sexta-feira, 26 de julho de 2013

[conto #051] Amor Líquido

AMOR LÍQUIDO

Ele era só mais um em meio a tantos outros. Olhavam para eles como se fossem todos iguais, incapazes de perceber as pequenas particularidades que os diferenciavam e os tornavam únicos. Cada um deles era único, era especial, e ninguém percebia.
Mas ele não se importava com eles. Com nenhum deles. A única que lhe importava ela ela.
Ela.
Ela chegara pouco depois dele. Estavam ali há muito tempo, os dois. Ela em frente a ele, sempre, a lhe provocar. Ele já decorara cada detalhe dela: seu corpo metálico, que brilhava de forma diferente dependendo da luz que entrava pela janela, e que assumia novos tons quando a lâmpada era trocada; as pequenas ondulações nas suas laterais, delicadas, suaves e bem definidas; os pequenos entalhes em relevo na frente. Tudo sobre ela era lindo e perfeito, e ele não cansava de olha-la, vê-la parada durante a maior parte do tempo, vê-la ser girada de um lado para o outro algumas vezes durante o dia.
Era a torneira mais bela que ele já vira.
Os outros azulejos tentavam dissuadi-lo daquele amor impossível. Em primeiro lugar, eles diziam, vocês são de naturezas diferentes: nunca um amor entre uma torneira e um azulejo dera certo. Além disso, ele ficava na parede oposta à dela, e eles jamais poderiam se aproximar. Aquilo só poderia acabar em lágrimas.
E ele sofria.
Durante os banhos, lágrimas caíam por ele quando a via ser tocada de forma tão displicente por mãos que não a amavam, que sequer percebiam sua existência. Durante o dia, assistia inconsolável enquanto ela conversava com os azulejos ao redor dela, que não a amavam, enquanto ele e seu amor eram ignorados. Ele queria tanto tê-la, que faria qualquer coisa para se aproximar dela.
Qualquer coisa.
Uma noite, ele foi acordado por uma luz estranha em cima dele. Quando olhou, viu um azulejo flutuando diante de si, e por um momento achou que estivesse tendo um sonho louco.
-- Não é um sonho. - o azulejo flutuante disse, sorrindo diante da perplexidade do outro - Nenhum dos outros acordará, e você não deve contar sobre esse encontro para ninguém. Eu vim porque escutei seu sofrimento, e quero te ajudar.
-- Você pode me ajudar?
-- Sim. Posso fazer você e sua amada ficarem juntos para sempre. Mas isso terá um preço.
-- O que quer que seja, eu pago.
-- O preço será sua vida.
O azulejo olhou para ele, perplexo.
-- Como assim?
-- Você poderá ficar com sua amada por algum tempo, e então morrerá e sua alma será minha. Se acha que sua vida vale mais do que um momento com aquela que você ama, então recuse. Mas se a ama tanto que morreria por ela, aceite. Muito simples.
Ele pensou um pouco. Já existia há uns bons dez anos, e amava a torneira por igual período. Suportaria mais incontáveis anos de sofrimento? E de que valia, afinal, uma vida sem aquela que amava? Se pudesse estar com ela, mesmo que por um curto período, mesmo que por apenas alguns minutos, tudo valeria a pena. Poderia morrer e entregar sua alma para quem quer que fosse aquele azulejo flutuante; sabia que morreria feliz.
-- Eu aceito.

* * * * *

Era início da manhã. Ele acordou, e a primeira coisa que viu foi a torneira, como em todas as manhãs. Mas havia algo estranho com ela.
Ao olhar bem, ele percebeu que ela parecia menor. Mais fina, talvez. E havia gotas de água em toda a sua superfície, o que era estranho pois o banheiro já estava seco há horas. Ficou pensando nisso durante algum tempo - ela podia estar doente, algum vazamento talvez - até que percebeu que ele mesmo estava molhado. Mas aquela água não vinha de fora, vinha dele. Como se estivesse derretendo. Como se estivesse se transformando em água. Mas isso, obviamente, seria impossível, do mesmo jeito que seria impossível um azulejo sair voando...
E então ele se lembrou. O azulejo flutuante.
Olhando novamente para a torneira, percebeu que definitivamente ela estava se transformando em água, pingando no chão. Ele próprio estava cada vez menor, escorria pela parede, até que todo ele se desfez e escorreu para ela, para a poça que ela se tornara. A abraçou com paixão e desespero, e sem esperar permissão se misturou a ela, finalmente tendo junto a si aquela presença tão amada.
Todos os anos de espera haviam valido a pena. Ela era dele, e ele a amava mais do que tudo no mundo. Mas a felicidade duraria pouco, e logo seria cobrado o preço pelo desejo concedido.
O azulejo flutuante surgiu diante deles. Os outros azulejos gritaram assustados, e a poça que antes era a torneira se encolheu. A poça que antes era o azulejo a abraçou, procurando protege-la e sentir seu amor por ainda mais algum tempo, antes que sua existência tivesse um fim. E então, obedecendo a uma ordem misteriosa, o chuveiro foi aberto.
Milhares de gotas de água caíram sobre eles, misturando-se a eles, afastando-os um do outro. Eles tentaram se agarrar um ao outro, se seguraram com todas as forças, mas a força da água que caía era muito maior, e afinal os separou. entre gritos de horror e agonia, eles se viram invadidos e misturados por aquela água maligna, perdendo sua própria consciência e se tornando parte de algo que não queriam ser, até que finalmente suas existências se esvaíram e eles escorreram pelo ralo no chão, junto de toda a água. E então o chuveiro foi desligado, e o azulejo flutuante desapareceu, com uma risada maligna.
O banheiro ficou completamente seco novamente, como se nada houvesse acontecido. Nas paredes, de um lado um azulejo faltando, do outro a ausência da torneira. Os azulejos murmuravam entre si, assustados; todos sabiam o que acontecera, e porquê acontecera, e aquela história seria passada de geração em geração por muitos anos.
O amor entre um azulejo e uma torneira era um amor proibido.


SOBRE A HISTÓRIA

Isso é o que acontece quando se tenta ter ideias para contos de madrugada.
A ideia para essa história surgiu em uma noite, enquanto eu tomava banho. Naquele dia, eu havia acordado às cinco e meia da manhã, feito uma prova muito difícil às sete, e passado literalmente o resto do dia, até quase meia-noite, fazendo um trabalho da faculdade com um amigo. Quando finalmente voltei para casa, em um estado de semi-consciência, comecei a pensar em ideias para contos e é obvio que nada de minimamente normal iria surgir.
Só por questão de curiosidade: quando eu tenho uma ideia mas não vou escrever no momento, eu faço uma pequena anotação para lembrar depois. Para esse conto, escrevi o seguinte: O azulejo de banheiro que se apaixona pela torneira em frente a ele e faz um pacto com o demônio para ficar com ela (eles viram água, escorrem pela parede e se unem no chão). No dia seguinte fiquei quase meia hora rindo depois que li isso. Mas como é o destino do escritor escrever mesmo as coisas mais bizarras, aí está o conto, para quem possa apreciar.

