado olhando o tempo. Quando ele caiu, eu o fiz se levantar.
Mas quando as sombras chegaram, eu não estava lá.
Você, criança perdida, apenas você, pode voltar pelo caminho errado que escolheu e passar a seguir o caminho certo. Mas não poderá fazer isso se não se transformar em luz. Porque de onde você está, nenhuma luz pode te alcançar e nenhum guardião pode lutar contra os demônios que estão dentro de você.
Eu quero a minha criança de volta. Porque, se durante o caminho as sombras o consumirem completamente, eu serei a responsável por dar fim a sua vida, assim como um certo guardião fez com outra criança perdida.