terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #006] [U2] As Terras do Norte - Através da Noite


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 6
ATRAVÉS DA NOITE
“If you walk away, walk away
I walk away, walk away
I will follow”
(U2 – I Will Follow)

     O cavalo negro corria mais rápido do que o vento. Glory tinha que se agarrar a Bono para não cair, e se odiava por isso. Eles atravessaram uma vasta planície, e o sol finalmente rompeu as nuvens, iluminando o campo. Cavalo e cavaleiro eram apenas uma sombra atravessando a paisagem, os cabelos de Bono esvoaçando, assim como sua negra capa. O outro cavalo, que carregava a bagagem, seguia-os com dificuldade, amarrado por uma corda ao cavalo de Bono.
     Eles cavalgaram por horas e horas seguidas. Glory viu o sol subir no céu, e começava a descer quando eles deixaram o campo aberto e adentraram novamente em uma densa floresta; e, quando eles deixaram a floresta, surgindo no meio de um grande vale, o sol já se punha. Mesmo depois de escurecer totalmente, Bono não diminuiu a velocidade da corrida. Glory já não enxergava nada, e tinha a impressão de que a qualquer momento eles bateriam em uma árvore ou cairiam dentro de um rio.
     Subitamente, eles pararam. Glory se sentia terrivelmente enjoada. Bono desceu do cavalo e a puxou para baixo, ajudando-a a descer também. Desamarrou as cordas que prendiam os pulsos e os tornozelos dela, e em seguida se ocupou de tirar a bagagem necessária do outro cavalo. Acendeu uma fogueira, e só então Glory percebeu que ao lado passava um pequeno córrego. Ele amarrou os cavalos próximos à água, de forma que eles pudessem beber à vontade – o que eles realmente fizeram – e só então se voltou para Glory.
     -- Quer comer?
     -- Não.
     -- Não comeu o dia inteiro. Deve estar com fome.
     -- Não.
     Era mentira, ela estava morrendo de fome; mas, ao mesmo tempo, sentia que vomitaria assim que colocasse algo na boca. A imagem de Dave caído no chão lhe tirava qualquer vontade de comer.
     -- Você é quem sabe. Eu estou morrendo de fome.
     Ele comeu vorazmente. Glory ficou o tempo todo encostada em uma árvore, encolhida, olhando para a escuridão tenebrosa ao redor.
     Bono terminou de comer e arrumou as coisas. Glory evitava olhar para ele, até que ele disse:
     -- Venha aqui.
     Ela o olhou. Bono estava sentado sobre uma manta que ele estendera no chão. Glory disse:
     -- Pra que?
     -- Quero que se deite comigo.
     -- Não.
     -- Se não vier por bem, vou até aí e te arrasto pra cá.
     -- Venha. - ela deu de ombros – Eu não me importo.
     Ele se levantou, e ela percebeu que ele perdera de vez a paciência. A segurou e a obrigou a se levantar.
     -- Não! - ela gritou – Me solta!
     Ignorando os gritos dela, Bono a jogou sobre a manta estendida no chão, obrigando-a a se deitar, e subiu nela. Glory se debateu, mas ele a segurou firmemente e disse:
     -- Cale-se. Essa sua teimosia já causou problemas demais hoje. - ele começou a tirar as roupas dela – Vai aprender a me respeitar.
     Depois de algum tempo, ela parou de lutar. Não adiantava mais, e já não fazia diferença. Dave estava morto. Ela fora a responsável por sua morte. Nada mais importava agora.
     Apesar da brutalidade inicial com que a tratara, Bono não a machucou. Em poucos minutos, estava terminado. Glory ficara o tempo todo olhando para o lado, para a escuridão, e não voltou o rosto nem mesmo quando ele saiu de cima dela e se afastou. Apenas depois de algum tempo, lembrou-se de arrumar sua roupa e se cobrir, e fez isso depressa. Mas nem nessa hora olhou para Bono.
     Ele, por sua vez, olhava fixamente para ela. Disse:
     -- Não foi tão horrível, não é? - ele tocou nos cabelos dela – Acho que a vida de Evans valia mais do que isso.
     Glory continuou olhando para o vazio. Não tinha forças para nada. Nem para chorar.
     -- Você devia ter permitido naquela hora, no rio. - Bono continuou – Quanto tempo demorou? Dez minutos? Era só você ter fechado os olhos e deixado que eu fizesse tudo, e seu cavaleiro estaria vivo agora. Mas não, você quis defender sua honra. E pra que? Evans está morto agora, e você foi minha de qualquer jeito.
