sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

[conto #019] A Menina da Água

A MENINA DA ÁGUA

Era a primeira vez que eu usava a banheira do apartamento. Havia me mudado já há um mês, mas não tinha tido tempo – nem disposição – para encher a grande banheira e preparar um banho decente. Mas havia prometido a mim mesmo que faria isso no fim de semana; e lá estava eu, sentado, coberto de espuma, apreciando a sensação da água quente e limpa.
Quando abri os olhos, já não estava sozinho. À minha frente, também coberta de espuma, estava uma garotinha, pequena criatura nua de cabelos molhados e grandes olhos assustados.
Não me assustei. Apenas fiquei parado, sem entender. Ela olhava para mim com curiosidade.
-- Quem é você?
Ela não me respondeu. Começou a mexer na espuma, brincando. Eu não sabia se devia levantar ou permanecer ali.
-- Como entrou aqui?
Nenhuma resposta. Peguei uma toalha, me cobri e saí da banheira. Ela, por sua vez, ficou olhando um tempo para mim, e então mergulhou na água. E não voltou mais.
Mexi na água, procurando-a, e não a encontrei. Esvaziei a banheira: não havia nada ali, nem ninguém. Apenas o fundo branco e escorregadio.
Aturdido, me enxuguei e me vesti. Não estaria disposto a usar a banheira novamente nos próximos dias.

* * * * *

Passou-se quase uma semana, até que eu resolvesse usar novamente a banheira. Não tinha a menor idéia do que fora aquilo que acontecera, mas aos poucos fui me convencendo de que a menina só podia ser uma alucinação. Devia ter sido um dia estressante, eu estava mais cansado do que imaginara; provavelmente cochilara na banheira, e confundira sonho e realidade.
Mais uma vez, enchi a banheira e preparei meu banho. Quando estava prestes a entrar, o telefone tocou. Fui atender, e quando voltei, antes mesmo de entrar na banheira, lá estava ela, a mesma garotinha de antes. Dessa vez, estava lavando os cabelos, esfregando-os até que estivessem cheios de espuma. Olhou para mim quando entrei, e, dessa vez, cheguei o mais próximo que eu chegaria de sentir medo. Como se percebesse isso, ela novamente mergulhou na água, e novamente ao procurá-la, ela havia desaparecido.

* * * * *

Fiquei bastante tempo refletindo. Fosse o que fosse aquilo - se era realmente uma criança ou se era uma aparição - não era nada que eu conhecesse. Ela não se parecia com ninguém que eu conhecia, ou que tivesse conhecido. Se fosse um fantasma, era o mais gracioso que poderia existir.
Finalmente, a curiosidade venceu o medo. Eu tinha que descobrir quem era aquela menina, ou o que ela era, ou o que significava. Por isso, no fim de semana, refiz os passos que havia feito nas duas vezes anteriores: enchi a banheira, preparei o banho, e fiquei ali, ao lado, esperando.
Esperei bastante tempo, e ela não apareceu. Depois de quase quarenta minutos, acabei desistindo. Ela nunca demorava tanto. Me levantei e saí do banheiro, me perguntando se não estaria sofrendo alucinações.
Então, mal chegara na sala, uma idéia me ocorreu. Nas duas vezes anteriores, eu não a vira chegar. Talvez... Fui quase correndo de volta para o banheiro. E de fato, ali estava ela, menininha de cabelos escuros e olhos grandes e negros, soprando a espuma de suas mãozinhas brancas.
Quando ela me viu, eu não me aproximei. Sempre que fizera algum gesto na direção dela ela se fora, por isso fiquei apenas parado, olhando. Tentava ver algo, algum sinal, que pudesse me dar uma idéia do que era aquilo; mas ela, por sua vez, parecia querer o mesmo de mim, e me olhava com olhos curiosos.
Por vários minutos, nenhum dos dois se mexeu: nós dois ficamos apenas nos olhando. Então, com muito cuidado, me aproximei, tentando mostrar que não estava com medo e que não queria machucá-la. E disse:
-- Oi.
Ela me olhou desconfiada, mas não sumiu. Me ajoelhei no chão e encostei na banheira.
-- Qual o seu nome?
Não que eu esperasse que ela fosse responder. E de fato ela não o fez. Mas também não fugiu. Voltou a se lavar, passando a espuma pelos cabelos, sem tirar os olhos de mim. Fiquei o resto do tempo em silêncio, olhando para ela. Teria que conquistar sua confiança.
Quando se cansou de se lavar e brincar com a espuma, ela me olhou uma última vez, e novamente mergulhou na água. Não me dei ao trabalho de procurá-la; sabia que ela não estava mais ali.

