CAÇADORES
A garota foi encontrada na beira do rio, dentro da floresta. Era o terceiro dia desde que desaparecera. Edge assistia em silêncio, enquanto a cobriam com um lençol, ocultando seu rosto pálido e seus olhos vítreos, sem vida.
-- Você viu?
Fora Dick quem perguntara. Edge balançou a cabeça, dizendo que sim. Duas marcas pequenas no pescoço, e a total ausência de sangue no corpo. Era a sétima em menos de três meses.
-- Temos que fazer alguma coisa. - disse Garvin – Isso não pode ficar assim. Logo vão haver outras.
-- Tem certeza de que são vampiros? - disse Gill – Não pode ser um lobo, como aquelas de York?
-- Não, eu conheço isso. As vítimas estão limpas, e sem sangue. São vampiros, e pelo jeito é mais de um.
-- Achei que os vampiros fossem solitários. - disse Edge.
-- Na maioria das vezes, mas nem sempre. Eles podem andar em bandos que eles chamam de família. Nesses casos são ainda mais perigosos.
-- As pessoas na cidade já estão comentando. - disse Dick – Muitos acham a possibilidade de vampiros um absurdo, mas o medo já se espalhou e várias acham que é real. Estão colocando alho e cruzes nas portas de casa.
-- Tolices. - o pai deles balançou a cabeça – Superstições. Nada disso vai detê-los.
-- Mas o que vamos fazer? - disse Gill – Já os procuramos, não encontramos nada! E com a mamãe doente, fica ainda mais difícil. Não posso ir procurar vampiros e deixar ela sozinha.
-- Não se preocupe com isso, Gill. - disse Dick – Se preocupe com a mamãe e com as suas notas na escola. Deixe isso para nós, que somos mais velhos.
-- E o que nós, mais velhos, vamos fazer? - disse Edge – Porque eu não vou passar mais uma semana sem dormir andando aleatoriamente pela cidade atrás de algo que eu nem sei o que é. Eles podem ter qualquer cara, podem ser iguais a pessoas comuns. Como saberemos quem são eles?
-- Teremos que pegá-los em flagrante. - disse Garvin – Mas não os encontraremos na cidade. Vocês viram, todas as vítimas estavam nos arredores da floresta. Teremos que procurá-los lá. Devem ter um ninho ou algo parecido, estão se escondendo em algum lugar bem longe da luz do sol.
-- Você conhece a floresta melhor do que nós, pai. - disse Dick – Acha que tem algum lugar ali que possa servir como esconderijo para vampiros?
-- Já pensei nisso, mas não consigo imaginar que lugar seria. Também não conheço a floresta tão bem assim. E é a primeira vez que vampiros se escondem nela. Devem vir de outro lugar, talvez até de fora da Irlanda. Fazia mais de trinta anos que não aparecia um aqui em Dublin.
-- Quando iremos? - disse Edge – Essa noite?
-- Será inútil. Eles acabaram de comer, não devem procurar outra vítima essa noite. Esperaremos três dias, e então iremos atrás deles.
-- E se outra pessoa desaparecer? - disse Gill.
-- Então iremos atrás imediatamente. Será mais fácil seguir os rastros mais recentes. Eles escondem seus rastros, mas não será fácil esconder os da vítima.
* * * * *
Na noite do terceiro dia após a última vítima ter sido encontrada, Edge, Dick e Garvin saíram juntos para a floresta. Gill e a mãe ficaram em casa, pois a menina ainda era muito jovem para aquele tipo de expedição e a mulher estava doente. Assim, os homens adentraram a floresta.
Mesmo de dia, o lugar podia ser assustador; à noite, qualquer pessoa que se aventurasse por ali poderia ser chamada de louca. Mesmo com as três lanternas, só era possível enxergar dois ou três metros à frente, e a todo momento passavam morcegos ou animais desconhecidos por eles.
-- O que exatamente estamos procurando? - Edge sussurrou.
-- Um vampiro. - Garvin sussurrou de volta – Não vamos nos afastar muito da borda da floresta. Se ele for atacar, terá que sair. Além disso, se entrarmos demais, estaremos no ambiente dele. Será muito perigoso.
Eles rondaram pelos limites da floresta por bastante tempo, mas a única coisa estranha ali era eles. Já passava de meia-noite, quando Edge disse:
-- Gente, é perda de tempo... Ele não vai aparecer, vamos embora...
-- Quieto, Edge.
-- Po, Dick, eu tenho aula amanhã...
-- Quietos! - disse Garvin – Tem alguém ali.
Os três ficaram em silêncio, observando. Alguém vinha correndo pela rua deserta, em direção à floresta. Parou por um instante, olhou ao redor e então entrou para o meio das árvores, a cerca de vinte metros de onde eles estavam.
-- Vamos! - Garvin ordenou, e os dois rapazes o seguiram depressa pela floresta escura.
Mas logo não viam mais ninguém, nenhum sinal de outra pessoa ali. A figura misteriosa podia ter ido para outro lado, ou adentrado a floresta.
-- Ele foi embora. - disse Garvin – Mas estava sozinho. Não teremos vítimas essa noite.
-- Ótimo. - Edge resmungou – Viemos aqui à toa.
-- Claro que não. Agora temos a certeza de que há pelo menos um vampiro aqui na floresta.
-- Ah, pai, por favor, a gente nem sabe se era mesmo um vampiro. Podia ser qualquer...
Nessa hora um grito assustador foi ouvido, vindo de dentro da floresta. Os três pararam e olharam em direção à escuridão. Então foram correndo na direção em que viera o grito, Edge na frente, Dick e Garvin logo atrás. Edge já tirara sua faca do cinto, pronto para atacar qualquer coisa que surgisse à sua frente. Mas o que surgiu foi um abismo, onde ele caiu direto para a escuridão.
* * * * *
Foi estranho abrir os olhos e continuar sem ver nada. Ele tentou se mover, mas sentiu o corpo todo dolorido. Conseguiu se virar de costas e se sentar, e demorou ainda alguns instantes para entender o que acontecera. Ele caíra por algum barranco, não sabia de que altura. Olhou para cima, mas só viu escuridão. Seu pai e seu irmão deviam ter parado ao ver que ele caíra. Estava sozinho agora.
Apalpando o chão com desespero, ele encontrou sua faca. Olhou em volta, tentando adaptar os olhos ao escuro. Conseguia discernir árvores, e um córrego. Havia tantos barulhos desconhecidos ao redor, e ele não sabia se significavam perigo ou se eram inofensivos. Então ouviu passos, e se voltou, esperando encontrar seu pai e seu irmão. Mas ao invés disso, viu a figura envolta em sombras de um rapaz desconhecido, parado ao seu lado.
Edge quase gritou. Se pôs de pé depressa, e a figura não se moveu. Por causa do escuro, parecia quase transparente, e ele ficou se perguntando se não seria um fantasma. Segurou sua faca com mais força e disse:
-- Quem é você?
O rapaz continuou a olhar para ele, em silêncio. Edge deu um passo para trás; não queria lutar sozinho com um vampiro. Na última vez, mesmo com a ajuda de seu pai e seu irmão, ele quase havia sido jogado do alto de uma casa de três andares.
Então, o rapaz deu um passo em direção a Edge. Este levantou sua faca, pronto para se defender, e gritou:
-- Não se aproxime!
Ele falara alto na esperança de que os outros o ouvissem. O rapaz parou, e ficou olhando para ele ainda por um tempo.
-- O que diabos você está fazendo aqui?
Fora o rapaz quem dissera. Edge ficou parado, sem entender: esperava que ele o atacasse, não que fizesse esse tipo de pergunta.
-- O que disse?
-- Perguntei o que está fazendo aqui. Achei que ninguém fosse doido de andar por essa floresta de noite.
-- Eu é que faço as perguntas. Quem é você? Você vive aqui?
-- Viver aqui? - ele riu – Ficou doido? Por que eu viveria numa floresta?
-- Se não vive aqui, o que faz aqui? Está se escondendo?
-- De certa forma... Era pra eu encontrar com a minha garota aqui, mas não deu certo, ela não apareceu.
-- Sua... Garota?
-- É, sacou? Estou saindo com uma garota, e íamos explorar a floresta... Se é que me entende.
-- Quem é você?
-- Pode me chamar de Bono. E você?
-- Meu nome é Edge. - Edge baixara a faca – Você mora aqui perto?
-- Mais ou menos. Moro mais pro centro. Por quê?
-- Por nada. Desculpe, eu me assustei com você.
Nessa hora Dick e Garvin vinham correndo, e apontaram as lanternas para Edge e Bono.
-- Não se mova! - Garvin gritou – Edge, você está bem? Ele não te atacou?
-- Relaxa, pai. - disse Edge – Não é ninguém perigoso.
-- Quem é você? - disse Dick.
-- Qual é, cara, abaixa essa luz. - Bono teve que tapar os olhos – Algum de vocês viu minha namorada por aí? A gente devia se encontrar aqui.
-- Não acredito. - Garvin suspirou – E isso é lugar para esse tipo de encontro?
-- É que não dava pra ser em casa, e eu vivo andando por aqui de noite, com um pessoal... E sabe, né... Só mato, bicho, e nós dois... Perfeito.
-- Estão acontecendo assassinatos aqui. - disse Dick – Não acha perigoso?
-- Que nada, besteira. Eu sei me defender. Deve ser algum maluco por aí, mas tem gente dizendo que foi um vampiro, pode? - ele riu – Povo besta.
Os três se olharam.
-- Olha, rapaz – disse Garvin – eu acho melhor você ir pra casa agora, ok? Não vá se meter em problemas.
-- É, vai ser o jeito, já que minha garota me deixou na mão. - ele foi andando, mas parou – Ei, espera. O que é que vocês estão fazendo aqui?
-- Estamos investigando. - disse Edge – Sobre os assassinatos.
-- Sei... - ele parecia bastante desconfiado – São da polícia, por acaso?
-- Sou detetive particular. - disse Garvin – Estamos fazendo mais por curiosidade.
-- Se você diz... - ele deu de ombros – De qualquer forma, eu venho sempre aqui. Se por acaso me virem, por favor não atirem em mim. Principalmente se eu estiver acompanhado.
Ele voltou a andar, se afastando. Edge ficou olhando para ele, e então se lembrou de algo.
-- Espera. - ele disse – Você não ouviu um grito?
-- Grito?
-- É, foi por isso que eu caí lá de cima. Ouvimos um grito, e fomos ver o que era. Vinha dessa direção.
-- Bem, o que mais tem aqui é bicho, não? Deve ter sido uma coruja ou qualquer coisa parecida. Antes eu me assustava, agora nem ligo mais.
-- Não ande assim pela floresta. - disse Garvin – Vai acabar se machucando.
-- Falou, tio.
E ele se afastou, sem dar a menor atenção para o que Garvin dissera.
* * * * *
-- Nada de vampiros. - disse Garvin, sentando-se ao lado da esposa no sofá – Só um garoto maluco que entrou na floresta para namorar.
-- E se os vampiros não estiverem se escondendo na floresta? - disse Gill – Eles podem estar matando as vítimas em um lugar, e levando elas para a floresta depois, pra despistar.
-- Boa, Gill! - disse Edge – Pensa bem, faz sentido! Vampiros são espertos, e como você mesmo disse, pai, nenhum vampiro nunca se escondeu na floresta. Eles podem estar jogando as vítimas lá só pra despistar.
-- Edge – disse Dick – você está é procurando uma desculpa para não voltar para a floresta.
-- Não é verdade! Eu não sou tão medroso quanto você acha, tá? Só acho que entrar na floresta vai ser uma perda de tempo.
-- Façam assim. - disse Gwenda – Fiquem fora da floresta, vigiando ao redor. Afinal, o vampiro vai sair da floresta para atacar. Mas fiquem separados, para poder vigiar um perímetro maior. E fiquem escondidos. Se virem alguém saindo da floresta, e não entrando nela, dêem o sinal e vão atrás.
-- Boa, mamãe! - disse Edge – Por isso que você é a melhor caçadora do mundo!
-- Não, meu querido, eu só penso.
* * * * *
-- Dick para Edge. - veio a voz de Dick pelo rádio – Alguma movimentação?
-- Nada. - disse Edge, usando seu binóculo para vigiar toda aquela parte da floresta – Ainda a pouco passaram umas crianças que ficaram jogando pedras nas árvores. Foi a coisa mais emocionante que aconteceu até agora. Como está aí?
-- Na mesma. Acabei de falar com papai, e ele também não tem nada.
-- Até que horas vamos ficar aqui?
-- Até amanhecer. Você não tem aula amanhã.
Edge desligou o rádio, com um suspiro. Estava quase dormindo. A floresta estava na mais completa paz. Até que ele viu algo se mexendo entre as árvores, e ajustou o binóculo para tentar ver melhor. Parecia uma pessoa. Ele estava pronto para dar o sinal, quando viu a pessoa sair de entre as árvores, e logo a identificou: era o mesmo garoto da noite anterior.
-- Ah, fala sério. - ele suspirou e baixou o binóculo – De novo?
O garoto saiu da floresta, andando tranquilamente e assoviando. Por causa do silêncio noturno, mesmo estando longe, Edge podia ouvir o barulho de seus passos. O rapaz foi andando pelas ruas, e logo sumiu de vista.
Quase uma hora depois, Edge viu outro movimento entre as árvores. Ajustou novamente o binóculo, mas não conseguia identificar o que era. Podia ser uma pessoa, ou algum animal muito grande. Então viu, teve a certeza de que viu, a forma de um braço e uma mão apoiada na árvore, e dois brilhantes olhos vítreos. Mas não ia dar o sinal sem ter certeza; afinal, se fosse um vampiro, ele teria que sair para atacar.
Ou não, ele percebeu ao ver, com horror, que Bono aparecera de novo, indo em direção à floresta, e não estava sozinho: uma garota vinha de mãos dadas com ele. Os dois iriam entrar na floresta.
Edge pegou suas armas e o rádio, e saiu depressa do sótão da casa abandonada onde estava montando guarda. Foi correndo pela rua até os dois, e disse, quase gritando:
-- Esperem!
Ambos levaram um susto, e pararam. Bono olhou para ele com incredulidade.
-- Você!?
-- Vocês não podem entrar ali. - ele apontou para a floresta – É perigoso, vocês têm que sair daqui.
-- Qual é, cara? - Bono parecia bastante irritado – Se manda, não vê que eu to ocupado?
-- Escuta, eu to falando sério. - ele olhava para a floresta, tentando ver alguma coisa – Eu estava ali perto vigiando, e eu vi com o binóculo. Tinha alguém ali nas árvores, parecia estar esperando vocês. Podia ser... - ele não podia dizer que era um vampiro, ou os dois iam achar que ele era louco – Podia ser algum assaltante, ou até o cara que está seqüestrando e matando as pessoas. Vocês não podem ir lá, é muito perigoso.
Bono riu, mas a garota estava bastante assustada.
-- Cara, pra mim seu problema é falta de mulher, ok? - disse Bono – Agora, eu não tenho esse problema e não quero ter. Vê se me deixa em paz.
-- Mas e se for mesmo, Bono? - disse a garota – E se for o maníaco da floresta?
-- Não tem maníaco nenhum, querida. Eu venho aqui direto, não tem perigo.
-- Não cai nessa. - disse Edge – Você vai arriscar? Vai entrar na floresta sabendo que várias pessoas têm sido mortas ali? E se você for a próxima?
A menina – que parecia ser bastante jovem – olhou assustada para Bono.
-- Eu quero ir pra casa.
-- Amor, não tem perigo nenhum... Olha, eu to aqui, vou te proteger...
-- Não, Bono, eu to com medo. Quero ir embora.
-- Mas...
-- Se você não voltar comigo, eu vou sozinha.
Ela o soltou e saiu andando pela rua. Bono ficou vendo ela se afastar, desolado.
-- Fala sério...
-- Olha, cara – disse Edge, dando um tapinha no ombro de Bono – isso foi pro seu próprio...
Mas Bono se virou para ele e lhe deu um soco. Pego desprevenido, Edge caiu no chão.
-- Qual é o seu problema? - Bono gritou – Acabou com a minha noite! Sabe quanto tempo demorou pra eu convencer ela? Você não tem idéia do quanto eu queria essa garota, e você estragou tudo!
-- Cara, você é doido? - Edge gritou também, levantando-se – Quer arriscar sua vida só pra ter um programa diferente com uma garota? Será que não existe outro lugar pra você fazer isso?
-- Arriscar minha vida? Você tá doido, cara, não tem nada naquela floresta!
-- Pessoas morreram ali! Sete pessoas, a última há cinco dias! Se você tivesse visto o corpo...
-- Eu vi o corpo, e se quer saber, não to nem aí! Eu sei muito bem me defender e defender minha namorada! E se quer saber, vou entrar nessa floresta e ficar ali até o amanhecer, pra você ver que não tem nada demais e parar de me atrapalhar!
Ele foi andando em direção à floresta. Edge hesitou, mas acabou indo atrás.
-- Espera, você não pode estar falando sério. Aí é perigoso, cara, eu não vou deixar mais alguém morrer aqui.
-- Vai pro inferno, seu maluco.
Bono entrou na floresta, e Edge foi atrás. Logo as luzes ficaram para trás, e ele não conseguia ver nada, mas Bono continuava andando como se tivesse algum tipo de visão noturna.
-- Ei, Bono, espera aí... Vai devagar...
-- ... completo maluco, é o que você é. - Bono resmungava – Só faltava me dizer que tem algum tipo de monstro aqui. Ou vampiros, como diz aquele povo ignorante.
Edge abriu a boca para responder, mas tropeçou em uma raiz alta, e caiu com estrondo. Quando se levantou, já não via nem ouvia Bono.
-- Bono? - ele olhou em volta e tateou os bolsos, apenas para descobrir que não trouxera sua lanterna – Bono, cadê você?
Mas já não ouvia o som da voz de Bono, e nem de seus passos. Edge engoliu em seco e tentou andar, mas tropeçou de novo e caiu, para sua surpresa, em algo molhado que, em um segundo de delírio, ele achou que fosse uma poça de sangue, mas que logo descobriu ser apenas água. Estava nas margens de um rio.
-- Ótimo. - ele se levantou, todo molhado – Tudo culpa daquele idiota.
Ele olhou em volta. A lua saíra parcialmente detrás das nuvens, tornando a escuridão menos densa, e Edge pôde ver melhor, mas não havia nenhum sinal de Bono. Ele parecia ter simplesmente evaporado. Como um fantasma, ele pensou. Ou como um vampiro.
Vampiro. Como pudera ser tão idiota? Ele não vira Bono entrar na floresta, o vira sair. Estava ali desde o começo da noite, e com certeza por ele Bono não passara. E ele voltara com uma garota, ia levá-la para a floresta, provavelmente para ser sua próxima vítima. E na noite anterior, a forma estranha como haviam se encontrado, o olhar estranho de Bono...
-- Bu.
Edge deu um grito e pulou pelo menos dois metros para trás. Bono começou a rir.
-- Isso aí, herói. Esse é o cara que vai proteger as pessoas do “maníaco da floresta”.
-- Onde você estava!?
-- Atrás daquela árvore. - ele apontou para um grande carvalho – Se você passar a noite sozinho aqui, é capaz de acabar se matando sem querer.
-- Isso não tem graça! - ele jogou uma pedra em Bono, que desviou – Eu fiquei preocupado!
-- Esquece a preocupação, ok? Já ficou claro que eu sei me defender melhor do que você.
Mas apesar da reaparição de Bono, Edge não esquecera suas suspeitas. Aproximou-se do outro, tentando vê-lo melhor apesar da claridade fraca.
-- Onde você disse que mora?
-- Eu? - Bono pareceu surpreso – Perto do centro, a uns vinte minutos andando. Por quê?
-- Onde você estuda?
-- No Kingston College.
-- Quem são seus pais?
-- Ei, o que é isso? Por que quer saber essas coisas?
-- Você é muito estranho. E estava tentando de todo jeito trazer uma garota pra cá. O que me garante que você não é o maníaco da floresta?
Bono olhou para ele, boquiaberto, e então deu uma gargalhada.
-- Você tá brincando, né?
-- Estou falando muito sério. Qualquer um evitaria a floresta por causa dos assassinatos, mas você se sente completamente seguro aqui. Você pode muito bem ser o assassino.
-- Eu brincava nessa floresta à noite quando tinha sete anos. Conheço esse lugar melhor do que minha própria casa. É claro que me sinto seguro aqui.
-- Se vem sempre aqui, devia ter visto algum sinal das vítimas ou dos assassinos. Elas foram encontradas aqui perto.
-- Claro que vi. Fui eu que chamei a polícia na última vez.
-- Você!?
-- Qual a surpresa? Saiu meu nome no jornal. Só não quis que minha foto aparecesse, pro pessoal não me encher.
-- Espera, eu li todas as notícias sobre o caso. Quem encontrou o corpo e chamou a polícia foi um tal de Hewson.
-- Paul Hewson, muito prazer. Você não acha que meu nome é Bono, não é?
-- ... - ele ficou sem jeito, pois realmente achara que o nome do outro fosse Bono – É um apelido?
-- Vai me dizer que seu nome é mesmo Edge?
-- Não, é... É David...
-- Então pronto.
-- Então, você encontrou o corpo... - ele podia ser útil, afinal – Onde?
-- No mesmo lugar em que você viu. Ao lado do rio. Eu não mexi nele.
-- E como você encontrou?
Ao ver que Edge estava mesmo interessado na história, Bono se sentou sobre um tronco caído e começou a contar.
-- Eu estava andando por aqui com mais dois amigos meus. Tínhamos acabado de pegar umas garotas, estávamos contando como foi. Aí depois eles foram embora, mas eu lembrei que tinha esquecido minha jaqueta lá pra trás, e voltei pra pegar. Já estava quase amanhecendo. Quando estava voltando, passei pelo rio, porque ali é melhor de andar. E achei o corpo.
-- Ele não estava ali antes?
-- Não sei, eu tinha passado por outro lado. Podia muito bem estar ali há dias.
-- Mas ele estava intacto. Se estivesse ali há dias, teria se decomposto.
-- Não necessariamente. Ele estava sem sangue, isso retarda a decomposição.
Edge não pensara nisso.
-- E você não acha isso estranho, Bono? - ele se sentou ao lado do outro – Essa falta de sangue em todas as vítimas?
-- Claro que acho. Bem sinistro. Pode ser alguma coisa de magia negra, sei lá.
-- Muita gente acha que foi um vampiro.
-- Ora, por favor. - ele riu – Isso é ridículo.
-- Mas sabe... Eu vi o corpo. E além de estar sem sangue, tinha dois furos no pescoço. Eu sei que é ridículo, mas era igualzinho às marcas de um vampiro. Dois furos muito fundos, pegando bem na veia.
-- Talvez seja algum psicopata querendo assustar as pessoas. Ele pode muito bem ter feito os furos e tirado o sangue por ali, mas duvido muito que tenha bebido o sangue, ou que fosse um vampiro. Deve ser só um maluco.
-- Você não acredita nessas coisas?
-- Que coisas?
-- Vampiros, fantasmas, lobisomens...
-- Claro que sim. E em Papai Noel também.
-- To falando sério.
-- Claro que não, cara, eu tenho um mínimo de estudo. Vai me dizer que acredita?
-- Não! Claro que não acredito, é besteira. Mas que essa história é assustadora, isso é.
-- Não acho. Já vi piores.
Nessa hora Edge olhou para seu relógio, e levou um susto ao ver que haviam se passado quase duas horas.
-- Que!?
-- O que?
-- São três e meia!
-- E daí?
-- Como o tempo passou tão rápido?
-- Bem, nós ficamos quase uma hora andando pela floresta.
-- Droga... Tenho que voltar, meu pai vai me matar.
-- Você sabe voltar sozinho?
-- Claro que sei. - ele olhou em volta, e percebeu que não tinha a menor idéia de onde estava – Ou não.
-- Eu te levo, então. Senão é bem capaz de você se perder e o maníaco da floresta pegar você.
Os dois demoraram bastante para chegar de novo até a rua. Quando chegaram, encontraram Garvin e Dick ali, andando de um lado para outro em frente à floresta e iluminando as árvores com a lanterna.
-- Edge! - Dick gritou, e correu para ele, o abraçando – Onde você estava? Estávamos quase entrando na floresta atrás de você!
-- Me desculpem, eu fiz besteira. - ele baixou a cabeça – Estraguei tudo.
-- Nós tentamos te chamar pelo rádio. - disse Garvin, também o abraçando – Mas não conseguimos, achamos que você tinha sido pego.
Edge tirou o rádio do bolso e tentou ligá-lo. Conseguiu, mas não encontrou sinal algum, como se houvesse alguma interferência.
-- Acho que está quebrado. Deve ter quebrado quando eu caí.
-- Você se machucou?
-- Não, foi só um tombo.
-- O que estava fazendo na floresta? Nós te falamos para não entrar.
-- Bono entrou, e eu fui atrás para tentar protegê-lo.
-- É mais provável que eu te proteja. - disse Bono, olhando intrigado para eles – Vocês estão mesmo tentando encontrar o tal assassino?
-- É, estamos. - disse Dick – Sentimos muito por invadir o seu motel particular, mas essa floresta atualmente é um lugar perigoso e você não pode ficar aqui.
-- Não me diga o que eu posso ou não fazer.
-- Foi ele quem encontrou o corpo. - disse Edge – A última garota, foi ele quem encontrou.
-- Você? - disse Garvin – Por que não disse nada antes?
-- Por que eu diria?
-- Você não viu mais nada estranho? - disse Dick – Algum desconhecido que pudesse ser o assassino?
-- Não, não vi. Se tivesse visto, contaria para a polícia.
-- Tome cuidado, garoto. - disse Garvin – Não queremos mais uma vítima.
-- Eu sei me defender.
-- E agora? - disse Edge – Vamos continuar vigiando?
-- Não. Já está quase amanhecendo, ele não vai atacar agora. Vamos embora.
* * * * *
Eram quase onze horas quando Edge foi acordado por Dick, que o sacudia.
-- Acorda!
-- Que!? - ele deu um pulo da cama e se pôs de pé – O que houve?
-- Olhe isso!
Dick praticamente jogou o jornal em cima de Edge. Logo na capa, a notícia, em letras grandes: mais uma pessoa desaparecida.
-- Não... - Edge se sentou na cama, lendo a notícia – Não acredito...
-- Foi um rapaz dessa vez. A última vez que foi visto, estava saindo da casa de um amigo. Foi por volta das duas e meia da manhã.
-- Ah, meu Deus... - Edge pôs a mão na cabeça – Foi na hora em que eu entrei na floresta com o Bono. Ele viu que eu não estava mais vigiando, e saiu.
-- Você chegou a ver alguma coisa?
-- Vi. Vi uma coisa que parecia uma pessoa, mas não pude ver seu rosto. Mas nessa hora Bono estava indo para a floresta com uma garota, e eu fui tentar impedi-los. Depois que a garota foi embora o Bono ficou com raiva e entrou sozinho na floresta, e eu fui atrás para protegê-lo. O vampiro devia estar nos vigiando, aproveitou que não estávamos mais lá para sair.
-- Isso é estranho, Edge. – disse Gwenda, entrando no quarto – Seria muito mais simples para o vampiro atacar vocês dois na floresta, ao invés de sair pela cidade atrás da vítima.
-- Eu pensei nisso, por isso fui atrás de Bono.
-- Esse menino Bono... Ele é confiável?
-- É, dentro do possível. Foi ele quem encontrou o corpo da última garota. Eu cheguei a pensar que ele poderia ser o vampiro, mas estava errado. Aliás, quando perguntei se ele acreditava em vampiros, ele riu da minha cara.
-- Mas ele não tem medo nenhum de nada. - disse Dick – E o vampiro preferiu sair pela cidade do que ir atrás de vocês. Será que ele também é um caçador?
-- O Bono, caçador? Mas se eu acabei de dizer que ele não acredita nessas coisas.
-- Ele pode estar fingindo. Ou pode ser um caçador latente. O dom pode estar no sangue dele, e ele nem sabe.
-- Sei não, Dick. Pra mim ele parece só um cara comum. Meio esquisito, mas comum.
Gill entrou no quarto também, interrompendo a conversa.
-- Mamãe, o papai não quer deixar eu ir no baile da escola!
-- Por quê?
-- Porque começa às oito horas da noite e vai até o sol raiar. - disse Garvin, juntando-se a eles – Eu não disse que você não vai, disse que não vai sozinha. E seus irmãos não vão poder ir com você, porque estamos no meio de uma caçada.
-- Mas pai, esse baile é muito importante pra mim!
-- Deixe o Edge ir. - disse Gwenda – Ele pode tomar conta da Gill.
-- Mas mãe – disse Edge – eu tenho que ajudar o papai e o Dick!
-- Você mais atrapalhou do que ajudou. Eu vou no seu lugar, você cuida da Gill. E se esse Bono aparecer de novo, vamos deixar ele ser comido vivo.
* * * * *
Edge estava apoiado na parede, olhando aborrecido os meninos e meninas que dançavam no salão. Gill estava linda, com um vestido verde, e os garotos faziam fila para dançar com ela. As meninas também o chamavam para dançar, mas ele não estava interessado. Só conseguia pensar em seus pais e seu irmão na floresta, e no menino que sumira. Tudo por sua culpa. Se alguém se machucasse...