     -- Pára. - ela disse, finalmente.
     -- Você deixou que ele morresse em vão, Glory. A culpa pelo que aconteceu foi sua. Você matou Evans.
     -- Pára! - ela tapou os ouvidos – Cale-se! Você já teve o que queria, agora me deixe em paz!
     -- Claro, você é a princesinha mimada que tem o mundo nas mãos, não é? Nunca deve ter sido castigada por um erro. Não passa de uma criança egoísta que não mede as consequências de seus atos.
     Ela se virou para ele e tentou lhe dar um tapa no rosto, mas ele segurou a mão dela, indiferente.
     -- Quer me bater? Você é quem deveria levar uns tapas. Você errou, Glory, e já está na idade de responder por seus erros.
     -- Pare! Pare de me tratar como criança!
     -- É exatamente o que você é. Uma criancinha mimada e egoísta que não conhece nada da vida. Acha que só porque se deitou com um homem já pode se considerar adulta? Não seja ridícula. Você ainda tem muito o que aprender.
     Bono a puxou para si e a beijou à força. Quando a soltou, Glory estava chorando.
     -- O que vai fazer comigo agora? - ela disse, soluçando – Vai me abandonar no meio da floresta?
     -- Era o que eu devia fazer, para te dar uma boa lição. Mas seria um desperdício. Você vale muito, querida. - ele sorriu de forma maldosa – Posso te vender por um bom dinheiro. Ou posso te obrigar a vender seu corpo, tenho certeza de que conseguiria uma pequena fortuna.
     -- Vai ter que me matar primeiro.
     -- Calma, meu anjo, não estou dizendo que vou fazer isso. Acredite ou não, tenho um bom coração. Não faria uma coisa dessas com uma garotinha. Não, uma princesa merece ser tratada com todas as honras. Você vai ficar comigo por enquanto. Eu vou cuidar de você.
     -- E depois? Você não vai me deixar viver às suas custas sem pedir nada em troca. O que vai querer de mim?
     -- Ah, mas você vai me dar algo em troca... Um homem como eu precisa de uma mulher para acompanhá-lo. Estou cansado de ter alguém diferente a cada cidade em que eu passo. Por enquanto, você será minha acompanhante. Depois eu decido o que fazer com você. Mas não se preocupe com isso agora, meu anjo. - ele a abraçou, fazendo-a encostar em seu peito descoberto – Estou morrendo de sono. Vamos dormir, e amanhã seguiremos viagem.
* * * * *

     Glory acordou com os primeiros raios do sol. Bono dormia ao seu lado, mas não tocava nela. Ela se levantou em silêncio e se afastou, indo até a bagagem junto aos cavalos.
     Do meio da bagagem ela tirou um punhal. Olhou longamente para ele, e então se levantou novamente. Voltou para onde Bono dormia e o olhou. Ele estava sem camisa, seminu, e apesar do ar fresco da manhã, parecia sentir calor. Ela nunca mais deixaria que ele a tocasse. Nunca.
     Ela se ajoelhou ao lado dele e ergueu o punhal. Tinha que acertar exatamente no coração, para que ele morresse instantaneamente. Caso contrário, ele acordaria e ela teria que o golpear mais vezes, o que tornaria tudo ainda pior e mais difícil.
     Com uma respiração profunda, ela abaixou o punhal. Mas antes que atingisse o alvo, sentiu – antes de ver – Bono segurando seu pulso, e em uma fração de segundo ele a jogara no chão e a desarmara. Ela gritou ao perceber o que acontecera, e tentou fugir, mas ele subiu nela, imobilizando-a.
     -- Bom dia, querida. Obrigado por me acordar de forma tão carinhosa. - ele tinha no olhar um brilho selvagem – Faço questão de retribuir a gentileza.
     Glory tentou fugir, mas Bono era infinitamente mais forte. Com um único movimento, rasgara o vestido dela de cima a baixo. Mais alguns puxões, e Glory estava totalmente despida. A garota chorava e tentava lutar, mas era inútil.
     Dessa vez, ele não foi gentil, chegando a machucá-la. Mas, em compensação, foi mais rápido. Glory ficara o tempo todo de olhos fechados, tentando ignorar a dor e a sensação incômoda, e emitiu um murmúrio de alívio quando sentiu ele deslizar para fora dela. Abriu os olhos; Bono estava deitado ao seu lado, a respiração ofegante, o corpo coberto por gotas de suor. Glory o olhava com certa curiosidade infantil: nas outras vezes, com Dave e com Bono, estava escuro, e ela não vira direito o que acontecera depois, como eles ficavam. Não sabia se era sempre assim, mas Bono parecia ter acabado de participar de uma batalha – com a única diferença de estar nu. Ela corou ao perceber isso, e desviou o olhar.
