terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #007] [U2] As Terras do Norte - A Viagem


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 7
A VIAGEM
“For I have promised
To be with you tonight
And for the time that will come”
(U2 – Drowning Man)

     Perto da hora do almoço eles chegaram ao topo da colina, e avistaram a cidade no meio do vale. O sol já não estava tão forte: o outono se aproximava depressa. Mas a paisagem era exuberante, e Glory ficou algum tempo admirando, fascinada. Quanto mais iam para o oeste, mais diferente tudo parecia. Bono a tirou de seu devaneio, dizendo:
     -- Temos que ir. A água está acabando, e a comida já acabou há muito tempo.
     Eles estavam há uma semana viajando. Nesse tempo todo, não haviam passado por nenhum lugar habitado, embora cruzassem com algumas pessoas esporadicamente. Quando isso ocorria, Bono primeiro se certificava que não era um ladrão ou algo do tipo, e depois ia até a pessoa conseguir alguma troca, alguma informação, ou simplesmente conversar. Glory sempre ficava afastada, esperando por ele, ou vigiando ao redor. Nunca mais conversara com ninguém além de Bono.
     -- Temos que chegar lá ainda hoje. - disse Glory, enquanto seguia Bono pela descida do vale – E o mais rápido possível.
     -- Vamos chegar hoje, mas não garanto que seja antes do anoitecer. Mas não se preocupe, ainda temos água para esse período, e você já ficou tempos bem maiores sem comer.
     -- Não é por isso. Amanhã é noite de lua nova.
     -- E daí?
     -- Você não sabe o que acontece na lua nova?
     -- A lua some do céu. Ou será que não?
     -- As mulheres começam a sangrar.
     -- Ah, está falando disso? É claro que sei, já conheci mulheres demais em minha vida. Mas não é uma coisa com a qual esteja familiarizado. Mas por que precisa chegar antes do anoitecer?
     -- Para providenciar algumas coisas. Preciso de muitos panos, e toalhas, e bastante água limpa. Também vou precisar de alguns chás e ervas especiais, para diminuir as dores.
     -- Parece que você vai dar a luz.
     -- É, mas é o oposto disso.
     Já estava quase anoitecendo quando eles chegaram à cidade. Bono não conseguiu encontrar vaga em nenhuma hospedaria, pois as poucas existentes estavam lotadas. Haveria uma grande festa naquele reino, em comemoração ao casamento do príncipe, e a cidade estava tomada por convidados para o casamento.
     -- E agora? - disse Glory, enquanto eles cavalgavam lentamente em meio à multidão – Onde vamos ficar?
     -- Vamos procurar abrigo em alguma casa. - disse Bono – De preferência, nos limites da cidade. Aqui vai ser impossível.
     Praticamente fora da cidade, à beira da estrada que levava para o vale, havia uma pequena casa, em frente à qual três crianças brincavam. Bono disse a Glory que viesse com ele, pois um casal despertaria menos desconfiança do que um homem sozinho. Eles amarraram os cavalos perto do muro e entraram pelo pequeno jardim de grama. As crianças pararam e ficaram olhando para eles, assustadas. Bono se dirigiu ao menino mais velho:
     -- Seus pais estão em casa?
     O menino balançou a cabeça, afirmativamente.
     -- Vá chamá-los para mim.
     As três crianças saíram correndo para os fundos da casa. Demorou um pouco até que um homem aparecesse na porta da frente.
     Era um homem já velho, com olhos desconfiados. Disse:
     -- Quem vem lá?
     -- Perdão por perturbá-lo. - disse Bono – Eu e minha esposa estamos viajando e não conseguimos abrigo na cidade. O senhor nos deixaria pernoitar em sua casa?
     O velho continuava olhando desconfiado. Olhou para Glory e então para Bono, demoradamente.
     -- Quem são vocês?
     -- Eu sou Bono, e essa é minha esposa Glory. Nos casamos há pouco, e tivemos uma viagem muito longa. Precisamos de um lugar para ficar.
     Uma mulher apareceu ao lado do velho. Era bem mais nova do que ele, mas mais velha do que Bono. As três crianças espiavam atrás dela. Ela disse:
     -- Por que estão viajando tanto?
