quinta-feira, 3 de setembro de 2009

[conto #017] O Cachorro

O CACHORRO

Ela parada, encostada na marquise entre duas lojas. As pessoas que passam, em todos os sentidos, de todas as formas. No céu apenas céu, azul-claro como os olhos de um príncipe encantado imaginário. E então ela o vê.
O cachorro está andando do outro lado da rua. É magro e marrom-claro, e não anda realmente, mais se arrasta pela calçada, rente à porta das lojas, tentando não ser pisado acidentalmente – ou propositalmente; quem vai saber a intenção de um ser humano? Apenas está ali, e existe; e é visto pela garota do outro lado da rua.
Não se encaram, menina e cachorro; esta tem consciência daquele, mas aquele é indiferente à ela. Que importa uma menina para um cachorro? Ela não lhe dará comida, nem abrigo. Mas o cachorro prende os olhos da garota, animal dominando gente. Ela quer ver, que saber aonde vai um cachorro sem dono, um dos grandes mistérios da cidade.
Cachorro se afasta pela rua, menina vai atrás, cada qual em sua margem do grande rio onde navegam os automóveis. Ele anda, parecendo ter um destino; mas pára em frente à loja de discos – ouvindo música? - e ali se deixa ficar, mexendo no lixo da calçada, andando em pequenos circulos, assistindo ao incongruente movimento de pessoas para dentro e para fora, de um lado para o outro, em todas as direções.
No seu lado da rua, a menina senta na frente de uma loja fechada. O chão está sujo, mas se o cachorro, que é só um cachorro, não se importa, por que iria ela se importar?
Passa o tempo e as lojas fecham, e o sol se vai; ficam ali apenas os dois, menina de um lado, cachorro do outro. A apenas poucos metros de onde ela o encontrara, a curtos passos de distância de sua casa. Seria aquela a casa do cachorro? Mas se não tinha dono, se não tinha teto – se estava livre, se assim nascera – por que se prender a um só lugar? Por que não seguir andando indefinidamente, ultrapassar o limite da cidade, de todas as cidades, chegar até onde nenhum ser humano chegou – o ser humano, esse ser escravo e limitado. Ele, que era livre, restringia seu mundo a uma calçada e alguns passos, a uma loja fechada de discos. A menina voltou para casa, decepcionada.
Já tarde da noite, menina em sua casa, de banho tomado, camisola rosa, cabelos penteados – olha pela janela, e lá está ele, o cachorro, em frente à loja de discos. Talvez dormindo, talvez apenas deitado, com a resignação dos que esperam a morte desde que nasceram. Pequeno ponto marrom na rua abandonada.
Ela se revolta com o cachorro. Sua liberdade disperdiçada é uma afronta àqueles que não são livres. Se fosse como ele, se pudesse ir aonde quisesse, teria andado o dia inteiro até sair da cidade, e continuaria andando pela estrada, e dormiria sob um céu brilhante de estrelas, e correria loucamente por colinas e vales, e nadaria em rios, e iria à Paris, Tóquio, Londres, São Paulo, à lua. Mas ela não podia, ao contrário dele, porque não era livre, porque era humana, porque, porque – por quê?
A realidade dos fatos caiu sobre ela como um véu de água fria. Por que não podia? Por que não era livre? Por que não saía de casa, agora mesmo, e ia andando até encontrar os limites do mundo? Diz a si mesma que não podia, e isso era verdade, mas não podia por quê? Por mamãe e papai, eles nunca deixariam. Mas, se ela realmente saísse andando, e dissesse que jamais voltaria, o que eles poderiam fazer? Amarrá-la e levá-la de volta? Pouco provável. Dizer que nunca mais falariam com ela? Talvez sim, mas se o que ela queria era justamente sumir, desaparecer, adentrar um mundo desconhecido – e nesse mundo não haveria pai nem mãe, nem nada, nem ninguém; apenas ela, correndo sozinha pelos campos, deixando o vento e a água caírem do céu sobre sua pele nua, deixando o sangue correr por feridas abertas – era viva, e isso era vida, o sangue, o vento, a água, o coração pulsando em seu peito, a fronte ardendo em febre. Sem pais, sem amigos, sem um deus para lhe julgar, apenas ela, ela e o mundo, os dois amantes loucos de paixão, se amando nas profundezas do conhecimento humano...
