terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #011] [U2] As Terras do Norte - Retorno


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 11
RETORNO
“Whatever the feelings, I keep feeling
What are the feelings you left behind?”
(U2 – A Day Without Me)

     -- Então – disse Adam – vocês partirão amanhã.
     -- Sim. - disse Bono – Agradeço muito por ter nos hospedado aqui, e por tudo o que fez por nós. Serei eternamente grato.
     -- Não foi nada. Desejo a vocês muitas felicidades, e que a criança nasça forte e saudável.
     -- Nascerá. Vou cuidar muito bem dela.
     -- E onde está Glory?
     -- Lá fora. Deve estar se despedindo do seu aprendiz.
     -- Você não se importa? Sabe que os dois andaram amigados.
     -- Coisa de criança. Não vou sentir ciúmes de um moleque de catorze anos. Desde que, é claro, ele não toque nela.
     Lá fora, Glory conversava com Larry, no depósito de lenha.
     -- Nós vamos embora amanhã.
     -- Hum.
     -- E... Nunca mais vamos nos ver.
     -- Eu sei.
     Ela baixou a cabeça.
     -- Eu sinto muito.
     -- Você não tem que sentir.
     -- Eu tinha prometido que ia ficar com você.
     -- Foram os deuses que quiseram assim. Não podemos fazer nada contra a vontade deles.
     -- Você não quer me dar um último beijo?
     -- Não.
     -- Tá bom.
     Glory foi saindo do depósito, triste. Na porta, parou e olhou para Larry, que fazia surgir pequenas chamas das pontas de seus dedos.
     -- Eu gosto muito de você.
     Ele olhou para ela pela primeira vez até então.
     -- Eu também gosto muito de você.
     -- Se eu não estivesse grávida, eu casaria com você.
     -- Eu sei.
     Ela lhe mandou um beijo, e ele sorriu. Então ela saiu, atravessando a neve até a casa.
* * * * *

     Foram três dias de cavalgada até a cidade. Bono sozinho levaria menos de um dia, mas estava com Glory, e não queria que ela se esforçasse, muito menos que cavalgasse muito depressa. No início da gravidez, poderia ser perigoso.
     Quando afinal chegaram em frente aos muros da cidade, havia uma dúzia de guardas. Bono disse que queria entrar, e um dos guardas disse:
     -- Quem são vocês e o que querem na cidade?
     -- Sou Bono, e essa é minha esposa Glory. Queremos um lugar para descansar.
     -- Bono? - ele trocou algumas palavras com outros dois guardas – Sabemos quem você é. Não queremos assassinos aqui.
     -- Venho em paz. Minha esposa está grávida, estamos viajando há dias. Nossa única intenção é realmente repousar e então seguir viagem.
     -- Sabe quem é o rei dessas terras?
     -- Sim, é o Rei Domingues. Sei que ele é muito rigoroso com quem comete crimes em seu reino. Nunca infringi a lei aqui, e não será agora, com minha esposa grávida, que isso irá acontecer.
     Os guardas conversaram mais um pouco, em voz baixa, e olharam para Glory. Por fim, um deles disse:
     -- Vocês podem entrar. Mas saibam que a cidade está sendo fortemente vigiada. Se tivermos a menor suspeita de que está planejando algo, será expulso, e se for pego cometendo crimes, será preso e julgado de acordo com as nossas regras.
     Eles abriram os portões, e Glory e Bono entraram na cidade. Havia muita gente no mercado, apesar da neve e do frio. Eles se dirigiram para uma estalagem vistosa, em frente à praça principal, e lá Bono alugou um quarto. Depois que estavam instalados, eles desceram para comer na cantina – por insistência de Glory, que, depois daquele tempo correndo livre pela floresta, não queria de forma alguma ficar trancada no quarto.
     -- Pois não? - disse o rapaz que os atendeu.
     -- Traga o prato da casa para nós dois. E cerveja para mim, e vinho para minha senhora.
     O rapaz saiu para buscar a comida, e voltou instantes depois. Depois que foram servidos e começaram a comer, Bono disse:
     -- Amanhã mesmo vou procurar o padre. A igreja fica a duas ruas daqui. Vou pedir para que nosso casamento seja celebrado o mais rápido possível.
     -- Você conhece essa cidade?
     -- Sim. Conheço todas essas terras.
     -- E as terras de meu pai, já conhecia?
     -- Sim. Eu estive lá.
     -- Quando?
     -- Há quase dez anos. Estava havendo uma comemoração, não sei de que. Lembro que o rei, seu pai, desfilou com a família em uma carruagem pela cidade, cercado pela guarda imperial. Eu vi a princesinha. No caso, você. Devia ter uns cinco ou seis anos. Estava com outra garota, na época achei que fosse sua irmã.
     -- Devia ser minha dama de companhia.
     Nessa hora, o dono da hospedaria foi até eles e disse, em voz baixa mas não sussurrante:
     -- Boa noite. Estão gostando da comida?
     -- Sim, senhor. - disse Bono – Muito boa.
     -- Que bom. - ele hesitou – O senhor é o cavaleiro que chamam de Bono, certo?
     -- Sim, mas não se preocupe, já fui alertado pelos guardas sobre o que me acontecerá caso arrume confusão. Vim em paz.
     -- Sim, sim. É que... - ele se sentou junto a eles, para evitar olhares curiosos – Há alguns dias, um homem esteve aqui, e procurava pelo senhor.
     -- Um homem? Quem?
     -- Era um cavaleiro, mas nunca o tinha visto antes. Usava uma capa marrom e um chapéu. Ele te deixou um recado.
     -- Que recado?
     -- Ele... Ele disse que, se o senhor passasse por aqui, eu deveria lhe dizer que ele em breve vai matá-lo.
     Por um segundo Bono olhou para ele, surpreso, e então começou a rir.
     -- Então, um cavaleiro desconhecido está me ameaçando de morte? Não é a primeira vez. Eu devo ter matado alguém que ele conhecia. Ele disse mais alguma coisa?
     -- Não, senhor. Apenas perguntou por você, e disse que iria perseguí-lo até encontrá-lo, e poria fim à sua vida.
     -- E ele deixou um nome?
     -- Sim, ele disse seu nome... Mas não era um nome, era mais uma alcunha, assim como o senhor usa. Era estranho... - ele pensou um pouco, tentando se lembrar – Ah, sim. Chamava-se The Edge.
     -- The Edge? - Bono riu – Que tipo de nome é esse?
     -- Do mesmo tipo que “Bono”. - disse Glory, e Bono parou de rir e olhou de forma cortante para ela.
     -- Dizem – continuou o homem – que é um cavaleiro muito forte e muito perigoso. O nome The Edge foi dado a ele pelas bruxas, por causa da lâmina de sua espada. Dizem que é invencível, e que travou muitas lutas e venceu todas. Dizem que é amaldiçoado, que vendeu sua alma ao diabo.
     -- Olhe, um irmão. - Bono parecia estar achando aquilo tudo muito divertido – Fiquei curioso. Quero encontrar esse The Edge. Se ele for mesmo o que está dizendo, será interessante lutar com ele.
     -- Não sei se ele ainda está na cidade, mas tome cuidado. - ele se levantou – E não trave nenhuma luta aqui, pois se não for morto pelo seu oponente, será morto pelos guardas.
* * * * *

     -- Já disse que não precisa se preocupar.
     -- Como não vou me preocupar? Tem alguém querendo matar você, e parece ser um homem perigoso!
     -- Você sabe melhor do que ninguém que não é nada fácil me matar.
     -- Talvez, mas agora é diferente! Você vai ter um filho, Bono, não pode arriscar morrer ou se ferir gravemente por causa de uma luta idiota! Você prometeu que enquanto essa criança não nascesse você faria de tudo para me proteger, e que não correria nenhum risco.
     -- Sim, claro. - ele a abraçou – Não se preocupe. Fosse quem fosse, já deve ter ido embora. E mesmo que não tenha ido, eu não vou procurá-lo. Assim que nos casarmos, vamos seguir nossa viagem para as terras do Norte, e não vou me meter em problemas.
     -- Por que você quer tanto ir para as terras do Norte?
     -- Porque foi onde eu nasci, e quero que meu filho também nasça lá.
     -- Você nasceu lá? Nas terras de quem?
     -- Do rei dos reis. O Senhor de toda Bretanha.
     -- Sério!? Você nasceu no reino do rei supremo?
     -- Sim.
     -- Que legal! E você o viu?
     -- Algumas vezes.
     -- Como ele é? É verdade que parece um deus?
     -- Nunca vi um deus, como posso saber? Pra mim, ele parecia um homem normal. Poderoso, claro, mas normal.
     -- Meu pai me contava muitas histórias sobre as terras do Norte e o rei dos reis. Ele dizia que era um homem muito sábio.
     -- Não tenho tanta certeza disso.
     -- Papai dizia que ele nunca cometia erros.
     -- Isso eu posso garantir que é mentira. Já o vi cometer muitos erros.
     -- E ele andava pela cidade, como meu pai fazia durante as festas?
     -- Sim. E também visitava outros reinos.
     -- Você já tocou nele?
     -- Pra que? Pra ver se era real?
     -- O povo acha que tocar em um rei é como tocar em um deus. Que ele cura as pessoas.
     -- Seu pai era um deus? Por acaso o toque dele curava pessoas?
     -- Não...
     -- Então. O rei supremo também não. É só um homem.
     -- Você cresceu na cidade, ou nos campos do palácio?
     -- Está querendo saber demais.