     -- Porque o irmão dela morreu e estamos indo até a cidade em que ele morava. Foi uma viagem muito dura, passamos por florestas, dormimos ao relento. Temo pela saúde dela, é muito jovem e frágil. Nós podemos pagar pela hospedagem.
     Os anfitriões discutiram um pouco. A mulher deu mais uma olhada para Glory.
     -- Sua senhora está grávida?
     -- Não. Pelo menos, não apresentou sinais até agora. Mas estamos casados há pouco tempo.
     Bono olhou para Glory, esperançoso. Se ela não sangrasse aquela noite, podia significar... Mas Glory balançou a cabeça, e falou pela primeira vez até então:
     -- Não estou grávida. Não há nenhum sinal disso.
     -- Nós cobraremos uma moeda de ouro para cada anoitecer.
     -- É muito. - disse Bono – Precisaremos ficar por cerca de seis dias. Pagarei até duzentas moedas de prata por anoitecer, e isso é muito mais do que já paguei em qualquer hospedaria.
     -- Mas não somos uma hospedaria. - disse o homem – Terão comida, água e tudo o que for necessário aqui, mas todos os preços subiram por causa da festa.
     -- Está certo. - Bono suspirou – Uma moeda de ouro para cada anoitecer. Mas nenhuma moeda a mais.
     -- Certo.
     Pela noite, eles já estavam acomodados e alimentados. Haviam ficado em um quarto pequeno, que devia ser dos dois meninos. Havia uma cama de casal, pelo menos. Quando eles ficaram sozinhos, Glory disse:
     -- Eu preciso me trocar.
     -- Troque-se.
     -- Não com você olhando. Vire.
     Reclamando um pouco, Bono se virou para a parede, enquanto Glory se lavava e se vestia. Ele disse:
     -- Seu sangue veio mesmo?
     -- Veio. Ainda está pouco, mas deve aumentar amanhã.
     -- Hum... Se ele não viesse, você poderia estar grávida.
     -- Deus não faria isso comigo. E, se eu estivesse, seria de Dave.
     -- É mais provável que fosse meu. Eu tive você duas vezes, ele só teve uma.
     -- Deus não me obrigaria a carregar um filho de um homem como você. Já foi cruel o suficiente me obrigar a viver com você.
     -- Achei que estivesse começando a deixar de me odiar tanto.
     -- Eu não te odeio. Só te desprezo e te acho repugnante.
     -- Se aceitasse se deitar comigo mais uma vez, você nunca mais diria isso.
     -- Eu prefiro a morte a me deitar com você novamente.
     Ela terminou de se vestir, e se deitou na cama. Bono se virou para ela.
     -- Você não tem idéia do quanto eu te desejo. Me sinto queimar a cada noite que deito ao seu lado e não posso sequer tocar em você.
     -- Pare de dizer essas coisas. Eu nunca mais serei sua. Nunca.
     Bono suspirou e tirou a roupa. Sempre se deitava nu quando não dormia ao relento. Glory virou o rosto, profundamente incomodada: ele tinha um corpo belíssimo, e ela não podia deixar de corar quando o via. E se odiava por isso.
     -- Não deite tão perto de mim. - disse Glory – E não poderia me tocar, de qualquer jeito. Eu estou em sangramento.
     -- Eu não me importo com isso. Esses tabus sociais não significam nada pra mim.
     -- Mas pra mim significam. Não se aproxime.
     Ele acabou aceitando, e se acomodou na beira da cama. Glory ficou na outra ponta, e ali eles dormiram, incomodados, mas confortáveis.
* * * * *

     Durante o tempo que ficaram na casa, Bono se ausentava durante todo o dia, e Glory ficava sozinha no quarto, ou andando pelo quintal. Raramente conversava com seus anfitriões. Apenas depois do terceiro dia, a dona da casa pareceu confiar nela o suficiente para lhe dirigir a palavra.
     -- A senhora e seu marido estão casados há quanto tempo?
     -- Um mês. - Glory respondeu, com indiferença.
     -- E por que a senhora veste luto?