Há a escola. Mas em que a escola a impedia? Nenhuma escola a ensinaria a viver; ela não aprenderia em nenhuma sala de aula como era pisar em um chão jamais pisado, se banhar em um rio virgem, respirar um ar intocado. Nenhum professor a tomaria em seus braços e lhe mostraria o que é viver, o que era ser mulher, como era ser tocada e amada por um homem – não um garoto, não os tolos e imbecis com quem estudava; mas um homem, senhor de toda a Terra, um protetor, alguém para adorar. Um deus particular, por quem ela realizaria todos os seus sonhos secretos.
Há a morte. Desde muito pequena aprendera a temer a morte como uma substância real, como um ácido corrosivo do qual devia se afastar. Tudo de errado, a morte era o castigo – atravessar a rua sem olhar para os lados, comer coisas desconhecidas, conversar com estranhos. E, no final de todos os medos e receios, o que era a morte senão apenas uma parte da vida? O final, a derradeira demonstração de existência, mas não tão diferente de todas as outras. Morrer era estar vivo, era o sangue, era seu corpo gastando a última gota de suas energias e se entregando de volta ao mundo que o concebera. Os seres humanos morriam em hospitais, ou em quartos tristes e insípidos, ou em poças de sangue no meio da rua; os seres livres morriam sob o céu azul ou sob o brilho das estrelas, morriam rodeados de terra e grama, viestes do barro e ao barro retornarás; talvez sentissem dor, talvez sentissem medo, mas o que eram a dor e o medo senão simples provas da vida? Não queria morrer dormindo, queria viver até o último segundo, sentir o corpo lutando dolorosamente, sentir o peito arrebentando as fibras de vida dentro dela, até que não houvesse mais forças e ela se entregasse – talvez com uma lágrima, talvez com um sorriso de glória, como o do guerreiro que sabe que morre por uma causa justa.
No final, ela pensou, não era tão diferente daquele pobre cachorro, deitado inerte em frente a uma loja fechada, ser que poderia ser belo mas se tornara inútil. Tinha a liberdade nas mãos e a guardava no bolso, por medo, por receio, por comodidade. Eram o mesmo, agora, menina e cachorro; e de repente ela estava no meio da rua, diante dele, nua, deixando o vento frio da noite tocar em seus cabelos tão cuidadosamente penteados, deixando os pés descalços sentirem a imundisse que os seres humanos deixavam para trás ao passarem pelo mundo.
Menina e cachorro se olhavam. Ela nua como ele, um sentindo os medos e desejos do outro. E, pela primeira vez, ela percebeu que tinha um corpo, e que era uma mulher – mas o que era ser mulher? Fazia parte da liberdade desconhecida, dos desejos jamais realizados. O cachorro a olhava, indiferente, assim como ela o olhava – ser despido que nada significava. Ela queria que ele fosse um homem, qualquer homem – um dos meninos que andavam a pedir esmolas pela rua, um dos mendigos sob o viaduto; estes eram mais homens do que qualquer homem com quem ela conversasse todo dia. Um homem que a visse ali, nua, e que a desejasse; e para o qual não haveria medo nem promessas, e que depois a abandonasse para que ela fosse de outros, como era no início do mundo.
Da sala, a mãe chama a menina para o jantar. Ela olha uma última vez pela janela, para o ser adormecido em frente à loja de discos; e então fecha a janela e corre para a sala, onde os pais a esperam, como em todos os seus dias.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa é uma daquelas histórias que nasce por si mesma, que brota de sei lá onde e que, quando a gente termina e relê, fica pensando "fui eu que escrevi isso?". A inspiração veio de um conto que li e que não tem absolutamente nada a ver com este, no qual uma menina mata aula pela rua e vê o pai "matando o trabalho" também pela mesma rua. Não me pergunte como que uma inspiração saída de um conto desses resultou nesse outro. É um conto com uma força muito grande e que, embora tenha se "auto-escrito", foi muito difícil de pôr no papel de forma que ficasse legível. Mas acho que o resultado final ficou muito bom.