     -- O que é que tem? Eu devia saber tudo sobre você, agora que vamos nos casar.
     -- Você sabe o suficiente sobre mim.
     -- Mas... Bono, qual é o seu nome?
     Ele olhou para ela durante alguns segundos.
     -- Você deve ter percebido que essa pergunta soou no mínimo estranha.
     -- Mas o seu nome não é Bono. Qual é o seu nome verdadeiro?
     -- Eu não sei.
     -- Como, não sabe?
     -- Eu não tenho nome.
     -- Claro que tem! Todo mundo tem um nome. Você me falou sobre a sua mãe, uma vez. Ela não devia te chamar de Bono, não é?
     -- Não, não chamava.
     -- E como ela te chamava?
     -- De “meu filho caçula”.
     -- Ah! Então, você tem um irmão mais velho!
     Bono se virou para ela, impaciente, e com raiva de si mesmo por ter deixado escapar aquilo de uma maneira tão tola.
     -- Não quero falar sobre o meu passado, está bem? Minha infância, minha juventude, nada disso importa. Minha vida começou depois que fugi de lá, meu nome agora é Bono, e isso é tudo o que você precisa saber sobre mim.
     -- Mas agora, eu sei mais uma coisa. - ela se sentou na cama, alegremente – Eu sei que você fugiu. - Bono passou a mão pelo rosto, exaurido, e Glory continuou – Mas sua mãe tinha morrido. Você vivia com seu irmão mais velho, ou com seus irmãos mais velhos, ou irmãs, ou irmãos e irmãs. Mas se fosse só com eles, você não diria “fugir”, você simplesmente teria ido embora. Isso quer dizer que você tinha um pai!
     -- Não, Glory, eu não tinha um pai. Um dia um anjo surgiu na frente de minha mãe e anunciou que ela estava grávida. É claro que tenho um pai! Você demorou quanto tempo para chegar sozinha a essa brilhante conclusão?
     -- Você disse “tenho”, e não “tinha”. Ou seja, seu pai ainda está vivo.
     -- Mas que diabos... - ele voltou a afiar sua espada, tentando ignorar Glory.
     -- Nós vamos encontrá-lo quando chegarmos na cidade?
     -- Não, e não vou dizer mais uma palavra sobre isso. Vá dormir, e se perguntar mais alguma coisa, eu juro que esqueço que você está grávida e te dou uma surra!
     Ela teve a impressão de que ele falava sério, e achou melhor se calar. Trocou de roupa – já não se importava por ele estar vendo, depois de tudo – e se deitou. Nesse momento, bateram na porta. Bono a abriu, e se deparou com a mulher do dono da estalagem.
     -- Você e sua senhora precisam de alguma coisa?
     -- Não, obrigado. Ela já se deitou.
     -- Senhor – ela falava em voz baixa – o senhor deve tomar cuidado. O cavaleiro que o procura ainda está na cidade.
     -- Como sabe?
     -- Os guardas não o viram ir embora. Ninguém sabe onde está hospedado, ou se está dormindo na rua, mas ele está por aqui. E tome cuidado com sua senhora. Ele sabia que o senhor estaria acompanhado, descreveu você e sua esposa para meu marido.
     -- Ele conhece Glory?
     -- Disse que o senhor estaria com uma garota jovem, pequena. Não sabia exatamente qual era a relação entre vocês. Tive a impressão que deve tê-la visto com você na rua ou algo assim.
     Ele olhou para Glory, que ouvia atentamente a conversa, deitada na cama.
     -- Tome cuidado com ela. - continuou a mulher – Ele parece ser o tipo de homem que a sequestraria para pegar o senhor, e que a mataria na sua frente por vingança.
     Bono sentiu um arrepio desagradável.
     -- Obrigado pelo aviso. Vou ficar atento. De qualquer forma, não devo me demorar muito na cidade.
     -- Sim, senhor. Se precisarem de algo, basta chamar a mim ou meu marido, ou algum dos criados.
     A mulher saiu, e Bono fechou a porta. Estava muito perturbado: esquecera que, depois de todo aquele tempo, a imagem de Glory inevitavelmente acabaria associada à sua.
     -- Você acha que ele vai tentar fazer algo comigo? - disse Glory, assustada.
     -- Talvez tente, mas não vai conseguir chegar nem perto de você. Não se preocupe. - ele lavou o rosto e começou a se despir – Estou cansado, vou me deitar também. Quero acordar cedo amanhã, e falar com o padre o mais rápido possível.
     Ele se deitou ao lado dela e apagou a luminária. Glory o abraçou, por causa do frio. Agora que estava grávida e que iam casar de qualquer jeito, não fazia sentido ficar evitando ele.
     -- Quanto tempo vai levar até chegar às terras do Norte?
     -- No seu estado, deve levar algumas semanas, talvez dois meses. Não mais que isso. Em no máximo dois meses estaremos no reino do rei supremo.
     -- Sabe, quando eu era pequena, minha mãe e minha ama ficavam contando histórias sobre o rei dos reis, e eu ficava imaginando... Eu tinha um sonho meio bobo, eu sonhava que o rei dos reis tinha um filho, o príncipe dos príncipes. Como seria chamado o filho do rei dos reis?
     -- Príncipe herdeiro da Bretanha.
     -- Então, eu sonhava que existia um príncipe herdeiro da Bretanha. Ninguém sabia dizer se ele existia, porque há muitos anos o rei supremo não visitava as nossas terras, mas...
     -- Sim, ele existia.
     -- Sério? Você o viu?
     -- Algumas vezes.
     -- E eram quantos filhos?
     -- Apenas um. Um filho único, herdeiro de todo o império.
     -- E quantos anos ele teria hoje?
     -- Não sei. Dizem que ele morreu.
     -- Poxa... Como ele era?
     -- Não sei. Não parecia ser má pessoa. Talvez fosse melhor do que o pai, talvez pudesse ter sido um bom rei. Ou não. Parecia ter o temperamento típico dos príncipes, e eu nunca conheci um príncipe de boa índole.
     -- Imagino. Mas nos meus sonhos ele era bom, e era lindo... Uma vez, eu vi uma estrela cadente, e eu fiz um pedido. Eu pedi para me casar com o príncipe. Eu sonhava que um dia ele apareceria no meu reino, em um cavalo branco, e ele adentraria o palácio com sua capa e sua espada, e pediria minha mão em casamento. E meu pai aceitaria, e haveria uma grande festa, e depois que nos casássemos, ele me faria subir em seu cavalo, e me levaria para o seu reino, e eu seria a rainha das rainhas, e nós nos amaríamos muito e seríamos felizes para sempre.
     Bono sorriu.
     -- Você sonhava com isso?
     -- Sim. Foi meu sonho de infância. Mas aí eu cresci, e me apaixonei pelo Dave. O Dave nunca seria um príncipe, mas eu gostava de imaginar que, por se casar comigo, ele se tornaria um príncipe. Aí, por muito tempo, eu ficava imaginando o Dave no lugar do príncipe que eu imaginava antes, e sonhava com nós dois vivendo felizes no nosso reino. Mesmo depois que ele foi preso, eu imaginava a gente fugindo juntos, e pensava que qualquer lugar que nós estivéssemos, mesmo que fosse uma casinha simples na cidade, ou até no meio da floresta, seria o nosso reino, e ali nós seriamos o rei e a rainha e seriamos felizes para sempre. - ela suspirou, e Bono percebeu a tristeza naquele suspiro – Mas o meu príncipe se foi para sempre.
     Ela não falara aquilo como uma acusação contra ele; era apenas uma lembrança triste. Ele passou a mão na cabeça dela, em um carinho de consolo, mas sabia que nada era capaz de aliviar sua tristeza.
     -- Sabe... - ela continuou, a voz muito triste – Depois que eu me conformei com a morte do Dave, eu voltei a sonhar com um príncipe. Eu sonhava que o príncipe dos príncipes um dia iria me encontrar, e iria me levar embora com ele, e nós nos casaríamos, e eu poderia reencontrar meu pai. E ele ia ser tão lindo e tão bom e tão gentil, que eu ia passar a gostar dele, e ia conseguir ser feliz mesmo sem o Dave. Aí, quando eu conheci o Larry, eu achei que ele podia ser o meu príncipe. A gente fez planos, eu iria ficar ali com ele, e nós nos casaríamos e seriamos felizes. Nós poderíamos ter nosso próprio reino, ali na floresta. Seriamos o rei e a rainha da floresta. Mas eu engravidei de você – ela estava quase chorando – e perdi meu príncipe.
     -- Eu posso ser seu príncipe. Podemos ter nosso reino, eu faria de você minha rainha das rainhas. Podemos ser felizes juntos.
     -- Não, Bono. - ela deixou de abraçá-lo, e se virou para o outro lado, para que ele não visse que estava chorando – Não podemos.
     -- Eu amo você. Farei de tudo para que seja feliz.
     -- Eu sei. Mas você nunca será um príncipe encantado.
     -- Por quê?
     -- Porque você é aquele personagem que faz as histórias serem tristes.
     Ele não insistiu, e a deixou em paz. Sabia o que ela queria dizer. E concordava com ela. Ele sempre fazia as histórias serem tristes.
* * * * *

     -- Não, Glory. É perigoso.
     -- Perigoso por quê?
     -- Você sabe o porquê. Existe um homem em algum lugar dessa cidade que quer minha morte, e que talvez planeje algo contra você para se vingar de mim. Eu não sei quem ele é, não tenho a menor idéia de qual é a sua força ou o que ele realmente quer. Não vou arriscar ficar perambulando com você por aí.