Uma vez que Gill estava bem segura dentro do salão, Edge resolveu sair um pouco, para respirar. Foi andando até o portão da escola, e ficou olhando a rua. Então ouviu uma voz conhecida, mas não quis acreditar que estivesse mesmo ouvindo aquilo:
-- Fala, Edge.
-- Bono!? – ele se virou para o outro, que estava ao seu lado – O que está fazendo aqui?
-- Eu ia andar pela floresta, mas me disseram que aqui estava tendo uma festinha e vim ver se tinha alguma gata disponível. E você, veio pegar alguém?
-- Não, só vim cuidar da minha irmã.
-- Ah, você tem uma irmã? - ele pareceu subitamente mais interessado em Edge – Quantos anos ela tem?
-- Menos do que o suficiente para você dar em cima. Nem sonha em pôr os olhos na minha irmã.
-- Foi mal, foi mal... Mas então você está bancando a babá hoje?
-- Sem gracinhas, ok? Já basta ter que ficar no meio de um monte de crianças.
-- Bem, parece que as crianças estão seguras lá dentro. Você não quer dar uma volta?
-- Dar uma volta? Pra onde?
-- Sei lá. Vamos andar por aí, quem sabe a gente não encontra o menino desaparecido?
Com esse argumento, Edge acabou aceitando. Ele e Bono saíram andando pelas ruas já desertas. Sob a luz dos postes, ele podia ver Bono melhor do que das outras vezes; o outro era menor do que ele, mas parecia ser mais velho. Tinha um lindo rosto e belos olhos azuis.
-- O que foi? - disse Bono.
-- O que foi o que?
-- Por que está me olhando assim?
-- Assim como?
-- Sei lá. Mais um pouco e vou achar que quer me beijar.
Edge ficou muito vermelho, e desviou o olhar.
-- Por que eu iria querer te beijar?
Bono olhou para ele por um momento, e então riu.
-- Eu heim, cara. Eu não gosto disso não.
-- Disso o que?
-- Sei lá, mas se você estiver afim de mim...
-- Foi você que me chamou pra passear, ok? Se alguém aqui tinha que estar desconfiado, esse alguém era eu.
Ele deu meia volta e começou a se afastar de Bono, ofendido. Este foi atrás dele.
-- Ei, Edge, desculpa... Eu tava brincando...
-- Não gosto desse tipo de brincadeira.
-- Desculpa. Prometo que não faço mais.
Edge ainda estava um pouco ofendido, mas voltou a andar com Bono pela rua. Eles foram até uma velha casa abandonada, e Bono pulou o muro. Edge parou.
-- O que está fazendo?
-- Não se preocupa, eu entro sempre aqui. Vem.
-- Mas...
-- Anda, Edge, antes que te vejam.
Bono já estava atravessando o jardim e chegando na varanda. Edge acabou indo atrás.
-- Isso não é certo.
-- Eu sei, por isso é divertido. Vamos.
Eles entraram na casa. Estava tudo velho e cheio de poeira. Eles subiram para o sótão, de onde podiam ver toda a rua, até a escola de Gill.
-- O que você faz aqui? - disse Edge.
-- Venho me divertir. - ele se deitou em uma cama – Você gosta de falar de sexo?
-- O que!?
-- Falar de sexo. Eu te conto tudo o que fiz com a última garota que peguei, e depois é a sua vez. Vamos, vai ser divertido.
Edge sentou na outra cama, e baixou a cabeça, um pouco constrangido.
-- Eu não tenho nada pra contar.
-- Como assim?
-- Eu nunca... Fiz nada. Com ninguém.
-- Sério!? Po, quantos anos você tem?
-- Catorze.
-- Ah, tá novo ainda...
-- Quantos anos você tem?
-- Fiz dezesseis. - ele acendeu um cigarro – Quer um?
-- Não, obrigado.
-- Olha, se quiser eu conto tudo pra você mesmo assim. Pra você pegar umas dicas.
-- Acho melhor não.
-- Por quê?
-- A gente mal se conhece.
-- Ué, e daí? Você acha que eu conhecia todas as garotas com quem transei? - ele riu – Você é inocente demais pra um detetive.
-- Eu não sou detetive, meu pai é que é.
-- Toma, pega um cigarro.
-- Não, obrigado.
-- Vamos, pega aí.
-- Eu não fumo.
-- Nem eu, mas estou querendo um pouco de diversão. Vai, Edge, um não mata.
-- Não.
-- Cara, você é muito chato! - ele se levantou e foi até a janela, inconformado – Não dá pra se divertir com você.
-- Se quer se divertir, por que não vai atrás das suas garotas?
-- Já fiz sexo demais por hoje. - ele jogou o que restara do cigarro pela janela e mudou de assunto, sem mais explicações – Me fala da sua irmã.
-- Falar o que dela?
-- Como ela é. Quantos anos tem.
-- Pra que você quer saber isso?
-- Só curiosidade. Relaxa, não vou pegar ela.
-- Olha lá, heim.
-- Mas vai, fala. Como ela é?
-- Ela tem doze anos. Parece um pouco comigo. É muito bonita. E muito inteligente também.
-- Hum... - ele olhava para Edge de uma forma que este considerou muito estranha – Vocês se parecem?
-- Um pouco.
-- Ela tem namorado?
-- Claro que não. Só tem doze anos.
-- Está quase no ponto. - ele sorriu – Você e seu irmão parecem ser do tipo super-protetores.
-- Só cuidamos para que ela não caia na mão de algum tarado como você.
-- Ei, já disse pra não se preocupar. Não vou dar em cima dela.
Os dois ficaram um tempo em silêncio, Edge sentado na cama, e Bono olhando pela janela.
-- Quantos anos têm seu irmão?
-- O Dick? Dezesseis. Igual a você.
-- Mas deve ser um pouco mais velho. Eu acabei de fazer dezesseis.
-- É, ele vai fazer dezessete. Eu também vou fazer quinze, mas só no meio do ano.
-- Hum... Você é alto, sabe.
-- Nada... E você, Bono?
-- Eu não sou alto.
-- Não, isso eu sei... To falando, e a sua família? Você tem pais, irmãos...
-- Moro com meus pais e meus irmãos mais velhos. Mas não gosto de falar sobre eles.
-- Por que não?
-- Porque não. Não vale a pena.
-- Hum... Vocês sempre moraram aqui em Dublin?
-- Não, nos mudamos há pouco tempo. Morávamos no norte antes.
-- Ah, tá... Mas você disse que conhece a floresta desde que era criança.
-- Minha avó mora aqui. Eu vinha sempre pra cá. Mas não morava aqui antes.
-- Ah tá.
-- Eu vou indo. - ele saiu de perto da janela – A gente se vê.
-- Já?
-- É, aqui tá muito chato. Vou procurar alguma coisa mais emocionante.
-- Eu... Desculpa por não ser uma boa companhia.
-- Nada, você é legal. Só que é parado demais pra mim. - ele riu – Se quiser fazer alguma coisa emocionante, me procura depois do anoitecer perto da floresta. É onde eu costumo ir.
* * * * *
Dick, Garvin e a esposa voltaram para casa depois do amanhecer. Não haviam encontrado o garoto desaparecido, mas encontraram pistas.
-- Tinha pegadas lá, e pareciam ser de duas pessoas. - Dick contou para Edge e Gill, enquanto tomavam café da manhã – Eram muito recentes. Seguiam por perto do rio, até bem para dentro, mas chegavam em uma cachoeira e desapareciam.
-- Será que ele foi jogado lá de cima?
-- Não sei. Se foi, a correnteza levou o corpo para longe, porque não estava lá embaixo. Só espero que não seja outra pista falsa, ou que seja de novo aquele garoto maluco com alguma namorada.
-- Não, pelo menos ontem ele não foi na floresta. Eu estava com ele.
-- Ahm? Onde? Você não estava com a Gill?
Edge contou sobre seu passeio noturno com Bono.
-- Então, ao invés de tomar conta da nossa irmã, você vai passear pela rua com um cara que nem conhece.
-- A Gill estava muito bem lá na festa. E mesmo não conhecendo o Bono, eu meio que gostei dele. Sei lá, parece um cara legal, apesar de meio estranho.
-- Cuidado, Edge, ele pode até ser mesmo legal, mas parece ser do tipo que não pensa duas vezes antes de fazer alguma besteira. Cuidado pra não se meter em problemas por causa dele.
-- Pode deixar, eu tenho juízo. - ele ficou um tempo quieto, comendo seu sucrilhos, até que Gill terminou de comer e saiu da cozinha, indo fazer seus deveres de casa – Ele queria falar sobre sexo comigo.
-- O que!?
-- Logo que a gente chegou na tal casa, a primeira coisa que ele propôs foi isso. Ele contava tudo o que ele fez com a última garota que ele pegou, e eu contava a mesma coisa. Mas eu não topei, até porque não ia ter nada pra contar.
-- Eu heim, que coisa estranha... Vê se eu vou ficar contando essas coisas pra alguém que eu nunca vi na vida.
-- Será que ele já dormiu com muitas meninas?
-- Aquele lá tem cara de que pega uma por noite, e que nunca repete. Claro que pode ser só aparência, mas não duvido nada.
-- Hum... - ele ficou pensativo – Será que na minha idade ele já fazia essas coisas?
-- Ih, que é isso, Edge? Complexo de virgindade agora? Você só não pega ninguém porque você não quer. Tem um monte de meninas na escola que se jogam pra cima de você.
-- Mas eu queria alguém especial.
-- Se o Bono fosse esperar alguém especial, ele seria virgem até hoje. Relaxa, você não é o único virgem do mundo.
-- Tem certeza?
-- Absoluta.
-- Eu tenho medo, sabe.
-- Medo de que? De não encontrar ninguém especial?
Ele baixou a cabeça.
-- Não. Tenho medo de encontrar, mas não poder ficar com essa pessoa.
-- Por quê?
-- Você sabe. As vezes eu acho que sou um pouco... Diferente.
Dick colocou seu copo na pia e se voltou para Edge, muito sério.
-- A gente já conversou sobre isso. Você não é diferente. Você só é muito novo.
-- Tem certeza?
-- Sim. Tira essas idéias da cabeça.
-- Desculpa.
-- Tudo bem. Agora termina logo de comer.
* * * * *
Garvin decidira que, naquela noite, todos eles entrariam novamente na floresta. Até Gill iria junto, com a mãe. Cada um andaria em um lugar diferente, para aumentar as chances de encontrar o vampiro ou o menino desaparecido.
Era por volta de dez e meia quando Edge parou para descansar um pouco, sentado sobre uma raiz de árvore. Pegou sua mochila e tirou uma garrafinha de água. Enquanto bebia, escutou um barulho que parecia ser de passos.
Ele guardou novamente suas coisas e se levantou depressa, segurando firmemente sua faca e sua lanterna. Os passos se aproximavam, mas ele não conseguia dizer de onde vinham. Então sentiu alguém tocar seu ombro e se virou, golpeando aleatoriamente com a faca. Ouviu um grito, e tarde demais percebeu que era Bono.
-- Ai! - Bono segurou a mão, que sangrava – Minha mão!
-- Bono! - Edge correu para ajudar – Meu Deus, desculpa... Como é que você me dá um susto desses, eu podia ter te machucado sério...
-- Você me machucou sério! - o sangue pingava da mão de Bono – Está doendo!
-- Calma, calma... - Edge abriu sua mochila e pegou gaze e esparadrapo, além de remédio – Vem cá, eu tenho que limpar o sangue pra poder enfaixar.
-- Não encosta!
-- Deixa de ser bobo, um cortezinho... – embora não tivesse sido um cortezinho – Fica calmo, me deixa cuidar disso.
Embora suas mãos tremessem um pouco, ele conseguiu limpar o corte na mão de Bono, passar o remédio e enfaixar.
-- Pronto, viu? - ele guardou as coisas, satisfeito – Nem doeu.
-- Fala porque não foi em você. - Bono tinha lágrimas nos olhos, e olhava com preocupação para a mão enfaixada – Você é louco, é? Por que anda com uma faca?
-- Por que você acha? Estou procurando um assassino.
-- Se tiver mesmo um assassino aqui, ele provavelmente tem uma arma e vai rir quando você mostrar essa faquinha.
-- Eu sei o que estou fazendo, ok? E você, o que está fazendo aqui? Veio pegar alguma menina?
-- Não, só estou andando. - ele parecia estar um pouco vermelho – Te vi aqui, e achei que tivesse vindo por minha causa.
-- Hum... - Edge também ficou um pouco vermelho – Bem, já que nos encontramos, a gente podia, sei lá... Você pode andar comigo enquanto eu não encontro o vam... O assassino.
-- Tá bom.
Os dois foram andando, e chegaram até perto da cachoeira em que Dick vira as pegadas na noite anterior. Mas já não havia nada ali.
-- Você vai ficar andando aleatoriamente pra ver se acha alguma coisa? - disse Bono – Esse cara pode estar em qualquer lugar.
-- Eu tenho uma teoria sobre onde ele pode estar. Ou do que pode ter acontecido.
-- É mesmo? Qual é?
-- Bem... Ele não deve ter obrigado as vítimas a virem com ele. Deve ter convencido elas. Veio com elas até a floresta, talvez dizendo que queria mostrar alguma coisa, ou talvez usando algum outro argumento. Então ele chegou aqui, nessa cachoeira. - ele parou, olhando em volta, e respirou fundo, tentando absorver o ambiente – Então... Eles foram andando por ali. - ele apontou para o lado, para um caminho íngreme que descia ao lado da cachoeira – É o lugar mais difícil, mas como tem muitas folhas no chão, não ficariam marcas na terra. Eles desceram até lá embaixo.
Bono olhava para ele com curiosidade.
-- É uma boa teoria. Mas o que aconteceu depois?
-- Temos que descer para descobrir.
Eles desceram por aquele caminho, até chegarem aos pés da cachoeira. Edge olhou em volta, procurando alguma pista.
-- Muito bem. - disse Bono, sorrindo – Estamos aqui embaixo. Onde está o garoto?
-- Espera. - Edge andou um pouco pelo lugar, olhando atentamente cada detalhe, e então parou – Eles foram pelo rio.
-- Por que você acha isso?
-- Eu não sei. Mas sempre seguindo o rio, sempre. - ele apontou sua lanterna para as águas – Vamos.
-- Eu sei o que tem pra lá. Eles não estão lá.
-- Como sabe?
-- Eu costumo ir para dentro da floresta. Tem uns esconderijos, mas ele não está lá.
-- Não custa conferir.
Edge foi, e após um momento de hesitação, Bono foi atrás. Os dois ficaram andando por bastante tempo, sempre seguindo o rio, e a floresta se tornava cada vez mais densa e escura. De repente, depois que eles haviam andado por quase uma hora sem parar, Bono segurou Edge e se colocou à sua frente.
-- Chega, Edge. Não tem nada pra lá.
-- Eu tenho certeza que tem. - Edge estava muito agitado – Eu sinto.
-- Não, não tem. Não vai encontrar o garoto nem que continue andando a noite inteira.
-- Qual é o problema? - Edge estava ficando irritado – Se está com medo, pode voltar. Eu posso ir sozinho.
-- Não, você não pode! Não ia sobreviver um minuto aqui sozinho! E não vai sobreviver um segundo se continuar a andar pela floresta, mesmo se eu estiver com você, porque eu não posso controlar eles!
-- “Eles”? Quem são “eles”?
-- Eles... O que você acha? O que mais tem por aqui é bicho estranho. Se ficar aqui, vai ser comido vivo! Eu conheço a floresta, sei como nos proteger, mas não garanto nada se continuarmos indo pra lá!
Mas Edge simplesmente lhe deu as costas e continuou andando. Dessa vez, Bono não o seguiu.
* * * * *
Ele não sabia para aonde estava indo, nem por quanto tempo andara, mas sabia que era o caminho certo. Podia sentir, quase podia ver o garoto andando por ali, há apenas dois dias, seguindo aquele em quem confiava, e que logo se tornaria seu algoz.
Há muito tempo aquilo não acontecia. Nas últimas caçadas ele não sentira nada, apenas um grande branco quando fechava os olhos, quase como se as outras pessoas já não existissem; mas no alto daquela cachoeira ele voltara a sentir, e aquilo estava aumentando cada vez mais. Cada caçador tinha um dom, e o dele era o de sentir. Ele não saberia descrever a sensação: ele não via, mas podia dizer exatamente quem estivera ali, por onde passara e o que fizera. Ele não sabia como, apenas fazia.
De repente ele parou. Sua intuição mudara, não o mandava mais seguir o rio. Algo lhe dizia que o que procurava estava para dentro da floresta. Ele foi andando, dessa vez com mais cautela, pois estava muito escuro. Então viu uma enorme árvore, com raízes muito altas que formavam uma espécie de abrigo. Foi até lá, e quando apontou a lanterna para o chão entre as raízes, a luz iluminou o corpo de um rapaz.
Era o mesmo rapaz das fotografias nos jornais. O garoto que desaparecera. Estava nu, deitado de costas no chão, e ainda estava vivo, pois respirava. Mas tinha marcas no pescoço, indicando que já fora mordido. O vampiro voltaria para completar seu trabalho.
Com a faca, Edge cortou as raízes o mais depressa que pôde, e com dificuldade arrastou o rapaz para fora dali. Teria que levá-lo consigo, pois se o deixasse ali, quando voltasse poderia ser tarde demais. Se Bono tivesse ido com ele, seria mais fácil, ele pensou; mas de certa forma fora melhor assim. Se um vampiro aparecesse, seria bem difícil explicar.
Ele tentou contatar seus pais ou Dick pelo rádio, mas estava longe demais. Tentou acordar o rapaz, mas este estava muito fraco. Então colocou alguns panos ao redor dele, para não o machucar, e foi o arrastando pelas margens do rio.
Depois de andar por quase uma hora, ele encontrou Bono sentado sobre um tronco na margem do rio, parecendo muito triste. Mas, quando viu Edge, ele se levantou com um salto e correu para ele.
-- Edge! Você voltou, você está vivo!
-- Qual é, você achou mesmo que eu fosse morrer? Não é você que vive dizendo que a floresta não tem perigo nenhum?
-- Não tem perigo para mim, idiota! Você não tem idéia do que... - ele parou quando viu o rapaz que Edge trazia – Você o encontrou...
-- Encontrei. - Edge sorriu, orgulhoso – Eu disse que ia encontrá-lo.
Bono se ajoelhou e tocou no rosto do rapaz. O analisou por um tempo, e disse:
-- Ele está muito fraco.
-- Sim, mas está vivo. Tenho que encontrar papai e Dick depressa, temos que levá-lo pra um hospital.
-- Você é um bom caçador.
Edge deixou cair o rádio.
-- O que?
-- O que?
-- Você disse que eu sou... O que?
-- Um bom caçador. - Bono olhou para Edge com curiosidade – Para seguir rastros assim na floresta, deve estar acostumado a caçar.
-- Ah... Ah, sim, de certa forma...
-- Escute, se continuar a arrastar ele assim, ele vai acabar se machucando. Vai atrás dos seus pais, e eu fico aqui tomando conta dele.
-- Que? Mas...
-- Depressa, Edge, ele está muito fraco. Parece ter perdido muito sangue, está tão pálido. - Bono tocou no pescoço do rapaz – Talvez não agüente nem mais meia hora.
-- Não, ele tem que agüentar! Ele não pode morrer, Bono! Você está certo, eu vou atrás dos meus pais, vou ver se mais pra frente consigo algum sinal no rádio.
Ele saiu correndo, deixando Bono sozinho com o rapaz. Sabia que existia o risco de o vampiro aparecer e atacar os dois, mas realmente, se continuasse a carregar o garoto daquela maneira, ele não agüentaria nem mais meia hora. Tinha que encontrar seus pais, eles o ajudariam a levar o rapaz para um lugar seguro.
Chegando na altura da cachoeira, Edge conseguiu captar o sinal do rádio.
-- Dick? Pai? Mãe? Alguém, responde!
-- Edge!? - veio a voz de seu irmão – Onde você está? Estamos há horas te procurando, achamos que você tinha sido capturado!
-- Eu achei ele! Achei o garoto!
-- O que? Onde?
-- Depois da cachoeira, seguindo sempre o rio por cerca de quarenta minutos, foi onde eu o deixei. Bono está com ele. Eu vou voltar para lá para protegê-los, venham depressa porque ele está muito fraco e não vai agüentar muito tempo!
-- Ok, estamos indo!
Edge desligou o rádio e correu de volta para onde Bono ficara com o garoto. Mas quando chegou lá, o garoto estava no chão, e Bono estava afastado, olhando o rio.
-- Bono? Aconteceu alguma coisa?
-- Ele está morto. - Bono disse, sem se voltar – Estava fraco demais, não resistiu.
-- Não... - Edge se ajoelhou ao lado do rapaz e verificou seu pulso, constatando que ele estava realmente morto – Não, meu Deus... Estava tão perto...
-- Sinto muito.
Bono olhou para Edge, e só então viu que ele estava chorando. Foi até ele e se ajoelhou ao seu lado, abraçando-o.
-- Não foi sua culpa. - ele murmurou – Você foi ótimo, Edge. Foi incrível. Mas não era pra ele viver.
-- Se eu tivesse sido mais rápido...
-- Teria ganhado no máximo meia hora, o que não faria diferença. Vocês demorariam pelo menos duas horas para chegar ao hospital. A culpa não foi sua, já era tarde na hora em que você o achou.
-- Não, a culpa é minha, minha... - ele segurava na camisa de Bono, como se quisesse se esconder – Eu sempre faço tudo errado, sempre...
-- Não, Edge, você fez muito bem, foi perfeito... - ele tocou no rosto de Edge e o fez levantar os olhos – Olhe para mim. Você foi perfeito. Você quase salvou esse rapaz. Nenhum outro teria conseguido, só você.
Era a primeira vez que alguém dizia palavras tão reconfortantes para Edge, e de um jeito tão gentil. O garoto ficou olhando para Bono, e num impulso, o puxou para si e o beijou.
No momento em que seus lábios se tocaram, Edge sentiu como se estivesse entrando no paraíso. Não havia mais medo, nem vampiros, nem noites em claro, nem cadáveres. Mas essa sensação desapareceu no instante em que Bono o empurrou e se levantou, indo parar a quase dois metros de distância.
-- Desculpa! - Edge se levantou também, muito vermelho – E-eu não sei o que deu em mim, eu...
-- Não faça isso. - foi tudo o que Bono conseguiu dizer – Nunca mais.
-- Bono, me perdoa, eu não sei...
Mas Bono já correra para longe, sumindo na escuridão.
* * * * *
O café da manhã foi tomado sem que palavras fossem trocadas. Edge sentia todo o peso daquele silêncio sobre ele. Sabia que olhavam para ele, que o acusavam. Sabia que o culpavam pela morte do garoto.
-- Olha, pelo menos a gente encontrou ele! - disse Gill, de repente – Isso quer dizer que estamos melhorando! Na próxima, vamos conseguir salvar a vítima!
-- Não vai haver próxima. - disse Garvin – Eu vou matar esse vampiro maldito ou vou morrer tentando, mas ele não vai ter a chance de pegar outra vítima.
-- Quando vamos entrar de novo na floresta? - disse Dick.
-- Hoje à noite. E vamos levar todas as nossas armas.
-- Mas amanhã eu tenho prova cedo. - disse Edge.
-- Você não iria nem que tivesse um dia de folga. - disse Garvin, seco – Isso é um trabalho para caçadores de verdade, não para você.
-- Garvin, não exagere! - disse Gwenda – Ele pelo menos encontrou o corpo. Os dons dele estão voltando, isso pode ser útil.
-- Útil? Útil no que? Ele é fraco, covarde, não sabe o que fazer nas horas decisivas. É uma decepção.
Farto daquilo, Edge se levantou, derrubando sua cadeira, e saiu correndo para o quarto. Ninguém foi tentar consolá-lo ou se desculpar, sequer ver como ele estava. E ele sabia que o que diziam era verdade. Há gerações a família caçava vampiros, e ele era o pior caçador que já existira. Não merecia o sobrenome Evans.
Assim que anoiteceu, Dick, Gwenda e Garvin saíram para a floresta. Gill e Edge ficaram sozinhos em casa; mas, por volta das nove horas, Edge resolveu ir dar uma volta. Por causa das últimas noites em claro, não estava conseguindo dormir cedo. Tinha que andar um pouco para gastar energia.
Ele saiu andando sem destino. Encontrou alguns colegas de escola com quem ficou conversando, algumas garotas que ficaram se jogando para cima dele, mas nada que realmente o interessasse. E então, ao dobrar uma esquina, viu algo que era ao mesmo tempo bom e péssimo: Bono, vindo em sua direção. Carregava uma mochila pequena e alguns livros.
Antes que ele pudesse fugir, Bono o viu. Os dois pararam por alguns segundos, a poucos metros de distância, e então Bono sorriu.
-- Oi, Edge.
Edge sabia que estava muito vermelho, mas tentou parecer natural.
-- Oi. Você por aqui.
-- É, estou vindo da escola... - ele apontou para trás, vagamente – Fomos liberados mais cedo hoje, por causa de uma reunião de pais.
-- Você estuda de noite?
-- Sim. O que você está fazendo por aqui?
-- Nada, só estou andando.
-- Hum... Você quer... Digo, eu posso andar com você? Não tenho nada pra fazer, mesmo...
-- Seus pais não estão te esperando?
-- Não, eles sabem que eu chego sempre tarde. A única condição lá em casa é que eu chegue antes do amanhecer, senão da porta eu não passo.
Os dois começaram a andar juntos. Edge percebeu que Bono carregava três livros muito pesados, e disse, aliviado por encontrar algo para dizer:
-- Quer ajuda com os livros?
-- Ahm? Ah, não, não precisa...
-- Parecem bem pesados...
-- É só volume, não pesa. Vamos passar lá em casa, eu deixo meu material lá pra gente poder andar melhor.
Ser chamado por Bono para ir à sua casa deixou Edge muito feliz. Os dois chegaram em frente à uma casa simples mas grande, de dois andares; mas, para sua tristeza, Bono não o chamou para entrar.
-- Espera só um segundo, eu já venho. - disse Bono, indo quase correndo para dentro da casa e deixando Edge esperando no portão.
Edge ficou olhando para a casa com curiosidade, tentando imaginar como seria a família de Bono. Com certeza, muito diferente da sua, embora ele não soubesse dizer se seriam mais normais ou mais estranhos. E logo Bono voltava, com outra roupa e sem seu material.
-- Prontinho. - ele fechou o portão, e os dois voltaram a andar pela rua – Desculpa não te chamar pra entrar, mas é que está tarde e meus pais não gostam muito de visitas.
-- Tudo bem, não tem problema.
-- Pra aonde nós vamos?
-- Não sei. Qualquer lugar que não seja a floresta.
-- Você não vai atrás do assassino essa noite?
-- Não. Meus pais e Dick foram, e me mandaram ficar quieto em casa. Eles acham que eu não sou um bom detetive.
-- Ué, mas você não precisa ser um detetive só porque seus pais são, não é?
-- Mais ou menos. Isso é como uma profissão de família. Toda a família do meu pai é de detetives.
-- Que legal. Eu não conheço muitos detetives.
-- Eles são muito discretos. Pra não atrapalhar a profissão.
Os dois chegaram até uma praça. Bono se sentou em um banco, e Edge se sentou ao seu lado, embora não estivesse com muita vontade de ficar olhando o nada em uma praça escura e sem ninguém.
-- Por que você me beijou?
Bono dissera aquilo olhando para a frente, sem se voltar para Edge. Este sentiu o coração quase pular pela boca: achara que Bono não queria nunca mais falar sobre aquilo, que iam fingir que jamais acontecera.
-- E-e-eu não sei. Me desculpe. Deve ter sido só... Sei lá, eu estava confuso, a gente faz coisas estranhas as vezes, mas eu nunca quis... Desculpe. Foi um impulso.
-- Foi... Só isso? - eles olhavam para lados opostos, evitando qualquer contato visual – Mesmo?
-- C-claro... O que mais seria?
-- Eu não sei. Achei que você pudesse me dizer.
-- Não precisa se preocupar, eu juro que isso nunca mais vai acontecer. Nunca. Eu sei o que você deve estar pensando, mas eu não gosto de beijar outros meninos.
-- Então, aquilo não... Não foi por nada?
-- Não. Deve ter sido o sono. Eu estava há dias sem dormir direito.
Eles ficaram em silêncio. Edge sentia vontade de se levantar e ir correndo para casa, e de chorar pelo resto da noite. Por que tivera que fazer uma coisa tão estúpida? Beijar Bono no meio da floresta, ao lado de um cadáver... E eles mal se conheciam. Fora a coisa mais idiota...
Seus pensamentos foram interrompidos quando ele sentiu Bono segurar sua mão. Ainda demorou um pouco, mas acabou se voltando, e os dois se olharam. Os olhos de Bono pareciam ainda mais límpidos e azuis.
-- Desculpe por ter falado daquele jeito ontem. - disse Bono, sem soltar a mão de Edge – E por ter fugido também.
-- Tudo bem. Acho que eu faria a mesma coisa.
-- Mas eu fui muito rude com você. Eu só... Fiquei assustado. As vezes eu me sinto confuso também.
-- Por quê?
-- Eu não sei. - ele chegou mais perto – Acho que... A gente se conhece há poucos dias, mas eu já... Eu acho que gosto mais de você do que já gostei de qualquer outro... Menino.