     Quando Bono se recuperou, levantou-se, sem dizer nada, e se vestiu. Em seguida disse:
     -- Quer comer alguma coisa? Temos uma longa cavalgada pela frente, é bom se alimentar. Devemos chegar na cidade essa tarde.
     -- Não.
     -- Você é quem sabe. Eu estou morrendo de fome.
     Ele comeu, e depois arrumou as coisas de volta na bagagem. Preparou os cavalos e então se voltou para Glory.
     -- Você quer ir no outro cavalo, ou prefere ir comigo?
     -- No outro. - ela disse depressa, pois não queria passar outro dia agarrada a Bono.
     -- E vai se comportar? Não vai tentar pular ou algo assim?
     -- Não. Seria estupidez, você me pegaria.
     -- Muito bem, está aprendendo. - ele passou a mão na cabeça dela – Boa menina. Agora vamos.
* * * * *

     O sol já se punha quando eles alcançaram a cidade. Glory percebera que Bono diminuíra a velocidade de propósito, para que ela o acompanhasse, embora nenhum dos dois houvesse proferido uma única palavra durante o dia todo. Ela o seguiu para dentro do pequeno vilarejo, até uma estalagem, onde amarraram os cavalos. Bono entrou no lugar, e Glory o seguiu, em silêncio.
     Havia uma dezena de homens ali, bebendo e conversando alto. Todos lançaram olhares para Glory, apesar da longa capa com capuz que ela usava justamente para evitar olhares curiosos. Bono se dirigiu para o balcão e disse, para o homem do outro lado:
     -- Quero um quarto para essa noite.
     -- Tenho dois sobrando, lá em cima. - disse o homem, olhando com desconfiança para Bono – Um por trinta moedas de prata, outro por setenta.
     -- Qual a diferença entre eles?
     -- O mais caro é maior e está limpo. Tem uma cama grande também.
     -- Quero esse.
     -- E pode pagar?
     Bono jogou sobre o balcão uma moeda de ouro. O homem olhou para ele, admirado, e Bono disse:
     -- Está bom pra você?
     -- Claro, claro, senhor. - ele pegou a moeda com certo desespero – Vai querer mais alguma coisa?
     -- Quero uma refeição também. Pode levar lá pra cima?
     -- Sim, minha mulher levará pra você. O que vai querer?
     -- Carne de cervo assada com temperos, molho de legumes e vinho de ervas. Para duas pessoas.
     -- Sim, sim. Sua senhora vai querer alguma coisa?
     -- Traga uma bacia com água para ela se banhar. E toalhas limpas.
     -- Sim, senhor.
     Quando eles subiam, alguns homens sentados em uma mesa próxima à escada disseram:
     -- Viram o que aconteceu nas terras de Artur?
     Glory se deteve. Bono se voltou discretamente e a segurou pelo braço, fazendo um sinal para que continuasse a andar. Mas eles ainda puderam ouvir parte da conversa:
     -- ... foi uma coisa fantástica, um homem sozinho... Estão procurando o prisioneiro... Dizem que levaram a princesa...
     Bono entrou no quarto e fechou a porta, e não se ouviu mais nada. Glory cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
     -- Pare com isso. - disse Bono, asperamente – Vai passar quanto tempo lamentando o que aconteceu? Acabou, lágrimas não vão trazer Evans de volta.
     Ela não respondeu. Foi para o canto do quarto e se sentou no chão, abraçando os joelhos contra o corpo e continuando a chorar. Bono suspirou e foi olhar o quarto. Era razoavelmente grande, e quase limpo, embora nem de longe valesse setenta moedas de prata. Mas não tinha ratos nem pulgas, e a cama era grande, com lençóis limpos e sem buracos. Muito melhor do que a maioria dos lugares em que ele costumava dormir, e Glory não iria reclamar, depois de passar os últimos dias dormindo no chão.
     Em alguns minutos bateram na porta. Bono foi abrir; era uma mulher gorda, com um vestido espalhafatoso, que trazia a comida. Junto com ela vinham duas jovens, uma trazendo toalhas, outra trazendo a bacia. Bono deixou que elas entrassem e arrumassem a mesa. Glory continuava sentada em um canto, chorando encolhida, mas elas não fizeram perguntas. Apenas na hora de sair, a mulher gorda disse:
     -- Está tudo bem com sua senhora? Se ela estiver precisando de algo...
