O HOMEM DO JARDIM
O encontrei pela primeira vez sentado no portão de sua casa. Eu tinha oito anos e ia todos os dias ali, roubar flores. No jardim dele cresciam rosas e margaridas, jasmins e copos-de-leite, um infinito de cores que eu roubava todos os dias sem remorsos. Pulava a cerca de madeira, me embrenhava pelo jardim e arrancava meia dúzia de flores, para depois exibi-las e enfeitar meus cabelos. Consciente de que estava praticando o mais vil dos atos.
Mas agora eu havia sido pega. Ele estava ali, olhando para mim.
Meu primeiro instinto foi sair correndo. Mas antes que o fizesse ele me chamou:
-- Ei, você.
Congelei. Ele me chamou novamente:
-- Vem cá.
Obedeci. Caminhei lentamente para ele, pensando em tudo de horrível que iria me acontecer. Ele vai me matar, me bater, vai contar pra minha mãe...
Parei diante dele. Era um velho, devia ter mais de sessenta anos. Mas era tão bonito. Tinha a pele muito morena, quase negra, e curtos cabelos brancos como neve, parecendo espinhos sobre sua cabeça. E seus olhos eram verdes e vivos, mais vivos do que eu jamais vira.
-- Quer uma flor?
A voz dele era tão calma. Mas suas palavras eram tiros em minha alma corrompida. Balancei a cabeça, dizendo que não.
-- Pode pegar. - ele fez um gesto, indicando as flores – Se você não levar, ninguém vai vê-las. Elas vão murchar e morrer sozinhas.
Isso era verdade. Nunca tinha visto ninguém entrar na casa.
-- O senhor não tem raiva de mim?
Ele riu, de um jeito que não chegava a ser um riso.
-- E por que teria?
-- Porque eu roubei suas flores.
Mais um riso-não-riso, e ele balançou a cabeça.
-- Ladrões de flores têm cem anos de perdão.
Hesitante, caminhei até a roseira e tirei uma linda rosa branca. Senti seu perfume, toquei suas pétalas, e me virei para o velho do jardim.
-- Obrigada.
Saí correndo. Só parei ao chegar na escola. Foi quando percebi que estava chorando.
* * * * *
Demorou uma semana para que eu voltasse lá. Só pulei a cerquinha quando tive a certeza de que o velho não estava por perto. Estava recolhendo uma tulipa quando ouvi a voz dele atrás de mim:
-- Essas são lindas, não são?
Não sei como não gritei. De onde ele surgira? Me preparei para fugir, mas novamente ele me chamou:
-- Espere.
Parei. Teria ele algum poder mágico? Porque quando falava, eu não conseguia me mover.
-- Da próxima vez – ele disse, indo até a cerca – use o portão.
Balancei a cabeça, concordando. A culpa me faria concordar com tudo. Segurei firmemente a flor roubada e saí correndo pelo portão.
* * * * *
Aos poucos, comecei a me acostumar com ele. Às vezes eu chegava e ele já estava lá. Às vezes ele aparecia no meio da minha empreitada entre as plantas. Mas sempre aparecia. Eu sempre recolhia as flores em silêncio e ia embora o mais rápido possível.
Um dia cheguei um pouco mais cedo, na esperança de que ele só acordasse depois que eu fosse embora. Mas, quando eu estava quase terminando, ele apareceu.
-- Bom dia. - ele disse.
-- Bom dia.
Eu não conseguia falar com ele sem ficar vermelha.
-- Você quer um pedaço de bolo de fubá?
Meus olhos responderam por mim. Ele sorriu.
-- Entre, eu te dou um pedaço.
A perspectiva de entrar na casa dele me tirou a vontade de comer bolo.
-- Não, obrigada. Eu tenho que ir pra casa.
Ele não fez perguntas, talvez soubesse o que se passava em mim; os velhos e as crianças sempre compreendem uns aos outros. Apenas disse:
-- Então, leve um pedaço pra casa.
Isso eu podia fazer. Ele entrou e voltou um minuto depois, com uma cestinha de onde vinha o cheiro de bolo quentinho.
-- Tome. - ele me entregou a cesta – Tem pro seu pai e pra sua mãe também.
-- Obrigada.
Coloquei as flores na cestinha e saí, cantarolando. Na esquina, olhei para trás e avistei o velho. Ele acenou para mim, e acenei de volta.
* * * * *
Ele me conquistou com bolos e flores.
Com o tempo, aceitei comer bolo enquanto conversava com ele, na escada da varanda. No início a conversa se resumia a ele perguntar e eu responder com monossílabos. Nunca perguntou nada em particular; eram coisas como “você gosta de chuva?” e “qual a sua cor preferida?”. Aos poucos, comecei a dar respostas mais elaboradas, e logo era eu quem fazia as perguntas.
-- Quantos anos você tem? Você mora aqui há quanto tempo? Você não sai nunca? Você é casado? Onde estão seus filhos? Por que você cuida das flores?
Ele sempre me respondia, embora por vezes sua resposta não fosse exatamente uma resposta. Quando perguntei se ele era casado, ele disse “talvez”. Eu fiquei satisfeita com a resposta. Nem me passou pela cabeça perguntar o que era ser talvez casado.
-- Seus filhos não vêm te visitar?
-- Não. Às vezes.
-- Vêm ou não vêm?
-- Eles moram muito longe.
-- Ninguém vem te visitar?
-- Você vem.
-- Só eu?
-- Só.
Achei que isso devia ser triste.