     -- Pela morte de meu irmão.
     -- Seu irmão morreu em batalha?
     -- Sim. Ele era cavaleiro.
     -- Então, sua família devia ter nome.
     -- Não. Meu irmão conseguiu seu título por mérito próprio, e não por nome.
     -- Quantos anos a senhora tem?
     -- Catorze.
     -- Casou-se muito jovem. Seu marido parece ser bem mais velho do que você.
     -- Sim, ele é.
     -- E quantos anos ele tem?
     Glory hesitou. Não sabia quantos anos Bono tinha.
     -- Ele é mais velho, mas não tanto... E a senhora também é bem mais jovem que seu marido, não?
     -- Sim, eu sou a terceira mulher dele. Tenho trinta anos, ele já fez cinquenta e um. Não tem mais muito tempo pela frente.
     -- O que houve com as outras mulheres?
     -- Morreram. A primeira pegou a peste, a segunda morreu no parto.
     Eu nunca casaria com um homem que traz tanto azar, pensou Glory. A mulher disse:
     -- Mas você não respondeu a minha pergunta. Quantos anos tem o seu marido?
     Antes que Glory pudesse pensar na provável idade de Bono, este chegou. As duas mulheres se levantaram à sua entrada. Ele tirou a capa e o chapéu e disse, muito sério:
     -- Venha para o quarto.
     Ele passou antes que Glory pudesse perguntar o porquê. Ela hesitou um pouco, mas acabou obedecendo. Entrou no quarto e fechou a porta. Bono olhava pela janela, parecendo muito preocupado.
     -- O que houve?
     -- Temos um problema.
     -- O que é?
     -- Há guardas na cidade. - ele se virou para ela – Guardas de seu pai.
     -- O que? Não pode ser. Estamos há quilômetros das terras de meu pai.
     -- Parece que ele não vai desistir tão fácil de encontrar a filha desaparecida. O rei dessas terras deu permissão para que vasculhassem a cidade à sua procura.
     -- Deus... Eles te viram?
     -- Acho que não. De qualquer forma, não me reconheceriam. Mas vão chegar aqui, talvez ainda hoje. Temos que ir.
     -- Não podemos partir ainda, eu...
     -- Quer ser presa? - ele a segurou com certo desespero – Quer ser pega e levada de volta para o seu reino? Você sabe o que vai acontecer. Nenhum pai aceita uma filha desonrada. Ele provavelmente vai te enfiar num convento, ou te obrigar a casar com o primeiro que aceitar para limpar a honra da família. Você quer isso?
     -- Não! Mas talvez seja melhor do que continuar com a vida que estou levando! Será melhor do que continuar com você!
     -- Oh, claro que será! Se você tiver muita sorte, entrará para um convento. Senão, irá se casar com algum velho senhor de terras, como Lorde Macguiness, e ele irá te obrigar a se deitar com ele todas as noites até que tenha tido uma dezena de filhos! Terá que suportar aquele homem horrível e cruel em cima de você todas as noites, machucando você, te obrigando a fazer coisas que você considerará repugnantes, até o ponto em que você sentirá falta da época em que viveu comigo, e me considerará o homem mais carinhoso da Terra!
     Glory hesitou. Bono estava certo. Ele cumprira sua promessa, nunca mais tocara nela nem a machucara. Se voltasse para casa, iria passar pelas piores humilhações possíveis.
     -- Quantos anos você tem?
     Bono olhou para ela, atônito, e a soltou.
     -- Mas por que isso agora?
     -- Nossa anfitriã me perguntou, e eu não soube o que responder.
     Ele parecia um pouco confuso.
     -- Não sei, eu tenho... - ele pensou um pouco – Vinte e sete.
     -- Você não lembrava sua própria idade?
     -- A última vez que me perguntaram, eu tinha quinze.
     -- Então, você é... Treze anos mais velho...
     -- Isso importa pra você?
     -- Não, claro que não... Por que importaria? - ela foi até a janela, distraidamente – Nem somos casados de verdade.
     -- É, é verdade. - Bono suspirou – Não somos.
     -- Quando vamos partir?