     -- Está tudo bem. - disse Bono, tentando não ser ríspido, para não despertar qualquer curiosidade sobre si ou sobre Glory – Ela só está indisposta. Não se preocupe.
     -- Se precisarem de algo, basta chamar ou ir até a taberna.
     A mulher se foi, com as jovens, e Bono trancou a porta. Foi até a mesa e analisou a comida, que parecia bastante apetitosa. Disse:
     -- Venha comer, Glory. Deve estar com fome.
     Glory não se mexeu. Bono se voltou para ela, um pouco impaciente.
     -- Glory, venha. Ou vou comer sem você.
     -- Coma. - disse Glory, com a voz muito fraca – Não estou com fome.
     Ela dissera isso sem erguer a cabeça. Estava esperando alguma resposta áspera de Bono, ou mesmo que ele fosse até ela e a arrastasse até a mesa; mas ele não fez nenhuma das duas coisas. Apenas se sentou à mesa e começou a comer, em silêncio. Após algum tempo, ele disse:
     -- Está uma delícia. Você não sabe o que está perdendo.
     Mas ela não respondeu. Ele ficou novamente em silêncio, até terminar sua refeição. Então olhou novamente para Glory, que não movera nem um músculo, e disse:
     -- Você devia pelo menos beber o vinho. Está o dia inteiro sem beber nada, deve estar morrendo de sede.
     Novamente, a única resposta foi o silêncio. Bono se levantou, com um suspiro, e olhou para o que sobrara da comida. Cobriu os pratos e tampou a garrafa de vinho, dizendo:
     -- Vou deixar sua parte aqui. Se quiser, coma depois.
     Ele lavou o rosto na bacia e foi até a janela. Já estava escuro, apenas umas poucas lamparinas na rua iluminavam o caminho aos andarilhos. Uma mulher com um gritante vestido amarelo passou pela rua, e dois homens a seguiram até uma casa suspeita do outro lado da vila. Bono sorriu para si mesmo, pensando se deveria ir lá também. Mas então olhou para Glory, sentada em um canto, e resolveu ficar. Não sabia o que ela poderia tentar fazer na sua ausência. Além disso, a trouxera consigo justamente para não ter que ficar gastando dinheiro com essas coisas.
     Como não havia muito o que fazer ali, e como estivesse cansado pela viagem, ele resolveu ir dormir. Não queria se demorar muito naquele lugar, era muito perto das terras de Artur. Era bom partirem na manhã do dia seguinte. Despiu-se e disse:
     -- Vamos dormir, já está tarde. Temos que sair amanhã cedo.
     Glory continuou onde estava. Ele deu um suspiro de impaciência.
     -- Não me ouviu? Venha logo, deite-se.
     -- Vou dormir aqui. - disse Glory, sem nenhuma entonação na voz.
     -- Não seja ridícula. Não paguei tão caro por um quarto para que você dormisse no chão.
     -- Se quiser que eu durma com você, vai ter que me arrastar para a cama.
     -- Escute – ele disse, tentando não se alterar – eu não vou tocar em você. Prometo. Apenas deite aqui. Se dormir mais uma noite desse jeito, amanhã não vai conseguir sequer se levantar.
     -- Não quero.
     Bono desistiu de pedir. Foi até Glory e a puxou pelo braço, obrigando-a a se levantar. Quando conseguiu, porém, teve uma surpresa: no lugar em que ela ficara, havia uma mancha de sangue. Havia também sangue no vestido dela, principalmente na barra. Mas não havia nenhum ferimento aparente. Ele disse:
     -- O que é isso? Onde se machucou?
     Ela desviou o rosto, e ele entendeu subitamente o que acontecera. Ela não devia ter cavalgado tanto tempo, logo depois de perder a virgindade. E ele fora muito bruto na última vez. Devia ter feito o ferimento se reabrir. Ele a fez se sentar na cama, dizendo:
     -- Era por isso que estava chorando? Devia ter me avisado. - ele começou a levantar o vestido dela – Está sangrando muito?
     -- Não faça isso. - disse Glory, afastando Bono.
     -- Você precisa limpar esse sangue, ou vai ficar doente. Tem que repousar. Olhe pra você, está pálida. - ele foi até a mesa e encheu um copo com vinho – Beba, vai te dar um pouco de cor. Não vamos mais sair amanhã. Você vai ficar aqui até estar totalmente restabelecida.