* * * * *

Aos poucos, fui me aproximando dela. Estabelecemos uma rotina silenciosa: eu enchia a banheira, ia para a sala, e quando voltava, segundos depois, lá estava ela. Então eu me ajoelhava ao seu lado, e ficava assistindo seu banho, até que ela se cansasse e mergulhasse para alguma outra dimensão.
Depois de quase um mês desse ritual, ela começou a interagir comigo. No começo, foi bem tímida: ficava soprando bolhas de sabão para mim, depois me jogando água. Mas, quando eu tentava encostar nela, ela mergulhava e sumia.
Um dia, enchi a banheira, fui para a sala e o telefone tocou. Fui atender, e demorei bastante tempo. Quando desliguei e me virei para a porta, a menina estava parada na minha frente, a poucos metros de mim, nua e molhada, pingando água pela casa toda. Levei um susto - nunca imaginara que ela pudesse ter uma existência fora da banheira - e quase dei um grito. Ela se assustou também, saiu correndo para o banheiro. Fui atrás, e ainda vi quando ela pulou dentro da banheira e sumiu.
Demorou quase uma semana para que ela aparecesse de novo. E tive que recomeçar todo o ritual para reconquistar sua confiança.

* * * * *

As coisas entre nós finalmente haviam voltado ao que eram antes. Ela soprava espuma para mim, me molhava, e parecia se divertir com isso - embora nunca sorrisse, e sua expressão sempre parecesse uma mistura de assustada com curiosa. Fiquei feliz por ela não ter ido embora de vez.
Resolvi fazer o mesmo que fizera da outra vez: preparei a banheira, e então fui para a sala e fiz um telefonema. Fiquei bastante tempo conversando, e a toda hora olhava para a porta. Vi quando ela apareceu na porta do banheiro, mas ela parou quando viu que eu estava olhando. Me virei de costas, fingindo que não a tinha visto, e quando olhei de novo, lá estava ela, na porta da sala. Me virei para ela, mas continuei falando no telefone. Ela ficou parada, me olhando, parecendo intrigada.
Quando finalmente desliguei o telefone, ela deu um passinho para trás, pronta para fugir. Ao invés de ir até ela, lhe dei as costas e fui para a cozinha. Não demorou nem cinco segundos para que ela aparecesse atrás de mim. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, peguei um biscoito e ofereci para ela, sem me aproximar nem dizer nada. Ela ficou parada, olhando, e lentamente, muito desconfiada, se aproximou e pegou o biscoito. Afastou-se imediatamente, indo de novo para a porta da cozinha, e ficou olhando desconfiada de mim para o biscoito, do biscoito para mim. Eu peguei outro biscoito e mordi; ela ficou na dúvida por alguns instantes, mas acabou mordendo o dela também. Comeu o biscoito todo, mas sem tirar os olhos de mim nem por um segundo.