     -- E acha que vai ser mais seguro se eu ficar sozinha aqui? Se ele resolver invadir esse lugar na sua ausência, e for tão forte quanto você, acha que alguém vai conseguir detê-lo?
     Bono hesitou.
     -- Certo. Provavelmente o lugar mais seguro pra você é ao meu lado. Se arrume, você vai comigo.
     Ela colocou um vestido para neve e uma capa, e saiu com Bono para a rua. Ainda estava cedo, e o céu estava nublado. Fazia muito frio.
     A igreja era uma construção escura e tenebrosa – ou ao menos parecia, debaixo da neve. Eles entraram e foram até o altar, onde o padre se preparava para a missa.
     -- A benção, padre. - disse Bono, fazendo o sinal da cruz.
     -- Deus te abençoe, filho. - Glory repetiu o gesto, e ele a abençoou – O que vocês desejam?
     -- Eu quero que o senhor nos case.
     -- Desejam marcar uma cerimônia?
     -- Na verdade, gostaria que o senhor realizasse o casamento em particular, o mais breve possível. Temos certa pressa.
     Ele olhou atentamente para os dois.
     -- Onde estão os pais da moça?
     -- Eles morreram. Ela está sozinha. Precisamos realizar a cerimônia depressa, porque iremos partir em breve.
     -- Para quando é a criança?
     Glory olhou boquiaberta para o padre. Como ele descobrira?
     -- Daqui a sete meses, no mais tardar oito. - disse Bono – O senhor entende, não temos muito tempo.
     -- Sim, claro. Como não haverão convidados, nem festa, poderemos realizá-lo depois de amanhã, após a primeira missa. Eu fecharei a igreja só para nós.
     -- Sim. Muito obrigado.
     -- Mas vocês devem se confessar antes. Ela – ele apontou para Glory – é jovem demais para ter que se casar às pressas dessa forma.
     -- Fomos precipitados e irresponsáveis e nos arrependemos. - Bono tentava não ficar irritado – Etc, etc.
     -- Sem gracejos, rapaz. A honra de uma donzela é algo de extrema importância. Venham depois de amanhã após a missa, eu ouvirei a confissão de vocês e realizarei a cerimônia.
     Quando voltaram para a estalagem, Glory parecia triste. Bono lhe perguntou algo, e ela respondeu com um suspiro.
     -- O que foi? – ele disse – Você devia estar feliz. Vamos nos casar daqui a dois dias.
     -- Eu sei.
     -- Então, por que essa tristeza?
     -- Por nada.
     -- Você está sentindo alguma coisa? Algum mal-estar, enjôo?
     -- Estou ótima, Bono. – ela se deitou na cama – Não se preocupe comigo.
     Ela ficou naquele estado de inércia durante o dia todo, o que deixou Bono muito preocupado. Ao anoitecer, uma festa começou na cantina da estalagem, em comemoração ao aniversário de alguém dali.
     -- Vamos, Glory. – ele a puxava pelo braço, tentando fazê-la se levantar – Está cheio de gente, estão cantando e dançando. Você vai se divertir.
     -- Não quero me divertir.
     -- Por favor. – ele se ajoelhou e segurou a mão dela – Me corta o coração ver você assim, e eu nem sei o porquê de você estar tão triste. Me deixe tentar te deixar feliz, pelo menos por uma noite.
     Mais para que Bono parasse de importuná-la do que por vontade própria, Glory acabou aceitando descer para a festa. Lá embaixo havia muita gente, e todos pareciam se divertir muito. Havia um rapaz com um instrumento de cordas, tocando uma música, e as pessoas cantavam juntas e dançavam. Bono fez Glory comer e beber um pouco, e a chamou para dançar.
     -- Não sei dançar essa dança. – ela olhava com curiosidade para as pessoas, que dançavam de uma forma muito mais animada do que eram as danças no palácio – Parece totalmente desconexo.
     -- Não, não é. É fácil, eu te ensino.
     -- Mas eu estou grávida.
     -- Dançar não vai fazer mal para o bebê.
     -- Mas pular desse jeito vai me deixar enjoada.
     -- Se começar a se sentir mal, você pára. Vem.
     Ele a levou para o meio do salão e eles começaram a dançar. Ela demorou um pouco para aprender, mas, quando aprendeu, achou muito divertido. Às vezes dançavam todos juntos, às vezes dançavam aos pares. Algumas vezes dançavam dois homens juntos, e Bono não parava de rir – ela tinha a ligeira impressão de que ele tinha ultrapassado seu limite para bebidas. Mas, depois de um tempo, ela também estava rindo sem parar. Aquela dança era muito divertida.
     Eles voltaram para o quarto quando a lua já estava começando a descer. Glory estava exausta, e rindo sem parar. Bono também ria, e Glory tinha que segurá-lo para que ele não tropeçasse em alguma coisa.
     -- Ai, isso foi tão divertido! – ela disse – Os plebeus têm uma maneira muito interessante de se divertir.
     -- Têm sim. – Bono se sentou na cama, com um suspiro de alegria – Muito melhor do que as festas do palácio, não é?
     -- Não digo que é melhor, mas é tão diferente... – ela se sentou ao lado dele – Mas sabe que fiquei com saudades das festas do palácio? Fiquei me lembrando de como era, dos salões iluminados, das pessoas, das roupas, das jóias... A música, e as pessoas dançando aos pares... Eu sonhava que um dia meu príncipe encantado apareceria em um desses bailes, e iria até mim, e me tiraria para dançar, e nós seriamos o par mais bonito do salão. – ela riu – Eu tentei ensinar Dave a dançar tantas vezes, mas ele nunca conseguiu aprender. Dizia que devia ser alguma coisa de sangue, como se os plebeus não pudessem aprender as danças dos nobres, nem os nobres pudessem aprender a dos plebeus.
     Bono ficou olhando para ela durante alguns segundos, e então se levantou. Disse:
     -- Podemos fingir que estamos em um dos bailes do palácio. – ele lhe estendeu a mão – Princesa Glory, me concede a honra dessa dança?
     -- Ah, Bono – ela riu, balançando a cabeça – a dança nesses bailes é muito diferente das danças que você conhece.
     -- Eu sei. Dance comigo.
     -- Eu não vou saber te ensinar.
     -- Não precisa. Por favor – ele a segurou pela mão – dance comigo.
     -- Tá bom – ela lhe deu a mão – mas se você pisar no meu pé, eu te bato.
     Ele a levou para o meio do quarto. Seus movimentos e seus gestos eram impecáveis como os de um nobre, e Glory ficou bastante surpresa. Ele a abraçou pela cintura, e eles começaram a dançar.
     Glory não sabia o que dizer. Bono dançava perfeitamente, de forma suave, leve. A guiava ao mesmo tempo com firmeza e delicadeza, como quem já fizera aquilo milhares de vezes. Ele era tão bom que parecia flutuar, sem tocar o chão. Glory se lembrou de quando dançava com seu pai, que era o melhor dançarino que ela já conhecera. Bono era tão bom quanto ele.
     -- Onde aprendeu a dançar assim?
     -- Danço assim desde que nasci.
     -- Você vivia em um palácio?
     -- Talvez.
     -- Seus pais trabalhavam no palácio?
     -- Talvez.
     -- Bono...
     -- Sim?
     -- Quem é você?
     Bono apenas sorriu, e continuou guiando ela, ao som de uma música imaginária. Glory insistiu:
     -- Me diz quem você é de verdade. De onde você veio.
     -- Depois que nos casarmos, eu te contarei tudo sobre mim. Contarei de onde vim, e quem eu sou, e qual o meu nome, e porque me tornei quem sou hoje. – eles pararam – No dia em que nos casarmos, te contarei todos os meus segredos.
    Eles ficaram se olhando durante algum tempo, e Bono se aproximou. Glory deixou que ele a beijasse, e que a guiasse para a cama, e que a deitasse ali. Ainda demoraria muito para amanhecer.
* * * * *

     Quando Glory acordou, Bono não estava ao seu lado. Devia já ser tarde, embora o sol não fosse visível por causa do céu nublado. Ela se vestiu e desceu até a cantina, onde estava a dona da estalagem.
     -- Com licença – ela disse – a senhora viu meu marido?
     -- Sim, senhora. Ele saiu há pouco a cavalo com mais dois homens, foram ajudar a resgatar três ovelhas que caíram em um pântano. Disse que deviam se demorar um pouco, e que a senhora não devia se preocupar. Pediu para que se alimentasse bem.
     Glory comeu ali mesmo, um pouco preocupada: Bono não devia sair daquele jeito. Ele sabia que era perigoso. E também estava aborrecida por ele ter saído sem falar com ela.
     Algumas horas depois do almoço, ela foi pega por um desejo irresistível de comer morangos. Pediu para a dona do lugar, mas a mulher avisou que eles haviam acabado.
     -- Se quiser, posso mandar um criado ir na feira e comprar mais.
     -- Não precisa, obrigada. Eu mesma vou.
     -- Mas pra que se incomodar, senhora, um criado pode ir e voltar em um instante...
     -- Eu quero ir, quero sair um pouco. Preciso tomar ar.
     -- Mas não é perigoso? Ninguém sabe se o homem que deseja matar seu marido ainda está por aqui.
     -- O tal The Edge? Se ele for como dizem, ficar sem o Bono aqui ou lá fora fará pouca diferença. E não vou me demorar. Volto em no máximo vinte minutos.