     Ele colocou o copo sobre os lábios dela, mas Glory se recusou a beber. Ele disse, exasperado:
     -- O que quer, morrer? Se não se alimentar, e sangrando do jeito que está, não vai demorar muito para conseguir.
     -- Que diferença isso faz pra você? - ela exclamou – Se eu morrer, é só você arrumar outra. Não vai fazer diferença nenhuma pra você.
     -- Não diga bobagens. Eu tenho motivos para querer que você continue comigo e não vou te deixar morrer. Beba isso, ande!
     -- Não! - ela foi para o outro lado do quarto e se sentou no chão novamente, apoiada à parede – Me deixa.
     Bono não sabia o que fazer. Ela recomeçara a chorar, encolhida. Estava realmente muito mal. A morte de Dave a abalara muito mais do que ele esperava.
     -- Certo. - ele disse, chegando à conclusão de que insistir seria pior – Faça o que quiser. Vou dormir, mas se precisar de algo, ou se não se sentir bem, me chame. E pode vir se deitar aqui, se quiser.
     Ela não deu nenhum sinal de ter ouvido o que ele dissera. Bono se deitou, cansado, e apagou as velas, deixando o quarto no escuro.
* * * * *

     Ele acordou depois de um sonho estranho, do qual não se lembrava. Moveu-se um pouco na cama, procurando Glory, mas ela não estava ao seu lado. A luz da lua entrava pela janela e iluminava um pouco o quarto; depois de alguns minutos, ele pôde enxergar. Glory estava ajoelhada em frente a uma pequena mesa com uma imagem de santa, rezando em voz baixa. Ele fingiu estar dormindo, e tentou escutar.
     -- Mamãe – dizia Glory – me desculpe por ter desobedecido o papai, mas eu achei que ia ser melhor assim. Eu queria salvar o Dave, mas acabei matando ele. Me perdoe, mamãe. Se a senhora estivesse aqui comigo, talvez eu soubesse o que fazer. Eu me sinto tão sozinha.
     Bono estava totalmente imóvel, e cessou até a respiração, para ouvir melhor Glory. Ela continuou:
     -- Mamãe, se o Dave estiver com você, cuida bem dele, por favor. Eu sei que ele está aí, porque ele sempre foi muito bonzinho. E a gente tinha casado, mamãe. Eu estava tão feliz. Mas eu fiz tudo errado, e ele acabou morrendo. Eu estou muito arrependida. - ela soluçou – Mamãe... Eu agora estou com um homem muito mal. Ele me machuca muito. Todo mundo aqui acha que ele é meu marido, mas ele nunca vai ser meu marido, porque eu nunca vou amar ele. Mesmo que a culpa pela morte do Dave não seja só dele, eu nunca vou amar ele. Ele é um homem muito mal, eu tenho medo do que ele quer fazer comigo. Me protege, mamãe. Não deixa ele me fazer mal. Mas talvez eu mereça, né? - ela suspirou – Talvez esse seja o meu castigo por ter matado o Dave.
     Houve um longo silêncio, em que Bono aguardou ansiosamente para que Glory continuasse. Ela o fez, depois de algum tempo.
     -- Cuida bem do Dave, mamãe. Eu amo muito ele, muito. Eu também amo você e o papai. Cuide de todos nós.
     Em seguida ela fez o sinal da cruz e se arrastou novamente para um canto, onde ficou, encolhida. Bono tinha a sensação de que não poderia mais dormir naquela noite.
* * * * *

     Glory acordou tarde no dia seguinte. Acabara dormindo, sem querer. Sentiu o sangue seco em suas pernas, e havia uma mancha em seu vestido, mas parecia ter parado de sangrar. Ela se sentou, sentindo o corpo todo doer. Sentia também muita sede, e uma grande fraqueza. Olhou para a mesa: não havia mais o jantar da noite passada. Bono devia ter mandado de volta. Era melhor assim, ela pensou; iria ficar cada vez mais fraca, até que um dia não aguentaria mais e se juntaria a Dave.
     Mal pensara isso, e Bono entrou no quarto, trazendo uma jarra e um copo. Deixou tudo sobre a mesa e foi até ela. Ajoelhou-se e disse:
     -- Você está bem?
     Ela virou o rosto e não respondeu. Ele segurou o rosto dela, delicadamente, e a fez voltar a olhar para ele.