Logo, estabelecemos uma nova rotina: eu enchia a banheira, ia para a cozinha e começava a fazer barulho com as panelas, para que ela soubesse onde eu estava. Logo, ela aparecia na porta. No início ficava apenas parada, olhando para tudo com curiosidade, mas depois passou a andar pela cozinha, mexer nas coisas. Arrisquei tentar conversar com ela: ela claramente me entendia, mas nunca falava. Pedia para ela pegar algo para mim e ela pegava, às vezes eu fazia um bolo e ela ficava assistindo, até me ajudando; depois comíamos juntos, até que, atendendo a algum chamado que só ela ouvia, ia correndo para o banheiro e mergulhava na banheira.
Tive a idéia de não esvaziar a banheira. Dessa forma, o portal ou o que quer que fosse ficaria sempre aberto, e ela poderia vir quando quisesse.
Deu certo. Agora, ela não aparecia só na hora do banho. Às vezes eu estava vendo tv na sala, e ela vinha e se sentava ao meu lado no sofá, assistindo também. Ou eu estava fazendo o almoço, e ela aparecia, ficava mexendo nas coisas. Algumas vezes, quando eu chegava do trabalho, encontrava ela andando pela casa, ou via as marcas de seus pezinhos e sabia que ela estivera me procurando. Eu gostava de sua companhia; o único inconveniente era que a casa estava sempre molhada.
Eu nunca mais usara a banheira para tomar banho. Dizia para mim mesmo que era porque não queria que ela me visse e resolvesse tomar banho comigo, mas a verdade era que tinha medo de acabar caindo pela mesma porta pela qual ela entrava, e me afogando em um mundo de água e espuma.
Ficava tentando imaginar como seria o mundo em que ela vivia. Perguntava para ela, mas ela jamais respondia; talvez nem pudesse falar. Eu fazia desenhos, mostrava para ela, mas ela os olhava com total indiferença. Onde quer que ela vivesse, não devia se parecer com nada que eu pudesse imaginar.
Um dia, quando eu estava indo dormir, ela apareceu no meu quarto e se deitou ao meu lado na cama. Fiquei um pouco incomodado a princípio, mas não fiz nada para impedí-la. Encostei de leve nela, com certa curiosidade: ela era gelada, e sua pele tinha uma textura estranha, provavelmente pela vida inteira debaixo d'água. Não parecia uma coisa viva, e achei melhor não tocá-la. Ainda tentei mexer em seus cabelos - agora ela não se importava mais - mas era ainda mais incômodo: eles eram escorregadios e pegajosos, uma textura que me lembrava algas. Acabei dormindo, com ela olhando para mim.
Quando acordei, de madrugada, levei um susto por ela estar ainda ao meu lado. Acendi a luz: ela estava de olhos abertos, mas não se movia. Temendo o pior - não sabia se ela podia passar tanto tempo fora da água - toquei nela. Gelada, os olhos imóveis. Desesperado, pois não sabia o que faria com um cadáver de algo não completamente humano, a sacodi. Ela despertou e se levantou, assustada, indo correndo para o banheiro e mergulhando na banheira. Demorei algum tempo para entender o que havia acontecido, até que uma luz se fez na minha mente: ela estava dormindo. De olhos abertos. Ela não tinha pálpebras. Tinha algo parecido com pálpebras, mas eu nunca a vira piscando.
Aquilo era muito perturbador, e eu esperava que ela não tentasse dormir comigo novamente.