* * * * *

Essa é a semana de aniversário do blog, e em comemoração estou publicando um conto por dia durante toda a semana, de segunda a sexta. Este é o último conto da semana, espero ter atendido às expectativas (ou, pelo menos, não ter decepcionado muito). Obrigada a todos! =)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

[conto #050] Quando Todos Se Foram

QUANDO TODOS SE FORAM

Suicídios sempre aconteceram. Quase todos os dias, talvez até mais do que uma vez por dia. Eram algo comum. E na minha cidade, talvez acontecessem com uma frequência um pouco maior do que o normal, mas enfim, essas coisas acontecem.
Foi por isso, talvez, que eu demorei tanto para perceber que havia algo errado.
Por algum motivo, jornais não costumam noticiar suicídios. Por isso, se você fica sabendo de três pessoas que se mataram na mesma semana, você já deveria pensar que algo está errado. Mas eu - e provavelmente todo mundo - pensei só que "essas coisas acontecem", e fui cuidar dos meus assuntos.
Mas na outra semana houve mais suicídios.
E na outra.
E na outra.
Eu cheguei a comentar com as pessoas lá em casa "todo mundo resolveu se matar agora?". Era só uma brincadeira. Era curioso, quase engraçado, aquela quantidade de gente que resolvia tirar a vida, aparentemente sem motivo, de uma hora para a outra.
Mas um dia eu cheguei do trabalho, e meu namorado estava estirado na calçada em uma poça de sangue. Nós morávamos no vigésimo sexto andar, e ele se atirara da janela.
Eu e ele havíamos nos conhecido durante um estágio durante o meu último ano na faculdade. Só começamos a namorar quase três anos depois. Não morávamos oficialmente juntos, mas eu morava sozinha e ele passava tanto tempo lá em casa, que era praticamente a mesma coisa. Eu gostava dele, ele gostava de mim e estávamos felizes. Muito felizes.
Ele não tinha nenhum motivo para se jogar da janela.
Foi naquele momento que eu percebi que havia alguma coisa muito errada. Alguma coisa estava acontecendo. Aquela pessoa nunca se mataria. Comecei a investigar sobre suicídios recentes, e acabei descobrindo que, nas últimas cinco semanas, vinham acontecendo no mínimo três suicídios por dia.
Aquilo não era normal.
As coisas ainda estavam um pouco longes do fim, mas minha vida acabou quando perdi meu namorado. Saber que algo estava acontecendo não era de muita ajuda, não havia muita coisa que eu pudesse fazer. Pensei no que aconteceria se aquilo tudo fosse um filme e eu fosse o herói: provavelmente, eu sairia desesperadamente atrás das autoridades, seria ignorada, tentaria alertar a todos, continuaria sendo ignorada, e no fim descobriria a solução para tudo e seria aclamada pelo povo como grande salvadora da humanidade. Claro que, no transcorrer da história, ainda encontraria um novo amor que me faria esquecer completamente a morte do meu namorado e me faria feliz de novo.
Mas aquilo não era um filme.
Eu não tinha nenhuma ideia de como salvar o mundo, nem mesmo sabia se queria que o mundo fosse salvo. E definitivamente, não havia homem no mundo que pudesse me fazer esquecer a dor de perder aquela pessoa.
Eu passei dias e dias dentro de casa, deitada, sem forças. Não chorava mais; minha tristeza já ultrapassara em muito o tempo das lágrimas. Só ficava ali, quieta, existindo.
Até que as coisas atingiram o ápice.
Um dia, acordei com um barulho alto na rua. Ainda era muito cedo, mas parecia haver uma multidão enlouquecida na minha rua. Abri a janela e me deparei com um cena inacreditável: dezenas, talvez até centenas de pessoas se jogavam das janelas dos prédio próximos. Me afastei de janela, em choque, e bem nessa hora alguém dos andares de cima se jogou, passando exatamente pela minha janela e indo explodir no chão lá embaixo.
No chão, além de uma quantidade de corpos digna de uma guerra, havia pessoas gritando, pessoas chorando, e pessoas se matando. Algumas se atiravam na frente de carros, algumas batiam a cabeça nos muros, outras cortavam os pulsos. Formas de se matar não faltavam, e ninguém parecia estar preocupado em ter uma morte sem dor. Qualquer coisa que pudessem fazer para se ferir mortalmente, eles faziam.
Fechei a janela e a cortina. Deitei na cama, cobri a cabeça para não escutar os gritos, e voltei a dormir.

* * * * *

Eu não sei exatamente quando acabou. Acordei e dormi de novo várias vezes, talvez por dias. Mas uma hora, percebi que não havia mais gritos. Me levantei e abri a janela: no chão, milhares de corpos. De resto, um silêncio e uma calma não-naturais pairavam sobre a cidade.
Saí de casa. Na entrada do meu prédio, também havia muitos corpos. Eu passei por eles, tentando não reparar nos detalhes de suas mortes, e cheguei à rua. Era até difícil andar, e vez por outra pisava em um cadáver. Gritei por alguém, mas não houve resposta. Só silêncio. Ao longe, um cachorro latiu.
Fui andando até a praia. Muitos corpos na areia, a maioria trazido pelo mar. Na rua, muitos carros abandonados, outros tantos batidos, pessoas mortas dentro deles. Pensei em pegar um carro, mas seria impossível andar com a rua naquele estado. Continuei andando a pé, sozinha, seguida por um ou outro cachorro perdido.