Edge demorou para responder. Não conseguia encontrar as palavras.
-- Mesmo? Digo... Você...
-- Eu nunca... Digo... Antes... Eu nunca tinha beijado um garoto, mas... Eu estava curioso, e... E eu fiquei confuso por estar curioso, porque não sabia se era certo, e... E ontem você me beijou, e eu fiquei ainda mais confuso, e eu não sabia o que fazer, mas eu acho que... Não foi tão ruim quanto eu pensava que seria.
-- E-eu... Eu... Digo... Eu também estou muito confuso, mas eu... Não é que eu não tivesse pensado nisso antes, porque você é bonito e tudo, mas eu não tinha pensado em fazer, realmente, e juro que não sei porque fiz, quando eu vi eu já estava fazendo...
-- Você já tinha feito isso antes?
-- Eu... Ahm... Digo...
-- Fala a verdade pra mim, Edge. Por favor. Você já tinha beijado outro menino antes?
-- Tinha. - os olhos de Edge se encheram de lágrimas – Tinha sim.
-- Quantos? Muitos?
-- Não. Foi só um. - ele baixou a cabeça – Ele... Era alguém muito especial.
-- Foi há pouco tempo?
-- Mais ou menos.
-- Me conta.
-- Ele... Eu... - ele respirou fundo – Esse menino... Os pais dele eram amigos dos meus pais, e nós andávamos sempre juntos... Os pais dele eram... Eram detetives também... Nós investigávamos juntos... E a gente começou a se gostar. - ele estava muito vermelho – Eu fiquei muito confuso, ele também... Mas ele me disse que gostava de mim, e eu contei que também gostava dele, e a gente se beijou. Foi o meu primeiro beijo. E eu estava tão feliz, mas também estava com medo, porque eu era muito novo, então eu contei pro meu irmão. Mas ele não gostou nada disso, brigou comigo, e contou pros nossos pais... Eles contaram pros pais do menino, e a gente foi proibido de se encontrar. Mas a gente sempre dava um jeito de pelo menos se ver. Só que a gente só se via, eu não podia beijar ele, não podia nem tocar nele, ou falar direito com ele... A gente ficava só se olhando de longe... E uns meses depois, ele... - ele respirou fundo, pois estava quase chorando – Ele morreu.
-- Morreu!? Morreu como?
-- Ele foi atacado por um... Um criminoso que o pai dele estava investigando. Depois que ele morreu, eu nunca mais... Nunca mais consegui... Nunca mais fui o mesmo, eu...
Ele teve que parar de falar, pois estava chorando. Bono o abraçou, também muito triste.
-- Nossa, eu sinto muito... Oh, Edge, que triste... Sinto muito...
-- Eu tento não pensar nele, sabe... - Edge soluçava – Tento esquecer ele... Mas eu não consigo, quando eu durmo eu penso nele, eu sonho com ele... - ele olhou para Bono – Mas depois que eu te conheci, teve uma noite... Só uma noite... Que ao invés de sonhar com ele, eu sonhei com você.
-- Mesmo?
-- Sim. - ele baixou novamente os olhos – Foi uma das noites mais calmas que eu tive nos últimos meses.
-- Então, eu te faço bem?
-- Sim. - ele segurou a camisa de Bono e apoiou a cabeça em seu peito – Faz.
Bono beijou os cabelos de Edge, e eles se olharam. Ficaram se olhando por algum tempo, e a lua cheia saiu de trás das nuvens, refletindo nos olhos claríssimos de Bono. Então Bono tocou no rosto de Edge e o beijou.
-- Você pediu pra eu não fazer mais isso. - Edge sussurrou, quando eles se afastaram.
-- Mas você não fez. - Bono sorriu – Eu que fiz.
-- E você gostou?
-- Sim.
E eles se beijaram de novo.
* * * * *
Mal Edge entrara em casa, foi recebido aos gritos por sua mãe:
-- Onde você estava? Eu não te mandei ficar cuidando da sua irmã? Onde você se meteu?
-- Mãe? - ele teve que correr para atrás da mesa para não apanhar – Por que vocês chegaram tão cedo?
-- Nós fomos atacados, Dick está ferido!
Só então Edge viu as manchas de sangue no chão, indo para o quarto de Dick. Correu para lá, sem se importar com os gritos da mãe, e encontrou Garvin e Gill ao lado da cama, mexendo em remédios e curativos, enquanto Dick gemia de dor em cima da cama.
-- Dick! - Edge se juntou a eles – O que aconteceu? Ele te mordeu?
-- Não, ele não foi mordido. - disse Garvin – Mas os vampiros nos atacaram de surpresa. Nós lutamos, eu consegui ferir um e o teria capturado, mas o outro atacou Dick e os dois caíram em um precipício. Dick teve ferimentos e quebrou o braço, e enquanto eu o ajudava, os dois vampiros conseguiram fugir.
-- Mas eram vampiros mesmo? Tem certeza?
-- Absoluta. Dick atingiu um deles com a faca, no coração, e o ferimento se fechou no mesmo instante.
Nessa hora uma ambulância chegou, chamada por Gwenda. Ela foi com Dick para o hospital, mas Garvin ficou, com Edge e Gill.
-- Estou preocupada. - disse Gill – E se for sério?
-- Não é. - Garvin a abraçou – Ele vai ficar bem.
Eles voltaram para dentro de casa, e ele se voltou para Edge.
-- Onde você estava?
-- Fui andar um pouco. Estava muito agitado, não conseguia dormir.
-- Ficou andando sozinho?
-- Não. Encontrei com o Bono no meio do caminho, ficamos andando juntos.
Garvin se sentou no sofá e mandou Gill ir para o quarto. Edge tinha a impressão de que aquela não seria uma conversa agradável.
-- Você conheceu esse Bono há pouco tempo, Edge. Não acha que está andando demais com ele?
-- A gente só se encontrou por acaso. Aliás, em todas as vezes foi assim. E tipo, eu não sou de muitos amigos, e ele é um cara legal. Eu gosto de conversar com ele.
-- Eu sei. Mas não quero que você continue andando com ele. Se o encontrar, arrume uma desculpa e venha embora.
-- Ora essa, por quê? Você sempre reclama por eu não ser sociável, e agora que encontro um amigo, você não quer que eu ande com ele?
-- Você pode ter quantos amigos quiser, mas não o Bono. - ele suspirou, parecendo estar se decidindo entre falar algo ou não – Tem alguma coisa estranha com ele.
-- Como assim?
Edge estava começando a ficar nervoso. Pensava nos beijos e carinhos trocados entre ele e Bono há pouco mais de uma hora atrás. A praça e a rua estavam desertas, mas será que alguém vira...?
-- Recebi ainda há pouco um telefonema de um contato que tenho no IML. - disse Garvin – Eles já têm o resultado da autópsia da última vítima.
-- E daí?
-- O garoto morreu por falência dos órgãos vitais em decorrência da falta de sangue. Não havia uma única gota de sangue em seu corpo. Estava completamente seco.
-- Impossível. Ele estava vivo quando o encontrei, e já tinha sido mordido, mas não estava mais perdendo sangue.
-- Mas perdeu. Alguma coisa aconteceu enquanto você o deixou sozinho com Bono. Ele não morreu por fraqueza ou algo parecido, ele foi morto ali, naquela hora.
-- Isso não é possível, pai. Se o vampiro tivesse atacado, ele teria mordido o Bono também.
-- Eu não acho que Bono e o garoto foram atacados.
-- Acha que Bono é um vampiro? Que ele mordeu o menino?
-- É uma possibilidade.
-- Pai, isso é ridículo! O cara não tem nada na cabeça, mas ele com certeza não é um vampiro. Eu estive horas e horas sozinho com ele, ele teria me atacado.
-- Eu não disse que tenho certeza que ele é, disse que é uma possibilidade. E se não for, não quer dizer que seja inocente. Ele está escondendo alguma coisa, e não é nada bom. Fique longe dele, Edge, antes que acabe acontecendo alguma coisa ruim.
-- Não vai acontecer nada ruim. - ele se levantou – O Bono não é nada disso.
Ele foi para o seu quarto e trancou a porta.
* * * * *
-- Você não pode ir sozinho! - disse Gill – Vocês foram atacados por dois vampiros, e pode haver mais! E sem a força do Dick, vai ser muito difícil lutar com eles!
A habilidade de Dick, como caçador, era a força. Não chegava a ser tão forte quanto um vampiro, mas podia lutar com um quase de igual para igual.
-- Primeiro, eu não vou sozinho, vou com a sua mãe. - enquanto falava, Garvin preparava suas armas – Segundo, nós caçávamos muito antes do Dick sonhar em nascer. Já cacei sozinho várias vezes. Temos outras formas de nos defender e de atacar.
Ele terminou de arrumar suas coisas na hora em que Gwenda apareceu, com suas roupas de caçadora e suas armas. Gill disse:
-- Eu devia ir junto! Vocês podem precisar de mim, eu posso enxergar no escuro!
-- Você é muito nova para isso, Gill. - disse Gwenda – E pode ser uma grande caçadora. Por isso mesmo não queremos que se machuque.
-- Deixa o Edge ir, então! Ele é mais velho!
-- Seu irmão não está numa fase boa. - disse Garvin – Ele pode se machucar lá.
Nessa hora Edge saiu do quarto, de onde estivera escutando a conversa.
-- Eu não iria mesmo que me pedissem.
Seus pais pararam e olharam para ele.
-- O que disse?
-- Disse que não iria mesmo que me pedissem. Pra que? Você mesmo disse que sou uma vergonha pra todos os caçadores. Eu não quero mais fazer isso. Não quero mais caçar. Quero ser um garoto normal.
-- Edge! - disse Gill, olhando para ele como se ele tivesse dito algum enorme insulto, mas Garvin a cortou.
-- Depois nós discutimos sobre isso. Agora temos que encontrar e capturar no mínimo dois vampiros. Fique aqui e cuide da sua irmã.
Eles saíram. Gill andava de um lado para o outro, muito preocupada. Quando Edge disse que ia sair, ela quase teve uma crise.
-- Não sai não, Edge! E se acontecer alguma coisa?
-- Não vai acontecer nada, menina, eu só vou até ali na esquina.
-- Eu não quero ficar sozinha!
Ele suspirou. Queria sair logo, pois aquela era a hora em que Bono sairia da escola.
-- Vem comigo, então. - ele disse, afinal – Eu combinei de ir comer um lanche com um amigo meu, você pode ir junto.
-- Tá bom. Mas promete que não vai dar em cima das meninas igual o Dick fica fazendo.
-- Eu prometo.
* * * * *
Edge encontrou Bono apoiado no muro de uma casa, com as mãos nos bolsos, olhando distraidamente para a lua.
-- Ei, Bono! - ele sorriu, acenando – Demorei?
-- Um pouco. - Bono se esticou – Eu passei em casa pra deixar meu material e trocar de roupa, fiquei com medo de você ter chego antes de mim e ido embora.
-- Claro que não, eu ia te esperar. Aqui, essa é minha irmã Gill.
Bono ainda não conhecia Gill. Olhou com curiosidade para a garota, e então sorriu.
-- Muito prazer, Gill.
-- Oi! - ela estava um pouco vermelha, pois não esperava que seu irmão pudesse ser amigo de um rapaz tão bonito – Muito prazer.
-- E aí, o que vamos fazer? - disse Edge – Eu pensei em irmos comer uns sanduíches, mas se quiser, sei lá, uma pizza ou um salgado...
-- Sanduíches parece uma boa idéia. Vamos lá, estou com fome.
Eles foram andando, com Gill indo na frente, saltitando. Bono sussurrou para Edge:
-- Sua irmã é linda. - ele segurou a mão de Edge – Mas eu preferia que viesse sozinho.
-- Desculpe. - Edge ficou vermelho – Meus pais me deixaram tomando conta dela, e ela estava com medo de ficar sozinha. Ontem nosso irmão foi atacado.
-- Atacado?
-- Na floresta. Eles encontraram dois homens, e foram atacados. Temos motivos para crer que são os assassinos.
-- Meu Deus, Edge... Ele está ferido?
-- Sim, mas não foi grave, deve ter alta em poucos dias. Mas Gill ficou assustada. E meus pais foram de novo para a floresta. Dessa vez estão bem armados.
-- Ainda bem que você não foi. Não quero que nada aconteça com você.
-- Eu disse a eles que não quero mais fazer isso. Que quero ser só um cara normal.
-- E como eles reagiram?
-- Disseram que depois a gente conversa.
Os três chegaram à lanchonete, e enquanto comiam, Bono e Edge ficavam a toda hora brincando um com o outro; e quando estavam conversando com Gill, Bono ficava passando a mão na perna de Edge por baixo da mesa, o que fazia o outro ficar muito vermelho.
-- Edge... - Gill disse, bocejando, depois que eles já haviam comido bem mais do que o suficiente – To com sono...
-- Está tarde, mesmo. - ele se voltou para Bono – Você quer ir lá pra casa?
-- Eu posso? Seus pais não se importam?
-- Eles só devem chegar de manhã. E se eles chegarem antes, eu me entendo com eles. Vamos.
-- Tá. - Bono sorria – Se você quer.
A caminhada de volta para casa foi feita um pouco mais rápido do que a ida, porque agora Gill, além de estar com sono, também queria ir no banheiro. E Edge estava ansioso para poder ficar a sós com Bono. E Bono parecia ainda mais ansioso do que ele.
-- Chegamos. - Edge disse, destrancando a porta e entrando, seguido por Gill.
-- Posso entrar? - Bono disse, parando na beira da porta.
-- Claro, entra. - Bono entrou, e Gill já correra para o banheiro – Fica a vontade. Você quer beber alguma coisa?
-- Não, obrigado. Já tomei refrigerante demais.
Quinze minutos depois, Gill estava dormindo, e Edge foi para seu quarto com Bono. Mal fechara a porta, e Bono já o abraçava e beijava de leve seu pescoço.
-- Eu pensei tanto em você. - Bono disse, baixinho, no ouvido de Edge.
-- Eu também pensei em você. - disse Edge – Era tudo em que eu podia pensar. Em como eu queria estar com você de novo.
Eles se beijaram. Edge trancara a porta, mas estava com um certo medo de seus pais chegarem e pegarem ele ali. E tinha medo de mais alguma coisa, que não sabia bem o que era.
-- Quando quiser que eu vá embora, pode dizer. - disse Bono.
-- Eu não quero que você vá. - Edge apoiou a cabeça no ombro de Bono – Quero que fique aqui comigo. Até amanhã.
Bono mexeu nos cabelos dele.
-- Você quer dormir comigo?
Edge parou e se afastou.
-- Eu não disse isso.
-- Bem, se quer que fiquemos a noite toda acordados...
-- Não, não, é que... Quando você falou dormir, eu pensei... - ele ficou vermelho – Esquece.
-- Edge – Bono voltou a abraçá-lo – eu gosto muito de você e você gosta de mim. Você sabe que... - ele parou, procurando a melhor forma de dizer aquilo – Você não é uma menina, então acho que eu não preciso dizer pra você as coisas que eu digo pra elas, mas eu não sei. Não tenho muita certeza do que fazer. Você vai ter que me dizer.
-- Do que você está falando?
-- Estou falando que nenhum de nós quer ficar aqui a noite inteira só se beijando.
-- Eu... Ainda não pensei muito sobre isso.
-- Mas você quer. Não precisa pensar.
-- Não é bem assim, Bono. Pra você deve ser muito simples, mas eu nunca fiz isso.
-- Eu também não. Não com um menino. Mas se eu começo uma coisa eu quero terminar isso. Eu já tinha decidido quando te beijei lá naquela praça.
Eles se sentaram na cama.
-- Eu tenho medo. Medo do que meus pais vão dizer.
-- Eles não precisam saber.
-- Só me dá mais um tempo. Por favor. Eu não quero parecer uma menina insegura e cheia de frescuras, mas... Eu estou mesmo inseguro.
-- Claro, eu não estou te pressionando. Só falei isso porque é uma coisa que nós dois estamos pensando, acho que a gente não tem que fingir que não está acontecendo nada.
-- Sabe o que é, também? Eu... Eu não quero te cobrar nem te exigir nada, mas... Eu ficaria muito feliz se você não ficasse andando com as meninas. Pelo menos enquanto a gente está... Enquanto estamos fazendo isso.
-- Eu vou tentar me comportar, prometo. - ele beijou Edge, e por vários minutos eles se esqueceram de qualquer dúvida que tivessem – Você quer que eu fique ou não?
-- Eu quero, mas não posso. Se meus pais chegarem...
-- Eu entendo. Eu também não posso. Tenho que estar em casa antes do amanhecer.
-- Mas fica mais um pouco. Por favor.
-- Fico sim.
Os dois se deitaram, e ficaram se beijando por muito tempo.
-- Sabe – Edge disse, abraçado a Bono – meu pai me disse uma coisa muito estranha ontem.
-- O que?
-- Não tem a última vítima?
-- Sim.
-- Ele estava vivo quando eu te encontrei, não estava? Você viu ele respirando.
-- Sim, ele morreu pouco depois de você sair.
-- Então... Mas na autópsia, descobriram que ele estava completamente sem sangue quando morreu.
-- Ué, mas todas as vítimas estavam assim. O que tem demais?
-- Pensa, Bono. Se ele já estivesse sem sangue quando eu o encontrei, não estaria vivo. E ele nem estava sangrando, só tinha as marcas no pescoço. Ele perdeu o resto do sangue em algum momento enquanto eu estava indo procurar os meus pais.
-- Mas como? Ele não estava sangrando.
-- Eu não sei. Não aconteceu nada estranho enquanto você estava sozinho com ele?
-- Não, nada. - ele pensou um pouco – Será que não foi depois?
-- Depois?
-- Ele pode ter morrido, e perdido sangue depois de morto. Ou, sei lá, isso pode ser algum tipo de vírus, ou uma doença. Alguma coisa que seca o sangue da pessoa.
-- Não, isso não faz nenhum sentido.
-- Bem, pra mim faz mais sentido do que a hipótese de vampiros. Você acredita que até os jornais estão falando isso?
-- É, eu vi. Estão chamando de “o vampiro da floresta”.
-- Cara, que ridículo. Estamos em pleno século vinte, não acredito que ainda tem gente que acredita nisso. E num jornal! O mundo está perdido.
-- Mas e se for?
-- O que?
-- Eu sei que é ridículo e tudo, e não acredito nessas coisas... Mas tudo o que está acontecendo é tão estranho. Os caras que atacaram meus pais ontem, eles disseram que eram muito estranhos, não pareciam pessoas normais. Já pensou se for realmente um vampiro?
Bono riu.
-- Cara, se for, eu gostaria de me encontrar com ele. Deve ser interessante. Mas levaria uma cruz, claro. E água benta.
Edge riu. Não tinha a menor idéia de onde surgira aquelas histórias sobre cruzes, água benta e alho, mas sabia que não tinham o menor fundamento. Já lutara com um vampiro dentro de uma igreja. Das crendices, as únicas com uma base real eram a da luz do sol – eles não podiam sair de dia, pois a luz os queimava – e a de entrar na casa das pessoas apenas com autorização.
-- Vamos pra floresta amanhã? - disse Bono, rindo – Quem sabe não encontramos algum vampiro?
-- Tá doido? Não quero morrer.
-- Ah, vamos, Edge. Tem um lugar lá que eu quero te mostrar.
-- Vou pensar.
-- Está com medo, é? - ele riu e subiu em Edge – Com medo do vampiro?
-- Ei, sai, você é pesado...
-- Ou com medo de eu te atacar? Ou, talvez... Você esteja com medo de eu ser um vampiro.
Ele afastou os cabelos de Edge e beijou seu pescoço, em seguida o mordendo de leve. Edge sentiu arrepios.
-- Pára...
-- Deixa...
-- Pára. - ele afastou Bono e se sentou – Meus pais vão chegar daqui há pouco. É melhor você ir.
Bono ia protestar, mas então olhou para o relógio, que indicava cinco e meia da manhã.
-- Meu Deus! - ele se levantou com um pulo – Já está quase amanhecendo!
-- Nossa, eu nem vi a hora...
-- Desculpa, Edge, eu tenho que ir. - ele deu um beijo leve em Edge – Vou te esperar hoje à noite em frente à praça.
E antes que Edge pudesse dizer “tchau”, Bono já se fora, correndo pela rua como se fugisse de algum enorme monstro.
* * * * *
Já eram quase nove horas da manhã quando os pais de Edge chegaram. Edge dormia, mas foi acordado por Gill, que invadiu seu quarto e pulou em cima dele.
-- Acorda, maninho, acorda! Papai e mamãe chegaram!
-- Hmmm... - ele estava tendo um lindo sonho, envolvendo chocolates e flores e Bono, e não queria ser interrompido – Tá.
-- Vamos, acorda! Eles conseguiram capturar o vampiro!
-- Conseguiram!?
Em dois segundos, Edge levantara, se vestira e fora para a sala. Gwenda fazia um curativo em Garvin, que estava com o braço ferido, mas no geral os dois pareciam bem.
-- Pai? Mãe? - ele correu para eles – Vocês conseguiram pegar o vampiro?
-- Pegamos um deles. - disse Gwenda – Dessa vez fomos atacados por três, mas conseguimos pegar um e os outros dois fugiram.
-- Tem certeza de que eram vampiros?
-- Sim. Nós o amarramos em uma árvore e o deixamos lá até o sol nascer. Ele queimou completamente, não restou nada.
Edge sabia que vampiros deviam ser mortos, e que esse era o único jeito de matá-los; mas sempre se sentia mal quando fazia. Era horrível vê-los queimando, o sol derretendo sua pele enquanto eles gritavam de dor, até só sobrarem cinzas.
-- E como ele era? - Gill quis saber.
-- Muito branco, como todos. - disse Garvin – Os olhos de um vampiro. Nada especial.
-- Ele tinha alguma habilidade especial? - Edge estava muito empolgado – Era muito forte?
-- Pra que você quer saber, Edge? Achei que não quisesse mais ser um caçador.
Ele ficou muito vermelho. Até se esquecera daquilo.
-- E não quero. Só estou curioso. - ele foi indo para a cozinha – Mas tem razão, isso não me importa mais.
Garvin e Gwenda trocaram um olhar, e em seguida Garvin foi atrás do filho.
-- Edge, nós precisamos conversar.
-- Conversar o que?
-- Você não pode fugir disso. Você é um caçador, está no seu sangue. Pode tentar ignorar, mas mais cedo ou mais tarde isso vai voltar pra você.
-- Sou um péssimo caçador. Você mesmo disse isso.
-- Foi uma coisa estúpida, eu não devia ter dito aquilo. Foi injusto, você não teve culpa por aquele garoto ter morrido. Pelo contrário, você foi fantástico, encontrou a pista dele a quilômetros de onde ele estava. Seus dons voltaram, e voltaram mais fortes do que antes. Isso é muito bom, estou orgulhoso de você.
-- E por que não disse isso na hora?
-- Porque eu estava com raiva de mim mesmo por não ter encontrado o garoto primeiro, e acabei descontando em você. Me desculpe, eu nunca mais vou fazer isso. Você é um grande caçador, nós precisamos de você. Vamos precisar de você se quisermos capturar os outros vampiros.
-- Eu não posso mais fazer isso, pai. É demais pra mim. Olha o que eles fizeram com o Dick.
-- O Dick está muito bem e logo vai voltar a caçar com a gente. Temos que fazer isso, Edge. Pense em todas as pessoas que você já protegeu, em quantas vidas já salvou. Desde criança, nós te ensinamos a lutar contra eles. É o seu destino. Existem muitos filhos de caçadores que são pessoas normais, mas você nasceu com o dom. Está predestinado.
Edge sabia disso. Sabia que sua única opção era ser um caçador.
-- Eu sei disso. - ele suspirou – Desculpe. Eu só estava com raiva quando disse aquilo.
-- Eu sei. - ele abraçou Edge – Vai estar com a gente hoje?
-- Hoje? - ele se afastou – Hoje eu não posso, eu... Tenho um compromisso.
-- Que compromisso?
-- Olha, eu sei o que você vai dizer, mas... O Bono me chamou pra ir num lugar com ele, e eu prometi que ia, não ia ser legal não aparecer.
-- Bono. - Garvin suspirou – Eu não gosto da sua amizade com esse garoto.
-- Se ainda acha que ele é um vampiro...
-- Eu nunca achei que ele fosse um vampiro. Só acho que ele esconde alguma coisa. E seja como for, ele não me parece boa companhia.
-- Olha, ontem eu e Gill saímos com ele, fomos numa lanchonete, e depois ele veio aqui pra casa e ficamos batendo papo, foi muito legal. Ele conversa muito bem, e não é tão arrogante quanto parece.
Garvin ficou um tempo olhando para ele.
-- Por que não convida ele para vir aqui amanhã durante o dia?
-- Ahm? Você quer que ele venha?
-- Claro, se ele é realmente um bom rapaz, talvez eu e sua mãe gostemos dele. Minha primeira impressão sobre ele não foi das melhores, mas pode ser só uma impressão. Vou deixar você sair com ele hoje a noite, com a condição que amanhã ele venha aqui durante o dia.
-- Certo! Vou falar com ele, tenho certeza de que ele vai concordar!
* * * * *
Edge já estava na praça há quase meia hora quando Bono chegou. Veio muito devagar, olhando para o chão. Estava usando óculos escuros, o que era muito estranho, visto que eram nove horas da noite.
-- Bono! - Edge correu para ele – Eu achei que não vinha mais! E que óculos são esses?
-- Desculpe. - Bono disse, e Edge achou que tinha algo estranho na voz dele – Eu tive uns problemas.
-- Que problemas?
-- Nada, não se preocupe. Umas coisas lá em casa.
-- E esses óculos?
-- Eu estava... Com uma coisa no olho. Depois eu tiro, já deve estar diminuindo.
-- Hum... - ele abraçou Bono – Que bom que você veio.
Bono pareceu relutante em aceitar o abraço, mas acabou cedendo. Edge estava achando ele definitivamente estranho.
-- Bono, está mesmo tudo bem?
-- Sim. - Bono se afastou – Vamos pra floresta.
-- Pra floresta?
-- É. - ele pegou Edge pela mão – Eu quero te mostrar uma coisa.
Embora não estivesse com muita vontade de ir lá, principalmente por causa dos vampiros, Edge acabou seguindo Bono, e eles adentraram a floresta. Andaram por bastante tempo, por um caminho totalmente diferente dos que Edge já percorrera por ali, até chegarem aos pés de uma árvore.
-- Entra aí. - disse Bono, indicando uma abertura existente entre o fim do tronco e as raízes.
-- Entrar? Por quê?
-- Confia em mim. Entra.
-- Mas e se tiver algum bicho?
-- Eu entro na frente então, seu medroso.
Ele se abaixou e entrou pela abertura. Edge hesitou, mas o seguiu. Havia um buraco sob a árvore, que ia dar em uma grande caverna escura. Edge não conseguia ver sequer sua mão.
-- Bono? Cadê você?
-- Aqui. - Bono tocou seu ombro – Vem, eu vou te guiar.
-- Tem certeza de que não tem nada perigoso aqui?
-- Sim. Vem. Eu consigo ver o caminho.
Embora não houvesse a menor fração de luz, Edge acreditou em Bono, e o seguiu. Eles tiveram que andar ajoelhados por algum tempo, mas depois de um tempo Edge sentiu um fluxo de ar, e percebeu que podia ficar de pé. Levantou-se e continuou seguindo Bono, até que eles chegaram a uma grande caverna, com uma pequena abertura no teto que permitia ver o céu. Um pouco de luz entrava por ali, de forma que Edge conseguia ver alguma coisa: uma espécie de lago no lado oposto, Bono na sua frente, e, se não estava ficando doido, algo muito parecido com uma cama.
-- Que lugar é esse?
-- É um lugar especial. - Bono andava olhando ao redor, dando a Edge a impressão de que ele via perfeitamente, apesar do escuro e dos óculos – Para onde trago pessoas especiais.
-- Sei. - Edge sorriu – Meninas?
-- Até hoje, só meninas. - ele olhou para Edge – Mas hoje eu trouxe você.
-- Hum... E por que você me trouxe?
-- Por que você é especial.
Bono foi até Edge e tirou os óculos. Seus olhos estavam vermelhos, e havia lágrimas neles.
-- Bono? - Edge ficou preocupado – Você está chorando?
-- As vezes está tudo perfeito. - ele abraçou Edge – Tudo ótimo, sabe. E de repente, tudo desmorona. E aí a gente descobre que nada estava perfeito, que a gente estava caminhando sobre uma ponte de vidro.
-- Do que você está falando?
-- Aconteceu uma coisa ruim. Eu perdi alguém.
-- Perdeu? Você quer dizer...
-- Alguém muito importante para mim se foi. Para sempre.
-- Oh, Bono... Eu sinto muito... Era alguém da sua família?
-- Sim. - ele se afastou – Mas isso não importa agora. Ele se foi, nada vai mudar isso. Não importa o que eles façam, no fim é tudo inútil.
-- Eles?
-- Esquece. Estou falando para mim mesmo, desculpe. - ele voltou a abraçar Edge – Eu te trouxe aqui porque... Eu não quero te perder.
-- Você não vai me perder.
Eles se beijaram. Bono pegou Edge pela mão e o levou até a cama – era de fato uma cama, e parecia ser muito antiga – onde os dois se sentaram.