* * * * *

Mas, algumas noites depois, ela apareceu no meu quarto novamente. Eu quase a expulsei, mas então pensei que, do mesmo jeito que o toque dela me dava sensações ruins, a minha presença, no início, também assustara ela. Me controlei e permiti que ela ficasse.
Depois de algumas noites, eu já estava praticamente acostumado com a presença dela. Podia até tocá-la sem sentir aquele arrepio desagradável que sentia antes. Às vezes, no meio da noite, ela acordava e ia embora, e no dia seguinte tudo o que eu encontrava ao meu lado era uma mancha de água no lençol. Mas muitas vezes ela ficava, e, enquanto eu ia escovar os dentes, ela se arrastava sonolenta até a banheira, onde se deixava cair para despertar em algum outro mundo.
Não era em todas as noites que ela vinha, claro. E nem todos os dias. Às vezes, ficava mais de uma semana sem aparecer. E às vezes, quando havia visitas em casa, eu via ela espiando pela porta do banheiro, mas logo sumia e não aparecia até que os estranhos fossem embora.
Ficamos naquilo por quase um ano. Eu me afeiçoara completamente a ela, e sentia sua falta quando ela não aparecia. Dava presentes a ela, comidas, brinquedos que ela não sabia usar. E ela corria pela casa toda, mexendo em tudo, molhando tudo, fazendo uma adorável bagunça.
Um dia, eu estava na sala, vendo tv, e ela estava ao meu lado, brincando com uma colher. De repente, ouvi um barulho, vindo do banheiro. Não dei muita importância, mas então ouvi outro barulho, o som de algo se arrastando, e uma espécie de respiração ofegante. A menina se levantou depressa, parecendo assustada. Me levantei também, e quando olhei para o corredor, vi a coisa mais horrível que jamais imaginara ver: um ser apenas vagamente humano, muito alto - devia ter quase dois metros e meio - e muito magro, a pele branca e cadavérica grudada nos ossos, algo parecido com cabelos caindo na altura dos ombros. A coisa era um homem, e estava nu. Vinha se arrastando pelo corredor, a respiração ofegante, os olhos completamente negros e sem pálpebras me olhando de forma ameaçadora. A garotinha entrou em pânico, eu tentei colocá-la atrás de mim, para protegê-la; mas ela saiu dos meus braços e correu até o ser ameaçador. Eu ia atrás, até que entendi: aquilo devia ser o pai.
De fato, ela pegou na mão dele, o puxando para a banheira, e ele a olhou de uma forma que deixava claro que eram conhecidos e que não a queria mal. Mas então se voltou para mim, e veio se arrastando de forma ameaçadora. Era bastante claro que ele estava furioso comigo, e eu não estava disposto a descobrir o que era capaz de fazer. Fui correndo para a cozinha, onde peguei a vassoura, e quando ele se aproximou eu ameacei atacá-lo também. Ele parou, olhando para a vassoura, tentando descobrir se aquilo era ou não perigoso. Então fez um último gesto na minha direção, pegando um vaso de flores que estava na estante e o atirando aos meus pés - devia querer deixar claro que suas intenções não eram amistosas - e voltou para o banheiro, levando consigo a garotinha. Antes de entrar, ela fez um gesto de "tchau" - algo que eu a ensinara - e eu entendi, pela forma que ela me olhava, que não nos veríamos de novo. Espiei pela porta do banheiro, e vi quando ela entrou na banheira, e quando a coisa entrou logo atrás. Corri e esvaziei a banheira: não queria que aquilo voltasse. Fiquei sentado, tremendo, pensando em como uma coisa tão fofa como a minha garotinha poderia se tranformar em algo tão monstruoso quando crescesse.

* * * * *

Mais de duas semanas se passaram, e eu não enchera novamente a banheira. Mas sentia tanta falta da menininha. Então, um dia, enchi a banheira e fiquei esperando - já fazia bastante tempo que ela deixava eu ver ela chegando.
Depois de quase quinze minutos, vi o movimento na água, que indicava a chegada dela. Mas, ao invés dos cabelos negros e da carinha curiosa, o que apareceu foi aquela coisa, os cabelos parecendo algas negras, a pele uma coisa morta, os olhos totalmente negros, sem íris, ameaçadores. Dei um grito, mas antes que aquilo saísse da banheira, eu peguei a primeira coisa que alcancei - um tubo de desodorante - e joguei um jato em cima dele. Assustado, ele se debateu e mergulhou na banheira. Eu a esvaziei o mais depressa possível, e nunca mais voltei a enchê-la.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse é o primeiro conto publicado aqui que foi inteiramente escrito com base em uma palavra. Infelizmente, não me lembro quem disse a palavra, mas seja quem for, apresento meus agradecimentos aqui. A palavra em questão foi "água", e a partir dela desenvolvi toda a história do conto. Talvez tenha havido uma levíssima inspiração no filme "A Dama na Água". Ao escrever sobre a garotinha na banheira, me baseei na minha prima Jady quando era bem pequena (ela era uma coisinha muito fofa), e para escrever sobre o ser monstruoso que aparece depois, o que me veio à cabeça foi algo parecido com aquele monstro do filme "O Labirinto do Fauno" que tinha os olhos nas mãos.