-- Você não queria que outras pessoas viessem te visitar?
-- Pra que? Eu tenho o meu jardim. E tenho você.
E ele tinha, mesmo. Eu estava completamente encantada por suas conversas e seus bolos e suas flores. Chegava cedo à sua casa, e lá ficava até o sol subir.
Às vezes, ele parecia muito cansado. Nesses dias se sentava na escada, e nós não conversavamos; ele ficava apenas me assistindo brincar entre as flores. Algumas vezes eu fazia um buquê e dava pra ele. Ele sempre ria sem rir: devia ser estranho ganhar de presente suas próprias flores. Mas ele parecia ficar feliz quando eu fazia isso.
* * * * *
Um dia, ele não apareceu. Eu peguei as flores e sentei na escada, esperando ele chegar. Mas ele não chegou.
Depois de um tempo, cansei de esperar. Talvez ele estivesse dormindo. Talvez tivesse se esquecido de mim. E, para uma criança, ambas as possibilidades eram intoleráveis. Levantei-me decidida e bati na porta.
Eu era insistente, mas de nada serviu minha teimosia, porque ninguém abriu a porta. Chamei por ele, e nada. Talvez ele não estivesse em casa, o que era um crime um pouco menor para mim. Numa última tentativa, girei a maçaneta. E a porta abriu.
Eu entrei na casa com o mesmo cuidado com que invadia o jardim na minha época de ladra. Era uma casa muito bonita, arrumadinha. Passei pela copa, pela sala, pelo corredor, até que cheguei ao único quarto. A porta estava só encostada, e eu a abri devagarzinho.
Ele estava ali, deitado na cama. Virou-se para mim e sorriu.
-- Eu sabia que você vinha.
Fiquei parada na porta, olhando para ele. Não sentia mais raiva por ele ter me esquecido. Ele fez um gesto, me chamando.
-- Vem cá.
Me aproximei da cama, meio tímida, como nas primeiras vezes em que o vira. Ele apontou uma cadeirinha num canto do quarto; a peguei e coloquei do lado da cama, para poder sentar.
-- Por que você não foi lá fora?
-- Porque eu não podia levantar.
-- Por que não?
-- Porque estou velho demais.
-- Não tá não. Levanta.
-- Eu não posso. Você vai ter que pegar as flores sozinha hoje.
Entreguei pra ele o raminho de flores que tinha colhido. Ele riu sem rir.
-- Obrigado.
-- De nada.
Ele tossiu. Tossia muito, toda hora. E parecia estar sumindo.
-- Amanhã você vai estar no jardim?
-- Eu acho que não.
-- E depois de amanhã?
-- Também não.
-- E depois de depois de amanhã?
-- Não.
-- Nunca mais?
-- Nunca.
-- Você vai morrer?
-- Eu acho que sim.
-- Eu não quero que você morra.
Agora, ele não riu, apenas sorriu levemente. Parecia tão fraco. Me perguntei a quanto tempo estaria sozinho.
-- É melhor você ir pra casa. - ele disse.
-- Não quero ir. Quero ficar aqui.
Nunca tinha visto uma pessoa que estava morrendo. Não sabia o que era morte. Mas achava que ele não podia estar sozinho.
Fiquei sentada na cadeira, olhando. Ele só tossia, eu só olhava. Ninguém falava nada. De vez em quando eu pegava água para ele, de vez em quando ele bebia. Mas ficava cada vez mais e mais fraco. Comecei a entender o que era morrer. Ele estava desaparecendo. Eu quase podia ver o seu corpo virando ar.
-- Por que os seus filhos não moram com você?
-- Porque não gostam de mim.
-- Mas você é pai deles. Eles deviam gostar de você.
Ele voltou a rir sem rir, e eu fiquei feliz com isso.
-- E os seus amigos? Por que eles não vêm ficar com você?
-- Eu não tenho muitos amigos.
-- Por que não?
-- Acho que não mereci ter muitos.
-- Mas tem algum, não tem? Cadê ele?
-- Faz anos que não vejo ninguém. Não tenho mais nenhum amigo.
-- Tem sim. Tem eu.
-- Você é minha amiga?
-- Sou. - eu segurei sua mão – Eu vou ficar aqui.
-- Por quê?
-- Porque eu gosto de você. E das flores.
-- Cuida delas pra mim?
-- Cuido. Vou cuidar todo dia.
-- Obrigado.
Silêncio. Eu abri a janela, para que entrasse o cheiro do jardim. E disse, sem saber exatamente o que aquilo significava:
-- Eu amo você.
Continuei segurando sua mão por muito tempo. Ele agora só ficava de olhos fechados, e não falava. A última coisa que murmurou foi “também amo você”, e depois só sua respiração lenta. Eu fiquei sentada ali por muito e muito tempo, vendo o velho do jardim evaporar, vendo a primeira pessoa que eu amara ir embora lentamente.
SOBRE A HISTÓRIA
Essa história é uma homenagem a uma pessoa que foi embora. Tirei a ideia parcialmente de uma história que li há muitos anos, da qual só lembro a frase "ladrões de flores e de frutas têm cem anos de perdão", e de um conto de Carlos Drummond. A ideia era que fosse uma história bonita e triste, mas ao mesmo tempo doce. Enquanto falava do jardim e da casa, tinha em mente a casa de uma senhora que visitei quando criança, e que hoje já não sei quem era. O "velho do jardim" é baseado em uma pessoa muito especial que já não está aqui.
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