-- Eu faço coisas erradas, Edge. Sou um pecador. - ele segurou a mão de Edge e a passou em seu rosto – Tenho medo de que os mortos possam ler minha alma.
-- Medo por quê?
-- Medo... Pelo que eles vão pensar de mim quando virem o que tem lá.
-- E o que eles vão ver?
-- Eu não posso contar para você. - ele virou o rosto, e Edge tinha a impressão de que aquilo era algum tipo de jogo, embora não soubesse direito qual era o objetivo final – Talvez eu deva procurar alguém para me confessar. Um padre.
-- E o que você diria a ele?
-- Eu diria... - ele se aproximou de Edge e passou a sussurrar em seu ouvido, como se temesse que mais alguém ali escutasse o que dizia – Eu pequei.
-- E qual foi o seu pecado? - Edge também sussurrava.
-- Eu desejo outro homem.
-- Mesmo? - Edge o abraçou – E o que mais?
-- Eu sonho com ele. Todas as noites. Sonho que o toco... - ele passou a mão pela perna de Edge, lentamente – Sonho que posso sentir o corpo dele... Que o beijo de formas que nem Deus sabe que existem...
Ele beijou Edge, que estava quase flutuando. Os dois foram se inclinando para a cama, se deitando bem lentamente, quase sem perceber.
-- Nos meus sonhos... - Bono continuou, enquanto levantava a camisa de Edge e a tirava – Eu faço coisas com ele... Coisas que não devia fazer... - ele tirou sua própria camisa – Nos meus sonhos, a pele dele é tão macia, e o corpo dele... Eu me perco completamente no corpo dele...
Os dois se beijaram de novo. Bono estava quase deitado sobre Edge, mas parou por um momento para olhar para ele. Edge estava ofegante, e olhava para os olhos de Bono, e para a lua no céu lá em cima.
-- Você quer isso? - Bono perguntou, muito suavemente.
-- Sim. - Edge estava quase implorando.
-- Você está com medo?
-- Não. Bono... - ele abraçou Bono e o puxou para si, fazendo-o se deitar sobre ele – Eu quero você...
Bono não fez mais perguntas, e eles se perderam um no outro.
* * * * *
Edge acordou com a luz do sol batendo no seu rosto. Abriu os olhos, e pôde ver a caverna, toda iluminada. De dia, o lugar era totalmente diferente, até bonito. Ao seu lado, apenas a cama vazia; Bono se fora.
Confuso, ele se sentou e procurou suas roupas para se vestir. Então viu sobre elas um papel, e o pegou. Era um bilhete de Bono: “Tive que ir. Sinto muito. Nos veremos essa noite, no lugar de sempre”.
Aquilo o deixou bastante decepcionado. Não havia nenhum comentário sobre a noite anterior, nenhuma demonstração de carinho, nada que pudesse indicar que acontecera algo importante ou especial. Triste, não só pelo bilhete insípido como por Bono ter ido embora sem se despedir, ele se vestiu e voltou para casa.
Lá chegando, foi recebido por todos com uma mistura de gritos, acusações e alívio.
-- David Evans! - seu pai disse assim que ele entrou, e se seu nome verdadeiro fora usado, era porque a coisa era muito séria – Onde você estava? São quase dez horas da manhã!
-- Me desculpem. - ele tentava pensar rápido – Eu tive uns problemas, ou melhor, uns imprevistos, e acabei dormindo na casa de um colega da escola.
-- Que colega?
-- O Adam. - ele disse aleatoriamente – É porque aconteceu uma coisa muito triste, sabe... Morreu uma pessoa da família do Bono, e eu fiquei consolando ele, e fui acompanhar ele até em casa... Só que a gente ficou um tempão conversando, porque ele estava muito triste, e eu não ia embora com ele assim, né? Então ficou muito tarde e tudo, e esse amigo meu estava por ali também, e eu acabei indo pra casa dele e dormindo lá. Desculpa.
-- Nós ficamos tão preocupados, Edge... – Gwenda o abraçou – Achamos que você tinha ido pra floresta, ou sido capturado pelos vampiros, ou as duas coisas... Meu Deus, filho, não faz uma coisa dessas com a gente, você não sabe como ficamos aqui...
-- Desculpa, mãe. É que essa história do Bono me deixou meio perdido, eu acabei esquecendo de ligar. Fiquei muito triste por ele.
-- Quem foi que morreu? - disse Dick, aparecendo na sala.
-- Dick! Você voltou!
-- Claro que voltei, achou que eu ia ficar pra sempre no hospital? - ele abraçou Edge – Ainda vai demorar pra você se livrar de mim.
-- Que bom... E o seu braço?
-- Está ótimo. - ele estava com o braço enfaixado – Daqui a uns dias vai estar novo em folha. Mas conta essa história direito, quem da família do Bono morreu?
-- Eu não sei direito, ele não quis explicar. Só disse que tinha perdido alguém da família, e que era alguém muito importante pra ele. Ele estava arrasado.
-- Imagino. - disse Garvin – Você fez aquele convite a ele? O chamou pra vir aqui em casa?
-- Eu ia fazer isso, mas depois acabei esquecendo. E de qualquer forma não ia ser legal ele vir aqui triste do jeito que estava. Achei que seria melhor deixar pra amanhã ou depois.
-- Certo, quando ele estiver melhor, chame ele. Mas não amanhã. Amanhã à noite nós entraremos na floresta, e você irá com a gente.
-- De novo? Mas vocês já mataram um vampiro.
-- Não descansaremos enquanto não matarmos todos. Ao que parece a floresta está infestada por uma família, podem ter até cinco escondidos ali. Enquanto houver ao menos um, nosso trabalho não estará encerrado.
-- Eu ouvi outra história sobre ataques de vampiros em Belfast. - disse Gill – Será que não devíamos investigar?
-- Vamos ter que deixar isso para os caçadores daquelas regiões. – disse Gwenda – Temos que terminar o trabalho aqui. Não podemos deixar esses vampiros fugirem para outro lugar ou fazerem mais vítimas. Nenhum outro jovem sumiu desde aquele último, mas não quer dizer que eles pararam.
-- Não mesmo. - disse Dick – Vampiros precisam disso. Devem estar se alimentando de animais, mas logo vão sentir falta de sangue humano.
-- Não vamos permitir. - disse Edge – Quase salvamos a última vítima. Não haverá outra. Vamos matar esses vampiros nem que tenhamos que pôr fogo na floresta para fazê-los sair.
-- Muito bem. - Garvin deu um tapinha no ombro dele – É assim que eu gosto de te ver falando. Como um caçador.
-- É o que sou. Um caçador. - ele olhava para os outros, decidido – E é isso o que vou ser a minha vida inteira.
* * * * *
Quando Edge chegou, Bono parecia já estar ali havia algum tempo.
-- Edge! Eu achei que você não viesse mais! O que aconteceu?
-- Eu estava pensando se devia vir ou não.
-- Ahm? Por quê?
-- Porque você foi embora sem se despedir, depois de fazer amor comigo, e eu me senti um pouco, digamos... Usado. E não gostei disso.
-- Mas eu te deixei um bilhete.
-- “Te vejo depois” não é exatamente o que eu esperava de um bilhete. Não depois da noite de ontem.
-- Oh, Edge, me perdoe... Eu realmente achei que você não fosse se importar. Digo, se fosse com uma garota eu jamais faria isso, mas como você é um menino, eu pensei...
-- Eu definitivamente não sou uma garota, mas isso não quer dizer que não tenho sentimentos. Eu fiquei muito chateado com você. Estou quase me arrependendo de ter feito aquilo.
-- Não não não, não diga uma coisa dessas. Por favor, você está me machucando também. - ele abraçou Edge – Eu achei que seria melhor falar sobre isso pessoalmente do que deixar um bilhete escrito “foi bom”. E não quis te acordar antes de sair porque ainda estava tão cedo...
-- Por que você foi embora?
-- Eu não posso chegar em casa depois do amanhecer.
-- E eu não posso passar a noite fora de casa, muito menos na floresta, mas fiz isso por você. Você não imagina o que tive que inventar pra não levar uma surra, meti até um colega da escola no meio disso.
-- Mas é diferente. Se eu esperasse até você acordar, já teria amanhecido, e... Eu não posso andar na rua quando o sol está forte demais, machuca os meus olhos.
-- Ahm? Como assim?
-- Eu não gosto de falar isso porque as pessoas acham estranho e eu fico meio sem jeito, mas... Eu tenho fotosensibilidade visual. Meus olhos não toleram a luz, eu fico completamente cego, é insuportável. Isso é de família, da parte do meu pai. E é muito chato, a gente só pode trabalhar à noite, estudar à noite. Por isso eu troco a noite pelo dia, e meus pais também.
-- Nossa, que estranho... Eu nunca ouvi falar disso.
-- É porque é muito raro, mas é genético. Se o pai tem, existe uma grande chance dos filhos também terem.
-- Ah, tá... Que coisa. Então, você não pode sair durante o dia.
-- É.
Como um vampiro, Edge pensou. De novo pensava sobre como Bono era estranho, sempre andando pela floresta à noite, seguro de que nada lhe aconteceria. E em como ele era branco, a pele muito pálida de quem nunca tomava sol, e os olhos claríssimos, quase transparentes. Como um vampiro.
-- Mas me desculpe mesmo assim. - Bono disse, interrompendo seus pensamentos – Você está certo, eu devia ter ficado mais um pouco ou pelo menos te acordado pra me despedir. Mas as vezes eu não tenho muita certeza do que devo ou não fazer quando estamos juntos, sabe. Isso me deixa confuso, é tudo tão novo pra mim.
-- Eu também fico confuso. - Edge sentia a raiva que sentira durante todo o dia começar a evaporar como fumaça – Também é tudo muito novo pra mim. E você pelo menos tem a sua experiência com as meninas... Eu não tenho nem isso.
-- Vamos aprender tudo juntos. - ele beijou Edge suavemente – Aprender cada vez mais. - eles se davam beijos leves enquanto falavam – Eu quero falar sobre o que aconteceu ontem.
-- Fale.
Edge beijou o pescoço de Bono, e este parecia gostar disso mais do que de qualquer outra coisa. Ficou tocando nos cabelos de Edge, e começou a falar:
-- Eu tinha certeza do que eu queria, desde que te beijei pela primeira vez... - ele suspirava – Mas mesmo assim, ontem eu ainda estava com medo... E ao mesmo tempo eu te desejava tanto, eu achei que ia ficar louco, porque era como se meu cérebro tivesse se dividido em dois, e uma parte me mandava fazer, enquanto a outra me mandava parar enquanto era tempo... - Edge apoiou a cabeça no ombro de Bono, e ficou ouvindo ele falar, tocando seus cabelos e seu peito – Mas ontem eu estava tão triste, eu precisava do seu carinho. E quando eu toquei você pela primeira vez, quando começamos a fazer amor de verdade... Eu nunca fiz amor com ninguém do jeito que fiz com você ontem. Não sei se foi porque você é um garoto ou se foi porque eu gosto mais de você do que já gostei de qualquer outra pessoa, mas foi muito especial. Eu não tinha realmente planejado nada, mas foi perfeito... A caverna, a cama, a lua no céu lá em cima, e você, o seu corpo, os seus beijos... E aquilo tudo era de verdade, era meu. Eu nunca me senti tão feliz.
-- Nossa, Bono... - Edge sorriu, sentindo que estava ficando vermelho – Você já pensou em escrever poesia?
Bono riu e beijou os cabelos de Edge.
-- Eu escreveria para você. Só pra você.
-- Eu também quero falar sobre a noite de ontem.
-- Fala.
-- Eu não tinha a menor idéia do que ia acontecer quando você me levou para aquele lugar. Mesmo tendo visto a cama e tudo, eu pensei “não pode ser”. Sabe, eu sempre pensei em mim como se eu fosse... Não sei, assexuado. Achei que fosse morrer virgem. E quando você começou a contar aquelas coisas, sobre o que você sentia e o que queria fazer comigo... Eu pensei “meu Deus, isso não pode estar acontecendo, deve ser um sonho”. E quando eu vi você, e o céu, e eu mesmo nos seus olhos, eu só conseguia pensar que se fosse mesmo um sonho, eu nunca mais queria acordar. E depois, quando a gente acabou... Você dormiu mas eu ainda estava acordado, e eu fiquei ouvindo a sua respiração, e eu... Eu estava tão emocionado que não conseguia acreditar que fosse verdade, porque aquilo tudo era tão bom, eu achava que não merecia isso. Eu sentia como se eu estivesse... Não sei, como se toda a felicidade de todas as pessoas tivesse sido dada a mim, e eu não sei se uma pessoa pode ser tão feliz. Eu fiquei pensando nos milênios passados, naquela caverna sendo construída, moldada por séculos e séculos, apenas para nos receber, para que a gente tivesse a nossa primeira noite juntos... E daqui a milênios a gente não vai mais existir, e talvez nem a caverna exista, mas aquele lugar vai ficar marcado pra sempre pelo que aconteceu, como uma terra sagrada.
Os dois se olharam. Bono tinha lágrimas nos olhos.
-- Acho que você é melhor do que eu com poesias.
-- Podíamos fazer uma juntos. Podíamos compor uma música.
-- Planos para o futuro. - Bono o beijou – Eu acho que... - ele parou.
-- O que?
-- Eu quero dizer uma coisa, mas eu não sei se devo dizer.
-- Diz. Não tem problema, seja o que for.
-- Eu nunca disse isso pra ninguém.
-- Tudo bem.
-- Eu... Eu acho que eu te amo.
Edge olhou para ele, sem respirar por um segundo.
-- Mesmo?
-- Acho que sim.
-- Eu... Eu acho que eu te amo também.
-- De verdade?
-- Sim.
Eles voltaram a se beijar. Dessa vez ficaram assim por muito tempo; até que Bono se afastou e disse:
-- Eu acho melhor irmos pra outro lugar. Não vai ser legal se alguém vir a gente fazendo amor no meio da rua.
-- Você vai fazer amor comigo?
-- Só se você quiser.
-- Eu quero. Onde?
-- No cemitério.
-- O que!?
-- Não precisa ter medo. Eu já passei noites inteiras lá. E é muito excitante.
-- Eu não sei, Bono... Não tem outro lugar melhor?
-- Tenho vários, mas eu quero esse. Por favor, amor. Eu planejei isso o dia todo.
-- Tá bom. - Edge sorriu – Mas só porque você me chamou de “amor”.
Bono riu, e os dois se deram as mãos e foram indo juntos para o cemitério. Durante o caminho, Edge disse:
-- Ah, tem uma outra coisa que eu queria falar.
-- O que?
-- O que diabos uma cama está fazendo em uma caverna subterrânea no meio de uma floresta?
O outro deu uma gargalhada.
-- Surreal, não é?
-- Completamente. Foi você que colocou ela lá?
-- Não, ela está lá desde que eu era... Desde que eu era bem pequeno. Foi um primo meu que fez isso. Ele tinha uma namorada e queria fazer amor com ela, mas ela disse que o sonho dela era ter a primeira vez em uma cama no meio de uma floresta. A gente já conhecia a caverna, e ele achou que seria melhor ali, porque era bonito e relativamente protegido de chuva e coisas assim. Aí ele e mais dois primos meus colocaram a cama lá, pra ele usar com a namorada. Depois disso ela acabou virando patrimônio público, todos nós usávamos. A cama, não a namorada.
Edge riu. Os dois chegaram ao cemitério e pularam o muro para dentro. Estava bastante escuro, mas Bono se guiava perfeitamente, como se não precisasse de luz para ver. Novamente, pensamentos sobre a semelhança entre Bono e um vampiro vieram à mente de Edge.
-- Aqui. - Bono parou diante de uma lápide – Vai ser aqui.
Ele não conseguia ver nada, apenas a lápide de mármore branco.
-- Por que aqui?
-- Eu gosto daqui. - ele puxou Edge pela mão e o fez se sentar sobre a lápide – Sabe de quem é esse túmulo?
-- Não.
-- É de uma menina. Uma garota adolescente. Ela morreu há muito tempo. Há mais de trinta anos.
-- Como você sabe isso?
-- Eu sei. - ele levantou a camisa de Edge e a tirou – Ela era uma linda garota. Lindíssima. Se eu tivesse visto o corpo... Se eu estivesse vivo naquela época e tivesse sido o primeiro a encontrar o corpo, eu teria tomado ela para mim.
-- Como assim? Você faria... Sexo com ela?
-- Sim. Porque ela era tão linda, Edge... – ele fez Edge se deitar, e subiu nele – Eu a tomaria para mim, mesmo que o corpo dela já estivesse frio...
-- Bono, que coisa horrível. Pára.
-- Você não se sente excitado? Se você morresse e eu encontrasse o seu corpo antes de todo mundo... Eu ia esconder você pra poder te ter só pra mim, e toda noite eu ia ter você. Porque mesmo sem vida o seu corpo é tão bonito, meu amor...
Bono mordeu o pescoço de Edge com tanta força que este deu um grito e o empurrou.
-- Se afaste! - ele levantou – O que você fez?
-- O que foi? Você não gosta disso?
Edge passou a mão pelo pescoço, esperando encontrar sangue; mas apesar de terem ficado as marcas dos dentes de Bono, a pele não havia sido machucada.
-- Você ficou doido? - disse Edge, sentando-se novamente – Que conversa é essa? Isso não é muito apropriado para o que vamos fazer.
-- Eu achei que você fosse gostar. Me deixa muito excitado. E estamos num cemitério, eu achei que combinava com o ambiente.
-- Eu não tenho fantasias com cadáveres. Me enoja só de pensar. E como você sabe essas coisas sobre essa menina?
-- Isso é para depois do sexo. Vamos, Edge, você está estragando os meus planos. Só deite aqui e feche os olhos, confie em mim para fazer o resto.
Edge acabou fazendo isso. Depois, os dois ficaram deitados juntos sobre a lápide. Bono abraçou Edge, o acolhendo de encontro ao seu peito, e beijou seus cabelos.
-- Foi bom?
-- Sim. - Edge sorriu – Ótimo.
-- Pra mim também.
-- Agora me conta sobre a menina. - mesmo sem querer, ele ficara pensando naquilo o tempo inteiro – Como sabia aquelas coisas sobre ela?
-- Sei muito mais. Sei que ela se chamava Ann. Sei que tinha dezesseis anos, e que morreu assassinada. E sabe como? - ele sorriu – Ela foi encontrada morta no bosque, sem sangue no corpo, e com dois furos no pescoço.
-- O que? Mas isso foi há quanto tempo?
-- Mais de trinta anos.
-- Como descobriu isso?
-- Você não é o único detetive aqui, meu caro. Eu também andei fazendo meu dever de casa.
-- E ela foi a única a morrer desse jeito?
-- Não. Houve uma série de assassinatos assim aqui em Dublin naquela época. Muitos jovens que desapareceram jamais foram encontrados. Nunca pegaram o culpado.
-- Será que é a mesma pessoa?
-- Talvez, mas acho pouco provável. Pensa bem, isso foi há trinta e cinco anos. Se o criminoso tinha vinte e poucos anos naquela época, hoje teria uns sessenta. Não vejo como ele conseguiria dominar e matar essas pessoas, só se usasse alguma arma ou tivesse a ajuda de mais alguém.
Mas Edge estava pensando em outra coisa. Seu pai dissera uma vez que fazia mais de trinta anos que vampiros não apareciam em Dublin, mas não dissera se eles haviam sido capturados na última vez ou se haviam apenas fugido. Talvez fossem os mesmos vampiros, voltando para casa. Talvez, se descobrisse mais sobre aquelas mortes antigas, pudesse descobrir algo que o ajudasse a resolver as mortes de agora.
-- Eu vou investigar isso. - disse Edge – Amanhã vou à biblioteca de manhã para pesquisar. Quero descobrir tudo sobre isso. E vou contar para os meus pais também.
-- Faça isso. Mas tome cuidado. - ele abraçou Edge – Eu não quero que nada de ruim aconteça com você.
-- Pode deixar. - ele beijou Bono, e então se lembrou do que seu pai lhe mandara fazer – Escuta... Você podia ir lá em casa depois de amanhã. Meus pais querem conhecer você melhor.
-- Seus pais? - ele se afastou um pouco – Eles me chamaram?
-- Sim. Sabe, meu pai primeiro ficou falando pra mim não andar com você porque você parecia má companhia e tudo o mais, mas acho que ele está mudando de idéia. Ele quer conversar com você, pra te conhecer melhor.
-- Eu não sei. - ele parecia um pouco tenso – Você contou a eles sobre nós?
-- Não, de jeito nenhum. Ninguém sabe, eles não podem nem desconfiar de uma coisa dessas. Mas acho que meu pai percebeu que eu gosto de você, e que nos tornamos amigos. Vai lá, Bono, vai ser muito mais fácil meu pai deixar eu sair com você se ele for te conhecendo.
-- Eu não sei. - ele repetiu – Quando?
-- Depois de amanhã, de tarde. Amanhã não dá porque nós vamos sair, mas...
-- Eu não posso ir lá de tarde. Digo... Enquanto o sol estiver muito forte. Não pode ser à noite?
-- Eu não sei... Você podia ir no final da tarde, quando o sol estivesse baixando. Assim não ia machucar tanto os seus olhos, não é?
-- Não sei. Talvez.
-- Se quiser, eu peço pro meu pai ou pro meu irmão ir te buscar de carro na sua casa. Assim você não vai ter que andar no sol.
-- Eu tenho que pensar. - aquela idéia parecia ter deixado ele bastante assustado – Eu te ligo amanhã e digo se vou ou não.
-- Tá bom.
Bono se levantou. Edge disse:
-- Aonde você vai?
-- Vou para casa.
-- Já? Assim? Mas...
-- Eu não ando muito bem. Eu te disse ontem o porquê.
-- Mas ainda há pouco você parecia ótimo...
-- Eu esqueço um pouco, mas depois volta. Escuta, eu... Eu não quero parecer um cretino aproveitador, mas não sei se quero conhecer os seus pais.
-- O que? Por quê?
-- Porque acho que ainda é um pouco cedo pra isso. Não quero que você tenha esperanças de... Eu nunca te prometi nada. Deixa eu pensar um pouco, ok? Eu preciso de um tempo pra mim.
-- Bono – Edge o segurou – o que está havendo? Você disse que me ama, nós fizemos amor, e agora você age como se não quisesse saber de nenhum compromisso.
-- Não podemos ter um compromisso. Somos... Somos diferentes. É impossível. Isso que está acontecendo é fantástico e eu queria que durasse para sempre, mas não pode ser.
-- Está falando isso porque nós dois somos homens? Olha, no início eu também pensava assim, mas...
-- Não é só isso. Existem milhares de coisas, Edge. Milhares de coisas.
E ele se foi.
* * * * *
Edge estava deitado na cama, embora já estivesse bastante tarde. Garvin entrou no quarto pela décima vez em meia hora.
-- Edge, você devia estar se preparando. Temos uma missão hoje, provavelmente teremos uma luta. Você por acaso andou treinando suas habilidades nos últimos dias? Ou sabe onde estão suas armas?
-- Não.
-- E fica aí assim? O que está acontecendo?
-- Nada.
Garvin ficou dando voltas pelo quarto, parecendo bastante agitado.
-- Você ficou assim depois que voltou da rua ontem à noite. Aconteceu alguma coisa?
-- Não.
-- O Bono não fez nada com você?
-- Não. Ele não fez nada.
-- Você o chamou para vir aqui?
-- Chamei, mas... Ele não quis.
-- Não? Por quê?
-- Eu não sei... Ele disse que gostava muito de mim, mas que... Não queria conhecer minha família, e eu não entendo o porquê, eu adoraria conhecer a família dele...
-- Talvez ele esteja com medo. - ele parecia muito incomodado com alguma coisa – Eu não iria na casa de um amigo meu, se achasse que esse amigo está apaixonado por mim.
-- Eu não estou apaixonado por ele! - ele se sentou na cama – Pare de dizer essas coisas de mim! Eu não fiz nada disso, não sou nada disso!
Seu pai lhe deu um tapa no rosto.
-- Baixe a voz comigo. Eu sou seu pai.
-- Desculpe. - Edge tinha lágrimas nos olhos.
-- Se não quer que eu pense isso de você, então aja como um homem. Ficar deitado chorando por causa do Bono não é a atitude que eu espero de um caçador nem de um filho meu. Não me decepcione de novo. Já basta aquela vez.
-- Eu não queria decepcionar vocês naquela vez. Sinto muito.
-- Se sente, não faça a mesma coisa novamente.
Edge estava começando a entender Bono. Não podiam ter um compromisso, não podiam manter aquilo a vida toda. Ele não suportaria escutar as acusações de seu pai, sem falar no que sua mãe e seus irmãos diriam.
-- Levante. - Garvin foi indo para a porta – Vá se preparar. Teremos muito trabalho hoje.
-- Tá.
Quando Garvin já estava quase saindo, Edge disse:
-- Pai...
-- O que?
Ele hesitou por alguns segundos.
-- Às vezes eu ainda penso nele.
-- Nele quem?
-- No Larry.
Garvin parou e se voltou para ele.
-- Isso vai passar.
-- Mas já faz tanto tempo, e ainda dói...
-- Vai passar. Ele morreu, Edge. Acabou.
-- Ele não podia ter morrido daquele jeito.
-- Eu sei que nós dissemos coisas ruins sobre vocês dois, mas nós gostávamos muito dele. E ele era um grande caçador, um rapaz muito corajoso, e morreu lutando. Você deve se orgulhar dele.
-- Eu me orgulho. Queria ser igual a ele. Queria ter morrido com ele. Ou no lugar dele.
-- Não diga besteiras. Você não... Você não é nada disso. Você só é muito novo, era mais novo ainda naquele época. Estava confuso, não sabia exatamente o que queria. O que vocês tinham era uma grande amizade, mas nada mais do que isso.
-- Minhas habilidades sumiram quando ele se foi.
-- Mas voltaram agora. Isso é um sinal de que você superou.
-- E se eu voltar a... A sentir aquilo por alguém? Por outro menino?
-- Você não vai voltar. Você não é assim. Agora se levante e vá se preparar para hoje à noite.
Quando ele saiu, ao invés de levantar, Edge se deixou cair novamente na cama. Se seu pai soubesse o que acontecera entre ele e Bono...
Pouco depois, sua mãe apareceu no quarto.
-- Edge, telefone pra você.
-- Quem é?
-- O Bono.
Um pouco ansioso, um pouco apreensivo, Edge foi atender.
-- Alô.
-- Edge?
-- Oi, Bono. O que foi?
-- Hum... Como você está?
-- Ótimo. Estava um pouco ocupado, o que você quer?
-- Eu, hum... Olha... Eu sei o que você deve estar pensando, mas... Desculpa pelas coisas que eu disse ontem, tá? Eu me arrependi muito de ter dito aquilo.
-- Então, por que disse?
-- Porque eu fiquei um pouco assustado com esse negócio de ir na sua casa, de conhecer os seus pais... Eu nunca conheci a família de nenhuma garota com quem eu andei.
-- Eu não sou uma garota. - ele pegara o telefone e fora para o seu quarto, para poder conversar sem que seus pais ouvissem – E eu não pedi pra você vir pedir minha mão em casamento. Só achei que seria legal se a gente tivesse mais intimidade, se eu conhecesse a sua família e você conhecesse a minha. Se você não quer nada disso, se só quer dormir comigo quando tiver vontade, eu acho que...
-- Não, não. Não é que eu não queira, eu só fiquei assustado. Sabe como é, esse negócio de família, de compromisso...
-- Eu só queria que a gente fosse mais próximo. Tipo, meus pais nem desconfiam da gente, você não ia vir aqui como um, sei lá, namorado. Ia ser só como amigo.
-- Eu sei, eu sei... Eu fui um idiota pelo jeito que falei ontem. Olha, desculpa mesmo. Eu quero ir aí sim. Digo, se você ainda quiser que eu vá.
-- Eu quero. Fiquei muito triste pelo que você fez ontem.
-- Desculpa. Droga, Edge... Eu sou um idiota. Eu gosto tanto de você, e fiz uma besteira dessas, te deixei triste... Mas olha... Eu contei pros meus pais sobre nós. Contei tudo.
-- O que!? Por quê!?
-- Porque eu fiquei pensando nisso a noite inteira, e eu estava confuso com essa coisa toda, e percebi que não ia conseguir lidar com isso sozinho. Aí eu contei pra minha mãe, e ela contou pro meu pai.
-- E o que eles falaram?
-- Eles pediram um tempo pra absorver isso, e depois disseram que está tudo bem, que se eu tenho certeza de que quero isso, então eles vão me ajudar. Aí minha mãe conversou comigo e disse que eu devia sim ir aí, conhecer os seus pais. E que depois eu devia trazer você aqui.
-- Eu adoraria... Mas acho que vou ficar um pouco sem jeito, se seus pais sabem...
-- Está tudo bem, eles reagiram muito bem. Olha, eu vou ter que desligar. Quando você quer que eu vá aí?
-- Pode ser amanhã, se você puder.
-- Posso sim. Tem problema se eu for depois do anoitecer?
-- Não, está tudo bem. Eu vou falar com meus pais.
-- Certo. Você vai poder me ver hoje?
-- Hoje não, vamos sair a noite. Mas eu te ligo amanhã, pra saber se você vai vir mesmo.