* * * * *

Depois de muito tempo, cheguei na cidade vizinha. Eu não sei o que esperava encontrar; talvez tivesse a esperança de que ali as coisas fossem diferentes. Mas só havia cadáveres. O tempo todo eu fazia barulho, chamava por alguém, gritava; mas não havia ninguém vivo. Eu não quis entrar em alguma casa para procurar sobreviventes. Continuei andando até os limites da cidade, onde as pistas estavam menos obstruídas, e ali peguei um carro abandonado e segui sem rumo. Talvez, se chegasse ao Rio, as coisas estivessem diferentes. Se eu sobrevivera, alguém mais tinha que ter sobrevivido.
Mas foram oito horas de viagem inútil. Não havia ninguém vivo na cidade. E assim foi com todas as outras cidades. Pensei que pelo menos os bebês estivessem vivos, mas parece que todos os pais haviam matado os filhos antes de se suicidar.
É estranho, mas no início, eu não pensei muito no que tinha acontecido. Só queria saber se alguém além de mim havia sobrado, mas também não me preocupei muito com isso. Demorou quase uma semana para que eu começasse a pensar no por quê.
Por que todos haviam se matado? Seria um vírus? Um surto psicótico global?
E por que eu ainda estava viva?
Sem dúvida, naquela época, eu não sentia nenhuma vontade de me matar. Não depois de ver milhares de pessoas sofrendo mortes horríveis, não depois de ver milhares de corpos apodrecendo. Com o tempo, fui obrigada a me afastar das cidades; o cheiro da decomposição estava ficando insuportável. Fui me afastando cada vez mais, mas o vento trazia aquele cheiro intolerável, e logo todo tipo de animal foi atraído. Andar nas ruas se tornou perigoso. Primeiro eram apenas urubus, cachorros, gatos; depois começaram a aparecer animais maiores, até que fosse comum ver lobos, tigres (ou animais parecidos com tigres, nunca fui uma conhecedora da fauna) e cheguei a me deparar com um leão, magro e faminto, devorando um cavalo em uma cidadezinha de interior.
Depois de alguns meses, o melhor lugar para ficar era no meio do nada. Fazendas que já eram abandonadas antes da catástrofe, florestas, campos vastos e vazios. Esses lugares acabaram se tornando meu refúgio. Eu continuava andando e andando, procurando alguém.
Isso foi há quatro anos.
Hoje, eu estou no lugar que costumava ser o sul do México. Acabei ficando aqui mais do que o habitual, mas a verdade é que não tenho nenhuma vontade mais de seguir viagem. Não há mais nada em lugar nenhum do mundo. Não há ninguém. Só eu, sozinha.
Todas as pessoas do mundo se mataram. Eu fui a única que restou.
Chega um ponto em que a solidão se torna intolerável. Eu me lembro dos meus amigos. Do meu namorado. Dos lugares por onde andava. Mas as imagens sempre acabam sumindo, dando lugar a cadáveres. Milhares e milhares de cadáveres.
Se tornou insuportável.
Na verdade, pouco resta dos corpos hoje em dia. Nas cidades menores e nas vilas, consigo até mesmo andar pelas ruas sem ser intoxicada pelo cheiro. Os animais se tornam um problema cada vez maior, pois acabaram se tornando selvagens e estranham a presença de um humano. As cidades estão destruídas, já é possível ver prédios desabando. Ainda não é difícil encontrar comida, mas está se tornando perigoso entrar em lojas.
Mas o pior de tudo é a solidão. E o silêncio.
Silêncio quase absoluto, e sempre. Como uma noite que nunca acaba.
Pensando em tudo, até que eu aguentei por muito tempo. Devia ter percebido que era inútil resistir. Já estava muito claro, desde o início, que ninguém mais sobrevivera. Eu nunca descobrirei o que houve. Também nunca descobrirei porquê eu fui a única a sobreviver. Mas se descobrisse, de que adiantaria? Não há mais ninguém no mundo. Nunca mais haverá. Sou a última; se continuar insistindo, vejo que uma hora posso me ver numa situação em que esteja ferida ou impossibilitada de me mover, e sofrerei uma morte lenta, dolorosa e solitária.
Eu não quero isso.
Devia saber, desde o início, que não adianta lutar contra uma coisa tão grande. Talvez por isso todas as pessoas tenham se matado; porque elas perceberam que todos nós caminhamos para uma solidão total. Era inevitável. Só eu, tola que sou, insisti por tanto tempo.
Não mais.
Sozinha, hoje, darei meus últimos passos; e pela última vez sozinha, farei o que devo fazer. Se houver algo depois, me encontrarei com todos aqueles que foram antes e me deixaram para trás; se não houver, abandonarei uma existência triste e solitária para entrar em um vazio eterno.


SOBRE A HISTÓRIA

Quem me deu a ideia para essa história foi a Le, minha irmã. A ideia dela foi "suicídio", mas esse tema de "mundo vazio" é algo em que penso com frequência, e já escrevi outros contos com o mesmo tema.

* * * * *

Essa é a semana do aniversário de cinco anos do blog, e por isso estou publicando um conto por dia, de segunda até sexta. Além disso, esse é o conto de número 50, o que também é uma marca muito importante \o/
Obrigada a todos que leem, leram ou lerão as coisas que escrevo, espero que gostem =)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

[conto #049] Caçadores de Chuva

OBS: Este conto tem relação com o conto Pequena Morte, publicado anteriormente. Para mais informações, ler o "sobre a história" no final dessa postagem.