     -- Eu sei o que você está fazendo. Sei que quer se matar. Você se sente culpada pela morte de Evans, e não consegue suportar a idéia de ter que viver comigo. Acha que a morte vai te livrar de tudo isso, e também será uma punição pelos erros que você cometeu.
     Ele estava certo, e Glory ficou surpresa com isso. Não esperava que ele pudesse entendê-la.
     -- Escute – ele disse – sei que está sentindo uma tristeza muito grande. Você perdeu alguém que você amava, e essa é uma dor quase insuportável. Eu entendo, sei o que você está sentindo. Fui muito ruim com você, ontem e anteontem, mas eu estava nervoso por causa de tudo o que aconteceu. Prometo que vou ser mais gentil a partir de hoje.
     -- Você não sabe – ela olhou para ele com raiva, e lágrimas caíram por seu rosto – não sabe o que é que estou sentindo! É incapaz de sentir qualquer coisa! Nunca deve ter amado ninguém do jeito que eu amava o Dave, a única pessoa que te importa é você mesmo! Eu já perdi muita gente, perdi minha mãe, meu irmãozinho e agora meu marido! Você nunca vai saber como é isso, nunca!
     Glory esperava que ele fosse ríspido com ela, mas se enganara. Ele estava calmo, e a expressão em seu olhar era branda e compreensiva.
     -- Então, você perdeu sua mãe. - ele se sentou ao lado dela – Quando?
     -- Pra que quer saber?
     -- Pra poder entender você. Me conte.
     -- Eu tinha dez anos. - ela se encolheu – Meu irmãozinho ia nascer, mas houve um problema. Mamãe morreu naquele dia, e ele morreu três dias depois. Foi horrível. - ela olhou para ele – Mas não dá pra dizer como foi. Você nunca vai entender isso.
     -- Eu entendo.
     -- Não, não entende. Não pode entender.
     Bono se apoiou na parede, e ficou alguns instantes em silêncio.
     -- Eu perdi minha mãe quando tinha a sua idade.
     Ela olhou para ele, surpresa.
     -- O que?
     -- Ela se foi quando eu tinha catorze anos. Foi assassinada.
     -- A... Assassinada? Mas... Por quê?
     -- Estávamos andando pelo bosque, procurando lenha. Era inverno e não tínhamos mais lenha em casa. Um grupo de homens chegou e tentou nos assaltar. Ela reagiu, e eles a mataram. Eu não pude fazer nada para impedir.
     Glory ouvia, abismada. Bono não olhava para ela; seu olhar parecia perdido em um passado muito distante.
     -- Acredite, princesa, eu sei muito bem o que você sente. - ele tocou na mão dela – Eu não quero que fique sozinha. Quero cuidar de você. Talvez você não acredite, mas eu não queria ter matado Evans. Pelo contrário, eu gostava dele, gostava muito. Era um homem corajoso, apesar de muito tolo, o que é natural em uma pessoa jovem. Eu queria que vocês fossem felizes. O que aconteceu foi uma fatalidade, e eu lamento muito, por você, por ele e por mim. Deixe-me cuidar de você, não quero que sua desgraça seja maior do que já é.
     -- Maior, impossível. Não tem como piorar.
     -- Acredite, tem. Você não tem idéia do que pode acontecer a uma mulher sozinha. Dave não gostaria disso, ele mesmo me disse. Sei que ele acharia certo você ficar sob minha proteção.
     -- Duvido que ele acharia certo eu me deitar com você.
     -- Era parte do trato, lembra? Agora você já cumpriu, não vou te obrigar a fazer de novo.
     -- Me obrigou ontem de manhã. E já tinha se deitado comigo na noite anterior.
     -- Você tentou me matar, esqueceu? Fiz isso para te dar uma lição. Não queira me ver nervoso, querida, eu posso ser muito mais cruel do que você imagina.
     -- E quer que eu aceite ficar com você mesmo assim?
     -- Se não fizer nada para me provocar, não precisará ter medo. Eu vou cuidar muito bem de você, Glory. Vou te dar segurança, proteção. Você pode se passar por minha esposa. Ninguém se atreverá a lhe faltar ao respeito.
     -- E o que você vai querer em troca?
     -- Nada demais. - ele tocou no rosto dela – Mas eu ficaria feliz se retribuísse como uma esposa de verdade.
     -- E se eu disser que nunca mais em minha vida quero que toque em mim?
     -- Então, eu vou te respeitar.
     -- E se eu não aceitar sua proteção?
     -- Então, você está livre para ir. Eu só não imagino para aonde você iria.
     Ele se levantou. Glory permaneceu sentada, pensativa.