-- Tá bom. Até amanhã, então.
-- Até amanhã. - ele hesitou – Eu te amo.
Bono ficou em silêncio por alguns segundos.
-- Eu também te amo.
* * * * *
Edge se sentou diante de Garvin, com uma pilha de recortes de jornais.
-- O que é isso?
-- Jornais de quarenta a trinta anos atrás. - ele espalhou os recortes sobre a mesa – Sabe o que descobri? Que há trinta e nove anos tivemos uma série de ataques como estamos tendo agora. Mas todos os corpos foram encontrados na rua, nenhum na floresta. Cerca de quinze corpos jamais foram encontrados. Os ataques duraram por cinco anos, cerca de um assassinato por dia. Mas eles diminuíram subitamente, e acabaram em menos de uma semana. Imagino que foram caçadores. Mas sabe o que realmente aconteceu? - ele apontou um dos recortes – Duas famílias inteiras se mudaram exatamente dois dias depois da data em que ocorreu o último assassinato. Eu acho que esses eram os vampiros. Eles não foram mortos, eles fugiram. Podem ter voltado agora. Ou os de agora podem ter alguma ligação com aqueles.
Garvin ficou olhando para ele por algum tempo.
-- O que aconteceu? Ainda há pouco você estava parecendo um zumbi, e agora...
-- Me animei. Mas diz, o que você acha? Você sabia desses ataques?
-- Sabia, mas não os detalhes. Eu não morava em Dublin na época, então só ouvi falar. Nunca soube o que havia acontecido, mas o que você está dizendo faz sentido. Eles podem ter fugido daqui, e retornado depois. Mas no que isso nos ajuda?
-- Não é óbvio? Aqui diz duas famílias inteiras. Eu não acredito que eles estão realmente vivendo na floresta, devem ter se mudado para cá como se fossem pessoas normais. Se descobrirmos que famílias se mudaram para cá na mesma época em que os ataques começaram, talvez descubramos quem são os vampiros.
-- Muito bom, Edge. - Garvin parecia orgulhoso – Muito bom. Dick pode descobrir isso para nós, ele tem contatos na prefeitura.
-- Peça a ele para ser rápido. Não adianta ficar andando pela floresta e esperando eles aparecerem. Temos que atacá-los. Se descobrirmos onde estão morando, podemos ir direto no ninho deles e acabar com todos de uma vez.
-- Isso mesmo. Vamos sair hoje, mas espero que seja a última vez que tenhamos que fazer isso. Eu estava conversando com a sua mãe, ela concordou que o melhor é vigiarmos para que não haja mais vítimas, enquanto você e seus irmãos trabalham na parte de pesquisa.
-- É sim. Mas não haverão mais vítimas. Eu já preparei minhas armas e já treinei um pouco, estou pronto.
-- Ótimo. Sairemos assim que o sol nascer.
-- Certo. - ele se levantou, mas então se lembrou de algo – Pai, eu queria te perguntar uma coisa.
-- Pergunte.
-- Eu andei estudando um pouco sobre os vampiros, fazia tempo que eu não fazia isso... E estava lendo alguns daqueles livros que tem no porão, e fiquei em dúvida sobre algumas coisas.
-- Que coisas?
-- Lá diz que eles não comem comida humana, só se alimentam de sangue. Mas não diz direito o porquê, nem o que acontece quando eles comem algo que não seja sangue. Eles morrem ou alguma coisa assim?
-- Não, não chegam a morrer. Se fosse assim, seria muito fácil matar um vampiro. Na verdade a reação a alimentos varia muito. Acontece com eles o mesmo que aconteceria se eu ou você comecemos grama ou qualquer coisa assim. Podem ter apenas uma indisposição, ou podem ficar realmente doentes, ou passar mal. Mas no geral o efeito passa em poucos dias, às vezes só dura alguns minutos. Depende muito do organismo.
-- Hum... - ele pensou em Bono, e em quanto ele comera quando eles haviam ido na lanchonete. Se ele fosse um vampiro, deveria ter passado muito mal no dia seguinte – Tem outra coisa. Eu li também que vampiros não se reproduzem...
-- Eles não se reproduzem como nós. Mas podem dar origem a outros vampiros quando mordem e permitem que a vítima beba seu sangue.
-- Sim, eu sei. Mas minha dúvida é... Eles não se reproduzem assim, mas eles podem... Fazer sexo?
-- Hum... - ele pensou um pouco – Agora está ficando difícil.
-- Por quê? Você não sabe?
-- O comportamento sexual dos vampiros é um assunto pouco estudado e com muitas controvérsias. Meu pai tinha um livro muito bom sobre o assunto, e lá dizia que o consenso entre os estudiosos é que normalmente vampiros não tem atividade sexual.
-- Normalmente? Então, tem exceções?
-- Talvez. A questão é que não se sabe se eles não fazem sexo porque não querem ou porque não podem. Existem relatos de vítimas que tiveram contato sexual com seus predadores, mas nada confirmado. Parece haver um consenso de que eles não fazem sexo entre eles, mas talvez façam com seres humanos. Mas talvez isso seja como a capacidade de ler pensamentos ou voar, talvez uns tenham e outros não.
-- Mas eles tem... Tudo, não tem? Digo... Eles não deixam de ser homens ou mulheres quando se tornam vampiros. Então, por que não poderiam...
-- O corpo de um vampiro não é em nada diferente do de um ser humano, tanto que é muito difícil pra um amador reconhecer um deles. Mas como eu disse, talvez eles simplesmente não possam. Da mesma forma que não podem entrar na casa de alguém sem ser convidados. Agora, eu não sei o que acontece caso eles tentem. Se alguém fez sexo com um vampiro, não sobreviveu para contar a história.
Isso não era de muita ajuda para Edge. Bono continuava sendo um possível vampiro enquanto ele não conseguisse vê-lo fazendo algo que definitivamente um vampiro não pudesse fazer. Agora, se ele fosse um vampiro, era um que comia alimentos humanos e que fazia sexo, o que o fazia muito especial. E se ele fosse realmente um, Edge estaria em sérios problemas.
* * * * *
Dick ficara em casa com Gill, pois estava com o braço quebrado, de forma que só Edge e seus pais haviam ido para a rua depois do anoitecer. Eles não entraram na floresta dessa vez, pois os planos haviam mudado: ficariam espalhados ao redor, apenas vigiando para que nenhuma outra vítima fosse feita, e tentariam atacar os vampiros durante o dia, descobrindo onde eles se escondiam.
Edge estava andando pela rua, sem se preocupar em se esconder. Ainda haviam algumas pessoas na rua quando ele chegou, mas logo o movimento começou a diminuir, até cessar completamente. Ele ficou andando sozinho, demarcando seu território, as vezes parando para comer um chocolate, as vezes verificando pelo rádio se seu pai e sua mãe estavam bem.
Por volta das onze horas, ao passar em frente a uma rua estreita e mal iluminada, ele ouviu um barulho. Parou para escutar melhor, e de repente ouviu um grito. Foi correndo na direção de onde o barulho viera, e logo a voz ficou mais clara:
-- Socorro! - era uma voz de mulher – Me ajudem!
Quando chegou em frente a um terreno baldio, encontrou quem gritava: uma garota, mais ou menos da sua idade, que estava sendo arrastada para o meio do mato por um homem. Ele definitivamente não era um vampiro, pois estava queimado de sol; mas jogou a menina no chão e subiu em cima dela, e Edge não podia deixar aquilo acontecer.
-- Ei! - ele gritou, correndo até eles – Larga ela!
O homem se pôs de pé, parecendo furioso. Tirou uma faca da cintura e avançou para cima de Edge, mas este se desviou e agarrou o braço dele, o desarmando em um segundo. Com o mesmo movimento conseguiu derrubar o homem, e lhe deu um chute na cabeça que o deixou desmaiado no chão. Para quem lutava com vampiros, lutar com um marginalzinho de rua era ridículo.
Ele se voltou para a garota, que estava caída no chão e parecia muito assustada. A ajudou a se levantar, dizendo:
-- Você está bem?
-- E-estou. - ela se pôs de pé, mas tremia e tinha lágrimas nos olhos – Obrigada.
-- Não foi nada. Você não devia andar sozinha pela rua, pode ser perigoso.
-- Eu sei. Você é mesmo muito forte – a expressão dela mudou, e ela sorriu – caçador.
-- O que?
Mas antes que ele pudesse entender, a garota pulou em cima dele, o derrubando no chão, e tentou mordê-lo. Edge conseguiu se desviar por muito pouco, e a tirou de cima de si, levantando-se depressa.
-- Vampiro! - ele tirou uma grande adaga do cinto, e ligou seu rádio – Então é você que está capturando as pessoas.
A garota riu. Lentamente seus pés deixaram o chão, e ela passou a flutuar a cerca de um metro de altura. Então o atacou, jogando-se sobre ele e o derrubando no chão. Edge conseguiu enterrar a adaga fundo no ombro dela, e ela gritou. O som era alto e estridente, parecido com o guincho de algum animal.
-- Edge? - veio a voz de seu pai, pelo rádio – Edge, o que houve?
-- Estou na rua Quinze! - Edge gritou, tentando impedir que a vampira o mordesse – Estou sendo atacado!
Ela pulou para longe dele, arrancou a faca de seu próprio corpo e a cravou no rádio, destruindo-o. Edge tirou outra faca do cinto, mas antes que pudesse usá-la, duas mãos o agarraram por trás, apertando seu pescoço até que ele desmaiasse.
* * * * *
Quando Edge abriu os olhos, não conseguiu ver coisa alguma. Sentia os olhos e a garganta arderem, suas mãos doíam, e de alguma forma ele estava acima do chão. Sentia um cheiro intenso que não conseguia identificar, e um enjôo muito forte, misturado com a dificuldade para respirar.
-- Edge! - veio a voz, o trazendo de volta à realidade – Edge, olha pra mim!
Ele demorou para realmente recobrar a consciência, e as coisas foram voltando aos poucos. Percebeu que estava amarrado a algo, provavelmente a uma árvore, por grossas correntes. Percebeu que suas roupas estavam molhadas, e que o cheiro que sentira era de gasolina. Percebeu, por último, que a voz que o chamava era a de Bono, e logo identificou os olhos azuis e assustados deste na sua frente.
-- Bono?
-- Meu Deus meu Deus meu Deus. - Bono correu para trás da árvore e de alguma forma soltou as correntes, libertando Edge – O que fizeram com você, o que eles iam fazer...
Edge quase caiu, pois ficar em pé era difícil, mas Bono o segurou e o deitou com cuidado no chão.
-- O que... - sua garganta doía muito quando ele falava – Houve...
-- Eu não sei, não sei meu amor, ah Deus... - Bono passava a mão pelos cabelos de Edge, desesperado, e tinha lágrimas nos olhos – Eles iam queimar você, iam queimar você vivo... Estavam só esperando você acordar, queriam que visse...
-- O... O que? - ele então se lembrou dos vampiros – Mas... Mas como... Onde eles estão? Como você me encontrou?
-- Eu estava andando com uns amigos meus, acabei de sair da escola, e vi você... Mais um segundo, e teria sido muito tarde...
-- Mas onde eles estão?
-- Eu não sei, quando eu me aproximei eles fugiram... Foi muita sorte, meu amor, muita sorte... - ele abraçou Edge – Se você tivesse me dito que viria para a floresta procurar bandidos, eu não teria permitido, teria dado um jeito de te impedir... Você não deve mexer com isso, Edge, esqueça essa loucura toda, por favor...
-- Espera. - ele já conseguia falar melhor, e também pôde se sentar – Você disse que eles fugiram de você? Por quê?
-- Como posso saber? Ainda estavam longe, mas não reconheci nenhum deles.
-- Eram quantos?
-- Uns quatro, eu acho.
-- Quatro...
Isso era absurdo. Quatro vampiros, que o haviam derrotado, agora fugiam de Bono, um rapaz comum, um humano. Não fazia sentido. A não ser que...
-- Bono, você...
-- Espera. Vamos sair daqui, pelo amor de Deus. - ele olhou em volta, parecendo preocupado – Vamos para a sua casa, você tem que tomar um banho, ver se não está machucado...
Os dois foram andando lentamente pela rua, Edge apoiado em Bono para poder andar.
-- Bono – ele disse – você não acha estranho que quatro pessoas que estavam prestes a pôr fogo em mim tenham fugido de você?
-- Claro que acho. Eu também não entendi nada.
-- Escuta... Alguma vez você já sentiu alguma coisa... Estranha?
-- Como assim?
-- Não sei, alguma coisa... Como se você se sentisse capaz de fazer alguma coisa que só você poderia. Tipo, num exemplo exagerado... Como se, no fundo, no fundo, você soubesse que pode voar e que só falta a coragem para se jogar de um prédio para conseguir.
Bono riu.
-- Eu heim, Edge. Que absurdo, claro que não.
-- Mas pode ser uma coisa muito mais leve. Tipo... Achar que pode adivinhar o que as pessoas pensam, ou que pode escutar mais longe, ou enxergar no escuro...
-- Hum... - ele pensou um pouco – Não que eu me lembre. Talvez quando eu tinha oito anos eu achasse que podia parar o tempo, mas isso nunca se confirmou. - ele riu – Por quê? Você já sentiu alguma coisa assim?
-- Olha, não ri, mas... Às vezes eu acho que posso adivinhar coisas que já aconteceram.
-- Como assim?
-- Como... Naquele dia em que eu encontrei o garoto na floresta. Quando eu fui andando pelo rio, era como se... Como se eu estivesse vendo ele andando por ali há dias atrás. Não que eu visse, mas eu tinha uma certeza muito forte de que ele tinha estado ali e tinha feito aquele caminho, tanto que fui exatamente para o lugar em que ele estava. Isso não é estranho?
-- Talvez. - Bono ficou um tempo olhando para ele, e os dois pararam de andar – Talvez você só seja um rapaz muito especial.
Ele segurou o rosto de Edge e o beijou nos lábios. Edge aceitou, mas em seguida o repeliu.
-- Meus pais estão por aqui, eles não podem nos ver.
-- Calma, eles não estão por perto. - ele deu mais um beijo em Edge, dessa vez um pouco mais demorado – Mesmo com a gasolina, sua boca tem um gosto maravilhoso.
Edge ficou muito vermelho. Então Bono o pegou no colo, com uma facilidade que chegava a ser quase irreal, e começou a carregá-lo.
-- Bono! O que está fazendo?
-- Calma. Eu não vou te deixar cair.
-- Você não precisa fazer isso, eu sou maior que você, sou pesado...
-- Eu sou mais forte do que pareço. Muito mais forte do que pareço. - ele segurou Edge com mais força contra si – Me deixa te levar. Como se fosse minha noiva.
Com esse argumento, Edge acabou aceitando ser carregado. Os dois chegaram à casa de Edge, e só lá Bono o pôs no chão.
-- Obrigado. - Edge estava muito vermelho – Ainda estaríamos na metade do caminho se você não me carregasse.
-- Foi um prazer. - Bono sorria, enquanto Edge destrancava a porta e a abria – Posso entrar?
-- Claro, entra aí.
Os dois entraram na casa. Não havia sinal de Gill – provavelmente ela estava dormindo – e Dick estava na sala, falando no rádio com Garvin e Gwenda.
-- Vocês já olharam no... - ele parou e olhou para Edge – Ele chegou! Está aqui!
-- Chegou aí? - veio a voz de Garvin pelo rádio – Como ele está? Está ferido?
-- Nada perceptível. Vou desligar, venham depressa para cá. - ele desligou e correu para Edge – Meu Deus, Edge, estamos há horas completamente doidos atrás de você! O que aconteceu?
-- Depois, Dick, depois. Por favor. - ele indicou Bono – Eu estava em apuros, mas Bono me salvou. Ele é que me trouxe até aqui.
-- Obrigado. - Dick disse para Bono, e em seguida segurou Edge, examinando-o principalmente no pescoço – Não está ferido?
-- Não, não, sem ferimentos. Só estou muito fraco, eles devem ter me batido até eu desmaiar. Por favor, me deixa ir pro quarto, quero tomar um banho e descansar.
-- Vai, vai sim... Quer ajuda com o banho?
-- Não, não precisa. O Bono vai comigo, me ajudar com as roupas. Quando mamãe e papai chegarem, diga a eles que estou bem, mas se eu já estiver dormindo, por favor não me acordem.
-- Certo. Vai lá, depois você conta o que aconteceu.
Bono seguiu Edge para o quarto. Mal a porta fora trancada, e Bono estava ajudando Edge a tirar as roupas.
-- Tire essas coisas, tire tudo. Vem, eu vou preparar seu banho.
Edge deixou que Bono o ajudasse. Depois de tomar banho e se trocar, ele se deitou em sua cama, e Bono ficou sentado ao seu lado.
-- Obrigado. - Edge disse – Você salvou minha vida.
-- Eu a salvaria mais mil vezes. - ele segurou a mão de Edge – Não faça mais isso, Edge, por favor. Ir atrás de bandidos no meio da noite... Isso é loucura. Você quase morreu hoje.
-- É o meu trabalho.
-- Trabalho dos seus pais, não seu! Eu sei que é muito emocionante essa história de super-herói, mas você não tem poderes e não pode lutar contra um homem armado. Você teve sorte, eles podiam ter te matado naquele terreno baldio ao invés de te levarem pra perto da floresta.
-- Eu sei, mas... - ele parou – Como você sabe que foi num terreno baldio?
-- O que?
-- Como você sabe que eu encontrei com os bandidos em um terreno baldio, e não na floresta? Eu não te contei isso.
Ele nunca vira uma pessoa ficar tão pálida em toda a sua vida. Até a cor dos lábios de Bono sumiu. Ele tentou se recompor, e riu, bastante nervoso, mexendo nos cabelos.
-- Ora, Edge, claro que você me contou. Me contou quando estávamos vindo para cá.
-- Não, eu não contei. Sei que eu não contei porque não ia te contar isso justamente pra você não me chamar de louco por ir sozinho atrás de gritos num terreno baldio. Mas você já sabia, sabia antes de eu acordar.
-- Como eu poderia saber? Eu tinha acabado de chegar.
-- Isso foi o que você me contou. - Edge se sentou na cama – O que está me escondendo?
-- Não estou escondendo nada. O que acha? Que eu estava de acordo com os bandidos? Que era amigo dos caras que fizeram isso com você?
Mas não era isso que Edge estava pensando. Vampiros eram capazes de ler pensamentos. Se Bono fosse um vampiro, poderia ter lido aquilo em sua mente sem nem perceber. Ou poderia ter chego quando os outros vampiros – seus amigos? – estavam prestes a pôr fogo em Edge, lutado com eles, expulsado a todos.
-- Bono. - Edge se levantou e pôs as mãos em seus ombros – Eu quero que confie em mim. Eu te amo, não importa o que você seja. Isso não muda nada entre nós.
-- Do que diabos está falando?
-- Estou falando que eu sei tudo. Sei o que você é. Mas não vou fazer nada contra você.
-- Eu não estou entendendo nada, Edge. Como assim, você sabe o que eu sou?
-- Bono, pare de mentir pra mim. - ele agora tinha certeza, a mesma certeza que sentira quando encontrara o corpo do menino – Eu sei de tudo. Você é um deles. Um vampiro.
Por alguns segundos Bono ficou olhando para ele, e então começou a rir.
-- Edge, pelo amor de Deus! - ele deu um tapinha em Edge – Por um momento achei que você estivesse falando sério!
-- Mas eu estou. Pare de fingir. Eu já estava desconfiado antes, e agora tenho certeza. Você é um vampiro. E eu sou um caçador, mas isso não importa. Confie em mim, não precisamos mais esconder isso um do outro.
Bono parou de rir quando percebeu que Edge estava falando sério.
-- Você está falando sério?
-- Sim, e você sabe disso. Pare de mentir.
-- Não acredito que estou ouvindo isso. Você está ficando louco. Eu, um vampiro?
-- É o que você é, e não adianta disfarçar. Depois disso que você disse sobre o terreno baldio, eu tenho certeza.
-- Foi você que me contou sobre o terreno baldio!
-- Não, não foi. Eu não sei se você leu meus pensamentos ou se conhecia os outros vampiros, mas...
-- Edge, vampiros não existem! Então é isso o que vai procurar na floresta? Não é a toa que quase foi morto! Vampiros são lendas, as pessoas que te prenderam hoje eram pessoas reais, de carne e osso, e não personagens de algum conto de terror de segunda mão!
-- Chega, Bono! - Edge o segurou, irritado – Eu já sei, nada do que diga vai mudar o que eu sei! Eu só peço para que confie em mim, que compartilhe isso comigo. Eu não vou contar para os meus pais, nós não vamos te fazer mal.
-- Pelo amor de Deus, eu não sou um vampiro! Olha, eu... Eu como alho, e vampiros não gostam de alho, ok? E eu... Eu adoro crucifixos, entro em igrejas, sou batizado...
-- Por favor, nós dois sabemos que isso são só crenças populares sem sentido. Mas vamos ver quanto às coisas reais, que você não citou: você sempre pede pra entrar na minha casa. Não coloca o pé além da porta enquanto eu não digo “pode entrar”. E por que será?
-- Porque eu sou educado! Isso é costume, você por acaso entra na casa das pessoas sem ser convidado?
-- Não, mas não preciso de um convite verbal e claro, como você precisa. Outra coisa, vejamos... Ah, sim. A luz do sol.
-- Eu não acredito! - Bono suspirou e se afastou, indignado – Eu já te expliquei isso! Eu tenho um problema, uma doença rara, todos na minha família têm! Eu não tenho nada contra a luz do sol, desde que não seja muito forte e eu não olhe diretamente para ela! Acha que não saio nunca de dia? Eu evito, mas não morro se fizer!
-- Por que não confia em mim? - Edge estava ficando chateado – Eu achei que me amasse, independente de qualquer coisa. Que confiasse em mim. Eu confio em você, me entreguei a você, e esperava que você fizesse o mesmo comigo.
-- Pelo amor de Deus! Eu amo você e também confio em você, e se quiser que eu faça qualquer coisa por você, eu farei! Mas não acredito que estou aqui tentando te convencer que eu não sou um vampiro! Você me decepcionou, Edge, você não passa de mais um desses supersticiosos atrasados que tem aos montes por aí. Uma das coisas que eu mais apreciei em você desde o início foi a sua inteligência, e você vem com isso, estou muito decepcionado.
Nessa hora a porta se abriu, e Garvin entrou, com uma leve batida.
-- Edge, você está acordado? Achei que estivesse descansando.
-- Eu e Bono estamos conversando. - disse Edge.
-- Não, o seu pai está certo. - disse Bono – Você precisa descansar. Precisa muito. Boa noite, senhor Evans. Cuide bem do Edge.
-- Espera. - disse Edge, à beira do desespero – Para aonde você vai?
-- Vou me transformar em um morceguinho e sair voando por aí.
Ele saiu. Garvin ficou olhando para ele, intrigado.
-- O que houve?
-- Eu acho que fiz uma besteira. - Edge se deixou cair na cama – Uma besteira enorme.
-- O que você fez?
-- Eu acusei o Bono de ser um vampiro.
-- O que!? Por que você fez isso?
-- Porque eu tinha a certeza! Ele tem algumas coisas estranhas, e... Eu achei... Eu tinha tanta certeza, mas...
-- Edge, isso foi uma enorme estupidez. Mesmo que eu achasse que algum amigo meu é um vampiro, eu não perguntaria a ele. Mas não vamos falar disso agora. - ele se sentou ao lado dele e começou a analisá-lo – O que aconteceu? Você está ferido?
Edge contou o que havia acontecido. Garvin o fez tirar toda a roupa para examiná-lo, ver se não tinha nenhum ferimento grave.
-- Eu estou bem, sério. - Edge estava um pouco envergonhado por estar só de cueca – Eles não chegaram a fazer nada.
-- Fizeram sim. Te deram uma bela surra, e quase te estrangularam. - havia marcas de dedos no pescoço de Edge, e vários hematomas pelo corpo – Você disse que foi uma garota?
-- Ela que me atraiu. Bono disse ter visto umas quatro pessoas.
-- Eu e sua mãe seguimos um vampiro pela floresta. Sabemos que era um porque foi um dos que nos atacaram da outra vez. Então, estamos falando de pelo menos cinco. - ele deu o exame por terminado, e Edge depressa vestiu suas roupas – Não continuamos atrás dele porque você nos chamou pelo rádio. Ficamos como loucos te procurando, fomos ao lugar em que você tinha dito, mas já não encontramos nada.
Ele abraçou Edge, sem que este esperasse. Nessa hora Gwenda apareceu na porta, vendo se ele já terminara os exames.
-- Edge, meu filho... - ela entrou e o abraçou também – Você está bem? Não está ferido?
-- Não, mamãe, estou ótimo. - ele se abraçou a ela, começando a sentir vontade de chorar.
-- Ele está um pouco machucado, mas nada grave. - disse Garvin – Em breve estará recuperado. Mas vamos dar um tempo com as expedições. Você estava certo, ainda é muito jovem para se arriscar dessa forma, te falta muita experiência. Nos próximos dias, você e seus irmãos ficarão em casa, estudando e se divertindo como garotos normais. Poderão treinar e sair com a gente em vigílias mais leves, mas nada tão arriscado.
-- Mas vocês não podem sair sozinhos! Mesmo sendo melhores e tudo, eles são muitos!
-- Não vamos sozinhos. - disse Gwenda – Hoje mesmo ligaremos para outros caçadores. Alguns já nos ligaram pedindo informações. Traremos reforços, caçadores muito bons que nos ajudarão.
-- Não queremos que aconteça com um de vocês o mesmo que aconteceu com o seu amigo Larry. - disse Garvin – Vocês são muito jovens para morrerem assim. Mas agora durma, Edge, você não está se agüentando em pé. Descanse até a hora em que achar melhor.
-- Tá bom. - ele abraçou os dois de novo – Obrigado.
* * * * *
No meio da aula, a professora pedira a ele para ir à sala do diretor, entregar alguns papéis. Edge fora, feliz por estar livre da aula durante alguns minutos. Chegando lá, a secretária o avisou que o diretor estava com alguém, e que ele devia esperar.
Ele se sentou no banco e ficou olhando distraidamente a sala de espera. Era perto do meio-dia, a sala estava iluminada por uma luz suave que entrava pela janela. Então a porta da sala do diretor se abriu, e Bono saiu de lá.
Edge se levantou na mesma hora, quase dando um grito. Bono o vira também, e parara, surpreso. Os dois se olharam por alguns segundos.
-- Bono? O que está fazendo aqui?
-- Eu é que pergunto. O que você está fazendo aqui?
-- Eu estudo aqui. Vim trazer uma coisa para o diretor.
-- Você não estuda na mesma escola que a sua irmã?
-- Não... E você? O que faz aqui?
-- Eu vim pedir o histórico do meu irmão, ele estudava aqui até ano passado... - ele parecia bastante sem jeito, pois fazia alguns dias que os dois não se falavam – Como você está?
-- Bem. - Edge também estava sem jeito – Eu, hum... Eu só vou entregar um negócio para o diretor, você pode me esperar?
-- Claro.
Em dois minutos Edge entregou o que tinha que entregar, e logo saiu para falar com Bono, que o esperava. Até então ainda achava que o outro era um vampiro, mas agora, via que isso era impossível: embora não tivesse sol dentro da escola, Bono tivera que ir até lá de alguma forma. Ele estava usando óculos de sol, mesmo dentro do prédio, o que confirmava sua versão do problema nos olhos, mas um vampiro jamais suportaria o sol daquela hora, mesmo por poucos segundos.
-- Eu, hum... - Edge procurava algo para dizer – Eu queria te ligar, mas... Eu fiquei um pouco... Sem jeito por ter falado aquelas coisas estranhas, achei que você não gostasse mais de mim...
-- Já tinham me acusado de ser muita coisa, mas vampiro foi a primeira vez. - ele deu um meio-sorriso – Eu também queria te ligar, mas também fiquei sem jeito. Mas estava muito preocupado com você. Você ficou bem, depois daquilo tudo?
-- Fiquei sim. Tive um pouco de febre no dia seguinte, mas logo passou. Estou ótimo agora.
-- Que bom. Eu fiquei preocupado. - os dois ficaram um tempo em silêncio, o que foi muito incômodo para ambos – Olha, eu... Eu tenho que ir. Até qualquer dia.
-- Até.
Bono começou a se afastar pelo corredor. Edge ficou olhando para ele, triste, e então o chamou:
-- Bono...
-- O que?
-- Eu... É que... - ele não sabia direito o que queria dizer – Então, isso... É assim? Acabou?
-- Acabou o que?
-- Eu não sei, as... Coisas que a gente fez. Eu achei que a gente tava... Que a gente tava junto.
-- Não pode continuar. Não dá.
-- Porque eu disse que você era um vampiro?
-- Por várias coisas. Essa é a menor delas. Eu não quero namo... Me envolver com uma pessoa que pode ser morta a qualquer momento porque sai pela floresta de madrugada atrás de coisas que não existem. Não ia suportar isso.
-- Eu não vou mais fazer isso, juro. - Edge se aproximou dele – Eu conversei com meus pais, eles disseram que eu não devo mais fazer isso.
-- Seus pais também ficam procurando por vampiros?
-- Não, claro que não... Eles são realmente detetives. Oficialmente eu também, mas eu tinha a esperança de encontrar alguma coisa mais... Sobrenatural.