     Ela saiu. Havia bastante gente na rua, apesar do frio, e a feira estava movimentada. Ela gostava de ver aquilo, as pessoas passando, as crianças pequenas brincando e correndo pela rua, os animais. Fazia com que não se sentisse tão sozinha.
     No vendedor de morangos ela comprou uma cesta cheia deles, e se sentou para comer em um banco da praça. Estavam deliciosos, mas, conforme comia, a tristeza que sentira no dia anterior após chegar da igreja voltou. Ela começou a se lembrar de coisas – de quando era pequena, de sua vida no palácio, Halley, sua mãe, Dave – e voltou a sentir que aquilo tudo acabara. Nunca mais haveria a menor chance de ter de volta sua vida. A princesa não existia mais; sem castelos, sem vestidos de ouro e diamantes, sem sua dama de companhia, sem servos e criados. Sem os cavaleiros a lhe fazer mesuras. Sem seu gatinho teimando em subir em sua cama. Sem as filhas de nobres indo lhe visitar. Sem meninos em trajes elegantes lhe entregando flores, sem o povo a lhe saudar quando ela passasse pela cidade em sua carruagem.
     Sem Dave.
     Ela sentiu que ia começar a chorar, mas não queria que a vissem assim. Levantou-se e foi andando pela rua coberta de neve, até um lugar mais afastado. Quando fora a igreja vira que ali perto havia um vale muito bonito; decidiu ir até lá, contemplar a paisagem, e tentar esquecer a tristeza.
     Após andar bastante, ela chegou ao vale. Após passar pela última rua e por detrás das casas, e por algumas poucas árvores, andava-se um pouco, e chegava-se a um enorme precipício, de onde se via toda a floresta e os rios lá embaixo. Bono lhe dissera que a muralha que cercava aquela cidade tinha apenas um lado, e agora ela entendera o porquê; de um lado a cidade era protegida pela muralha, do outro era protegida pelo precipício.
     O chão estava coberto de neve, os pés dela chegavam a afundar. Mas ela não se importava com o frio. Ali, não havia ninguém e ninguém a veria; era como se estivesse sozinha no mundo. Ficou olhando a floresta branca lá embaixo, os rios congelados, e se lembrou de Dave. Ela o amava tanto. Já não sentia raiva de Bono, até gostava um pouco dele, mas era Dave quem ela amava e quem sempre amaria. Seu coração não conseguia aceitar que ele se fora para sempre.
     Algum tempo ela passou ali, com lágrimas nos olhos, lembrando-se de cada momento com Dave, de como era bom ver ele, estar com ele. De quando ele a chamava de “senhorita”. De como ele era gentil. Já estava começando a anoitecer, mas ela não conseguia fazer as lágrimas pararem, e não queria voltar para junto das pessoas daquele jeito.
     Então, ela ouviu um barulho atrás de si e se virou. Um homem estava parado ali, a poucos metros, olhando para ela. Glory não podia ver seu rosto, mas ele usava um chapéu e uma capa marrom, e tinha uma espada. Ela se lembrou da descrição que o homem da hospedaria fizera de The Edge; era idêntica ao homem diante dela.
     -- Quem é você?
     O homem não respondeu. Glory começou a sentir medo. Se ele fosse The Edge, e se queria matar Bono, provavelmente iria fazer algo com ela. Ela deu um passo para trás.
     -- Você é The Edge?
     Ele balançou a cabeça, dizendo que sim, e se aproximou. Glory recuou mais.
     -- Não se aproxime!
     -- Cuidado. - o homem falou, pela primeira vez – Aqui é um lugar perigoso.
     Glory parou. Por algum motivo, começou a tremer muito, como se de repente ficasse mil vezes mais frio. Aquela voz era tão familiar. Familiar demais. Ela olhou para a neve sob seus pés.
     -- Quem é você?
     Quando olhou para ele, percebeu que o homem também tremia. Então, lentamente, ele tirou o chapéu e o lenço que cobria seu rosto.
     Era Dave.
     Por um momento, Glory não foi capaz de falar. Deu um grito abafado e tapou a boca com as mãos, sentindo as lágrimas caírem congeladas por seu rosto. Era Dave ali, à sua frente, e também ele tinha lágrimas nos olhos, mas não ousava se aproximar mais, com medo da reação dela.
     -- Dave! - ela afinal gritou, e correu até ele, se jogando em seus braços – Não é possível, você morreu!
     -- Eu morri. - ele disse, a abraçando com força contra si – Mas voltei por você.
     -- Você, você é o The Edge, o cavaleiro que dizem que quer matar Bono...
     -- Eu segui vocês por todas as cidades em que passaram, mas não consegui alcançá-los. Eu jurei que não desistiria de você, oh, Glory...
     Ele a beijou, e Glory tinha vontade de rir e chorar, de gritar, de sair voando ou pular do precipício. Era Dave.
     -- Dave... - ela passou a mão pelo rosto dele – Dave Dave Dave...
     -- Venha. - ele a pegou pela mão – Venha comigo.
     Os dois correram de mãos dadas pela neve, até chegar às casas. Dave a levou por entre as passagens e ruas, até uma estrebaria. A parte de cima estava tomada pela neve, mas havia uma passagem para baixo, um lugar protegido e quente onde guardavam os animais. Em uma das cocheiras vazias havia alguns objetos e roupas, indicando que alguém ficara algum tempo ali.
     -- É aqui que você está ficando?
     -- Sim. Eu não tenho dinheiro. O dono da estrebaria me deixou ficar aqui desde que não arrumasse problemas, e era o melhor lugar para mim. Protegido, seguro, e onde ninguém me acharia.
     Ela o beijou. Ele a pegou no colo e a levou para o lugar em que dormia, em meio a montes de feno e palha. A deitou ali, e ali eles ficaram por muito tempo, duas pessoas apaixonadas e desesperadas para terem uma à outra.
* * * * *

     Glory se espreguiçou e se acomodou melhor, abraçada a David, apoiando a cabeça em seu peito. Dave sorriu e beijou sua cabeça, sempre a mantendo bem perto de si, como se temesse que ela evaporasse.
     -- Eu te amo. - ela murmurou.
     -- Eu vou te amar a minha vida inteira.
     -- Eu achei que nunca mais iria te ver...
     -- Não pense nisso. Já sofremos muito, e estamos juntos agora. Só isso importa.
     -- Eu queria ter te dito tanta coisa, Dave... Naquele dia, quando aconteceu aquilo tudo... Eu queria te dizer tanta coisa...
     -- Eu também tinha muito a te dizer. Queria ter perguntado como você se sentia depois da nossa primeira noite juntos, se você estava bem, se eu não tinha te machucado. Eu estava tão inseguro, e tão feliz.
     -- Eu também estava tão feliz... E por minha culpa, tudo...
     -- Não foi sua culpa. - ele olhou em seus olhos – Nunca, em nenhum momento. Você não teve culpa de nada. Eu queria ter dito isso antes de morrer, mas não consegui. Só existia um culpado, e ele era Bono. Eu morri angustiado por não poder te dizer isso.
     -- Mas você não morreu.
     -- Sim, eu morri.
     -- Mas...
     -- Isso não tem importância. - ele a beijou – Estou tão feliz por estar de novo com você.
     -- Vamos ficar juntos para sempre?
     -- Vamos.
     Ela sorriu, mas de repente ficou séria e disse:
     -- Oh, não! - ela se sentou e pôs as mãos na cabeça – Não não não!
     -- O que foi?
     -- Não podemos ficar juntos. - ela começou a chorar – Não, meu Deus... Não podemos...
     -- Por quê? - ele se sentou também e a abraçou – O que houve?
     -- O Bono... Ele não vai permitir, ele...
     -- Ele não vai mais nos atrapalhar, não se preocupe. - ele beijou o rosto dela – Eu vou cuidar dele. Ele nunca mais fará mal a ninguém.
     -- Não é isso. - ela baixou a cabeça – Dave... Nesse tempo, enquanto estive com o Bono, ele... Aconteceram coisas... As pessoas acham que nós somos casados, e ele...
     -- Não importa o que ele tenha te obrigado a fazer.
     -- Mas muitas vezes ele não me obrigou... Eu me sentia tão sozinha, e apesar de tudo, às vezes ele parecia outra pessoa... Eu...
     -- Glory – ele a fez olhar para ele – não importa o que você tenha feito que possa achar errado. Eu não vou te amar menos por causa disso, nem vou desistir de você ou te culpar por ter se deitado com o Bono, tenha sido à força ou não. Você é só uma menina, e estava sozinha. Eu entendo. E perdôo você, se você quiser isso, mas realmente não há nada para perdoar.
     -- Você é tão bonzinho... - ela o abraçou – Mas não foi só isso.
     -- O que é, então? Qual é o problema?
     -- Você não vai me perdoar.
     -- O que quer que seja, eu perdôo. Diga.
     -- Eu estou grávida.
     Dessa vez, Dave não disse nada. Afastou-se ligeiramente, olhando para ela, e então uma expressão de tristeza e desespero tomou seu rosto.
     -- De quanto tempo?
     -- Um mês e meio.
     Ele pôs as mãos na cabeça.
     -- Então, é dele... Daquele desgraçado...
     -- Quando descobriu, ele ficou muito feliz... Quer que eu me case com ele, nós marcamos com o padre uma cerimônia amanhã cedo, em segredo.
     -- Ainda bem que te encontrei antes, então. Se vocês se casassem, a lei estaria do lado dele.