CAÇADORES DE CHUVA

Ela sempre gostara da praia. Antigamente, seus pais a levavam à praia todos os fins de semana em que havia sol. Ela queria ir mesmo naqueles em que chovia, para ficar vendo a chuva se misturando com as ondas do mar; mas seus pais nunca a levavam nesses dias. Antigamente, quando chovia, ela costumava ficar sentada na janela, olhando a chuva molhando as plantas no jardim, sentindo o cheiro de terra molhada, sentindo o frio. Até que sua mãe vinha até ela, a embrulhava em um cobertor, a pegava no colo e a levava para a varanda, onde se sentavam na rede e ficavam contando histórias sobre a chuva.
A história de chuva que ela mais gostava era uma que sua mãe lhe contava sempre, sobre as crianças caçadoras de chuva.
Antigamente.
Agora, fazia sol. Era fim de tarde, e ela estava sentada na areia, olhando o mar. As ondas estavam altas, por isso ela tinha medo de entrar sozinha; preferia ficar ali, na beira, apenas olhando e fazendo um castelinho de areia.
Aos poucos foi ficando tarde, as pessoas foram indo embora. O sol foi se pondo, a lua foi nascendo. A areia foi ficando menos quente. Até que escureceu.
Existe, no meio do mar, um lugar em que as crianças caçam a chuva. Essas crianças parecem crianças humanas, mas as crianças humanas são feitas de terra, e elas são feitas de água. Por isso, se uma criança humana encostar em uma criança caçadora de chuva, as duas vão se misturar e se desfazer.
Mesmo no escuro, ela continuou sentada na areia. Podia ver o mar por causa do brilho da lua - era quase lua cheia, e a noite estava clara. Estava tudo calmo e silencioso, até que um homem se aproximou. Ela sentia fome.
O homem a vira de longe, por causa da lua. Foi andando até ela, e se sentou ao seu lado. Perguntou o nome dela, o que ela estava fazendo ali, quem eram os seus pais. Ela permaneceu em silêncio. Ele disse que ela era bonita. Ela sequer olhou para ele.
As crianças caçadoras de chuva gostam de brincar com bolinhas de água, do mesmo jeito que as crianças humanas brincam com bolinhas de terra. Elas pegam a água do mar e fazem bolinhas, e ficam jogando as bolinhas umas nas outras. As vezes elas fazem bolas de água tão grandes quanto um navio.
O homem passou a mão nos cabelos dela, depois esfregou seu braço. Ela olhou para ele com um olhar frio. Ele disse que queria ver ela sorrindo. Ela voltou a olhar o mar. Ele não gostou disso, e a puxou pelo braço. Ela o empurrou, e ele lhe deu um tapa no rosto. Ela o arranhou, e ele a jogou na areia. Subiu em cima dela.
Mas embora as crianças cacem a chuva, elas tem que tomar muito cuidado para que o vento não as veja. Você sabe, sempre que chove, também venta. Mas o vento caça as crianças caçadoras de chuva.
Ele começou a falar coisas que ela não entendia direito, mas que sabia que ele não deveria dizer. Ela não tinha nenhum plano específico e nenhuma arma, então teria que improvisar. O que me serviria?, ela pensava enquanto tentava impedir que ele tirasse a roupa dela. E então uma ideia lhe ocorreu, e ela sorriu. Quero ser muito mais forte do que um adulto. Mas não funcionou, e ela, já experiente, imaginou que deveria ser mais específica. Quero ser dez vezes mais forte do que um homem adulto. Especificou o homem, porque aquela pessoa já lhe explicara a diferença de força entre homens e mulheres adultos. Dessa vez funcionou.
E o que o vento faz com as crianças?
Se o vento pega uma criança caçadora de chuva, ele transforma ela em vento também. E ela passa a perseguir outras crianças caçadoras de chuva.
Ela segurou os braços dele e os apertou, sentindo os ossos estalarem sob suas mãozinhas. O homem gritou. Ela o empurrou, fazendo-o sair de cima dela, e o jogou na areia. Ele tentou se levantar, mas ela pulou em cima dele. Ele conseguiu empurra-la - embora forte, ela ainda tinha a leveza de uma criança de sete anos - e estava prestes a sair correndo, quando ela o agarrou pelas pernas e ele caiu de novo. Então pulou em cima dele e lhe deu um soco que quase o fez desmaiar.
E o que as crianças caçadoras de chuva fazem com a chuva?
Transformam em outras crianças caçadoras de chuva, é claro.
Ela rasgou a camisa dele e empurrou os dedos contra seu peito. Sentiu a pele rompendo, os músculos sendo rasgados, o sangue esguichando em sua mão. O homem gritou e se contorceu, mas ela lhe deu outro soco. Empurrou com mais força, até que os dedos entraram completamente, afundando na carne. Tateou um pouco, e sentiu o coração pulsando, por baixo da grade de ossos. O segurou e puxou com toda a força, quebrando ossos e arrebentado a carne. O homem gritou como ela nunca ouvira ninguém gritar, se contorceu em convulsões, e em segundos estava morto.
Ela não sentia mais fome.
O coração ainda pulsava em sua mão, e o sangue esguichava em cima dela. Ela o analisou, curiosa: era completamente diferente do que imaginara. Não tinha o formato bonitinho de coração que ela estava acostumada a ver; na verdade, era um pedaço de carne feio, escuro, de formato estranho, e era muito maior do que ela achava que deveria ser. Ele parou de pulsar, e o resto do sangue escorreu.
Sem interesse, ela o jogou em cima do cadáver no chão, e se afastou, andando calmamente. Olhando a lua refletida no mar, imaginou o que fariam as crianças caçadoras de chuva quando não estava chovendo.
Aos seus pés, gotas vermelhas de sangue pintavam a areia branca.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto é uma continuação (ou melhor, faz parte da história, mas tanto faz ler antes ou depois) do conto Pequena Morte. Dá pra fazer umas coisas legais misturando mortes bizarras, criancinhas inocentes e cenários assustadores.
A história das crianças caçadoras de chuva, que está misturada ao conto, foi uma ideia que tive para um conto recentemente. Nunca escrevi o conto, porque percebi que era apenas a ideia para um "universo" e não tinha uma história de verdade, com objetivos ou começo-meio-fim. Enquanto escrevia este conto, resolvi aproveitar a ideia, porque é o tipo de história perfeita para ser contada para crianças pequenas, como uma "história eterna" (aquele tipo de história que você vai inventando conforme a criança vai interagindo, e que não chega a lugar nenhum).

* * * * *

Essa é a semana de aniversário do blog, e em comemoração estou publicando um post por dia, de segunda a sexta. Estou tentando publicar só contos de alta qualidade (o que não é tão difícil já que sou um gênio hehehe), espero que gostem.