-- Hum... Você acredita mesmo nessas... Coisas?
-- Eu não sei, é só... Olha, esquece aquilo que eu te disse. É claro que você não é um vampiro. Foi uma idiotice ter dito aquilo, eu estava muito abalado por causa de tudo, acabei falando besteira. Me desculpe, deve ter sido bastante estranho pra você.
-- Não esquenta. Eu já esqueci.
Novamente, os dois ficaram em silêncio. Edge se aproximou um pouco.
-- E nós?
-- Nós o que?
-- Nós vamos... Continuar?
-- Eu não sei se devo.
-- Por quê?
-- Porque eu nunca saí tanto tempo com ninguém. Se continuarmos, vamos acabar cobrando coisas um do outro, e isso significa compromisso. Eu não sei se quero namorar com você.
-- Não precisamos namorar. Tudo pode continuar como é.
-- Não sei não. Daqui a pouco vamos começar a fazer exigências, cobranças, sentir ciúmes, exigir a presença um do outro sempre...
-- E qual é o problema com isso? Eu te amo e quero ficar o tempo todo com você. E não vou ficar fazendo as cobranças que as meninas fazem. Eu já disse que não sou uma menina.
-- Não precisa dizer, eu já tinha percebido. - Bono ainda parecia apreensivo, mas tocou no rosto de Edge – Eu tenho medo de onde isso vai parar.
-- Por quê? Já fizemos tudo o que tínhamos que fazer. Não falta nada.
-- Falta sim. Você nem imagina.
Bono olhou ao redor, e ao ter certeza de que estavam sozinhos, aproximou-se de Edge e o beijou. Depois se afastou e ficou passando a mão pelo rosto do outro.
-- Tsc. - ele suspirou – Eu sei que vou me arrepender disso.
-- Se não quiser mais ficar comigo, tudo bem. A gente termina isso agora.
-- Não, o problema é justamente o contrário. Eu nunca quis tanto ficar com você quanto quero agora. - ele abraçou Edge – Eu não consigo pensar em nada que não seja você.
-- Vai lá em casa hoje. Por favor.
-- Seus pais vão acabar descobrindo.
-- Não vão não. E você pode dormir lá.
-- Eu tenho que ir pra casa antes do sol nascer.
-- Mas pode passar a noite comigo. Eu posso trancar a porta... - ele mexeu nos cabelos de Bono – Ninguém vai saber.
-- Ok. - ele sorriu – Vou estar lá assim que anoitecer.
Eles se deram um último beijo, e Bono se foi, deixando Edge sozinho no corredor.
* * * * *
Quando a campainha tocou, Edge foi abrir a porta. Bono sorriu para ele, e ele sorriu de volta.
-- Oi.
-- Oi. Demorei?
-- Nada. Entra.
Bono entrou. Ainda estava cedo, acabara de anoitecer. Ele usava seus óculos escuros, mas os tirou quando entrou na casa. Edge o apresentou à sua mãe, que ainda não o conhecia, e ele cumprimentou a todos.
Os dois ficaram algum tempo na sala, conversando com os outros. Dick e Garvin, que antes não gostavam muito de Bono, estavam começando a simpatizar com ele. E Edge estava impressionado: Bono estava agindo quase como uma pessoa normal. Era extremamente educado e gentil, tinha uma conversa agradável e interessante, e era muito inteligente. Gill estava completamente encantada, e a impressão que dava era que ele estava tentando seduzir a todos. E estava conseguindo.
Depois do jantar – Bono comera pouco, dizendo que já havia comido antes de sair de casa – Edge conseguiu se ver livre de seus pais e levou Bono para o quarto, dizendo que eles já iam dormir. Bono passaria a noite ali, e iria embora pouco antes do amanhecer.
-- Ufa. - disse Edge, depois de fechar a porta – Achei que não fosse conseguir trazer você pra cá. Eles te adoraram.
-- Que bom. - Bono andava pelo quarto, olhando ao redor – Eles são ótimas pessoas. Você tem uma família maravilhosa.
-- Eu queria conhecer a sua família também.
-- Você vai conhecer eles logo, eu prometo. Só não te levei lá ainda porque mora muita gente na minha casa, e nem todos sabem ainda... Mas vou contar. Só me dê mais um tempo.
-- Dou sim. - Edge o abraçou – Te dou tudo o que você quiser.
Bono sorriu e se virou para Edge. Os dois se beijaram, e puderam ficar realmente à vontade e confortáveis pela primeira vez – tomando apenas cuidado para não se empolgarem demais, uma vez que os outros ainda estavam acordados. Não seria nada bom se alguém os escutasse e adivinhasse o que estavam fazendo.
* * * * *
Bono passou a ir na casa de Edge quase todos os dias. Muitas vezes, os pais deste não estavam – mais duas pessoas haviam sumido – mas eles nunca ficavam sozinhos, pois Dick e Gill sempre estavam lá.
-- Sabe – Bono disse, em um dia em que estava chovendo e eles olhavam o céu escuro pela janela, deitados na cama – às vezes eu me pergunto como isso foi acontecer.
-- O que? A chuva?
-- Não. Nós. Como fomos nos apaixonar desse jeito.
-- Você queria que não tivesse acontecido?
-- Eu não disse isso. Só acho que é uma coisa curiosa. - ele abraçou Edge com mais força – Mas foi a melhor coisa que já me aconteceu.
Edge apoiou a cabeça no peito de Bono.
-- Estamos juntos?
-- Claro que estamos.
-- Somos namorados?
-- Você quer que sejamos?
-- Acho que sim.
-- Então, nós somos.
Uma claridade muita forte iluminou o quarto, e logo em seguida se ouviu o estrondo de um trovão.
-- Se somos namorados – Edge tocou no rosto de Bono – faz amor comigo?
-- De novo?
-- Sim.
-- Bem, já que insiste...
Os dois riram e começaram a se beijar. Os pais de Edge haviam ido para a floresta, e Edge estava preocupado por causa da chuva; mas os beijos de Bono o fizeram se esquecer de qualquer coisa.
-- Bono... - ele murmurou, quando as coisas já haviam evoluído e Bono beijava seu pescoço – Eu te amo...
-- Eu também te amo.
Edge fechou os olhos, e ficou assim, apenas sentindo o que Bono estava fazendo, o peso do outro sobre ele, o som de sua respiração acelerada. Mas mesmo de olhos fechados ele percebeu que a luz se acendera, e os abriu ao mesmo tempo em que ouvia a voz de seu pai:
-- David!
Ele não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Como se esquecera de trancar a porta? Bono saiu de cima dele e Edge pôde se virar, apenas para ver o olhar incrédulo de Garvin. Bono mantinha a cabeça baixa, envergonhado, e Edge simplesmente não sabia o que fazer. Nunca se sentira tão humilhado em toda a sua vida.
-- Pai, não é... Não é nada disso... - ele conseguiu dizer, percebendo imediatamente o quanto soava ridículo.
Garvin ficou tanto tempo olhando para eles, e seu rosto estava tão pálido, que Edge achou que ele fosse desmaiar.
-- Você. - ele disse, olhando para Bono – Fora da minha casa. Agora mesmo. Nunca mais ponha os pés aqui.
Bono balançou a cabeça, sem olhar para Garvin, com o rosto muito vermelho. Em seguida Garvin se voltou para Edge.
-- E você, vista-se. Ou eu te ponho na rua nu como está.
Ele saiu, batendo a porta. Bono e Edge não conseguiam olhar um para o outro, e Edge tinha lágrimas nos olhos.
-- Eu sinto muito. - Edge disse, quando Bono se levantou e começou a se vestir – Foi culpa minha, sinto muito.
-- Não se preocupe comigo. - Bono o abraçou – Eu sinto muito.
Com um último beijo rápido, ele saiu dali, passando pela sala sem olhar para os pais de Edge e indo embora o mais depressa possível. Edge terminou de se vestir e saiu do quarto, juntando a pouca coragem que ainda tinha.
Na sala, sua mãe chorava e balançava a cabeça, parecendo não acreditar no que Garvin dizia. Este, por sua vez, andava de um lado para o outro, muito nervoso. Os dois estavam com as roupas molhadas por causa da chuva; deviam ter acabado de chegar, e Garvin devia ter ido ao quarto de Edge apenas para verificar se ele estava dormindo bem.
-- Pai... - Edge murmurou – Mãe... Eu sinto...
-- Não diga que sente muito! - Garvin disse, se voltando para ele – Não haja como se não tivesse culpa de nada, seu...
Ele deu um tapa no rosto de Edge, com mais força do que jamais dera.
-- Não, Garvin! - disse Gwenda, segurando o marido – Não faça isso, deve haver uma explicação...
-- A única explicação é que nosso filho é uma bicha! - as palavras doíam mais em Edge do que o tapa – Junte suas coisas e vá embora daqui agora mesmo! Você não pode ser um caçador, não pode ser um Evans, não é nem mesmo um homem de verdade! Você é uma vergonha para nós!
Edge foi correndo para o quarto, batendo a porta. Enquanto pegava suas coisas e jogava em uma mochila, ouvia seus pais discutindo, Gwenda tentando convencer Garvin a não expulsá-lo. Mas ele não podia mais ficar, jamais poderia encarar seus pais agora que eles sabiam de tudo. Seu pai o pegara na cama com Bono, jamais poderia olhar para ele sem se lembrar disso.
-- ... a não ser que ele vá no próximo trem para Essex! - ele ouviu seu pai dizer, quando saiu do quarto levando sua mochila – Porque aqui ele não vai ficar, não perto daquele garoto!
-- Edge – disse sua mãe, quando o viu – seu pai não estava falando sério, você não vai embora assim. Está caindo o mundo lá fora.
-- Vou te deixar ficar – disse Garvin – mas você não vai pôr o pé para fora de casa, e vai amanhã mesmo pegar o trem para a casa dos seus avós. Vai voltar para a Inglaterra e vai ficar lá até resolvermos as coisas por aqui.
-- Não, pai, não precisa se incomodar. Eu vou embora, porque prefiro morrer de pneumonia ou nas mãos de um vampiro do que nunca mais ver o Bono.
-- Você não sabe o que está dizendo!
-- Sei, sei perfeitamente! O que você disse é verdade, eu sou uma bicha e sou uma vergonha pra vocês! Eu me apaixonei pelo Larry, e agora me apaixonei pelo Bono! Eu fiz amor com ele, nós já transávamos há semanas, e se quer saber, eu prefiro nunca mais ver vocês do que nunca mais ver ele!
Garvin lhe deu outro tapa no rosto, mas Gwenda o segurou, para que ele não desse uma surra no filho. Edge saiu correndo pela porta, sob a tempestade assustadora que caía, ouvindo os trovões abafando a voz de seu pai, que gritava para que ele nunca mais voltasse.
* * * * *
Ele estava andando há pelo menos duas horas sob a chuva. Estava encharcado, e tinha certeza de que agora havia mais água do que roupas em sua mochila. Tivera a esperança de encontrar Bono na rua, mas com certeza o outro fora correndo para casa, por causa da chuva. E ele não tinha coragem de bater lá assim.
Chegando a uma praça, ele se abrigou em um pequeno palco, cujo telhado não protegia da chuva mas pelo menos diminuía a força da água. Ficou ali, encolhido e tremendo por causa do frio, e pela primeira vez parou para pensar no que havia acontecido. Fora expulso de casa, jamais poderia voltar. Não seria mais um caçador, nem um Evans, nem nada; tinha medo de como seria sua vida à partir de agora.
Quando levantou o rosto, ele viu uma pessoa vindo em sua direção. A princípio, por causa da chuva, não pôde ver direito, e teve a esperança de que fosse Bono. Mas conforme a figura se aproximava, ele percebeu que não era o outro: era alguém muito mais alto, e quando estava a poucos metros, Edge pôde ver seu rosto muito branco molhado pela chuva, e seus olhos verde-pálidos.
-- Ora ora. - o desconhecido sorria enquanto se aproximava de Edge, até ficar sob o telhado com ele – Se não é o filhote dos caçadores.
Edge se assustou e deu um passo para trás.
-- Vampiro...
-- Você não se lembra de mim, não é? Acho que estava desmaiado quando eu te amarrei naquela árvore. - ele segurou Edge pelo pescoço e o imprensou contra a parede – Então, o filhotinho foi expulso do ninho? Quanto tempo será que sobreviveria se eu não te matasse?
Ele não tentava se soltar; sabia que não conseguiria. Já havia lutado com muitos vampiros, e sabia que nunca poderia superar um em força.
-- Me solte. - ele disse, tentando não demonstrar medo – Não sou mais caçador. Não vou mais te fazer mal.
-- Me fazer mal? - o outro deu uma gargalhada – Você não poderia me fazer mal nem que se juntasse com mais vinte dos seus. - ele apertou mais o pescoço de Edge – Humano ridículo. Caçador.
O vampiro dissera a última palavra com enorme raiva. Edge engoliu em seco.
-- Se vai me morder, faça de uma vez. Eu não tenho medo de morrer.
-- Te morder? Eu jamais beberia o sangue imundo de um caçador. - ele pegou a faca que Edge tinha prendido ao lado da mochila – Você vai ser morto com a sua própria arma.
-- Desistiu de pôr fogo em mim?
-- Seria impossível debaixo da chuva, idiota. Mas era o que você merecia, morrer como morreu meu irmão. Seus pais mataram meu irmão, caçador. E agora você vai sentir tanta dor quanto ele sentiu, vai agonizar até o último instante.
Quando ele encostou a faca no pescoço de Edge, este fechou os olhos. Sentiu a pele começar a ser cortada, e gritou; mas então a pressão da lâmina desapareceu, e logo em seguida a mão do outro soltou seu pescoço e ele pôde respirar. Abriu os olhos, e viu o vampiro ser jogado a pelo menos dez metros de distância por ninguém menos do que Bono, que surgira magicamente ali.
-- Não toque nele! - Bono gritou com tanta raiva que Edge se encolheu – Você não tem permissão para tocar nele!
-- Não se meta! - o vampiro se pôs de pé e avançou para Bono – Amigo de caçadores!
Ele pulou sobre Bono e o jogou contra a pilastra, a quebrando e fazendo parte do telhado desabar. Edge pulou para fora dali e se encolheu próximo ao chafariz, assustado. Bono se levantou e avançou para o vampiro, mas este passou a flutuar a cerca de dez metros de altura. Edge nunca vira um vampiro voar tão alto.
-- Está com medo? - Bono gritou para ele – Venha aqui e lute!
-- Não vou lutar com você. Acha que vai poder proteger o humano para sempre? Nós vamos acabar com ele. E com você, se ficar no caminho.
-- Ele é meu! Eu tenho autorização para tê-lo, nem você nem ninguém pode interferir!
-- Você jamais vai fazer o que deve fazer! Seu traidor amigo de caçadores!
Com isso, o vampiro desapareceu como bruma sob a chuva. O que restara do palco desabou com um estrondo, e Edge gritou, assustado. Bono se voltou para ele e se aproximou.
-- Edge. - ele lhe estendeu a mão – Você está bem?
Mas Edge se afastou dele, arrastando-se pelo chão.
-- Não me toque! - ele tentou levantar, mas caiu de novo – Quem é você?
-- Sou o Bono. Vem cá, você está machucado. Me deixa ver isso.
-- N-não! - Edge conseguiu se levantar, e correu para o outro lado do chafariz – Você, ele, vocês são...
-- Me desculpe por ele. Isso não vai mais acontecer. Vem cá, você está sangrando.
-- Você é um vampiro!
-- Eu sou sim.
Edge parou de fugir, e deixou que Bono se aproximasse e amarrasse uma tira de pano em volta de seu pescoço, que sangrava. O ferimento não era profundo, mas doía. Edge começou a chorar.
-- Sinto muito. - Bono o abraçou – Me perdoe.
-- Não é possível, não é... Você saiu de dia, você comeu comida humana, você fez amor comigo... Não pode ser, estou tendo um pesadelo, isso não está acontecendo...
-- Eu não podia deixar você saber. Vamos sair daqui, você precisa se secar.
-- Você não acredita em vampiros, você acha isso tudo um absurdo...
-- Era tudo mentira, você não entende? Tudo para te convencer. Quer mais uma prova de que eu sou um vampiro? O seu pai estava certo. O rapaz na floresta. Fui eu quem o matou. Eu bebi o que restava do sangue dele.
Aquilo fez Edge perder o que restava de suas forças. Sem nem perceber, ele deixou Bono levá-lo pela mão até algum outro lugar, uma casa abandonada – a mesma em que eles haviam conversado uma vez – onde Bono o fez tirar as roupas, o secou e o cobriu com um cobertor.
-- Está aquecido?
-- Sim.
-- Vou fazer um curativo de verdade no seu pescoço. Ainda bem que não pegou muito fundo. - ele tirou o pano molhado de sangue do pescoço de Edge, e fez um curativo – Mais um segundo e você estaria morto.
Quando ele terminou, seus dedos estavam molhados de sangue; ao invés de limpá-los, Bono os lambeu. Edge recuou alguns passos quando os olhos famintos de Bono encontraram os seus.
-- Fico tonto só de sentir o cheiro do seu sangue. - Bono se aproximou dele – Você não sabe o quanto eu quis isso.
-- Vai... Me morder?
-- Se fosse minha intenção, teria feito há muito tempo atrás. - ele tocou no rosto de Edge – Eu sou o mesmo, Edge. Te amo tanto quanto te amava há algumas horas.
Mas para Edge, parecia que vira Bono pela última vez há séculos atrás. Praticamente se esquecera do incidente no quarto, do motivo de estar na rua àquela hora.
-- Como é possível... Você... Esse tempo todo...
-- Eu não podia deixar você saber, entende? Você é um caçador, eu sou um vampiro. Eu teria te atacado na floresta, quando nos vimos pela primeira vez, mas você estava com seu pai e seu irmão, e por algum motivo eu resolvi deixar vocês em paz ao invés de matar a todos. Depois você atrapalhou meus planos, impediu que eu mordesse aquela garota, e eu fiz você me seguir para a floresta, pensando que, se não tinha conseguido ela, conseguiria você... Mas mais uma vez eu resolvi te poupar, e deixei meu irmão conseguir outra vítima.
-- Por que você não me mordeu naquele dia?
-- Eu não sei. Só... Tive um momento de bondade, ou sei lá o que. E depois meus pais me mandaram me aproximar de você, conquistar a confiança de vocês, para poder acabar com todos de uma vez. E eu fiz isso, mas ao mesmo tempo comecei a me envolver de verdade com você... E estive na sua casa e não ataquei vocês. Isso foi na mesma noite em que seus pais mataram meu irmão.
-- Seu... Irmão?
-- Meu irmão mais velho. Aquele que eu mais admirava, meu melhor amigo. - Edge se lembrou de como Bono parecia triste na noite seguinte, e que contara ter perdido alguém da família – Seus pais o queimaram vivo, e eu tinha estado sozinho na casa deles, com os dois filhos deles, e não fiz nada. Isso foi imperdoável, meus outros irmãos começaram a suspeitar que eu estava me interessando por você de verdade. Eu fiquei com medo, tentei me afastar de você várias vezes, mas não pude. Então contei para os meus pais o que estava acontecendo, e eles me disseram que, se eu queria você, então eu te teria. Nenhum outro poderia te fazer mal. Mas infelizmente, meus outros irmãos não concordaram com isso. Eles te atacaram naquele terreno baldio, e foi muita sorte eu ter chego antes que pusessem fogo em você. Naquele dia bastou eu mandar e eles foram embora, mas hoje Norman quebrou as regras de novo e me enfrentou. Como pode ver, não sou o mais forte aqui e não posso controlar a todos.
-- Toda a sua família é de vampiros?
-- Sim. Meus pais, meus irmãos, tios e primas. Somos muitos.
-- E todos moram aqui?
-- Não todos, mas a maioria. Vivemos naquela casa em que você me viu entrar.
-- E são quantos vivendo aqui?
-- Quantos? - ele pensou um pouco – Teria que fazer uma lista. Uns cem, eu acho. Talvez mais.
-- Cem? Cem vampiros vivendo nesta cidade, dentro daquela casa?
-- Ela é maior do que parece.
Mas não era com o tamanho da casa que Edge estava preocupado. Nem vinte caçadores juntos poderiam lutar com tantos vampiros.
-- Mas como isso é possível? Digo, você... Você deu provas mais de uma vez de que não era um vampiro.
-- Posso mentir muito bem quando quero. Mas fiquei desesperado quando você me colocou contra a parede, achei que estava tudo perdido. Eu tinha orientações muito claras: se você desconfiasse, eu devia matar você. Porque você sabia onde eu morava. Não podia deixar você vivo se você soubesse.
-- Mas... Você comeu comida humana, vampiros não...
-- Eu tenho uma resistência maior do que a dos outros. Mas passei muito mal no dia seguinte, você nem imagina. Achei que fosse morrer.
-- Mas você... Você fez amor comigo, vampiros não...
-- Podemos, sim. Não fazemos sempre porque temos prazeres maiores, mas podemos. Os humanos ainda tem muito a aprender sobre nós.
-- Na escola. Era dia, havia sol...
-- Eu já sabia que você estudava ali, eu posso ler seus pensamentos. Naquela noite me escondi no porão da escola, e hipnotizei a professora para que ela te mandasse para a sala do diretor na hora em que eu estivesse lá. Tenho uma resistência ao sol maior do que os outros, posso suportar aquele nível de claridade por certo tempo. Depois não saí da escola, fui para o porão e esperei até o anoitecer para sair.
-- Meu Deus... Você planejou tudo, você...
-- Tudo o que fiz foi para não te perder. Eu te amo de verdade. Não te morder foi a maior prova de amor que eu poderia ter te dado.
-- E o menino no bosque? O que eu teria salvo se você não tivesse matado?
-- Eu sinto muito. Faria tudo para que tivesse sido diferente. Tentei te impedir de ir até ele, porque achei que meu irmão estava lá também, e nesse caso eu não poderia impedí-lo de te matar. Mas Norman havia saído, e você encontrou o garoto. Mas eu não podia deixá-lo vivo, ele tinha visto meu rosto. Eu não queria ter feito, mas era preciso.
-- Preciso. - Edge o afastou e foi até a janela – Quantas pessoas você já matou porque era preciso?
-- Muitas. Humanos são alimento. Não somos assassinos, nós apenas... Seguimos uma ordem natural na cadeia alimentar. Vocês também se alimentam de outros animais e não são assassinos por causa disso.
-- Não nos alimentamos da nossa espécie.
Bono pegou um pedaço de madeira do chão e, diante de Edge, cravou a estaca em seu próprio peito. Edge deu um grito, mas Bono em seguida retirou a estaca, que pingava sangue, e o buraco em seu peito lentamente se fechou.
-- Faça o mesmo, e você morre. - ele disse, jogando a estaca no chão – Eu não sou da sua espécie.
Edge tentava parar de tremer, mas não conseguia.
-- V-v-você... Você... Você disse que éramos namorados, que gostava de mim.
-- E é tudo verdade.
-- Mas se não somos da mesma espécie...
-- Isso não impede. Você já viu que não impede.
-- Mas como vai ser agora? Eu já sei de tudo. Você vai me matar?
-- É diferente agora. Você foi expulso pelos caçadores, então não é mais um deles. Eu tenho autorização para te levar para casa.
-- Para um ninho de vampiros? Não quero ser o jantar de vocês.
-- Não te faremos mal. Você ficará com a gente, mas permanecerá intacto. Mas se eu for embora agora e você ficar sozinho, será morto pelos meus irmãos antes do amanhecer.
-- Mas... - ele estava em pânico – Mas...
-- Eu vou te proteger, Edge. Confie em mim, assim como sempre confiou. Eu nunca te fiz mal, não é agora que vou fazer. Meus pais não vão deixar que ninguém te machuque, eles são os vampiros mais poderosos que eu já conheci, controlam a todos nós.
-- Jura que nada de mal vai me acontecer?
-- Juro. Ninguém vai te morder nem te machucar, e lá você terá um lugar para dormir e ficará protegido. Ficará morando com a gente. Afinal, você não tem outro lugar para ir.
Era verdade, e uma vez que não tinha nenhuma outra perspectiva de futuro, Edge acabou concordando. No máximo, matariam ele; isso aconteceria de qualquer jeito, se ele ficasse sozinho na rua.
-- Certo. Eu vou com você.
* * * * *
A porta se abriu, revelando um corredor escuro. Edge não precisava de convites para entrar, de forma que seguiu Bono para dentro mesmo sem este lhe chamar verbalmente. A porta se fechou sozinha atrás dele.
-- Bono? - ele disse, receoso, pois não podia ver nada.
-- Um momento. Me desculpe, nós não precisamos de luz para ver. - Bono acendeu a luz – Pronto.
Edge seguiu Bono para dentro da casa, e as luzes foram se acendendo. Parecia uma casa comum. Eles passaram por uma sala de estar sem ninguém, e quando chegaram na sala de jantar, se encontraram com uma mulher alta e muito branca, que usava um longo vestido preto e era muito bonita.
-- Chegou mais rápido do que eu esperava, Bono. - ela disse, e só então se voltou para Bono, tirando os olhos da revista que estava lendo – Norman chegou há pouco.
-- Ele quebrou as regras.
-- E já foi castigado por isso. - ela se levantou e se aproximou deles – Então, você é Edge. Muito prazer, sou a mãe do Bono. Meu nome é Iris.
Ela não parecia ter mais de trinta anos, e Edge se perguntou como podia ser mãe de Bono. A cumprimentou, impressionado com sua beleza, e com o poder que sentia emanar dela.
-- É um prazer conhecê-la.
-- Por favor, fique à vontade. Bono, as crianças estão brincando na floresta. Leve o Edge para o quarto e o faça ficar confortável.
-- Sim, senhora. Vou precisar de roupas para ele, as minhas não servirão.
-- Já providenciei isso.
-- Obrigado.
Eles se despediram com um beijo nos lábios, e então Bono levou Edge para outro cômodo. Edge estava um pouco zonzo.
-- Você beijou sua mãe na boca.
-- Sim.
-- Ela parece ser nova demais pra ser sua mãe.
-- Eu pareço ser mais novo que seu pai?
-- O que? Claro.
-- Mas eu não sou.
Edge achou melhor não perguntar mais por enquanto. Eles seguiram pela casa, que era realmente maior do que parecia, mas não encontraram mais ninguém. Chegaram até uma escada que parecia descer para um porão, e seguiram por ali. Ela ia dar não em um porão, mas em um aposento com paredes de pedra, que parecia outra sala de estar. Dali eles passaram para um corredor enorme, cheio de portas. Bono abriu uma delas e entrou com Edge, fechando a porta atrás de si. Eles estavam agora em um quarto grande, ricamente decorado, e sem janelas. Havia apenas outra porta em uma das paredes.
-- Este será o seu quarto. - Bono abriu o guarda-roupas – Há roupas aqui para você, espero que todas sirvam. Se te faltar algo, pode pedir que nós arrumaremos. Ali fica o banheiro, e aquela porta dá no meu quarto. Pode deixá-la fechada se quiser, mas jamais a tranque ou bloqueie a entrada. Mas a porta da frente tem chave e você pode trancá-la se isso te fizer se sentir mais seguro. - ele foi até a cama e ajeitou os travesseiros, verificando se estava tudo em ordem – Os lençóis acabaram de ser trocados. Você não precisa se preocupar com limpeza ou arrumação, porque temos escravos humanos que fazem tudo por nós. Sinto muito pela falta de janelas, mas estamos no subsolo. Você deve estar cansado, eu vou preparar o seu banho e a sua cama. A maioria dos hábitos aqui não é tão diferente de qualquer outro lugar.
-- Obrigado. Por tudo. - ele estava sem jeito de pedir uma coisa, mas acabou dizendo – Vocês têm... Comida?
-- Está com fome?
-- Um pouco.
-- Posso providenciar. O que você quer comer?
-- Eu não sei, qualquer coisa. Digo... Comida humana.
-- Eu sei o que os humanos comem, não se preocupe. Vou conseguir alguma coisa para você.
-- Obrigado. Desculpe por te dar trabalho.
-- Pare com isso. Não é trabalho algum. Vou preparar seu banho e sua cama, e enquanto você descansa vou trazer alguma coisa para você comer.
Tirando o fato de as paredes serem de pedra e de não haver janelas, o quarto e o banheiro não tinham nada de extraordinário – embora a decoração e o tamanho dessem a Edge a sensação de estar dentro de um castelo da idade média. Quando saiu do banho e se deitou, Bono reapareceu, trazendo uma pizza e refrigerante.
-- Desculpe por não ter nada melhor, mas foi tudo o que consegui por enquanto.
-- Está ótimo. Obrigado.
-- Como você se sente?
-- Bem. Só cansado e com fome. - ele começou a comer – Ainda sinto como se estivesse dentro de algum sonho estranho.
-- Eu imagino. Sinto muito por ter revelado tudo dessa forma tão brusca, eu não tinha planejado dessa forma. Tudo culpa do Norman. Mas agora vai ficar tudo bem, você vai dormir e amanhã tudo vai estar muito melhor. O sol já vai nascer, daqui há pouco todo mundo chega, mas ninguém vai te incomodar. Se precisar de alguma coisa, basta bater no meu quarto.
-- Você não vai dormir comigo?