     -- Pense no que eu te disse, princesa. Eu vou sair, e só devo voltar na hora do almoço. Está livre para fazer o que quiser, até para ir embora. Mas pense bem em que futuro quer para você. Duvido que Dave gostaria de ver a mulher que ele amava morrendo de fome, ou chorando pelo resto da vida.
     Glory não disse nada, e continuou olhando para baixo. Bono saiu, fechando a porta atrás de si. Na taverna, disse ao dono que não deixasse ninguém subir ao quarto, e que, caso ele não voltasse até a hora do almoço e Glory não tivesse saído, mandasse servir o almoço para ela. Então selou seu cavalo e seguiu em direção ao bosque.
* * * * *

     Ele voltou na hora do almoço, como havia previsto. Subiu direto para o quarto, mas ao chegar, Glory não estava ali.
     Tudo estava como ele deixara, a bagagem, os objetos, mas Glory se fora. Ele ficou um tempo parado, como se tentasse entender, e então se apoiou na parede. Tivera tanta certeza de que conseguiria convencê-la, que a possibilidade de que ela tivesse ido embora o pegara completamente desprevenido.
     Um pouco aturdido, ele fechou a porta e foi até a cama. Sentou-se e ficou olhando para o lugar onde Glory ficara sentada a noite toda. Ele dizia para si mesmo que fizera todo o possível, e agora não estava em suas mãos. Não entendia porquê se sentia tão triste por ela ter partido.
     Então, uma luz surgiu em sua mente. Os poucos objetos de Glory ainda estavam ali. Ela não partiria sem nada. Talvez tivesse apenas saído... Mas, ele percebeu depois, o dinheiro dela também sumira. Ela podia ter deixado tudo para trás para ir mais rápido, pensando em comprar mais depois.
     Ele desceu até a taverna, que estava cheia, e perguntou à mulher do dono se vira Glory. A mulher demorou um pouco para responder, pensativa.
     -- Sim, eu a vi. - disse, finalmente – Ela saiu há pouco. Perguntei se não queria almoçar, mas ela disse que não, que tinha algo a fazer.
     -- E ela disse... Para onde iria, ou a que horas voltaria?
     -- Não, não disse. Mas não se preocupe, senhor, a cidade é pequena, ela não irá se perder. E ninguém irá lhe oferecer perigo a essa hora. Ela parece ser uma jovem prudente, deverá voltar cedo.
     -- Sim, deverá. - Bono se sentou no balcão, com um suspiro cansado – Me sirva o almoço.
     -- O que vai querer? Temos carne de pato, de cervo e temos galinhas. Ah, meu marido arrumou alguns peixes...
     -- Vou querer pato assado, com molho de amoras e pão. E cerveja.
     A mulher saiu e voltou em segundos, trazendo o que fora pedido. Enquanto servia Bono, ela disse:
     -- Sua esposa é uma menina muito bela. E muito jovem.
     -- Sim, é.
     -- Vocês estão casados há pouco tempo?
     -- Sim.
     -- Eu imaginei... Ela ainda parece tímida perto do senhor. É natural para as noivas recentes. Ainda não estão acostumadas à vida de casadas, mas seja gentil com ela e ela logo aprenderá.
     -- Eu sou muito gentil com ela.
     -- Oh, claro... Eu não quis dizer isso. Foi só um comentário, a menina parecia assustada ontem. Ela é muito bem cuidada, imagino que venha de uma família de posses.
     -- De certa forma.
     -- O senhor deve ter recebido um bom dote ao casar com ela.
     Bono ergueu os olhos. Estava gostando cada vez menos daquele interrogatório.
     -- O que importa o que recebi?
     -- Oh, desculpe... Não quis ser indiscreta. Não quero dizer... Não acho que se casou com ela só pelo dinheiro. É claro que uma moça como ela merece um marido que lhe dê o mundo. Mas, fora isso, o senhor parece a amar muito.
     Ele esteve a ponto de se levantar e sair; mas, ao invés disso, respirou profundamente e disse:
     -- Eu gostaria de terminar minha refeição em paz.
     -- Oh... Sim, sim, claro... Perdão...
     Finalmente a mulher saiu. Bono terminou de comer, um pouco incomodado pelo último comentário da mulher. De onde ela tirara aquela idéia de que ele parecia “amar muito” Glory? Tais sentimentos nunca haviam passado nem perto dele. O que o atraía para Glory era uma mistura de culpa, compaixão e desejo físico, e isso era o mais perto que ele era capaz de chegar de um sentimento de carinho. Não tinha nada a ver com amor, e jamais teria. Provavelmente, a mulher dissera aquilo apenas para aliviar a má impressão que suas palavras anteriores haviam causado.
     Bono terminou de comer e voltou para o quarto. Tinha que arrumar suas coisas e partir ainda naquela noite, mas sentia um enorme desânimo. Deitou na cama, pensativo. Talvez Glory voltasse... Mas era pouco provável, ela era tola e teimosa demais. Não era mais problema dele, ele fizera o que podia.
     Sem querer, Bono acabou dormindo. Quando acordou, o sol já descera bastante. Ele se levantou, amaldiçoando-se por ter perdido tanto tempo, e começou a arrumar suas coisas. Depois pensaria no que fazer com as coisas de Glory.
     Já estava terminando quando ouviu a porta se abrir, e voltou-se. Para sua imensa surpresa, quem entrou foi Glory. A garota usava um vestido simples e preto, além de um véu também negro que lhe cobria os cabelos. Bono imediatamente entendeu: ela vestira luto por Dave. Ficou um tempo olhando para ela, e por fim disse:
     -- Achei que tivesse ido embora.
     Ela baixou a cabeça.
     -- Eu não tenho para onde ir.
     -- E por onde andou?
     -- Fui comprar coisas.
     -- Que coisas?
     -- Coisas para mim. Mandei fazer alguns vestidos. Eu não tinha nenhum vestido preto.
     -- Se vai ficar comigo, não devia usar luto. Todos acham que é minha esposa, como vai explicar isso?
     -- Não preciso explicar nada, e duvido que alguém se atreva a perguntar. De qualquer forma, se alguém quiser saber, diga que estou de luto por meu irmão que morreu em batalha. Lembro que minha mãe vestiu luto quando o irmão morreu.
     -- E quanto tempo pretende ficar assim?
     -- Para sempre. Dave era meu marido, e as esposas devem manter luto até o fim da vida.
     -- Ou podem começar uma nova vida, com outra pessoa.
     -- Eu não quero uma nova vida. Vou viver a que me resta, porque sei que Dave não gostaria de me ver chorar até morrer, mas jamais vou esquecer a memória dele ou pôr outro em seu lugar.
     Bono não discutiu. Pelo menos, ela aceitara ir com ele.
     -- Faça como quiser. Nós vamos embora essa noite, arrume logo suas coisas.
     -- Eu... Estou com fome.
     Ele não pôde deixar de sorrir, sentindo-se aliviado.
     -- Vou descer e pedir um jantar para você. Fique aqui e descanse. Eu já volto.
     Ela obedeceu. Quando ele voltou, encontrou-a deitada na cama. As mulheres serviram o jantar e se retiraram. Bono disse:
     -- Venha comer. A comida parece deliciosa.
     Glory foi, um pouco hesitante. Sentia-se culpada por continuar comendo depois da morte de Dave, mas ele provavelmente não gostaria de vê-la morrer daquele jeito. E, mal colocou os primeiros pedaços na boca, não pôde parar mais: estava realmente delicioso. Ela comeu vorazmente, e Bono sorria, assistindo-a. Quando ela terminou, Bono já terminara de arrumar tudo para a viagem.
     -- Escute – ele disse – se quiser, se estiver se sentindo cansada ou fraca, podemos adiar essa viagem até amanhã de manhã. São três dias até a próxima cidade, e você não pode começar a sangrar de novo.
     -- Não tem problema ficarmos mais uma noite aqui?
     -- Não, se sairmos cedo amanhã. E será menos perigoso do que seguir com você sem condições.
     -- Então, é melhor ficarmos. Eu me sinto fraca ainda.
     -- Certo. Vou avisar ao dono da hospedaria e pagar o que devo, para podermos sair cedo amanhã.
     Bono saiu, e, quando voltou, Glory já estava deitada, pronta para dormir. Ele sorriu ao vê-la na cama. Despiu-se e se deitou ao lado dela, mas ela não olhou para ele em nenhum momento. Quando ele passou a mão pelo braço dela, Glory disse, sem se voltar:
     -- Você disse que não ia mais pedir isso.
     -- E não vou. - ele chegou mais perto – A não ser que você queira.
     -- Eu não quero.
     Ele suspirou e se afastou.
     -- Vamos dormir. Teremos uma longa viagem amanhã.
     Os dois logo dormiram, ela com medo, e ele com frustração. Mas foi uma noite tranquila para ambos, e sem sonhos.

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