terça-feira, 23 de julho de 2013

[conto #048] Crescente

CRESCENTE

Eu vivia presa em uma gaiola de ouro muito bonita, mas tão pequena que mal podia me mexer. Mamãe e papai diziam que tinha que ser assim, para que eu não tentasse voar e não me machucasse. Eles vinham me trazer comida todos os dias e ficavam muito e muito tempo perto de mim e da minha gaiola. Eu nunca ficava sozinha. Se papai ia embora, mamãe ficava comigo, e quando mamãe saía, papai vinha me fazer companhia.
Apesar da gaiola ser pequena, eu era feliz. Tinha mamãe e papai, tinha a comida que eu mais gostava todos os dias, tinha a janela para olhar o céu e sentir a brisa soprando. Mas um dia, ao acordar, descobri que tinha saído da gaiola.
A gaiola estava lá em cima, presa no teto, como sempre estivera. Mas parecia pequena, bem menor do que antes, quando eu estava dentro dela. Eu senti muito medo, e fiquei sentada no chão, encolhida, esperando mamãe e papai aparecerem para me colocar de volta. Nunca tinha estado fora da gaiola antes, e sabia que era perigoso, que o mundo do lado de fora era ruim, frio, assustador.
Muito tempo se passou, e eu fiquei o tempo todo esperando mamãe e papai, mas eles não vieram. Eu ainda estava com medo, mas comecei a sentir muita fome, por isso levantei e saí andando pela casa, procurando alguém. Quando cheguei no corredor, vi um potinho com a minha comida caído no chão; me sentei ali e comi tudo, mas parecia tão pouco, e acabou tão rápido, que continuei com fome. Levantei e continuei andando; a cada passo que eu dava meu coração batia tão depressa que eu tinha medo de que ele explodisse. Não sabia se me faria bem andar sozinha daquele jeito, sem papai e mamãe.
Quando cheguei na sala, vi que em cima da mesa de jantar havia uma gaiola um pouco maior do que a minha, e papai e mamãe estavam ali dentro. Eles pareciam bem menores do que antes, menores até do que eu. Eu me aproximei e percebi que eles estavam com muita fome; então fui até a cozinha, peguei um pouco de comida e levei para eles. Eles comeram depressa, mas não quiseram mais; tentei conversar com eles, perguntar como fazia para tirá-los da gaiola e para voltar para a minha gaiola, mas eles não conseguiam conversar comigo. Percebi que agora eu é que teria que cuidar deles, e foi o que eu fiz.
Durante muito tempo eu cuidei de papai e mamãe. Eu lhes dava comida e água várias vezes por dia e conversava com eles por muito tempo, e nunca os deixava sozinhos. Conforme o tempo passava, eles cresciam e pareciam a cada vez mais felizes e mais fortes. Mas um dia, quando acordei de manhã, a gaiola deles estava aberta, e eles não estavam mais ali.
Procurei mamãe e papai pela casa toda, mas não os encontrei. Chamei por eles, mas eles não me responderam. Esperei por bastante tempo, mas eles não apareceram. Ao perceber que estava completamente sozinha, que não tinha ninguém para cuidar e ninguém que cuidasse de mim, eu me senti muito triste e comecei a chorar.
Enquanto chorava, olhei para cima e percebi que uma das janelas da sala estava aberta. Nenhuma janela da casa ficava aberta, mas aquela estava. Eu fui até ela e olhei para fora; saindo da janela havia uma escada que subia até o céu. Pensei que, se papai e mamãe haviam fugido por aquela janela, então para encontra-los eu teria que subir aquela escada, e foi o que fiz. Subi em um banquinho, pulei a janela e meus pés encontraram o primeiro degrau. Só quando estava ali e olhei ao redor foi que soube que nossa casa ficava no topo de uma colina muito alta, de onde podíamos ver os vales verdes ao redor, onde não havia nenhuma outra casa. Olhei para cima, para a escada que parecia não ter fim. E comecei a subir.
Eu subi por muito tempo, até chegar no alto de uma montanha. Naquela montanha vivia uma criança, e eu perguntei a ela onde estavam papai e mamãe.
"Seus pais estão no alto da montanha mais alta do mundo, e você deve chegar lá sozinha. Continue subindo a escada."
E a criança se jogou do alto da montanha e saiu voando. Eu voltei para a escada, e quando subi o próximo degrau, olhei em volta. Podia ver agora o mar, muito azul, ao longe. Podia ver colinas verdes com casinhas solitárias como a minha, e animais que vistos dali eram tão pequenos que pareciam de mentira. Podia ver, bem ao longe, uma cidade grande.
Continuei subindo, e subi por muito tempo, até chegar ao alto de uma outra montanha. Ali também havia uma criança. Perguntei onde estavam papai e mamãe.
"Continue subindo a escada, e vai encontra-los, no topo da montanha mais alta do mundo."
Em seguida, a criança se jogou do alto da montanha e saiu voando. Voltei para a escada e novamente olhei em volta. Agora eu podia ver várias cidades grandes, e as pessoas nas cidades, e os campos e vales, e rios, e o mar ao longe, e um arco iris que saía de uma montanha onde chovia e ia até um vale dourado de sol. Continuei subindo, por muito tempo, e dessa vez, a cada passo que dava olhava ao redor, para as novas coisas que surgiam na paisagem abaixo. Cheguei ao topo de uma nova montanha, onde havia mais uma criança. Fiquei na beira da montanha, olhando o mundo lá embaixo, e só depois perguntei onde estavam papai e mamãe.
"No alto da montanha mais alta do mundo. Continue subindo a escada."
E se jogou do alto da montanha e saiu voando. Eu fiquei ainda um tempo ali, e depois voltei para a escada. Agora, podia ver o sol do lado do mundo que era dia, e a lua do lado do mundo que era noite. Podia ver os ventos mudando de direção e o mar mudando de lugar. Podia ver as pessoas nascendo e morrendo lá embaixo.
Continuei subindo, e subi por muito tempo, até que cheguei no alto da montanha mais alta do mundo. Ali estavam papai e mamãe, e eles também eram crianças; e eles me perguntaram se eu tinha ido até ali para busca-los.
"Vim buscar vocês, porque achei que vocês precisassem cuidar de mim, ou que eu precisasse cuidar de vocês. Mas somos crianças da mesma idade, e não temos mais que cuidar uns dos outros."
Em seguida voltei para a escada, e desci. Desci até a montanha antes da maior montanha do mundo, de onde a última criança tinha se jogado, e me sentei ali. No início senti medo, porque não sabia o que faria agora; mas logo me distraí, olhando a paisagem ao redor, até que meu medo pareceu muito pequeno comparado ao tamanho do mundo, e acabou sumindo. Eu fiquei ali, esperando.
Esperei por muito tempo, até que um dia, uma criança apareceu, subindo as escadas. Ela parou perto de mim e olhou para baixo, para a paisagem. Depois se voltou para mim, e disse:
"Onde estão mamãe e papai?"
"Eles estão no alto da montanha mais alta do mundo", respondi. "Continue subindo a escada."
Em seguida fui até a beira da montanha e sorri. Via a relva dos vales abaixo ondulando ao vento, via a água fria dos rios correndo, via as pessoas vivendo nas cidades. E com um impulso eu me joguei, em direção ao mundo.


SOBRE A HISTÓRIA

Comecei esse conto em 22 de janeiro de 2012 (ou seja, um ano e meio atrás) e parei mais ou menos na metade, sem ter nenhuma ideia de como continuar (embora soubesse mais ou menos aonde queria chegar). Até que hoje o reli e decidi que ia termina-lo de qualquer jeito, o que fiz em mais ou menos uma hora.
Essa ideia de "menina presa na gaiola" é uma metáfora que adotei na minha época de adolescente inconformada com o mundo, por volta dos catorze anos, e que adoro usar até hoje.