-- Hoje não. Você precisa ficar um pouco sozinho, e quero que se sinta livre pra pensar o que quiser. Não se esqueça de que a maioria aqui pode ler seus pensamentos. - ele deu um beijo nos lábios de Edge – Se se sentir mal, me chame. Tente dormir, pode descansar o quanto quiser.
-- Obrigado.
Bono foi para o outro quarto, fechando a porta atrás de si. Edge achara que não conseguiria dormir sabendo que estava cercado por vampiros, mas se enganou: assim que fechou os olhos, adormeceu.
* * * * *
Edge não tinha certeza, mas achava que já era dia. Levantou-se, vestiu uma das roupas que Bono arrumara para ele – servira perfeitamente – e foi até a porta. Tentou ouvir algo do lado de fora, mas parecia haver só o silêncio. Abriu a porta e espiou pelo corredor. Ninguém.
Ele saiu para o corredor, que parecia não ter fim: deviam haver pelo menos trinta quartos ali. Edge sentia curiosidade para descobrir como era o resto da casa, mas ao mesmo tempo tinha medo de encontrar com algum vampiro, ou se perder, ou encontrar coisas que preferia não ver. Estava pensando se deveria ou não se arriscar, quando sentiu algo atrás de si e se virou. Uma garota estava parada diante dele.
Por muito pouco ele não gritou. Era a mesma garota que encontrara antes, a vampira que o atraíra para o terreno baldio e o atacara. Ela olhava para ele com desconfiança, mas não parecia querer atacá-lo.
-- Não deve andar por aí assim, humano. - ela falava com desprezo – Vai acabar sendo comido vivo.
Edge tentou falar algo, mas a voz não saiu. Ela deu uma gargalhada.
-- É um covarde mesmo. Que caçador ridículo você é. Não entendo como Bono pôde se interessar por você.
-- Eu... Eu...
-- Eu poderia te matar sem encostar um dedo em você. - ela se aproximou, e ele se afastou até encostar na parede – Você morreria só por medo.
-- Pare com isso, Ali.
Os dois se viraram, e Edge se sentiu imensamente feliz ao ver Bono saindo do quarto.
-- Só estou brincando com o seu novo bichinho de estimação. - ela se afastou de Edge – Não ia machucar ele.
Ela abraçou Bono, olhando para Edge com um ar de provocação. Bono mexeu nos cabelos dela.
-- Não faça mais isso. Não quero que assuste ele.
-- Me desculpe, não foi minha intenção. - ela deitou a cabeça no ombro de Bono e sorriu para Edge com superioridade.
-- Ainda está cedo, volte a dormir. Ainda nem anoiteceu.
-- Venha também, querido. - ela passou a mão no peito dele, e os dois se olharam de uma forma que fez Edge ficar com muita raiva.
-- Eu vou depois.
-- Prefere ficar com ele do que comigo?
-- Ele precisa de mais atenção agora. Mas hoje à noite iremos ao teatro, como eu te prometi.
-- Certo.
Eles se beijaram, e ela entrou no quarto de Bono, fechando a porta. Bono ainda sorriu para si mesmo por um momento, e então se voltou para Edge.
-- Me desculpe por ela, só está com ciúmes de você. Como você está? Dormiu bem? Não teve nenhum problema?
-- Não, eu dormi muito bem, estou ótimo. Aquela garota, foi ela que me atacou aquele dia.
-- Eu sei disso. Mas não a culpe, ela não fez por mal. Meu irmão a convenceu, e ela é muito influenciável. Com o tempo vocês vão aprender a gostar um do outro.
-- Ela é o que? - ele se lembrara da forma como Bono e sua mãe haviam se beijado, e concluiu que aquele devia ser um comportamento comum entre vampiros – Sua irmã?
-- Não. Mas vamos voltar para o seu quarto, os outros ainda estão dormindo e não quero que acordem.
Edge seguiu Bono para dentro do quarto, não muito satisfeito.
-- Você não disse o que ela é sua. Por que ela está dormindo no seu quarto?
-- É o quarto dela também.
-- Você disse que não sairia com garotas enquanto estivesse comigo.
-- Eu não estou saindo com ela. Estamos em casa.
-- Você entendeu muito bem o que eu quis dizer. Ela é sua namorada?
-- Não. - ele suspirou – É minha esposa.
-- O que!?
-- Minha esposa. Por favor, seja compreensivo com ela. Eu quero que se dêem bem.
-- Você é casado? Mas... Mas...
-- Nós estamos juntos há muito tempo. Mas você não precisa se preocupar, é normal termos mais de um companheiro. Ali não vai se importar, ela está com um pouco de ciúmes porque essa é a primeira vez que trago alguém pra casa, mas...
-- A questão não é se ela se importa. Sou eu. Eu não sei se posso ficar com você sabendo que você tem outra pessoa.
-- Não seja bobo, Edge. Isso é normal entre todos os vampiros. Depois de um tempo você vai acabar se adaptando aos nossos costumes, e vai achar isso normal.
-- Não sei. - ele se sentou na cama – Você dorme com ela?
-- Sim, claro.
-- Mas vocês fazem... Sexo?
-- Sim, oras.
-- Mas... Eu conversei com meu pai outro dia, sobre o comportamento sexual dos vampiros, e... Ele diz que ninguém tem muita certeza de nada, mas que a única coisa que todos concordavam era que vampiros não fazem sexo entre si.
-- A maioria não faz mesmo, mas nada impede.
-- Se nada impede, por que não fazem?
-- Porque é um pouco diferente. Você não vai entender. Nós não sentimos a mesma coisa que os humanos sentem. Mas eu amo a Ali e muitas vezes ainda faço amor com ela. Embora prefira fazer com humanos.
-- Você já tinha feito com outro menino?
-- Não, nunca. É engraçado, depois de tantos anos... Eu já mordi homens, claro. Mas nunca senti tanta atração por um quanto sinto por você. Eu achava que a gente se define sexualmente na adolescência, mas pelo jeito, a vida adulta pode nos reservar algumas surpresas.
-- Você tem quantos anos?
-- Acabei de fazer dezesseis. - ele riu – Eu digo isso há muito tempo.
-- Você tinha acabado de fazer dezesseis quando...
-- Sim. Gostaria de ter tido mais tempo. Talvez tivesse crescido um pouco mais.
-- Você não disse a sua idade.
-- Estou tentando lembrar, mas não consigo. Faz muitos anos, não tenho mais certeza da minha data de nascimento. O tempo não tem muito significado para nós.
-- Mas você já era nascido quando aconteceram os primeiro ataques, há trinta anos?
-- Sim, e aqueles não foram os primeiros ataques. Houveram outros, dez anos antes, e eu também participei deles. Nós sumíamos de vez em quando, mas sempre voltávamos.
-- Então, você tem mais de quarenta anos.
-- Devo ter uns sessenta ou setenta. Mas não se preocupe, a idade não nos separará. - ele riu – Eu gosto de rapazes mais jovens.
Apesar de Edge ainda estar achando aquilo tudo muito confuso – parecia que mergulhara dentro de um pesadelo que não acabava – ele riu do que Bono dissera. Aproveitando-se disso, Bono se aproximou dele e colocou uma mão em sua perna. Edge ficou um pouco vermelho e baixou os olhos, mas quando Bono tentou beijá-lo, ele se afastou.
-- Não.
-- Deixa...
-- Eu não sei, Bono... Essa história toda, eu ainda não me acostumei.
-- Você vai se acostumar. E já fizemos tantas vezes, deixa...
Depois de resistir mais algum tempo, Edge acabou deixando. Mas saber que Bono era um vampiro fazia tudo parecer diferente – embora ele não soubesse dizer se era melhor ou pior. Quando eles terminaram, Edge ficou olhando para o teto, pensativo, enquanto Bono andava pelo quarto, fumando.
-- Vampiros não fumam. - Edge disse.
-- Eu sou diferente dos vampiros que você conhece.
-- Em que?
-- Resisto mais ao sol. Comida humana demora mais para me fazer mal. Faço sexo. Fumo de vez em quando. Não posso voar. Mas posso ler seus pensamentos, me teletransportar, e outras coisinhas mais. Existem alguns outros como eu, embora não sejamos muitos.
-- Mas por que você é diferente?
-- Por nada em especial. Acontece às vezes. Cada um de nós tem algo diferente. Assim como os caçadores.
-- Todos que vivem aqui são seus parentes?
-- Quase todos. - ele terminou o cigarro e voltou para a cama, subindo em Edge – Menos a Ali e alguns namorados e namoradas dos meus primos e irmãos.
-- Mas são seus parentes mesmo? De sangue?
-- Sim.
-- Mas como é possível? Vampiros não se reproduzem dessa forma.
-- Fomos mordidos quando ainda éramos humanos.
-- Os vampiros morderam a sua família inteira?
-- Não. Há muito tempo atrás, quando eu ainda era um bebê, um vampiro se apaixonou por minha mãe e a mordeu. Mas minha mãe não queria ele, e meu pai também não queria perdê-la. Então ela mordeu meu pai, o transformando em um vampiro, e ele matou o outro. Mas dessa forma nós ficamos sem pais. Éramos sete, meu irmão mais velho tinha quinze anos. Então meus pais decidiram que, se quiséssemos, poderíamos ser vampiros também, quando atingíssemos a idade adulta. Assim, conforme meus irmãos foram crescendo e chegando aos vinte e poucos anos, na idade em que eles achavam que estavam no auge, eles pediam e meus pais os mordiam. Minha mãe tinha três irmãs, e elas quiseram ser mordidas também. E por aí foi, até que toda a família se tornou de vampiros. Digo, não toda, mas uma boa parte.
-- Mas por que você foi mordido quando era mais jovem do que os outros?
-- Porque fomos descobertos, e tivemos que fugir para as florestas da Escócia por um tempo. Mas lá viviam outros vampiros, e eles não aceitavam um humano entre eles. Eu teria que ser deixado para trás. Então discutimos muito sobre isso, e eu disse que preferia ser mordido do que me separar deles talvez para sempre. Minha mãe ainda conseguiu que eles nos dessem um prazo, para que eu completasse dezesseis anos. E então ela me mordeu.
-- E a Ali? Ela já era sua namorada?
-- Não. Eu a mordi muitos anos depois. Acho que ela nem era nascida quando me tornei um vampiro.
-- E por que você a mordeu?
-- Porque eu a amava e queria ficar com ela para sempre. Eu contei a ela quem eu era, e ela decidiu que queria se tornar uma de nós. Então eu a mordi, e algum tempo depois, nós nos casamos.
Edge se lembrava, das aulas com seu irmão, sobre o complexo e estranho ritual de casamento entre vampiros. Sabia que era uma cerimônia muito profunda e séria, e que um casal, uma vez formado, jamais se separava. Sabia também que um mesmo vampiro podia ter mais de um conjugue ao mesmo tempo.
-- Você ainda a ama?
-- Eternamente.
-- E eu?
-- Ainda é cedo para dizer como as coisas deverão ficar entre nós. Mas eu te amo muito.
Ser amado por um vampiro – e, pior ainda, corresponder a esse amor – era algo que apavorava Edge. Afinal, expulso de casa ou não, ele era um caçador. Mas antes que pudesse perguntar mais alguma coisa, ou pôr seus receios em palavras, Bono estendeu a mão para a cômoda ao lado da cama e tirou, de dentro de uma das gavetas, algo que parecia uma espada em miniatura. Era tão pequena que cabia na palma da mão, mas era trabalhada como uma espada ou adaga de tamanho normal. Edge olhou com relutância para o objeto.
-- O que é isso?
-- Calma, não vai doer. - Bono passou a pequena lâmina pelo braço de Edge, fazendo um corte raso pouco abaixo do ombro – Pronto.
-- Ai! - Edge tentou puxar o braço – Doeu sim!
Mas Bono já colocara a adaga de lado e se inclinara para cima de Edge, bebendo o sangue que saía do corte. Edge ficou olhando paralisado, o medo o impedindo de reagir.
-- Não precisa ter medo. - Bono disse, parando por um momento, com os lábios vermelhos e algumas gotas de sangue escorrendo pelos cantos de sua boca – Não vai te fazer mal. É só um pouco.
Ele continuou bebendo o sangue de Edge até que ele parasse de escorrer. Depois limpou a boca com um lenço e fez um pequeno curativo sobre o corte. Edge estava aterrorizado.
-- Você bebeu meu sangue.
-- Nunca tinha bebido o de um caçador. Tem algo diferente, parece mais quente, mais vivo. E ao mesmo tempo é muito familiar. - ele deitou no peito de Edge – Deve ser por causa do sangue de vampiros que há em vocês.
-- Você... Sabe como surgem os caçadores?
-- Claro que sei. Afinal, vocês só existem por nossa causa. Quando um vampiro morde uma pessoa, mas não a mata nem a transforma em outro vampiro, nada acontece com essa pessoa. Ela continua a ser um humano normal. Mas alguns de seus filhos poderão nascer com alguns dos poderes de um vampiro. Essa característica é genética, vai sendo transmitida de geração a geração. Foi assim que surgiram os primeiros caçadores.
-- É, é assim.
-- Quem da sua família foi mordido?
-- O avô do meu bisavô, por parte de pai. A minha mãe não sabe quem da família dela foi, deve ter sido há muitas gerações atrás, porque desde a sua bisavó que ninguém tinha poderes. E ela também não sabia até ser salva de um vampiro pelo meu pai. Mas depois que os dois se casaram, ela desenvolveu o poder dela e se tornou uma grande caçadora.
-- Interessante. Eu tenho muito mais pra te contar e te perguntar, mas acho que você está cansado de ficar aqui, não? Quer conhecer a casa?
-- Mas e os outros?
-- Não precisa se preocupar, eles não podem te fazer mal. Vamos.
Os dois se vestiram e saíram andando pelo grande corredor. Chegaram finalmente a um enorme salão, onde havia uma televisão gigante em uma das paredes, e vários sofás e almofadas espalhados por todo o espaço. Deviam caber umas cinqüenta pessoas ali, ou até mais. Antes Edge não reparara, mas embora as paredes fossem de pedra, o chão era todo coberto por tapetes e carpetes. Havia belos quadros e tapeçarias nas paredes, além de pequenos objetos de decoração. Tudo era muito bonito, embora houvesse um elemento claramente não-humano que Edge não conseguia definir, mas sentia.
-- Essa é a nossa sala de tv. - disse Bono – É aqui que nos reunimos. Raramente usamos a casa de cima, ela é mais de fachada. Aqui – eles entraram em outro cômodo, que parecia uma adega, cheia de barris de madeira – é a nossa cozinha.
Ele pegou uma taça e abriu a torneira de um dos barris. A taça se encheu com um líquido vermelho-escuro.
-- Todos esses barris têm sangue? - disse Edge.
-- Sim. Mas esse não é sangue humano, é de cavalos dos Alpes. - ele tomou tudo de um só gole – Muito bom. É bastante quente, e se conserva fresco por mais tempo.
-- O sangue não coagula dentro desses barris?
-- Não, dentro há um dispositivo que mantém o sangue em movimento e o aquece. Antes disso ser inventado, usávamos uma substância química para que não coagulasse, mas não conservava por tanto tempo. Mas isso foi antes da minha época. Hoje em dia só usamos esse método para transportar o sangue em garrafas.
-- Tem sangue humano aqui, ou são todos de animais?
-- Se tivéssemos sangue humano suficiente para encher um barril desses, eu seria o homem mais feliz do universo. - ele levou Edge até o fundo da sala, onde havia cinco barris bem menores do que os outros – Isso é tudo o que temos em estoque. Valiosíssimo. Nenhum está cheio, mas não se pode misturar o sangue de pessoas diferentes. Temos pouco mais de cinco litros, o que é quase nada.
-- Mas e as pessoas que vocês capturaram nos últimos tempos?
-- Não foi trabalho em equipe, cada um pegou quem queria e fez um pequeno banquete. Estávamos mais desesperados porque há muito tempo não conseguíamos sangue humano. Podemos sobreviver de sangue de animais, mas só o humano consegue nos restabelecer plenamente.
-- Quantas pessoas você mordeu nos últimos tempos?
-- Nenhuma. Digo, um dos meus primos dividiu uma garota comigo, mas não fui eu que a mordi. Eu ia morder aquela garota, na floresta, mas você chegou e ela foi embora. E eu terminei de beber o sangue daquele rapaz que você quase salvou.
-- Não me lembre disso.
Bono riu.
-- Certo, esse não é o melhor lugar pra você. Vamos para a sala.
Quando eles voltaram para a sala, havia outro vampiro lá. Era um homem aparentando trinta e poucos anos, com um ar sério e com um poder tão forte que Edge conseguia sentir de longe.
-- Boa noite, pai. - disse Bono, subitamente sério.
-- Acordou cedo. - disse o homem – Então, este é Edge.
-- Olá. - Edge disse, muito nervoso – É um prazer.
O homem se aproximou e o analisou atentamente.
-- Meu nome é Bob. - disse o pai de Bono – Você é bem vindo aqui, se seguir as nossas regras. Mas se as desrespeitar, irá morrer.
Edge engoliu em seco.
-- Sim, senhor.
-- Bono o trouxe aqui para que ficasse a salvo. Uma vez que aceitou, você não poderá sair sozinho. Fora isso, qualquer coisa que precisar lhe daremos, e ninguém lhe fará mal.
-- Obrigado.
-- Bono – ele se voltou para o outro – tem algum compromisso para hoje?
-- Levarei Ali ao teatro.
-- Quando voltarem, vá ver Guggi. Ele tem algo a lhe dizer.
-- Irei. Você vai sair?
-- Sim. Já anoiteceu. Mas ainda está cedo, então não faça barulho. Não quero que as crianças acordem antes da hora.
-- Está bem.
Ele se foi. Edge e Bono voltaram em silêncio para o quarto, e só quando lá chegaram Bono disse:
-- Não precisa ter medo dele. Ele gostou de você.
-- Imagina se não gostasse.
-- Se não gostasse, você estaria morto. Ele é muito sério e muito poderoso, mas não te fará mal. E ele é meu pai. Eu confio nele.
-- Você não tinha me dito que agora eu era um prisioneiro.
-- Você não é prisioneiro. Se quiser sair, basta me pedir e eu vou com você. Hoje mesmo, vou ao teatro com a Ali e quero que você vá junto.
-- Por que não posso sair sozinho? Tem medo de que eu fuja?
-- Sei que não vai fugir. Mas precisamos cuidar da nossa segurança. Você ainda é filho de caçadores, e agora sabe onde moramos. Não podemos correr o risco de que seus pais te encontrem e acabem descobrindo esse lugar.
-- Então, eu não poderei mais ver meus pais?
-- Sinto muito, Edge, mas isso é necessário. Pelo menos por enquanto. Daqui a um tempo você poderá, mas não ainda.
Agora, Edge se perguntava no que estava pensando quando aceitara ir com Bono para aquele lugar. Era agora refém dos vampiros, e ficaria sem contato algum com sua família. Além disso, sabia que não poderia ficar eternamente naquela situação; Bono e os outros deviam ter planos para ele, planos que ele teria que aceitar, querendo ou não. Estava arrependido, e não se importou por saber que Bono poderia ler aqueles pensamentos.
-- Não, Edge. - Bono disse, mesmo sem Edge ter dito nada – Não pense essas coisas horríveis, por favor. Isso é só por um tempo. Logo as coisas vão estar muito melhores, eu prometo.
-- Não sei se acredito em você.
-- Por quê?
-- Porque você é um vampiro.
Aquilo ofendeu muito a Bono.
-- Nós temos muito mais palavra do que vocês humanos. Se fazemos uma promessa, nós a cumprimos. E jamais matamos nossos semelhantes. Não nos julgue pelo que os seus falam de nós. Você não nos conhece.
-- Seres que matam pessoas inocentes para beber o sangue delas não são dignos de confiança.
-- Nós matamos para nos alimentar! E evitamos isso o máximo possível, porque se não fosse assim, já não restaria ninguém nessa cidade. Mas vocês não, vocês matam outros humanos sem motivo algum, e se pudessem exterminar todos os vampiros, vocês o fariam! Não se importam se também temos família, se vamos sofrer! Para vocês, nós somos monstros!
-- É isso o que são! Foi um dos seus que matou o primeiro garoto que eu gostei, não se importou nem um pouco com o que nós iríamos sentir!
-- Ele era um caçador, e seja quem for que tenha feito isso, estava só se defendendo! Não somos como vocês, que nos atacam mesmo que não façamos nada! Seus pais amarraram meu irmão em uma árvore e o deixaram ali até que o sol nascesse e ele queimasse vivo! Ele sofreu até o último instante, mas seus pais não se importaram nem um pouco, e tenho certeza de que se estivesse ali, você também não se importaria! Na noite seguinte, tudo o que encontramos dele foram cinzas! Vocês não pensaram que minha mãe sofreria, que a namorada dele ficaria sozinha, que nós amávamos ele e sofreríamos por ele! Vocês é que são monstros, não a gente!
-- Nós só estávamos protegendo as pessoas! Assim como vocês não pensaram nas famílias das pessoas que vocês sugaram o sangue, porque pra vocês o alimento era mais importante! E não sei porque estou discutindo isso com você, é claro que você vai defender os seus! Você é como eles, um vampiro!
-- E você não passa de um caçador! Um caçador fraco e covarde que estaria morto se não fosse por mim! Você está sendo protegido por um dos terríveis monstros que você tanto despreza, e se isso não for suficiente pra te convencer de que tudo o que pensa sobre nós está errado, devia te fazer ter pelo menos um pouco de respeito por nós!
-- Pois eu preferia estar morto agora do que estar nesse ninho de vampiros! Eu espero que meus pais encontrem esse lugar e queimem todos vocês!
-- Pois agradeça se na próxima lua cheia ainda existir um único membro da sua família nessa cidade! E se for eu que os pegar, antes de matá-los eu ainda vou brincar muito com a sua irmãzinha, assim como fiz com você!
Aquilo foi demais; Edge avançou para Bono e lhe deu um soco com toda a força. Mas aquilo não fez Bono sequer piscar, e Edge se lembrou, tarde demais, que o outro era um vampiro. Antes que pudesse se desviar, Bono lhe deu um soco que o atirou contra a parede, a quase dois metros de distância. Edge caiu com estrondo no chão.
-- Meu irmão estava certo. - disse Bono – Você não passa de um deles. Foi um erro te trazer. Jamais poderemos ficar juntos.
Antes que Edge respondesse, ele saíra do quarto, batendo a porta.
* * * * *
Edge se olhou no espelho do banheiro, sob a luz pálida que o deixava muito branco. Achava que nunca sua aparência parecera tão ruim em toda a sua vida. Estava morrendo de fome, e sabia que ali não havia nada que pudesse comer. Além disso, estava com medo, e inseguro. Não sabia o que fazer, ou o que aconteceria agora que brigara com Bono.
Quando ele saiu do banheiro, ainda se enxugando, se deparou com algo que achou ser uma miragem. Havia uma grande mesa diante da cama, farta, com todas as melhores comidas que ele poderia desejar. Edge se aproximou, esfregando os olhos para ter certeza de que não estava delirando. Tocou uma jarra de suco, em seguida uma grande travessa de carne e uma panela cheia de sopa fumegante. Definitivamente era real. Sem querer saber o que aquilo significava, ele se sentou e começou a comer vorazmente.
Depois de comer de tudo o que havia ali – já estava cheio, mas era tudo tão bom que não conseguia parar – ele ouviu a porta que ligava seu quarto ao de Bono se abrir. Quando se virou, viu Bono parado ali, olhando para ele.
-- Achei que estaria com fome. - disse Bono – A comida está boa?
Edge demorou um pouco para responder. Bono estava fantasticamente lindo, usando um terno preto que o fazia parecer um adulto. Devia ter voltado há pouco do teatro.
-- Sim. - Edge respondeu afinal – Estava ótima. Obrigado.
-- Está satisfeito?
-- Sim.
Bono se aproximou. Edge baixou a cabeça.
-- Bono, eu... Eu disse coisas que... Eu disse coisas que não devia ter dito pra você. Coisas muito ruins. Sinto muito, estou muito arrependido.
-- Você disse coisas muito pesadas. - Bono tocou nos cabelos dele – Muito injustas. Eu fiquei muito ofendido.
-- Eu sei. Mas eu estava com raiva, e... E estava com medo... Mas eu sei que não era verdade, nem todos os vampiros são como eu disse. Você é um vampiro, e eu sei que não é como eu disse, sei que posso confiar em você. Você sabe que estou dizendo a verdade. Estou tão arrependido.
Ele esperava que Bono fosse dizer alguma coisa, mas o outro ficou em silêncio. Quando olhou para cima, viu que Bono o olhava com aparente indiferença, o estudando com frieza.
-- Por favor – Edge segurou a mão dele – por favor, me perdoe. Eu faço o que você quiser, mas me perdoe. Eu te amo, Bono, independente de você ser um vampiro ou eu ser um caçador. Eu te amo mais do que tudo. Sei que agi errado, que disse coisas que não devia, que fui injusto, ingrato, te ofendi... Eu me arrependo muito. Isso nunca mais vai acontecer. - ele se ajoelhou aos pés de Bono e o abraçou pela cintura – Por favor, por favor... Por tudo o que há de sagrado, me perdoe. Eu imploro, Bono, me perdoe. Eu nunca mais vou dizer aquelas coisas, nunca mais vou ofender você ou sua família, e nunca mais vou duvidar de você. - ele estava chorando – Eu te amo. Te amo mais do que qualquer coisa. Me perdoe. Eu te amo.
Edge continuou repetindo “eu te amo”, até que Bono o puxou para cima, fazendo-o se levantar. Edge o olhou esperançoso; o olhar de Bono mudara, mas continuava indecifrável. Sem uma palavra, Bono o rodeou e começou a tirar a camisa dele.
-- O que está fazendo? - Edge perguntou, levantando os braços para que Bono pudesse tirar a camisa.
Ao invés de responder, Bono começou a tirar a calça de Edge. Este desistiu de perguntar, e deixou que Bono tirasse suas roupas até que estivesse nu. Não sabia se seria bom fazer amor depois de comer tanto, mas se Bono queria aquilo para o perdoar, Edge faria.
-- Deite-se na cama. - Bono disse, e Edge depressa obedeceu.
Bono rodeou a cama e ficou um tempo olhando para ele. Edge esperava que ele também se despisse, mas o outro não o fez. Deitou-se sobre ele completamente vestido, e Edge não tinha muita certeza do que ele queria, mas de qualquer forma achou interessante o contato de sua pele com as roupas de Bono. Era até excitante aquela diferença, ele nu e o outro totalmente vestido.
-- Me beija... - Edge pediu, e Bono o beijou.
Quando Edge começou a se esfregar em Bono e puxá-lo para si, Bono parou de beijar sua boca e passou a beijar seu pescoço. Edge gostava disso, e ficou passando a mão pelos cabelos de Bono, pedindo mais; mas de repente, sentiu algo diferente. Não era uma sensação ruim, mas era estranha: uma sombra de dor a princípio, que foi substituída por um suave calor que se espalhava do seu pescoço para o resto do corpo. Chegava a ser prazeroso. Era a primeira vez que Edge sentia aquilo, mas já lera o suficiente a respeito para saber o que acontecera. Bono o mordera.
Ele parou de se mover, sentindo o corpo relaxar completamente por vontade própria. Podia sentir o sangue saindo de seu corpo, e sentiu Bono suspirar de satisfação ao bebê-lo.
-- Bono... - ele murmurou, sem saber se estava com medo ou se simplesmente não se importava.
-- Está sentindo dor? - Bono disse, e Edge manteve os olhos fechados, não querendo ver o rosto do outro sujo com seu sangue.
-- Não.
-- E medo?
-- Eu não sei.
-- Se eu disser que para te perdoar, você deverá morrer... Você achará um preço justo?
Edge abriu os olhos. Bono se parecia mais do que nunca com um vampiro, seus olhos mais claros do que ele jamais vira, sua boca suja de sangue.
-- O que?
-- As coisas que você disse me machucaram muito. Para nós, nada é mais importante do que a honra e a confiança que temos uns nos outros. Você pôs essas duas coisas em dúvida, e isso é um crime gravíssimo. - ele passou a mão pelo corpo de Edge – Um crime que deve ser punido severamente.
-- Você vai... Me matar?
-- É preciso. Não posso te perdoar pelo que fez.
Ele sabia que Bono estava falando sério. Começou a chorar e desviou o rosto, mas não tentou lutar, nem fugir. Bono se inclinou para ele novamente, mas antes de voltar a beber seu sangue, disse:
-- Você tem algum pedido?
-- Pedido? - Edge respirou fundo – Só... Só não me deixe sentir muita dor. Por favor.
-- Você tem medo de morrer?
-- Sim. Mas... Pelo menos é por você. - ele segurou a mão de Bono – Pelo menos você está aqui.
Edge fechou os olhos, e Bono voltou a morder seu pescoço. Edge ficou passando a mão pelos cabelos dele, tentando não sentir medo, nem ficar nervoso. Quando sentiu que estava ficando muito fraco, ele segurou a mão de Bono e o fez tocar em seu rosto. Queria morrer sentindo aquele toque.
Mas antes que desmaiasse, Bono parou. Surpreso, Edge abriu os olhos. Bono olhava para ele; seus olhos não estavam mais tão claros, e ele parecia mais humano.
-- Eu te perdôo. - ele beijou a testa de Edge – Sinto muito.
-- O que...?