     -- Mas você vai querer ficar comigo mesmo eu tendo um filho de outro homem?
     Dave pensou um pouco antes de responder.
     -- Ainda teremos muito tempo para decidir o que fazer. Quando essa criança nascer, decidiremos o que fazer com ela.
     -- Como assim, o que fazer? Você não pensa em matar ela, não é?
     -- Claro que não, seria imperdoável. Mas podemos entregá-la para algum casal que não consiga ter filhos, existem muitos assim.
     -- Entregá-la? Você diz, abandonar meu filho? Eu não posso fazer isso!
     -- É um filho dele, daquele monstro! Você o quer com você, te lembrando a toda hora as coisas que ele fazia com você?
     -- É meu filho! Não importa quem é o pai. Se você não o quiser, eu ficarei com ele.
     Por alguns segundos os dois ficaram se olhando; e então, Dave a agarrou e a beijou, a jogando novamente sobre o monte de feno, com tanto desespero que Glory se assustou e deu um grito:
     -- Dave! O que está fazendo?
     -- Quero tirar de você qualquer marca que ele tenha deixado. - ele a beijava – Quero que seu corpo esqueça o corpo dele.
     -- Mas ainda não decidimos sobre o bebê...
     -- Faremos como você quiser. Se quiser que eu crie essa criança, eu a criarei. Não vou deixar nada ficar entre nós, nada.
     Só depois de fazer aquilo de novo mais duas vezes, Dave se acalmou. Glory estava ligeiramente assustada.
     -- Eu não sabia que os homens podiam fazer isso tantas vezes.
     -- Homens normais não podem.
     -- Mas você não é um homem normal?
     -- Não. Sou amaldiçoado. Eu morri e fui trago de volta.
     -- Como assim?
     -- Antes de falarmos de mim, quero que fale de você. Quero que me conte tudo o que aconteceu, desde que ele te levou embora e me deixou morrer. Conte tudo.
     -- Mas... Há tantas coisas ruins...
     -- Não importa. Conte.
     Glory contou tudo, inclusive do que fizera para conquistar a confiança de Bono, e sobre seu amor impossível pelo jovem Larry. Mas Dave não se importou com nada disso.
     -- Você achava que eu estava morto. Tinha todo o direito de continuar vivendo.
     -- No início, eu queria morrer, tentei me matar... Mas Bono disse que você não gostaria que eu morresse, nem que ficasse o resto da vida chorando sua morte.
     -- E ele estava certo. Eu sempre quis que você fosse feliz.
     -- Você me perdoa?
     -- Não há nada para perdoar. Você não cometeu nenhum erro, nem fez nada de mau.
     -- Eu nunca deixei de te amar, nem amei alguém mais do que amo você.
     -- Eu sei. E eu também nunca deixei de te amar.
     -- Me conte o que aconteceu. Como você sobreviveu?
     -- Eu não sobrevivi.
     -- Como assim? Não entendo.
     -- A última coisa que vi foi Bono indo embora com você. Lembro do seu rosto, de como você estava chorando. Eu comecei a perder os sentidos, mas ainda podia pensar. E me senti culpado pelas coisas que tinha dito a você em relação à sua promessa de se deitar com ele. Eu sabia que você se sentiria culpada, mas não era justo, porque a culpa não era sua, era só dele. E eu senti muito medo, e muita raiva. Pensar em tudo o que ele faria com você, em como te machucaria, e você estaria sozinha no mundo, sem ninguém que te amasse. E eu nunca mais teria a chance de te dizer o que eu sentia, de te dizer que te amava e que estava tudo bem. Eu achei isso tão injusto. E eu chorei de ódio dele, de raiva, de medo. E foi assim que eu morri.
     -- Mas...
     -- Eu morri. É estranho morrer. Foi como se eu estivesse dormindo. Sei que lembro de algo, coisas que acontecem depois, mas não consigo trazer de volta essas lembranças. E nem sei se quero.
     -- Mas se você morreu, como está aqui, agora? Ou você é um fantasma?
     -- Fantasmas não poderiam te tocar. - ele sorriu e passou a mão no rosto dela – Nem te beijar. Estou vivo agora. Eu não sei quantas horas haviam se passado desde a minha morte, mas um grupo de feiticeiras passou pela floresta. Elas estavam longe de mim, mas depois me disseram que minha angústia tinha se espalhado pela floresta inteira, elas podiam sentir meu desespero, ouvir os gritos de dor da minha alma. A floresta ficou amaldiçoada. Disseram que em alguns lugares era possível ver o meu espírito, e eu ficava chamando o seu nome. Elas sentiram pena daquela alma tão atormentada, e começaram a seguir a dor, até encontrarem meu corpo. Então, elas me banharam em uma poção que conservaria meu corpo, e me levaram com elas até o coração da floresta, onde vivem as bruxas.
     Aquela história estava deixando Glory com medo.
     -- Credo, Dave, que coisa estranha... Você estava morto mesmo? Elas viram seu fantasma?
     -- Sim. Quando levaram meu corpo, minha alma ficou na floresta, presa. Para trazê-la de volta foi difícil, foi preciso rituais complexos, dias e dias de magias muito poderosas, realizadas por várias feiticeiras e feiticeiros. Quando finalmente conseguiram trazer minha alma, eles ainda tinham que arrumar um jeito de colocá-la de volta no corpo. E isso antes que fosse muito tarde, pois não podiam me manter intacto para sempre.
     -- Mas como sabiam que sua alma já estava ali?
     -- Eles podiam vê-la. Eu não me lembro, mas disseram que eu ficava o tempo todo ao lado do meu corpo, ou andando ao lado das feiticeiras, observando. Um feiticeiro conseguiu se comunicar comigo, e disso eu me lembro. Me disse o que estavam fazendo, perguntou se eu queria ser ressuscitado. Eu disse que sim, contei minha história para eles. Me explicaram quais seriam as consequências, e eu aceitei. Então, fizeram os rituais, e eu ressuscitei.
     -- Mas é tão fácil assim?
     -- Não é nem um pouco fácil. Envolve rituais que duram dias, exige poderes absurdos. E eles não podem tirar uma alma sem colocar outra no lugar. Tiveram que dar uma vida no lugar da minha.
     -- Como assim? Mataram alguém?
     -- Sim, um ritual de sacrifício. Pegaram um homem que tinha sido condenado por matar a esposa, e o sacrificaram durante o ritual. E eu ressuscitei.
     -- Então, agora, você está vivo mesmo? Como se nunca tivesse acontecido nada?
     -- Não. Estou vivo, mas não voltei igual à antes. Primeiro, minha alma não me pertence. Tive que fazer um acordo para voltar, e a vendi. Além disso, na lua cheia os demônios tentam me levar de volta. A única forma de resistir é pelo amor ou pelo sangue. Eu tenho que me deitar com uma mulher, ou matar alguém.
     -- E... E o que você tem feito?
     -- Tenho matado pessoas que merecem morrer. Criminosos, chantagistas, pecadores. Torna meu crime um pouco menor, pelo menos para mim. - ele balançou a cabeça, incomodado com as lembranças do que fora obrigado a fazer, e ao que estava preso para sempre – Enfim, eu escolhi isso. A outra opção seria ter que beber o sangue de virgens toda lua cheia, e isso eu jamais faria.
     -- Você diz, como um vampiro?
     -- Exatamente. Durante o ritual, me perguntaram o que eu preferia, e eu escolhi voltar desse jeito e não como um vampiro. Mas, depois que me ressuscitaram, eu ainda não estava bom. Estava muito fraco, minha energia vital estava no limite. Eu poderia morrer a qualquer momento. Por isso, o ritual foi feito pouco antes da lua cheia. Assim, na lua cheia eu participei de outro ritual, para recuperar completamente meu corpo e minha alma.
     Ela se ergueu um pouco, olhando para ele.
     -- Que... Que ritual?
     -- Um ritual da tradição da terra. É realizado na lua cheia, e faz com que a aura de uma pessoa seja curada, curando assim o corpo e o espírito.
     -- O hierogamos!?
     -- Você conhece?
     -- Larry me falou dele, e Bono também. - ela se levantou – Você esteve com outra mulher?
     -- Glory...
     -- Como pôde? Como pôde se deitar com outra mulher?
     -- Era um ritual, Glory, e era a única forma. Você queria que eu estivesse morto?
     -- Claro que não! Mas devia haver outro jeito...
     -- Não havia. Eu perguntei. Você acha que eu queria isso? Acha que fiquei feliz por tocar em outra mulher, apesar de amar tanto você e saber o que você devia estar passando nas mãos de outro? É claro que não, foi muito difícil, foi horrível, mas eu tinha que fazer se queria salvar você. E quem foi a Deusa pra mim foi uma feiticeira muito experiente da tradição da Lua, ela foi muito gentil. E graças a isso eu me recuperei completamente. Quando eu renasci, as feiticeiras me deram o nome de The Edge, e me presentearam com uma espada mágica forjada por elas. Era muito útil ter um novo nome, pois David Evans estava sendo procurado. Dessa forma, assim que fiquei bom agradeci o que eles haviam feito por mim e parti, até encontrar o rastro de Bono. Mas por mais rápido que eu fosse, nunca conseguia alcançar vocês. Durante o caminho, tive que travar algumas lutas, conheci muitas pessoas, fiz alguns sacrifícios nas noites de lua cheia. Na penúltima lua cheia, eu estava no meio de uma floresta, e havia comigo apenas uma bruxa, uma menina ainda. Eu tinha duas opções: matá-la, ou me deitar com ela. E não queria fazer nenhuma das duas. Então, nós cavalgamos o mais rápido possível, tentando chegar à cidade, mas quando a lua começou a descer, os demônios apareceram, e começaram a tirar minha alma de mim. - ele estremeceu – É horrível, a dor, o frio, tudo. Eu caí do cavalo, pensei que fosse morrer. A garota tentou de tudo, mas não havia outro jeito. Ela se entregou a mim. Eu sequer me lembro, estava semi-morto, nem sei como ela conseguiu. Ela temeu que fosse muito tarde, mas como a lua ainda estava no céu quando aconteceu, então eu cumpri o contrato. Pela manhã, eu já estava bem.