     -- Antes do anoitecer. Arrume suas coisas, eu vou falar com os donos da casa.
     Pelo anoitecer, Bono e Glory já cavalgavam pelos vales. Os guardas ainda estavam vasculhando a cidade, e não os viram. Mas eles não podiam se deter por muito tempo.
     Glory estava aliviada por seu sangramento estar diminuindo, mas ainda era incômodo cavalgar assim. Levava consigo várias toalhas e panos limpos, para poder se limpar, mas só poderia fazer isso quando parassem para repousar.
     Só quando já estava amanhecendo eles pararam, perto de um lago. Glory estava exausta, mas Bono parecia estar totalmente alerta. Ela se lavou e se preparou para dormir, mas ele andava de um lado para o outro, em guarda.
     -- Você não vai dormir?
     -- Não. Não é seguro. - ele verificava suas armas – Durma. Vou ficar de vigia até a hora de irmos.
     -- Mas não vai poder viajar se estiver cansado.
     -- Já passei dias sem dormir. - ele deu um breve sorriso – Não precisa se preocupar comigo.
     -- Não estou preocupada com você.
     Ela se deitou, dando as costas para Bono, que dava comida para seu cavalo. Às vezes, ela achava que ele gostava mais daquele cavalo do que já gostara de qualquer ser humano. E, de certa forma, não podia censurá-lo.
     Após um tempo, ela percebeu que não conseguia dormir, apesar de sentir sono. Virou-se e viu Bono de pé, apoiado em uma árvore, olhando o céu. Ele estava bastante afastado, e Glory começou a se sentir imensamente sozinha. Se o chamasse dali, ele provavelmente não a ouviria, de forma que se levantou e foi até ele. Ele a olhou, surpreso, e disse:
     -- O que houve?
     -- Não consigo dormir.
     -- Por quê?
     -- Não sei. - ela se sentou próxima a ele, se apoiando na árvore – Me sinto só.
     -- Esse lugar é muito aberto. Você ficou muito tempo em lugares pequenos e fechados, está estranhando.
     -- Não é só isso. Eu me sinto só... Por dentro.
     Bono entendia. Já sentira aquele vazio muitas e muitas vezes, até se tornar seu amigo íntimo. Mas não disse nada para confortar Glory, pois não conhecia nada que pudesse ser dito para isso.
     -- Bono...
     -- O que?
     -- Será que os guardas de papai vão me perseguir pra sempre?
     -- Não sei. Talvez te persigam até que seu pai morra.
     -- Eu não quero que eles me sigam. Mas também não quero que papai morra.
     -- Nem tudo é como gostaríamos.
     -- Eu sei.
     Ela ficou um tempo em silêncio, e então disse:
     -- Estou com medo.
     -- Medo de que?
     -- Medo... De... - ela abraçou os joelhos de encontro ao corpo – Eu não sei.
     Glory começou a chorar. Sentia-se tão triste, e não havia ninguém que gostasse dela, ninguém com quem se consolar. Mas então, sem que esperasse, ela sentiu outro corpo junto ao dela, e braços gentis que a abraçaram suavemente. A voz de Bono soprou em seu ouvido:
     -- Não chore. Eu vou te proteger. - ele beijou seus cabelos – Não precisa ter medo, eu não vou permitir que ninguém te faça mal.
     A voz dele era tão suave, tão bonita. Glory começou a sentir um calor suave em seu corpo.
     -- Mas você deve ter raiva de mim...
     -- Por que eu teria raiva de você?
     -- Porque está me protegendo, e eu não te dou nada em troca.
     -- Você é só uma menina. - ele levantou o rosto dela e sorriu – Uma menininha. Não tem que ser forte sempre. Eu nunca teria raiva de você.
     -- Promete que não vai me abandonar?
     -- Prometo.
     Ela olhava em seus olhos, dois rios de águas azuis, e de repente sentiu uma enorme vontade de ficar ainda mais perto dele. Tocou em seu rosto e então passou os braços ao redor de seu pescoço, retribuindo ao abraço. Ele a segurou com ainda mais força, e ela disse, em voz baixa:
     -- Obrigada.

Nenhum comentário: