sábado, 20 de outubro de 2012

[conto #036] Sob o Olhar do Tempo

SOB O OLHAR DO TEMPO

Naquele dia, fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Eu costumava acordar quando ainda havia estrelas no céu e correr sozinha para a praia, na hora mais fria do dia. Sentava na areia gelada e esperava, olhando o mar escuro, até o céu se tornar vermelho, até as nuvens se afastarem do horizonte e o sol surgir. Ficava sentada na areia até que o gelo sumisse do ar, até que minha respiração não se condensasse mais, até que a luz inundasse tudo ao redor.
Eu costumava me sentir segura com o calor do sol. Costumava me deitar logo depois que ele se punha, e me levantar antes dele para recebe-lo.
Fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
E eu ainda lembrava de como ele era quente.
Por alguma razão, as pessoas costumam pensar que os imortais, por terem a mesma aparência eternamente, não se tornam mais velhos. Como se eu fosse ter vinte e poucos anos para sempre. Mas a verdade é que há um peso de setenta e cinco anos sobre mim, sinto o passar de cada dia, de cada hora. Uma vida sem cessar em que todas as horas são escuras, em que o que antes era vida agora é morte, em que as estrelas do céu são os únicos deuses que me acompanham.
Uma vida de temor por ser eterno em um universo finito.
O que acontecerá conosco quando todas as estrelas se apagarem e nosso mundo não mais existir?
Era uma madrugada fria e fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Quando o vi.
Ele podia ter qualquer idade, qualquer sexo, qualquer aparência. Quando o vi, não foi seu corpo físico o que me prendeu. Foi a alma imortal em uma existência mortal, a mente grande demais para um corpo tão pequeno, a enorme força contida em um ser tão frágil. O que ele viu em mim foi um deus preso a um corpo físico, alguém insaciável, alguém cuja existência desafiava toda a existência.
A noite chega e estou em sua janela, te olhando no escuro, te sentindo sem ver. Posso sentir que sentes minha presença. Posso sentir o calor da sua pele como podia sentir o calor do sol antes mesmo de toca-lo. Sei que você tem medo do seu desejo, luta consigo mesmo, e seu desespero me diverte, me emociona, me faz chorar e sorrir.
Estou sentada sobre a mesa apenas olhando você, deitado em sua cama, consciente de minha presença mas sem coragem de pedir o que mais quer, sem coragem de ir contra aquilo que acredita certo, lutando para convencer seu corpo de que tudo não passa de uma ilusão louca. Nós dois sabemos que é inevitável, nós dois sabemos que sua razão perderá, que você pode lutar consigo mesmo por cinquenta anos e vencer algumas batalhas, mas o destino é mais forte e você será meu. Haverá noites em que apenas te olharei da janela, haverá noites em que você chorará sozinho e sairá pelas ruas tentando fugir de si mesmo, mas em todas as outras, e serão muitas outras, eu me deitarei ao seu lado quando você derrotar a si mesmo e tomarei todo o seu sangue para mim, até que não lhe reste nada, até que tudo o que você possa fazer seja negar as horas da noite quando surgir o dia, pois eu já não existirei.
Ele é uma mistura de sim e não, de medo e coragem, daquilo que existe e que não deveria existir. São os últimos raios de sol que tocaram minha pele, antes de eu mergulhar para sempre na noite profunda.
Quando o sol surge, eu já não existo. Todas as cores do dia nada significam para mim.
Já corri por todos os campos, já escalei todas as montanhas e já desci todos os vales, apenas para descobrir que as estrelas nos assistem indiferentes, enquanto as amamos.
Todas as pessoas sabem o que é amar algo que sequer sabe da nossa existência. Nesse nosso amor pelo céu, no meu antigo amor pelo sol e minha paixão estranha pelas estrelas, somos todos vítimas de uma paixão não correspondida que atormenta nossos caminhos. O céu apenas nos olha em silêncio, indiferente ao fato de nascermos e morrermos. Perguntando-se sem interesse o que acontecerá com aqueles que não morrem jamais, quando todo o universo morrer.
Um dia você morrerá nos meus braços, e eu estarei novamente sozinha com a noite, como sempre foi e sempre deve ser.
Somos deuses sem poderes, somos pequenos demais para termos a eternidade.
Naquele dia, fazia cinquenta anos que ele surgiu das trevas da noite, pouco antes do nascer do sol, enquanto eu esperava a luz. Fazia cinquenta anos que ele me tornara parte da noite, sobre as areias brancas e sob as nuvens que se afastavam do horizonte, e quando o primeiro raio vermelho surgiu nós já não existíamos.
Nós fazemos parte da noite assim como as estrelas fazem parte do céu, e os seres que vivem e morrem são para nós o mesmo que nós somos para as estrelas. Um movimento insignificante e breve, um suspiro de vida que se vai da mesma forma que a neblina some ao calor do sol.
Quando eu o vi pela primeira vez, fazia cinquenta anos que eu não via o sol.
Mas me lembro do seu calor, assim como o universo se lembrará do calor das estrelas quando elas não mais existirem, quando só restarmos nós vivendo em uma rocha fria, pela eternidade.

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