     -- Então, você se deitou com duas mulheres além de mim...
     -- E você se deitou com Bono, às vezes por vontade própria, e eu não a julguei por isso. Entenda, Glory. Eu não tinha outra alternativa.
     -- Eu entendo. Mas fico com ciúmes.
     -- Tudo o que aconteceu antes de hoje não importa mais. - ele a beijou – Estamos juntos de novo, e vamos ficar juntos para sempre.
     -- Nós vamos para onde?
     -- Vamos para as terras do Sul. Lá existem muitos lugares bons para se viver, e eles aceitam bem os estrangeiros.
     -- Quando nós vamos? Temos que ser rápidos, ou Bono vai acabar nos encontrando.
     -- Não se preocupe. Bono não vai mais ser um problema. Eu vou cuidar dele amanhã.
     -- Como assim, “cuidar dele”? Não vamos fugir amanhã?
     -- Não antes que eu o mate.
     -- Você vai matá-lo?
     -- Claro.
     -- M-mas... Dave... Pra que? Já estamos juntos, podemos fugir pela manhã e ir para longe, ele nunca vai nos encontrar.
     -- Não é questão de ele nos encontrar ou não. Não estou nem um pouco preocupado com o perigo que ele possa oferecer. Eu vou matá-lo por vingança. Ele vai pagar com sangue tudo o que fez conosco.
     -- Mas se fizer isso, vai estar sendo igual a ele! Vai ser um assassino!
     -- Que seja. Não vou deixar ele viver impune. Ele vai pagar muito caro pelos crimes que cometeu.
* * * * *

     Bono voltou para a estalagem pouco antes de anoitecer. Havia muita gente na cantina, e ele passou direto, indo para o quarto. Estava cansado, mas satisfeito: ganhara dez moedas de prata por ter ajudado a resgatar os animais que haviam ficado presos no charco, e Glory ficaria feliz em saber que ele tinha outras formas de ganhar dinheiro, que não envolviam matar pessoas. Embora o dinheiro ganho fosse bem menos, era um serviço sem muitos riscos e moralmente aceito.
     Quando chegou no quarto, ele não encontrou Glory. Confuso, desceu novamente para a cantina, e foi até o balcão, onde a mulher do dono se desvirava para atender a todos.
     -- Com licença. - ele disse – A senhora sabe onde está minha mulher? Ela não está no quarto.
     A mulher pensou um pouco, e então se lembrou.
     -- Ora, ela disse que iria até a feira comprar morangos e que voltaria em poucos minutos... Mas é verdade, eu não a vi voltar.
     -- Mas a feira já fechou.
     -- Sim, ela saiu há umas duas horas.
     -- O que? E ninguém por aqui a viu depois disso?
     -- Não, ela não esteve aqui.
     Bono correu de volta para o quarto e pegou sua espada. Como Glory pudera ser tão tola? Sair daquela forma, sabendo que havia alguém na cidade que procurava por eles... Se algo tivesse acontecido...
     Ele foi até o lugar onde ficava a feira. Não havia quase ninguém por ali àquela hora: já estava escuro, e fazia muito frio. Ele andou pelas ruas, procurando algum sinal de Glory, qualquer sinal, mas não havia nada. Ele viu um homem que limpava a frente da casa, e foi até ele, com um fio de esperança.
     -- Senhor – ele disse, e o homem se voltou para ele – o senhor por acaso viu uma menina andando sozinha por essas ruas?
     -- Menina? - ele pensou um pouco – Não, não que me lembre.
     -- Tem certeza? É uma garota pequena, catorze anos... Ela saiu para comprar morangos na feira, e isso foi há horas atrás.
     -- Não, sinto muito. Eu não a vi.
     -- Certo. - Bono estava desolado – Obrigado.
     -- Ei, moço. - disse um garoto, correndo até ele – Eu acho que vi essa moça.
     -- Viu? Onde?
     -- Eu estava brincando na praça, ela estava sentada em um banco, comendo morangos. Usava uma capa vermelha com capuz.
     -- Sim, é ela! Você viu para aonde ela foi?
     -- Eu a vi indo até o precipício. Eu e meus amigos ficamos olhando porque achamos ela muito bonita. Mas achamos estranho ela ir até lá, porque é muito isolado. Meu pai diz que é perigoso.
     -- Sim, é. Muito obrigado, garoto. - ele entregou três moedas de bronze ao menino.
     -- De nada! - o menino disse, feliz pelas moedas, e saiu correndo.
     Cada vez mais preocupado, Bono foi andando em direção aos limites da cidade. O que Glory fora fazer ali? Era um lugar muito perigoso. E naquele frio ela iria congelar. Ele não sabia o que seria pior: encontrá-la congelada, ou não encontrar nenhum sinal dela.
     Por causa da neve, seria muito arriscado se aproximar demais do penhasco. Ele foi andando, seguindo o precipício, tentando encontrar algum indício de que alguém estivera ali, mas não havia nada. Ele parou, cansado, olhando para o vale ao longe.
     E se Glory tivesse se jogado dali? Se tivesse preferido morrer do que ficar presa para sempre ao seu lado? Bono começou a sentir algo que havia séculos não sentia, um sentimento ruim que as pessoas comumente chamavam de medo. Se ela tivesse se matado... Mas ela estava tão feliz. Ou não? Ele se lembrou de como ela parecera triste no dia anterior, após eles voltarem da igreja. Depois ela ficara mais alegre, e tinham tido uma noite muito agradável juntos, mas talvez ela só estivesse fingindo. Talvez ela estivesse ficando cada vez mais triste. Talvez a saudade de David tivesse chegado a um ponto em que se tornara insuportável para ela continuar vivendo.
     Por acaso ele olhou para o lado, e viu marcas no chão parecidas com pegadas. Ele foi até lá e se abaixou, examinando as marcas: estavam muito apagadas por causa da neve que caía, era difícil ter certeza. Mas ele quis acreditar que eram pegadas, e que eram de Glory. As seguiu até a rua, mas ali havia milhares de outras pegadas, era impossível seguir o rastro. Ele se sentou na calçada, cansado. Já não sabia mais o que tinha acontecido.
     Então, a janela da casa em frente à qual ele estava sentado se abriu, e uma menina de uns doze anos apareceu, sacudindo uma toalha. Ela o viu ali, e disse, curiosa:
     -- O que está fazendo aí? Vai congelar.
     -- Estou procurando minha esposa. - ele disse – Ela saiu hoje à tarde para comprar morangos e desapareceu.
     -- Se ela saiu para comprar morangos, devia procurá-la perto da feira.
     -- Já estive lá. Uma criança me disse que a viu ir até a beira do penhasco, por isso vim pra cá. Acho que vi suas pegadas vindo até aqui, mas não sei para aonde ela foi.
     -- Uma menina na beira do penhasco? Ela estava usando uma capa vermelha?
     -- Sim! - ele se levantou – Você a viu?
     -- Sim, eu estava varrendo a calçada. Achei estranho porque ela estava parada ali – ela apontou para um lugar entre as árvores – sozinha, e parecia estar chorando.
     -- E você viu para aonde ela foi?
     -- Eu entrei em casa, e quando saí de novo, eu a vi passando pela rua. Tinha um homem com ela. Eles foram para lá. - ela apontou uma das ruas.
     -- Um... Homem? Como era esse homem?
     -- Eu não sei, passaram muito depressa. Ele era alto, usava uma capa marrom e um chapéu. Tinha uma espada, devia ser um cavaleiro. Parecia ser um forasteiro que apareceu aqui há alguns dias, mas não tenho certeza.
     -- Sabe o nome desse forasteiro?
     -- Não me lembro... Mas não era um nome, era como se fosse um pseudônimo.
     -- The Edge?
     -- Isso! Isso, exatamente. Era The Edge.
     -- Obrigado.
     Ele saiu correndo na direção que ela indicara. Os pensamentos voavam em sua cabeça, ele sentia cada vez mais medo. The Edge vira Glory, ele a pegara, estava com ela. Não sabia o que ele planejava, o que faria com a menina. Podia machucá-la, podia a usar como isca para atraí-lo, podia obrigá-la a se deitar com ele...
     -- Glory! - ele chamava, enquanto andava pelas ruas, procurando algum sinal – Glory!
     Por muito tempo ele continuou procurando, até não ter mais forças. Mal podia andar, suas pernas estavam congeladas. E já andara a cidade inteira. Não podia invadir cada casa a procura da garota. E sabia que The Edge acabaria aparecendo, com Glory. Teria que esperar até que ele se mostrasse.
     Frustrado, ele voltou para a estalagem. Subiu para o seu quarto e pediu água quente e cobertores: estava congelando de verdade. Demorou um pouco para que recuperasse a circulação nas pernas e nas mãos.
     Pouco depois de conseguir se aquecer, alguém bateu em sua porta. Ele foi abrir, e se deparou com o dono do lugar.