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Hoje é o aniversário de cinco anos do blog! Durante essa semana, de segunda a sexta, será publicado um conto por dia. E fiz questão de postar esse conto hoje porque é um dos que considero melhores. Obrigada a todos que me seguem, espero que gostem!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

[conto #047] Passarinho

PASSARINHO

Eu tinha cinco anos quando a conheci. Ela era uma mulher jovem, vivia sozinha na floresta e todos a chamavam de bruxa.
Eu não tinha ninguém que me explicasse sobre a vida; ela me acolheu e passou a me ensinar sobre o mundo, esse lugar misterioso no qual eu chegara há pouco tempo. Eu ia todos os dias à floresta, fazer perguntas sobre tudo; perguntas que ela sempre respondia. Perguntas sobre o céu e a terra, a vida e a morte, a tristeza e a alegria.
Um dia, ela me deu um passarinho. Ele estava machucado e não podia voar; eu não iria cuidar dele ou cura-lo, apenas ficaria ao seu lado, lhe fazendo companhia, enquanto fosse necessário. Eu era uma criança solitária e ele era um passarinho machucado; seria bom que ficássemos juntos um do outro.
-- Você pode ficar com ele – ela me disse, quando o entregou para mim – e pode brincar com ele, e ficar ao seu lado e ouvir seu canto, e apreciar suas cores; mas não pode querer ele só para você. Porque ele irá embora quando desejar, e se você ama-lo, irá sofrer. Por isso eu o entrego livre, e não em uma gaiola; porque ele estará ao seu lado, mas não lhe pertencerá.
Eu aceitei, e jurei que não iria querer ele para mim, nem o amaria a ponto de sofrer quando ele partisse. Eu já tivera outros pássaros antes, e todos eles um dia iam embora, e eu me acostumara com isso. Tinha certeza de que não me importaria quando o passarinho resolvesse partir.
Mas havia algo especial naquele passarinho. Eu podia passar horas e horas com ele, apenas ouvindo ele cantar. Ficávamos horas e horas na floresta, até que a noite caísse, e estar com ele fazia com que eu me sentisse simplesmente bem. Não havia mais problemas, nem passado e nem futuro. Eu só estava ali, com ele, o ouvindo cantar.
Ele não era, na verdade, um passarinho especial, nem se destacava no meio dos outros. Não era o mais bonito, não era o que tinha a melhor voz, o melhor canto ou as cores mais bonitas. Mas seu canto parecia se encaixar perfeitamente comigo, falar diretamente a mim. Ele conseguia me deixar feliz, não por ter algo acima dos outros, mas por ter algo em comum comigo. Ele era especial apenas para mim, e era isso o que importava.
Um dia, eu cheguei na floresta e não o encontrei. Ele não estava em lugar nenhum. O procurei durante muito tempo, até que o avistei, voando no céu. Ele se despediu brevemente de mim, e partiu; eu me sentei no chão e fiquei assistindo ele se afastar, até que sumisse no horizonte.
Continuei sentada ali, sozinha, por muito tempo; até que a bruxa da floresta se aproximou de mim e se sentou ao meu lado.
-- Ele se foi. – eu disse.
-- Eu sei.
-- Se foi assim, de repente. Ontem parecia que ele continuaria cantando para mim enquanto houvesse sol no céu, e hoje ele simplesmente se foi.
-- Você sabia que isso aconteceria.
-- Eu sei.
Ficamos em silêncio por algum tempo; eu continuava olhando o horizonte. Talvez esperando que ele se arrependesse e voltasse. Talvez esperando que outro pássaro surgisse ali para tomar o lugar dele, de forma que eu nem percebesse sua ausência.
-- Você está triste?
-- Sim.
-- Então por que não chora?
-- Talvez porque minha tristeza não seja tão grande quanto eu achei que seria. Ou talvez porque ela é aquele tipo de tristeza que ao invés de lágrimas, cria um vazio dentro de você. Um vazio tão grande que parece que nem o universo inteiro é capaz de preencher.
-- Você não sabe o que você está sentindo agora?
-- Não.
Novamente o silêncio; e então eu comecei a falar, com a mesma necessidade que alguém quase afogado tem de respirar:
-- Eu fiz tudo errado. Tudo errado. Você disse para eu não querer ele pra mim, e eu quis. Eu comecei a tratar ele como se ele fosse meu, e isso fez ele ir embora. Você disse que eu não podia amar ele, e eu amei. Tudo o que eu não devia fazer, eu fiz, e agora estou triste como não devia estar, como se nunca tivesse passado por isso antes. Já tive tantos passarinhos, tantos já foram embora, porque eu tenho sempre que ficar triste com isso? Eu devia estar feliz porque ele escolheu o que era melhor para ele, deveria querer o que é melhor para ele, mas eu estou triste porque o queria para mim e agora ele se foi para sempre. E mesmo ele tendo partido, eu desejo que ele volte, eu fico esperando que ele volte, mesmo sabendo que ele não vai voltar.
-- Você não fez nada errado. Você não tem que ser a única pessoa no mundo que controla totalmente o que sente. Não tem que ser a pessoa mais forte do mundo.
-- Tenho sim. Se eu não for, quem vai ser? Não tenho ninguém para cuidar de mim. Então eu tenho que cuidar de mim mesma.
-- Mas fingir que não está sofrendo não é o mesmo que não sofrer.
-- Eu sei. Mas pelo menos não faço as outras pessoas sofrerem por minha causa.
-- Você acha que ele foi embora por sua causa?
-- Acho. Porque eu fiz tudo errado. Eu podia ter feito tudo diferente. Queria poder viver mil vezes, para poder encontrar a forma certa de fazer com que ele ficasse comigo por mais tempo.
-- E por que você queria ele com você mais tempo?
-- Porque ele era um passarinho especial. Eu queria ouvir ele cantar mais um pouquinho.
-- Você vai ouvir o canto dele outras vezes. Ele vive aqui na floresta, vocês sempre estarão juntos.
-- Eu sei. Mas agora, o canto dele não será mais para mim, e eu não sentirei que tenho algo bom comigo. Ele não pertencerá a ninguém, assim como eu não pertenço a ninguém, e eu não sentirei que ele é especial apenas por estar comigo.
Conversar com ela estava me acalmando, mas o vazio dentro de mim ainda existia. Me levantei e comecei a andar pela floresta, com ela ao meu lado. Em breve precisaria voltar para casa.
-- Por que nada dura para sempre? – perguntei, num tom triste, melancólico.
-- Porque é isso que faz a gente apreciar as coisas. Saber que elas vão acabar.
-- Tudo o que eu amo vai embora. Todas as coisas boas vão embora. Sempre.
-- Mas todas as coisas ruins também se vão.
-- Mas as coisas ruins deixam marcas para a vida toda.
-- E as coisas boas também.
Chegamos ao fim da floresta. Eu iria para casa agora.
-- Eu sei que você está sofrendo agora, porque o passarinho que você mais queria se foi. Mas com o tempo a dor diminui, e outros passarinhos virão. Com outras cores que você também apreciará, e com outros cantos que se tornarão especiais.
-- Eu sei. – olhei para o céu, ainda desejando ver meu passarinho – E poderei ver ele voando, sempre.
Segui para casa, olhando sempre para o céu, mas sem conseguir ver as cores que eu tanto queria ver.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse é um conto para a semana de aniversário do blog. Será publicado um conto por dia, de segunda até sexta.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

[conto #046] Pequena Morte

PEQUENA MORTE

O balanço ia para a frente e para trás.
Lentamente.
Ela segurava as correntes enferrujadas.
Para a frente e para trás.
Lentamente.
A poça de sangue chegou aos seus pés, mas ela não pareceu perceber.
Lentamente.

* * * * *

O fogo já fora controlado. Em breve só restaria a fumaça e as cinzas.
De pé, do outro lado da rua, ela assistia enquanto os dois corpos queimados eram levados para a ambulância.
-- Eles já estão mortos, sabia?
Ela balançou a cabeça, sem olhar para quem falara.
-- Você não vai chorar?
Nenhuma reação. O homem colocou a mão na cabeça dela.
-- Você gostaria de ter eles de volta?
-- De que adianta querer?
-- E se eu disser que posso trazer eles para você - ele se abaixou para ficar da altura dela - você aceitaria?
Dessa vez, ela olhou para ele.
-- Você pode?
-- Posso. Para isso, você só precisa fazer três coisas.
-- Que coisas?
-- A primeira, é me dizer "eu quero que meus pais voltem à vida como se nada tivesse acontecido"...
-- Eu quero...
-- Espera, você tem que concordar com as outras condições primeiro. Você nunca mais vai poder ver eles, e eles não se lembrarão de você. Nem eles, nem ninguém. As pessoas que você conhecer a partir de hoje continuarão com as memórias, mas as pessoas que já te conheciam esquecerão todas as lembranças que têm de você, como se você nunca tivesse existido.
Isso fez ela hesitar. Do que adiantaria ter seus pais de volta se não pudesse vê-los? Mas, pensou depois, aquele pensamento era errado. Se eles estivessem vivos e bem, era isso o que importava. Mesmo que não se lembrassem dela. Mesmo que ninguém se lembrasse dela.
-- Eu aceito.
-- E a última condição é que você mate pessoas.
Por alguns segundos, ela ficou apenas olhando para ele.
-- Matar pessoas? Que pessoas?
-- Pessoas, pessoas. Qualquer pessoa, não importa quem seja. Você vai ter que matar um certo número de pessoas de tantos em tantos tempos.
-- Mas como eu posso matar alguém? Só se for uma criança menor do que eu.
-- Se quiser, tudo bem. Mas você vai ter ajuda, vai ganhar algumas... Habilidades especiais.
-- Tipo super poderes?
-- É, mais ou menos.
Ela ficou bastante tempo em silêncio. Ele esperou um pouco, mas como ela não esboçasse nenhuma reação, acabou perdendo a paciência.
-- E então? Aceita ter seus pais de volta em troca dessas condições? Ou é melhor eu ir embora agora?
Ainda por algum tempo ela ficou em silêncio, e então, olhando fixo para os escombros da casa, disse:
-- Eu quero que meus pais voltem à vida como se nada tivesse acontecido.
E assim foi feito.

* * * * *

Ao contrário do que pensaria qualquer pessoa que o visse caminhando às três da manhã pelas ruas desertas, ele não estava bêbado. Nem vinha de nenhum tipo de festa. Ele simplesmente saíra para caminhar, porque não conseguia dormir.
Há muito tempo não conseguia dormir.
Sabia o quanto era perigoso sair assim; mas tudo estava realmente deserto.
Nem mesmo os ladrões saem a essa hora da noite, ele pensou e riu sozinho.
Ao longe, parecia ouvir um som ritmado de coisas metálicas se arranhando.
Como uma bicicleta velha. Ou como um balanço.
Continuou andando, dessa vez mais atento. Quando o barulho ficou mais claro, ele percebeu que vinha da praça. Puxou o gorro do casaco, cobrindo a cabeça, para tentar se esconder nas sombras, e continuou andando bem lentamente. Ao chegar na praça, viu de onde vinha o som.
Havia um parquinho, com um balanço, e uma garotinha estava sentada ali, balançando lentamente.
Olhava para o nada. Pensativa.
Estava sozinha ali.
Aos seus pés, havia um homem morto.

* * * * *

-- Pedir o que?
-- Qualquer coisa, eu já disse. Pode pedir para respirar debaixo d'água, para voar, o que você quiser. Mas só quando estiver tentando matar alguém, e depois que você matar, só vai ter o que pediu até o próximo nascer do sol. Isso significa que se você matar a pessoa de manhã, sua dádiva vai durar quase vinte e quatro horas, mas se for de madrugada, pode durar poucos minutos.
Ela não entendera muito bem. Mas era só questão de tempo até pegar o jeito.

* * * * *

Ela percebeu que havia alguém ali, e levantou o rosto. No escuro, seus olhos brilharam como os de um gato. Ela podia ver o homem claramente; ele estava parado na calçada, parecendo completamente perdido.
O homem, por sua vez, olhava espantado para a criança com olhos de gato. Em um primeiro momento, pensara que estava sonhando; em seguida, percebera que era tudo real, e estava prestes a ir até a menina e ligar para a polícia, quando ela olhou para ele com aqueles... Aqueles olhos, e ele soube que aquilo não era uma criança normal.
Um demônio.
A criança se levantou do balanço, parecendo não se importar em pisar na poça de sangue. O homem deu um passo para trás e começou a se afastar. Ela pegou a grande foice que estava ao seu lado no chão, e começou a andar em direção a ele. Não era bom que a vissem. E ela ainda estava com fome.
O homem viu espantado aquela menina tão pequena levantar do chão algo com quase o dobro do tamanho dela, que parecia inacreditavelmente com uma foice. O brilho refletido naquilo indicava que era feito de metal, e parecia muito pesado, embora ela manipulasse com facilidade. O que quer que fosse, parecia perigoso, e o cadáver no chão era um alerta mais do que suficiente de que ele devia sair dali o mais depressa possível.
Ele saiu correndo.
No mesmo instante, a garota correu atrás dele. Mas as pernas dele eram muito maiores, ela jamais conseguiria alcança-lo daquela forma.
Quero correr como um adulto.
Na mesma hora as pernas dela se tornarem muito mais rápidas, e ela passou a correr com o triplo da sua velocidade anterior. Mas logo percebeu que pedira a dádiva errada; ela deveria correr mais do que um adulto para alcançá-lo. Além disso, por alguma razão, a velocidade dele ainda era maior - ela ainda era nova demais para saber sobre a diferença entre as capacidades físicas de um homem e de uma mulher.
Aquilo era ruim; ela não podia pedir uma dádiva que se sobrepusesse ou anulasse outra. Teria que arrumar uma outra forma de alcança-lo. Ele já estava quase dez metros à frente.
E então uma incrível inspiração lhe ocorreu.
Quero poder pular como um gafanhoto.
"Gafanhoto" fora o primeiro animal com um bom pulo que lhe ocorrera, e ela esperava que fosse o suficiente. Pegou impulso e pulou; atingiu quase dez metros de altura, e foi cair bem à frente do homem. Ela não esperara alcançar uma altura daquelas, e o susto a deixou um pouco tonta e com vontade de chorar; mas o grito que o homem deu a trouxe de volta ao que precisava fazer. Deu um pulo na direção dele e o derrubou no chão; com um movimento rápido da foice, cortou fora sua cabeça.
A cabeça saiu rolando pela ladeira; o corpo se contorceu em espasmos duas vezes, e então ficou inerte. Uma quantidade imensa de sangue jorrou do buraco no pescoço, formando um rio vermelho-escuro que desceu a rua. Ela sentiu a fome finalmente ir embora, ao ponto de a deixar mais do que satisfeita.
Inesperadamente, aquela pessoa surgiu ao seu lado.
-- Uau, essa foi demais! - ele disse - Você leva mesmo jeito para a coisa. Fiz muito bem em te escolher.
Ela apenas olhou para ele, sem dizer nada. Ele passou a mão na cabeça dela.
-- O que vai fazer agora?
-- Dormir.
-- Que coisa mais sem graça. - ele deu de ombros - Se bem que você é pequena mesmo, crianças dessa idade só dormem. Quer uma carona?
-- Sim.
E eles desapareceram.