     -- Boa noite. - ele disse – Minha esposa disse o que aconteceu. Conseguiu encontrar sua senhora?
     -- Não. - ele tentava não demonstrar o quanto estava abalado – The Edge a raptou. Testemunhas o viram com ela.
     -- Oh, Deus! - o homem estava realmente preocupado – O senhor quer ajuda para tentar encontrá-la? Posso chamar os homens, eles podem avisar aos guardas...
     -- Não, obrigado. Sou eu quem ele quer. Sei que ele só a pegou para ter algo que usar contra mim. E em breve ele irá aparecer.
     -- E se ele fizer algo contra a menina?
     -- O que quer que ele faça, vou fazê-lo pagar muito caro.
* * * * *

     Naquela noite, Bono praticamente não dormiu. Teve pesadelos horríveis, onde um vulto desconhecido raptava Glory e a matava na sua frente, das formas mais horríveis possíveis. Sonhou que levava um bebê no colo, mas de repente o bebê estava morto, e o bebê era Glory. Sonhou que entrava em um poço escuro e via Glory ali, com outro homem, sendo obrigada a fazer coisas que ele mesmo já a obrigara algumas vezes.
     Foi um alívio acordar, na manhã seguinte. Já estava claro, e ele comeu apenas o suficiente para não ficar fraco. Quando estava prestes a sair, um garoto entrou na cantina, correndo, e disse:
     -- Quem é Bono?
     -- Sou eu. - disse Bono, indo até ele – O que quer?
     -- Trago um recado para o senhor. – ele lhe entregou um papel.
     -- De quem?
     -- Não sei. Era um cavaleiro.
     O menino saiu correndo. Bono abriu o papel e leu: “Estarei esperando nos limites da floresta, no lado leste. Estou com Glory”. Abaixo, estava assinado The Edge.
* * * * *

      Bono chegou ao local indicado, e olhou em volta, procurando algum sinal de perigo. Sabia que podia ser uma armadilha. Desembainhou sua espada, e ficou alerta a qualquer som ou movimento.
     De repente, um som de passos, e Bono se voltou, pronto para atacar. Mas não era nenhum inimigo; era Glory, que vinha andando em sua direção, lentamente.
     -- Glory... – ele guardou a espada e correu até ela – Você está bem? Ele não te machucou?
     Ele tentou abraçá-la, mas Glory deu um passo para trás, e balançou a cabeça. Parecia triste, confusa.
     -- Não me toque.
     -- O que?
     -- Eu sinto muito.
     -- Glory, o que está havendo? Escute, o que quer que esse homem tenha feito, não foi culpa sua. Eu fiquei desesperado ontem, te procurei em todos os lugares, mas não pude te salvar... Sinto muito, quando você mais precisou de mim, eu...
     -- Ela não precisava ser salva. – veio uma voz atrás dele – Muito menos por você.
     Bono se virou, surpreso. Ali, à sua frente, usando uma longa capa marrom e um chapéu, e trazendo nas mãos uma espada, estava David Evans.
     -- Você!? Mas você está morto! Tinha que estar morto, ninguém podia sobreviver àquilo!
     -- Eu morri, Bono. Você fez um ótimo trabalho. – ele sorriu – Mas as senhoras da floresta também fizeram.
     -- O ritual da ressurreição... – Bono estava pálido – Você está amaldiçoado...
     -- Venho procurando vocês já faz algum tempo. Achei que tinha perdido sua pista, mas resolvi ficar na cidade mais um pouco, e aguardar. – ele sorriu e olhou para Glory – E valeu a pena.
     Glory sorriu de volta. Bono estava sentindo ainda mais medo do que na noite anterior.
     -- Não! Não, você não vai tê-la de volta! Ela está grávida, cavaleiro, está carregando um filho meu! Mesmo que esteja com você, nunca vai ser completamente sua! Vai viver com a sombra de outro homem sobre você!
     -- Isso não importará, se esse homem estiver morto. E você será morto aqui, hoje.
     -- Glory... – ele olhou para Glory – Você não vai querer ficar com ele, vai? Depois de tudo o que passamos, tudo o que vivemos... Você vai ter um filho meu, íamos nos casar...
     -- Eu só estava com você porque achei que o Dave estava morto. – ela baixou a cabeça – E eu nunca esqueci que foi você quem o matou.
     -- Glory...
     -- Eu gosto de você, mas é o Dave quem eu amo. – ela o olhou – Sinto muito.
     Ele a olhou, desolado, e puxou sua espada. Olhou para Dave; no lugar do medo, o que sentia agora era raiva.
     -- Eu não vou entregá-la para você. - disse Bono, se colocando em posição de ataque – Eu já te matei uma vez, posso te matar de novo.
     Dave foi o primeiro a atacar. Glory fechou os olhos, mas o som de metal contra metal e dos corpos se movendo em luta era tão agoniante quanto a visão da batalha em si, e ela voltou a abrí-los. Os dois lutavam em igualdade; ela nunca vira ninguém enfrentar Bono daquela forma.
     -- Você é um bom guerreiro, Evans – Bono quase acertou o braço de Dave com um golpe, e este quase escorregou ao desviar – mas um cavaleiro de bom coração sempre está em desvantagem numa luta.
     -- Eu perdi meu coração e minha alma no momento em que fui trago de volta, Bono. E meu nome – ele avançou – é The Edge.
     O golpe foi direcionado para o pescoço de Bono, e esse se protegeu com a espada. Os dois ficaram em uma luta de forças, uma espada tentando derrubar a outra.
     -- Não pode me vencer. - disse Bono, o suor escorrendo no rosto, pelo esforço em manter a espada firme – Ninguém pode.
     -- Você não é invencível. E, se era o mais forte até então, isso muda agora.
     Bono o empurrou com esforço e os dois pularam para trás, com o choque das espadas fazendo o ar ao redor vibrar. Então, voltaram a atacar; as duas espadas bateram novamente, com estrondo, e a espada de Bono partiu ao meio, sendo atirada longe.
     -- Não! - Bono gritou – Não é possível!
     -- Isso acabou pra você.
     Edge deu o golpe, mirando o coração de Bono. Glory deu um grito e fechou os olhos. Mas não ouviu o som – já familiar – de um corpo sendo atravessado pela espada. Quando abriu os olhos, se deparou com uma cena tecnicamente impossível: Bono ajoelhado, segurando a espada com as próprias mãos, que sangravam abundantemente. Edge tentou puxar a espada, mas Bono virou as mãos e deu um chute no braço do outro, conseguindo atirar a espada longe.
     -- Incrível. - Dave estava impressionado – Começo a achar que as lendas que te acompanham são verdadeiras.
     -- São muito mais do que lendas. - ele puxou uma longa adaga que trazia no cinto – São fatos.
     Dave só teve tempo de puxar ele próprio sua adaga e bloquear o golpe de Bono. Eles entraram naquela luta de facas, ao mesmo tempo em que tentavam alcançar a espada de Edge. Mas, antes de chegarem ao objetivo, Edge deu um golpe que acertou o ombro de Bono, e este caiu com um grito de dor. Edge se jogou sobre ele, tirando a adaga de suas mãos, e se preparou para lhe cortar a garganta.
     -- Não! - Glory gritou, sem conseguir suportar mais – Dave, não! Por favor, não faça isso!
     -- Não olhe, Glory. - ele disse, sem tirar os olhos de Bono, que estava imobilizado – E tampe os ouvidos.
     -- Não! - ela correu até ele e segurou seu braço – Por favor, Dave, podemos ir embora e deixar ele aqui, você não tem que matar ele...
     -- Glory, afaste-se!
     Mas era tarde demais: Bono escapou das mãos de Edge e o empurrou com um chute, ao mesmo tempo que pegava a faca que caíra no chão. Foi tão rápido que Glory não entendeu o que estava acontecendo. Só quando Bono a segurou firmemente contra si e encostou a faca em seu pescoço, ela percebeu o que acontecera.
     -- Não se aproxime. - Bono disse – Ou vai ver ela sangrar até a morte.
     -- Você não faria isso. - Dave parecia desesperado, e olhava de Glory para Bono – Não mataria seu próprio filho.
     -- Mesmo que não a mate, posso causar tanta dor a ela que vai preferir que ela tivesse morrido. E, entre vê-la morta ou deixar que seja sua, eu prefiro a primeira opção.
     -- Se a machucar, eu te mato da forma mais cruel que alguém é capaz de conceber.
     -- Não me interessa viver sem ela, “The Edge”. Vamos nós dois, querida. - ele passou os lábios pelo rosto de Glory, enquanto falava em um tom sedutor e assassino – Vamos morrer juntos.
     -- D-Dave... - Glory murmurou, com lágrimas nos olhos.
     -- Não a toque! - Dave gritou, e avançou para Bono, mas este apertou a adaga contra o pescoço de Glory, fazendo a menina gritar, enquanto um fio de sangue escorria pela pele. Dave parou.
     -- Não se aproxime. - disse Bono – Ponha suas armas no chão.
     Edge hesitou, mas acabou obedecendo. Baixou suas armas, e levantou as mãos, num sinal de rendição. Bono parecia satisfeito.
     -- Não se aproxime. Se der um passo, vai se arrepender pelo resto de seus dias.
     Ao ter certeza de que Edge não reagiria, Bono chamou seu cavalo e fez Glory subir nele. Ele subiu em seguida, e os dois partiram em direção à cidade.
* * * * *

     O cavalo parou em frente à igreja e Bono saltou, levando Glory para baixo com ele. A garota tentou fugir, mas ele a carregou pelos degraus, até estarem em frente às portas.
     -- Me solta! – ela tentava bater nele ou se soltar – Como pôde fazer isso? Como pôde me ameaçar assim?
     -- Você é minha! – ele parecia fora de si – Se não ficar comigo, não vai ficar com ninguém! Eu mato ele, mato quem quer que for, mas você vai ser minha!
     -- Eu nunca fui nem nunca vou ser sua!
     -- Cale-se!
     Ele deu um tapa no rosto de Glory, e a menina começou a chorar. Nesse momento Edge apareceu, se aproximando rapidamente, a cavalo. Glory gritou:
     -- Dave!
     -- Glory! – ele pulou do cavalo e começou a subir as escadas – Solte ela!
     Sem pressa, Bono puxou Glory para dentro da igreja. Os dois pararam alguns passos para dentro, e ele ficou assistindo Edge correr até eles. Mas, embora estivesse tão perto, Dave não se aproximou mais; ficou parado na porta, do lado de fora, olhando desesperado para Glory e Bono.
     -- Dave! – Glory estendeu a mão, e Bono não a impediu, mas Dave não fez nenhum gesto em sua direção.
     -- Por que não vem pegar sua amada, The Edge? – disse Bono, sorrindo maldosamente – Oh, é mesmo. Você não pode entrar em igrejas.
     -- O que? – disse Glory, sem entender – Mas... Dave...
     -- A alma dele agora pertence ao demônio. Eu lembrei disso quando percebi que você evitava tocar na cruz que carrego no pescoço. Os sinais de Deus são insuportáveis para você, não é? Veja, Glory, você jamais poderá se casar com ele, jamais serão abençoados.
     -- Isso não importa! – Glory tentava se soltar de Bono e correr para Dave – Eu o amo, e vou ficar com ele de qualquer jeito!
     -- É bom que cuide bem do meu filho, então – ele olhava para Edge com um ar de superioridade – porque ele jamais poderá te dar bons filhos.
     -- Não é verdade! – Edge disse – Ainda posso ter filhos, quantos eu quiser!
     -- “Os filhos que nascerem de sua carne serão amaldiçoados, e os filhos de seus filhos, e assim o será até a décima segunda geração”. Não é isso que diz o ritual? Esse é um dos acordos que tem que fazer. Deve entregar seus descendentes ao demônio, e eles estarão condenados a uma existência amaldiçoada. E quem vai saber o que podem ser? Talvez vampiros, talvez loucos, até os chamados lobisomens. Podem ter deficiências físicas, podem se ver obrigados a fazer sacrifícios nas noites de lua cheia. Imagino que esse tenha sido o castigo que escolheu para você, se deitar com uma mulher ou matar alguém toda lua cheia. Mas será que seus filhos gostariam de ser condenados a isso? Você obrigaria Glory a viver uma existência como essa ao seu lado?
     Dave ainda não pensara sobre isso, sobre o que aconteceria aos seus futuros herdeiros, e não soube o que responder. Glory, por sua vez, estava surpresa; não iria desistir de Dave, mas lhe assustava saber que, se tivesse filhos dele, estes seriam amaldiçoados.
     -- Não pode se esconder aí pra sempre. – disse Dave, resolvendo não ceder às provocações de Bono – Uma hora terá que sair.
     -- Não pretendo me esconder aqui, The Edge. Apenas quero ganhar algum tempo. - ele arrastou Glory consigo, enquanto adentrava a igreja – Eu sei como te derrotar.
     Ele foi até o altar e pegou um frasco, em seguida o enchendo com a água de batismo que estava na bacia. Em seguida pegou um crucifixo e o prendeu no cinto. Nesse momento, Glory conseguiu escapar e saiu correndo da igreja, indo ao encontro de Dave. Bono não tentou segurá-la; ao invés disso, caminhou lentamente em direção às portas.
     -- Dave! - Glory pulou sobre ele – Vamos embora, vamos fugir, por favor...
     -- Não vou fugir, Glory. - Dave a abraçou, e olhou para Bono, que ia até eles – Vou ficar e lutar. Vou defender minha honra.
     -- Mas por que você se importa tanto com essa maldita honra? Você já vendeu a alma!
     Bono já saíra da igreja, e se pôs em frente aos dois. Dave afastou Glory, e disse:
     -- Vá para as escadas, Glory. O que quer que aconteça, não se aproxime.
     -- Não! Vocês não precisam lutar assim! Eu não quero que nenhum dos dois morra, por favor – ela olhava desesperada de um para o outro – por favor, podemos apenas ir embora...
     -- Se fugirem – disse Bono – eu juro que vou atrás de vocês até no inferno.
     -- E eu não vou deixar o homem que me matou e roubou minha esposa ir embora impune.
     Os dois desembainharam as espadas. Glory se afastou, desolada. Um dos dois iria morrer, talvez os dois. E ela não podia fazer nada.
     A luta recomeçou, ainda mais violenta do que antes. Dave atacava ferozmente, e Bono tinha que se defender e revidar ao mesmo tempo, tendo poucas chances de formular um golpe ou partir para o ataque. Quando percebeu que estava ficando em desvantagem, tirou o vidro com água benta que estava preso às roupas, o destampou e jogou um pouco sobre Dave, tão rápido que o outro não pôde desviar. A água sagrada caiu em seu pescoço e escorreu pela roupa, deixando uma marca como a de uma queimadura, e Dave gritou de dor, caindo para trás. Bono avançou sobre ele e lhe deu um golpe que o atingiu no ombro, fazendo o sangue jorrar, vermelho escuro manchando o chão de mármore. Glory gritou, e muitas pessoas já haviam parado para ver o que acontecia, e gritavam assustadas. Dave revidou o golpe de Bono, o atingindo na perna e o fazendo cair; pulou sobre ele, pronto para lhe dar o golpe final, mas Bono tirou o crucifixo do cinto e o pressionou contra o peito de Dave.
     O grito foi ouvido pela cidade inteira. Todos ao redor ficaram em silêncio, apavorados, e David caiu no chão, arfante, uma cruz marcada a fogo em seu peito. Bono começou a murmurar algo em latim, uma espécie de oração, e o outro se contorceu de dor, como se estivesse sendo torturado. Glory gritou e correu até eles, mas Bono a empurrou para longe, fazendo-a cair. Nessa hora Dave havia conseguido se levantar, e antes que Bono voltasse àquela estranha oração, ele começou a murmurar algo em uma língua que Glory nunca ouvira. Bono caiu para trás quando um círculo de fogo surgiu diante dele, o separando de Dave. Pela rua, cobras e lagartos começaram a surgir de todos os cantos, correndo em direção à igreja, e dezenas de pássaros negros pousaram sobre os telhados da igreja e na escadaria.
     -- Socorro! - Glory gritou, quando as cobras começaram a rodeá-la.
     -- Não tenha medo. - disse Edge, sem deixar de olhar para Bono – Elas estão te protegendo.
     -- Chamou os seus amiguinhos? - disse Bono, se mantendo à distância do círculo de fogo – Será essa uma luta entre o Bem e o Mal?
     -- Não me interessa o Bem ou o Mal. - ele se levantou – Mas vou fazer qualquer coisa para te derrotar. Você tem Deus ao seu lado, eu tenho os Anjos das Trevas.
     O próprio padre aparecera, e parecia horrorizado por aquela cena. Fez o sinal da cruz várias vezes, e segurava uma cruz de prata que impedia que os animais evocados por Edge se aproximassem dele. Glory, por sua vez, havia deixado de ter medo das cobras, e deixou que elas subissem nela e formassem uma espécie de barreira protetora ao seu redor.
     Edge atravessou a barreira de fogo sem que ela lhe queimasse, e atacou Bono. Este se defendeu e atacou de volta, e enquanto lutavam os dois murmuravam frases em línguas estranhas, que faziam surgir todo tipo de fenômeno estranho ao redor: luzes fantasmagóricas que logo sumiam, bolas de fogo, animais que se materializavam. Dave podia fazer mais, podia possuir as pessoas ao redor com demônios e fazê-las lutar a seu favor, mas não queria fazer isso, seria se render completamente às forças maléficas que ele agora era obrigado a servir.
     Em meio à luta, o som de uma enorme tropa se ouviu, cavalgando em direção à igreja. Glory olhou para trás, e viu dezenas de soldados se dirigirem a eles, prontos para atacar.
     -- Parem! - ela gritou, para Bono e Edge – Parem, os dois! Os guardas estão vindo!
     Nenhum dos dois deu a mínima atenção à Glory ou aos guardas que se aproximavam; mas, de repente, todas as maldições e magias evocadas por eles simplesmente desapareceram, e eles foram atirados longe, em sentidos opostos. Glory olhou para trás, e viu junto aos guardas uma mulher vestida com roupas estranhas, que parecia ter evocado alguma magia poderosíssima sobre os dois. Vários guardas desceram dos cavalos e subiram as escadas, indo até eles. Glory percebeu que tanto Bono quanto Edge não conseguiam se mover. Cada um foi pego por dois guardas, e outros dois pegaram Glory, que gritou e se debateu. Eles os levaram até o chão, onde o que parecia ser o chefe dos cavaleiros disse, sem se dar ao trabalho de descer de seu cavalo:
     -- Vocês infringiram as leis desse reino. Estão presos sob ordens de nosso rei.
     Eles foram amarrados e colocados cada um em uma carruagem fechada por grades, e foram levados pelos guardas em direção ao palácio.

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