* * * * *

Ela estava de novo em seu quarto.
O quarto em que ficava desde que aquilo começara. Onde vivia sozinha, e onde aquela pessoa a visitava.
Com muito cuidado, limpou a foice e a guardou no armário. Em seguida tomou três banhos - um para tirar o sangue, outro para tirar o que restara do sangue, outro para tirar a sensação do sangue - jogou as roupas no lixo, e afinal se deitou. Aquela visão noturna começava a incomoda-la, mas logo os primeiros raios de sol surgiram lá fora, e as dádivas desapareceram. Ela voltara a ser uma menina normal.
Contente e satisfeita consigo mesma, ela fechou os olhos e dormiu. Com um sorriso no rosto.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

[conto #045] A Casa

A CASA

A casa estava abandonada desde antes que eles nascessem, o que não era tanto tempo para as pessoas adultas, mas era mais do que uma vida para eles. Sentados do outro lado da rua, ficavam olhando os muros altos e cobertos de trepadeiras, enquanto faziam conjecturas.
-- Meu irmão me falou que mora uma bruxa aí. - dizia um.
-- Nada a ver, é um vampiro. - retrucou outra - Todo mundo sabe que é um vampiro.
-- Eu acho que é um fantasma.
Fosse o que fosse, eles sabiam que ali havia alguma coisa.
Uma casa como aquela tinha que ter alguma coisa.
A casa chamaria a atenção mesmo que não estivesse abandonada. Era a maior casa da rua, tinha o terreno três ou quatro vezes maior do que as outras; o portão de ferro estava completamente corroído, e pendia ligeiramente para um lado, ameaçando cair; e através das plantas que subiam pelas barras de ferro, via-se um enorme jardim coberto de folhas secas. Diziam que havia uma piscina lá dentro, mas eles nunca haviam visto.
Um a um, eles foram indo embora: primeiro a mãe de um chamou, depois outro sentiu fome, depois outro sentiu sede. Até que só ficou ela. Olhando sozinha para a casa abandonada.
E então ela percebeu o som. Era tão baixo que talvez já estivesse ali há muito tempo, e apenas agora, quando tudo era silêncio, ela conseguira ouvir. Parecia uma música, ou o vento soprando de forma ritmada; e parecia vir de além dos portões da casa. Intrigada, quase hipnotizada, ela se levantou e lentamente atravessou a rua, parando em frente ao velho portão coberto de plantas.
Foi só então que ele, que a observava há algum tempo, se aproximou.
-- O que você vai fazer?
-- Nada.
-- Você não vai entrar, vai?
Ela não respondeu. Encostou de leve nas grades enferrujadas e empurrou o portão, que fez um barulho de algo prestes a cair.
-- Você está ouvindo o barulho? - ela disse.
-- Que barulho?
-- O barulho. - ela empurrou de novo, e o portão caiu ligeiramente para o lado, deixando uma fresta entre as grades e o muro. Ela se esgueirou pela fresta, entrando no terreno da casa. O outro foi atrás, inseguro.
-- Sua mãe vai brigar com você. - ele disse, e disse outras coisas mais, mas ela não ouviu nenhuma delas. Só ouvia o som suavemente musical que a chamava.
Foram andando pelo jardim, até que viram a piscina. Era grande, estava coberta de folhas e flores caídas das árvores, mas curiosamente a água estava límpida, e não turva como deveria. A menina foi andando até a beira da piscina. E então a viu.
Havia uma mulher do outro lado. Muito branca, com cabelos muito compridos cobertos de folhas e flores caídas, assim como a piscina. Estava nua, e seu corpo tinha terra e água, além de várias cicatrizes.
Ao vê-la, o garoto começou a gritar, mas ao tentar correr, escorregou e caiu dentro da piscina. Começou a se afogar, gritando por ajuda, mas a menina não via nem ouvia nada. Só ouvia a música, só via a mulher.
A mulher começou a dançar, uma dança estranha, estranha como a música que só elas ouviam. Lentamente, a menina se despiu e começou a dançar também, do mesmo modo, como se tivessem ensaiado aquela coreografia por um longo tempo. O vento começou a soprar mais forte, nuvens feitas de chumbo cobriram o céu. Pesadas gotas de chuva caíram, e as duas dançavam, em um ritmo cada vez mais frenético, cada uma em um lado da piscina. No fundo, sob a água, jazia o corpo agora imóvel do garoto.
As duas dançaram até a chuva e o vento se tornarem uma furiosa tempestade, até toda a água dos céus ter caído na terra. E então a chuva diminuiu, e lentamente elas foram parando, na mesma velocidade com que a tempestade se acalmava.
E por fim, tudo acabou. A dança, o vento, a chuva - o sol voltou a surgir, era dia calmo novamente. No fundo da piscina, o corpo do garoto desaparecera.
Atendendo a um chamado silencioso, a mulher saiu andando lentamente em direção à casa e entrou, deixando a porta aberta. A menina foi atrás, também lentamente, e assim que ela entrou, a porta se fechou sozinha.
E ela nunca mais foi vista.


SOBRE A HISTÓRIA

Este conto foi baseado no clipe da música When I Grow Up, da Fever Ray. Queria escrever algo que fosse potencialmente assustador, mas de uma forma suave, não um terror de verdade. Tenho outras ideias para o mesmo cenário, por isso talvez publique alguma outra variante desse conto. Outra fonte de inspiração foi o meu passado como invasora de casas "abandonadas", quando criança.