-- Você passou no teste. Mostrou que confia em mim. Que me ama mais do que sua própria vida. - ele passou a mão pelo pescoço de Edge, e a ferida se fechou – Está perdoado.
-- Bono... - ele tentou falar alguma coisa, mas se sentia muito fraco.
-- Não, não se esforce. Você tem que descansar. - ele se deitou ao lado de Edge – Obrigado por me dar seu sangue. Eu estava com fome.
Edge se perguntava se aquilo não lhe faria mal; Bono respondeu mesmo sem que ele perguntasse:
-- Não, nada de ruim vai acontecer com você. Você vai dormir, e quando acordar, vai ser como se nada tivesse acontecido. - ele o beijou, e Edge sentiu o gosto de seu próprio sangue na boca de Bono – Desculpe por ter feito isso, mas era preciso. Eu confio em você agora.
Aquilo era muito bom, Edge pensou; mas o sono já não o permitia pensar direito. Apenas sorriu brevemente, e adormeceu.
* * * * *
Edge estava de pé antes de perceber que acordara. Estava completamente encharcado de suor, e parecia que seu coração ia sair pela boca.
-- O que foi? - Bono disse.
-- Eu tive um sonho. - ele disse, e só então realmente acordou. Olhou em volta, tentando se localizar. Bono estava de pé, vestindo-se, e ele estava completamente nu. Estavam no seu quarto, na casa de Bono. Mesmo já tendo se passado mais de um mês, Edge às vezes ainda acordava no meio do dia – pois eles dormiam durante o dia – sem saber onde estava ou o que estava fazendo ali.
-- Se acalme, querido. - Bono terminou de vestir a camisa – Você teve um sono muito agitado, falou a noite inteira. Eu quase te acordei.
-- Desculpa. - Edge se sentou, um pouco tonto – Deve ter sido um pesadelo.
-- Anda preocupado com alguma coisa?
-- Acho que é só falta de sol, ou alguma coisa assim. Que horas são?
-- Nove e meia. Quer que eu mande trazer seu lanche?
-- Sim, por favor. - ele também começou a se vestir – Vai sair?
-- Vou, e você vai junto. Vamos com a Ali no cinema e pensei em depois irmos pra um bar ou uma lanchonete, e mais tarde irmos encontrar os outros na floresta. Tudo bem pra você?
-- Claro. Se a Ali não se importar por eu ir junto...
-- Não, claro que não, ela...
Nessa hora um morcego entrou voando pelo quarto. Edge quase deu um grito, e Bono riu.
-- Ei, garoto. - o morcego pousou na mão dele – Boa noite pra você também. Dá oi pro Edge, dá.
-- Tira esse bicho de perto. - Edge se afastou.
-- Ah, Edge, o Drop é inofensivo. - ele fez carinho no morcego, que lambeu o dedo dele – Diz pro Edge, diz. Diz que você é bonzinho e que ele é um bobo.
No início Edge achara muito estranho Bono ter um morcego de estimação, mas agora estava quase acostumado. Bono dava mamadeira para ele, pois ele ainda era filhote; lhe dava banho, brincava com ele, lhe ensinava truques. Drop crescera bastante nos últimos dias, e Bono dissera que aquela espécie podia chegar a ter quase o tamanho de uma pessoa.
-- Ah, Edge... - Bono se sentou na cama, enquanto o morcego voava pelo quarto – Eu quero pedir a sua opinião sobre uma coisa.
-- O que?
-- Sabe, semana que vem, eu e Ali fazemos aniversário. Vamos completar vinte e cinco anos juntos.
-- Nossa... É muito tempo.
-- É sim. Uma data muito importante. Nós vamos fazer uma festa, em um cerimonial aqui perto, um lugar ótimo... Mas eu acho que isso é pouco. Eu quero dar um presente pra ela. Algo especial.
-- Você pensou em alguma coisa?
-- Pensei. Já faz bastante tempo que a gente vem discutindo uma coisa. No início eu não quis, a gente até brigou por causa disso, mas ela quer tanto... E acho que já está na hora. Afinal, não sou mais um adolescente.
-- O que é?
-- Um filho. Ela quer um filho. Um bebê.
-- Bebê? Mas vocês não podem...
-- Não, mas podemos arrumar um. É assim que fazemos quando desejamos filhos. Eu não queria porque crianças dão trabalho, mas se for pela felicidade da Ali...
-- Vai seqüestrar um bebê?
-- Não, Edge, que idéia. Vampiros seqüestradores de crianças é coisa do século passado. Não é preciso, o que mais tem por aí é criança sem família. Eu andei vigiando a maternidade, fiquei interessado em uma menininha que foi abandonada lá pela mãe. Ela ainda está em cuidados e deve ir para o orfanato em duas semanas, mas acho que vou pegá-la para mim.
-- Mas como vocês vão cuidar de um bebê? Ela não é um vampiro. Vai sentir falta do sol, vai querer ter amigos...
-- Ela vai ter uma vida normal. E quando atingir a idade certa, se desejar, nós a transformaremos em um vampiro.
-- E se ela não quiser?
-- Ela vai querer. Por que alguém quer ser humano? Você é muito preso à sua mortalidade, querido. Ela vai querer, e nós a morderemos e ela ficará conosco para sempre.
-- Se você diz... Mas se você já decidiu, porque você quer minha opinião?
-- Eu quero saber se você acha que eu posso ser um bom pai. Não sei, crianças não são muito comuns entre nós. Elas fazem bagunça, choram... Tenho medo de não saber lidar com isso.
-- Bem, eu não sou uma criança, mas você foi muito paciente comigo e cuidou muito bem de mim. Acho que pode ser um bom pai, sim. E a Ali é um pouco brava, mas acho que também pode ser uma boa mãe.
-- Que bom... Você me ajuda? Digo, talvez eu precise deixar ela tomar um pouco de sol e coisas assim... Você poderia levar ela pra passear quando fosse preciso?
-- Claro, será um prazer. Mas achei que eu não pudesse sair sozinho.
-- É, não pode... Mas vou conversar com meus pais. Como é uma situação especial, eles devem deixar. Talvez imponham algumas condições, mas não devem proibir completamente. – ele deu um beijo em Edge – Agora, vamos nos arrumar. Se perdermos a sessão no cinema, Ali me faz em pedacinhos.
* * * * *
Era por volta de duas da manhã quando eles encontraram os outros, em uma clareira no meio da floresta. Edge sempre ficava nervoso quando Bono o levava para lá: os vampiros eram qualquer coisa, menos amistosos com ele. Alguns o olhavam como se ele fosse um bicho incômodo, enquanto outros pareciam querer devorá-lo. E eram dezenas de vampiros, reunidos por ali ou andando pela floresta como se aquilo fosse a cidade particular deles. Mesmo ao lado de Bono, Edge não se sentia seguro.
-- Ei, Bono! – disse Guggi, quando Bono foi ao encontro dele e de alguns outros – Onde você estava?
-- Fui levar a Ali e o Edge no cinema. – ele se sentou com eles e pegou uma das garrafas de sangue que estava no chão – E aí, novidades?
-- O Dill pegou uma garota.
-- Po, sério? Como ela era?
-- Meio gordinha, mas bonita.
-- Só que o desgraçado pegou ela toda só pra ele! – disse Gavin – Nem quis dividir. Deixou ela de molho por uma semana, e foi pegando ela aos pouquinhos. Só contou pra gente depois.
-- Ele matou ela? – disse Edge, sem conseguir se conter. Os outros o olharam com desprezo.
-- É, humano, ele matou ela. E foi bem devagarzinho, pra poder saborear cada gotinha de sangue.
-- Gavin. – disse Bono, sério – Chega.
-- Ui, desculpa. Não quis ofender o seu bichinho de estimação.
-- Ele está certo em ficar ofendido. Eu também não gosto quando vocês matam os humanos só por diversão.
-- Não é por diversão. Olha quantos somos, você sabe muito bem que o que temos em casa não é suficiente para alimentar a todos.
-- Podemos nos alimentar de outras formas.
-- Deixa ele. – disse Guggi, para Gavin – Ele só diz isso porque tem um estoque particular. Foi bem esperto em se fazer de apaixonado pra fazer os tios deixarem ele ficar com o humano dentro de casa.
-- Pare. – Bono se levantou, e Edge começou a ficar com medo – Eu te proíbo de dizer isso.
-- Não gosta quando dizem a verdade? – Guggi se levantou também – Todo mundo sabe porquê você mantém o humano com você. Assim não precisa ficar saindo atrás de comida, tem um estoque inesgotável de sangue. Só vai matá-lo quando se enjoar do sangue dele.
-- Isso não é verdade! Meus motivos não te dizem respeito!
-- Esquece que eu também posso ler seus pensamentos? A gente sabe muito bem o que vem na sua cabeça quando você olha para ele. Você não vê a hora de morder ele, tem que se controlar pra não beber o sangue dele todo! E só não faz isso porque se fizer, depois não vai ter mais!
Bono avançou e segurou Guggi pela camisa. Guggi o empurrou contra uma árvore, mas Bono o segurou e o jogou no chão. Nessa hora Ali interveio, entrando no meio dos dois e empurrando ambos para longe um do outro.
-- Chega! Basta, vocês dois! Parecem crianças!
-- Ele merece levar uma surra. – disse Bono – Pelas mentiras que disse e por se meter no que não é da conta dele.
-- E você deveria sofrer o mesmo que seu irmão. – Guggi se afastou – Amigo de caçadores.
-- Pára, Guggi! – Ali o segurou pelo pescoço – Ou vai ter que se ver comigo.
Guggi deu de ombros e se afastou com Gavin, indo embora para dentro da floresta. Só então Ali soltou Bono, que mesmo assim parecia querer ir atrás do outro.
-- E você, Bono, pare de se descontrolar desse jeito! – ela disse – Você sabe o que falam, não adianta querer bater em todo mundo que diz isso! Você sabia o que ia acontecer quando trouxe o Edge para ficar com a gente, então agüente!
-- Não, Ali, eu não tenho que agüentar isso! Não posso obrigá-los a aceitar o Edge, mas ele agora é um de nós e exijo que o respeitem!
-- Ele não é um de nós! E não vai ser enquanto você não o transformar! E se quer saber, acho que de certa forma Guggi estava certo. As únicas razões que podem existir para você não ter feito isso ainda são você querer um estoque inesgotável de sangue, ou você não ter certeza se vale a pena ter ele para sempre.
-- Pára, até você? É claro que tenho certeza de que o quero para sempre!
-- Pois eu acho que você quer uma garantia de que, se cansar dele, vai poder matá-lo de vez. Se gostasse tanto dele quanto diz, o teria transformado há muito tempo.
Ela lhe deu as costas e saiu, indo na mesma direção em que Guggi e Gavin haviam ido. Bono ficou olhando, ao mesmo tempo com raiva e triste. Só depois de alguns segundos se lembrou que Edge ainda estava ali, e se voltou para ele. Edge o olhava com um misto de dúvida e tristeza.
-- Não acredite neles. – disse Bono, aproximando-se dele – Você sabe que nada disso é verdade. Sabe que quero ficar com você para sempre. Não estou com você pelo seu sangue.
-- Então, porque ainda sou um humano? – disse Edge – Seria muito mais simples se você me transformasse em um vampiro. Você sabe que eu permitiria.
-- Você permite, mas não é isso o que quer. E eu não quero que faça algo de que se arrependa depois.
-- Eu não quero duvidar de você, Bono, mas às vezes não consigo acreditar nesse argumento. Eu já tinha pensando no que eles disseram, mesmo sem ninguém ter dito.
-- Acha que só quero o seu sangue? Se você não permitisse, eu nunca mais te morderia.
-- Você só diz isso porque sabe que eu vou permitir. Essa... Coisa é viciante.
-- Mas você gosta. Eu nunca faria nada para te machucar. Olha, não vamos discutir, por favor. Vem comigo, vamos andar um pouco.
Eles saíram da clareira, adentrando a floresta. Edge tentava reprimir os pensamentos ruins em relação a Bono: sabia que eram injustos, e que o outro poderia lê-los. Os dois foram andando em silêncio pelo escuro, até chegarem às margens de um rio.
-- Vamos nadar? – disse Bono.
-- Nadar? Mas está escuro.
-- E daí?
-- Eu não enxergo no escuro, Bono. Pode ter um buraco ou uma pedra, ou...
-- Não se preocupa, eu te guio. Vamos.
Edge acabou aceitando. Eles se despiram e mergulharam no rio. Edge se surpreendeu com a forte correnteza, que começou a querer arrastá-lo. Ele tentou se segurar em algumas pedras para não ser puxado para longe.
-- Bono, a água está muito forte!
-- Calma. – Bono nadou até ele e o segurou – Relaxe. Confie em mim.
Bono ficou atrás de Edge, de forma que a correnteza empurrava Edge contra ele. Mas Bono era muito forte; a força da água não conseguia movê-lo. Edge se deixou ficar nos braços dele, sentindo o conforto de seu corpo o protegendo. Virou-se de frente para ele, e os dois se beijaram.
Alguns minutos depois, eles já não estavam dentro do rio. Estavam deitados na margem, e Bono estava em cima de Edge. Os dois beijavam todas as partes possíveis do corpo um do outro.
-- Eu amo você... – Bono disse, enquanto Edge beijava seu pescoço – Amo seu gosto... Seu cheiro...
-- Eu também amo você, amo tudo, tudo...
Com um movimento rápido, Bono virou Edge de bruços e subiu novamente nele. Edge respirou fundo, esperando por ele, mas então Bono parou.
-- Bono?
-- Shhh. – Bono parecia subitamente preocupado – Eu sinto um cheiro. Cheiro de humanos.
-- Bem, eu sou humano...
-- Não, não você. Outros. – ele se levantou, olhando em volta – Ouço seus pensamentos.
-- Estão perto?
-- Não, mas podem estar vindo para cá. É melhor nós irmos.
-- O que? Agora? Não podemos...
-- Não, Edge, não dá. Não sei quem são essas pessoas, podemos ter problemas se nos pegarem. Por favor, vamos.
Inconformado, mas obediente, Edge se levantou e se vestiu. Quando os dois estavam prontos, eles foram andando pela floresta, de mãos dadas.
-- Fica pertinho. – Bono segurou firmemente a mão de Edge – Qualquer coisa, estávamos só fumando uns baseados. Se nos pressionarem, confessamos que estávamos namorando escondidos. Vão acreditar na mesma hora.
-- E é o que estávamos fazendo.
-- É, é verdade. – ele diminuiu o passo – Estão se aproximando. Vão nos encontrar logo.
De fato, poucos minutos depois, eles quase esbarraram em um grupo de cinco homens que vinham andando pela floresta.
-- Quem são vocês? – um dos homens disse agressivamente, e todos apontaram armas estranhas para eles.
-- Ei ei ei, calma aí. – Bono levantou as mãos – Calma aí, tio. Que negócio é esse aí?
Mas Edge sabia muito bem que armas eram aquelas. Ele mesmo já usara algumas. Eram especiais para ferirem vampiros. Aqueles homens eram caçadores.
-- Eu faço as perguntas, e se moverem um dedo, eu atiro. Quais são seus nomes e o que fazem aqui?
-- Meu nome é Bono. E meu amigo se chama Edge.
-- Edge? – o homem abaixou lentamente a arma, embora ainda estivesse cauteloso – Qual seu nome de verdade?
-- Evans. David Evans
-- É o filho dos Evans. – disse outro – Mas você estava desaparecido há mais de um mês. Achamos que tivesse morrido.
-- Eu andei sumido por uns tempos. Quem são vocês? São amigos dos meus pais?
-- Amigos e colegas de trabalho. O que você e esse garoto fazem aqui?
-- Só estávamos passeando. – disse Bono – Nada de mal, eu juro. Não estávamos fazendo nada de errado.
-- Não me venham com essa. – disse outro – Ninguém em sã consciência vai “passear” em uma floresta onde ocorreram vinte assassinatos nos últimos meses.
-- Vinte!? – Edge disse – Mas há pouco mais de um mês eram oito, e...
-- Parece que você tem que se atualizar. Houve mais doze assassinatos, um atrás do outro, e cinco pessoas estão desaparecidas.
-- Nós estivemos fora no último mês. – disse Bono – Olha, a conversa está muito boa, mas temos que ir embora.
-- Vocês não vão a lugar algum. Seus pais estão aqui, Edge. Você vai falar com eles.
-- Eu não faço questão de vê-los e acho que eles também não desejam a minha presença.
-- Não fale do que não sabe. Eles têm te procurado desde que sumiu.
Sem ter outra opção, Bono e Edge ficaram ali, vigiados pelos homens, até que os pais de Edge chegaram. Dick e Gill não estavam junto deles.
-- Edge! – Gwenda disse, indo correndo para abraçá-lo – Meu filhinho, onde você esteve? Você está bem?
-- Oi, mãe. – só agora Edge percebia o quanto sentira falta deles – Eu estou bem sim.
-- Onde você esteve? – disse Garvin – Como pôde sumir desse jeito? Não pensou em como ficaríamos preocupados? Nós estávamos loucos atrás de você!
-- Do que você está falando? Foi você que me expulsou de casa! – Edge sentia falta de seu pai também, mas ao mesmo tempo sentia muita raiva – Você que me mandou embora no meio da noite, debaixo da chuva e dizendo para eu nunca mais voltar, mesmo sabendo o que havia lá fora!
Garvin respirou fundo e passou a mão pela cabeça.
-- Nós dois estávamos nervosos e agimos por impulso. Mas eu não queria te expulsar de casa nem quero que nada de mal aconteça a você. Você é meu filho, mesmo tendo feito coisas erradas.
-- Eu não fiz coisas erradas! – ele olhou por um momento para Bono, que se mantinha afastado – Se você ainda pensa isso, é melhor eu ir.
-- Você é jovem demais para tomar uma decisão dessas. Vai se arrepender mais cedo ou mais tarde. Acha divertido ficar andando pela floresta de madrugada com outro garoto, fazendo sabe Deus o que, mesmo sabendo o que se esconde aqui? Isso só prova que você não tem a menor idéia das conseqüências dos seus atos.
-- Você pode dizer o que quiser. Eu não vou voltar para casa enquanto você não aceitar o que eu sinto pelo Bono. Prefiro dormir na rua do que ver você me olhar como me olhou naquele dia. Agora com licença, nós temos que ir.
Edge pegou Bono pela mão e seguiu em frente, mesmo sabendo que seu pai e os outros podiam muito bem segurá-lo. Mas eles não o fizeram; apenas sua mãe o chamou.
-- Onde você esteve esse tempo todo? Está dormindo na rua?
Antes que Edge respondesse, Bono o fez:
-- Ele está na minha casa. Tem evitado sair para não se encontrar com vocês. Mas não se preocupem, nós oferecemos abrigo a ele e ele está muito bem lá.
-- Ele está na sua casa? – disse Garvin – Que desculpa usou para os seus pais permitirem isso?
-- Nenhuma. – ele abraçou Edge pelos ombros – Eu disse a verdade a eles. E eles se preocupam mais com a minha felicidade do que com o que os outros vão dizer de mim. Agora com licença.
Eles afinal saíram dali, e ninguém foi atrás, nem tentou impedi-los.
* * * * *
Ambos estavam muito sérios quando chegaram ao quarto de Edge. Haviam percorrido todo o caminho em silêncio. Assim que a porta se fechou, Edge se sentou na cama e cobriu o rosto com as mãos, sentindo que ia começar a chorar.
-- Sinto tanta falta deles. – ele murmurou – E tanta falta da Gill e do Dick. Queria poder vê-los de novo.
Bono tocou no ombro dele, mas não disse nada para confortá-lo. Quando Edge olhou para ele, percebeu o quanto ele parecia preocupado.
-- O que houve? Qual o problema?
-- Você conhece aqueles caçadores? Aqueles que nos encontraram primeiro?
-- Não, não... Devem ser colegas dos meus pais. Por quê?
-- Eu vi os pensamentos deles. Eles não são os únicos. Tem no mínimo vinte caçadores lá na floresta, todos com aquelas armas estranhas. O que é aquilo?
-- Depende. São várias as armas que nós usamos. Geralmente elas disparam uma cápsula com algum tipo de veneno. O vampiro não morre, claro, mas sente tanta dor que não consegue se mover, e nós podemos capturá-lo e prendê-lo.
-- Isso é cruel. Nem um animal merece algo assim.
-- Para os caçadores, vampiros são menos do que animais. - ele baixou a cabeça – Só queremos que todos vocês morram. Não nos importa como, nem se vão sofrer por causa disso.
-- Você sabe o que eles estão planejando?
-- Não. Quando saí de casa, sabia que meus pais iam pedir ajuda, mas não sei qual era o plano deles.
-- Você conhece algum dos caçadores que seus pais chamaram?
-- Não sei. Não cheguei a ver quem eles chamaram. Mas conheço vários caçadores que meus pais chamariam numa situação como essa.
Edge continuava de cabeça baixa. Sentia um pouco de culpa sempre que eles falavam sobre a luta entre vampiros e caçadores. Sabia que, se seus pais soubessem que Bono era um vampiro, o teriam capturado na mesma hora e o matado assim que tivessem a chance.
Por um tempo Bono ficou andando pelo quarto, pensativo. Bebeu um pouco de sangue que estava em uma garrafa, e então se sentou ao lado de Edge, colocando novamente a mão em seu ombro.
-- Todos na sua família têm poderes?
-- Sim.
-- Eu quero que você me diga quais os poderes dos seus pais e irmãos – ele olhava dentro dos olhos de Edge – e também quem são os caçadores que você conhece e que talvez viessem para cá, como eles são e quais são os poderes deles.
Ele abriu a boca para responder, mas então parou. Os dois se olharam por um instante, e então Edge se levantou como se estivesse prestes a ser atacado.
-- Por que você quer saber isso?
-- Não faça perguntas. Apenas me diga, Edge. – Bono se levantou também – Pense neles. Seus pais, seus irmãos, os amigos dos seus pais. Quais são os poderes de cada um deles?
Edge tentava desesperadamente manter as informações sobre sua família e os outros caçadores que conhecia longe de seus pensamentos, para que Bono não os lesse.
-- Eu não vou te dizer isso, seria como entregar eles para você em uma bandeja de prata. - ele se afastou – Pare com isso.
-- Pense, Edge. - Bono se aproximou e o segurou firmemente – Pense na sua família. Sua amada família. Você estava com tantas saudades de todos, não é? Pense neles, em todas as vezes em que lutou junto deles.
-- Não! Pare! - ele tentava empurrar Bono.
-- Me diga!
-- Não!
-- Diga! - ele empurrou Edge para a cama – Ou eu farei você dizer à força!
-- Não!
Bono subiu nele, o prendendo, e olhou em seus olhos.
-- Me mostre, Edge. - ele disse em um tom baixo, mas perigoso – Me deixe ver.
Parecia que Bono estava fazendo algo com ele, o obrigando a olhá-lo nos olhos daquela forma. Edge não pôde evitar o contato visual, e por alguns segundos, seus olhos ficaram fixos nos olhos agora quase brancos de Bono. Então ele sentiu uma vertigem fortíssima; em seguida, a sensação de que sua alma estava sendo sugada do corpo e mergulhando nos olhos de Bono. Por um instante ele não viu nada, apenas um vazio branco-azulado; e então todas as suas memórias começaram a passar de forma vertiginosa por seus olhos. Em poucos segundos, ele se lembrara de tudo o que vivera desde seus dois anos. Quando acabou, sentia-se completamente vazio, e muito enjoado. Estava de novo em seu corpo, e Bono olhava para ele, satisfeito.
-- Viu? - ele passou a mão pelos cabelos de Edge – Não foi tão ruim.
-- O que você fez comigo?
-- Nada. Só fiz você me mostrar o que eu queria saber. Sua família tem muitos poderes, não é? Não é à toa que são grandes caçadores. Você sente coisas que aconteceram, sua irmãzinha enxerga no escuro, seu irmão mais velho tem quase tanta força quanto um vampiro. Seu pai pode curar ferimentos e sua mãe também tem força e pode se teletransportar para pequenas distâncias. São poderes invejáveis. Juntos vocês são quase um vampiro completo.
-- Que diferença faz saber essas coisas? O que vai fazer com eles?
-- Isso não é importante para você. Darei essas informações a meus pais, e o que quer que seja decidido, será algo que apenas os vampiros deverão saber.
Bono saiu, deixando Edge sozinho no quarto.
* * * * *
Todos estavam dormindo. Devia ser perto de meio-dia. Naquele dia, Bono dormira com Ali, e Edge ficara sozinho. E dera graças a Deus por isso: não ia conseguir fazer qualquer coisa para agradar Bono, depois do que o outro fizera.
Naquela noite, eles haviam recebido notícias da floresta. Os caçadores haviam encontrado cinco vampiros e capturado todos; tinham também libertado três jovens que estavam servindo de alimento para os vampiros mais jovens. Alguns outros não haviam voltado para casa, e ninguém sabia o que tinha acontecido com eles. Gavin chegara com Norman, ambos muito feridos pelas balas venenosas, e Guggi chegara quase na hora do sol nascer, com pequenas queimaduras causadas pela luz que já surgia. Agora havia cinco vampiros capturados e talvez mortos, quatro desaparecidos, e seis bastante feridos.
Com aquilo, Bono sequer olhara para Edge durante o resto da noite. Edge achava isso bastante injusto: não tinha culpa se seus pais continuavam matando vampiros. Brigara com Bono, os dois acabaram tendo uma discussão bastante acalorada, Edge perdera a cabeça e fizera acusações contra os vampiros; como consequência, Bono o atacara e o mordera a força, lhe sugando quase metade do sangue. Agora Edge mal podia ficar de pé.
Duas da tarde. Definitivamente, todos dormiam. Edge se pôs de pé com muita dificuldade. Bebeu água e comeu um pouco, tentando recuperar as forças. Quando achou que estava melhor, se vestiu e saiu do quarto, indo para o corredor.
Ele atravessou todo o corredor sem acender as luzes: já estava acostumado ao escuro. Conseguiu chegar sem problemas à sala de estar, e subiu as escadas para a parte de cima da casa.
Todas as cortinas estavam fechadas, mas ali havia um pouco mais de claridade. Ele caminhou quase correndo para a parte da frente da casa, temendo que alguém aparecesse. Chegou em frente à porta e tentou abrí-la, mas estava trancada. Procurou a chave com desespero entre as várias penduradas na parede, até encontrar a certa. Quando conseguiu destrancar a porta e girou a maçaneta, sentiu duas mãos o segurarem com força, e em menos de um segundo fora atirado contra a parede por Derek, um dos irmãos de Bono.
-- Vai a algum lugar, humano? – ele levantou Edge pela gola da camisa – Por acaso está pensando em tomar um pouco de sol?
-- M-me solta! – Edge se debatia – Eu não estava fazendo nada, só queria respirar um pouco!
-- Esquece que posso ler seus pensamentos? – ele atirou Edge contra a mesa, fazendo-o cair com estrondo no chão – Ia fugir, ia correndo contar aos seus amiguinhos onde nós vivemos... Todos sabíamos que uma hora você faria isso, só estávamos esperando o momento certo para poder te matar.
Derek apertou o pescoço de Edge e o levantou novamente do chão. Edge começou a sufocar, e tinha a impressão de que seu pescoço ia se partir a qualquer momento. Mas então a voz do pai de Bono se fez ouvir:
-- Ponha-o no chão, Derek.
Surpreso, Derek soltou Edge e se voltou para Bob, que estava parado perto do corredor.
-- Ele estava fugindo, pai. Ia voltar para o ninho dos caçadores, ia nos denunciar para eles. Estava morrendo de medo do que íamos fazer com ele depois do ataque de ontem.
-- Eu sei. Sabia o que ele planejava muito antes que fizesse. Mas ele é propriedade de Bono, e é Bono que deve se livrar dele. Traga-o para baixo.
Obediente, Derek arrastou Edge pelo corredor, e Bob foi atrás deles.
-- Você tem sorte, humano. – Derek murmurou – Mas Bono não vai perdoá-lo dessa vez. Confio em meu irmão e sei que ele vai fazer o que deve ser feito.
Edge também sabia. Tentava não tremer e passar um mínimo de segurança, mas sua vontade era sair correndo. De repente percebia o quanto seu poder de saber o passado era inútil em uma situação de perigo. Não tinha nada que pudesse fazer para fugir dali.
Eles chegaram em frente ao quarto de Bono, e na mesma hora a porta se abriu. Bono apareceu, vestindo um roupão. Saiu do quarto e fechou a porta.
-- Não façam barulho, Ali está dormindo. Foi difícil fazê-la se acalmar.
-- Você cuida bem dela. – disse Bob – Mas devia cuidar bem também do seu brinquedo humano.
Bono olhou para Edge, e este percebeu que ele já sabia de tudo o que acontecera.
-- Vamos para o outro quarto. – Bono os levou até o quarto de Edge – Derek, nos deixe a sós.
Um pouco aborrecido, Derek acabou se retirando. Bono, Edge e Bob entraram no quarto.
-- Você sabia o que ele ia fazer. – disse Bob – Foi tolice deixá-lo sozinho essa noite.
-- Eu suguei sangue suficiente dele para deixá-lo dormindo por dias. Não achei que fosse conseguir se levantar.
-- Ele é um caçador, não o subestime. Agora ele desobedeceu nossas regras e você sabe o que deve fazer.
Edge se sentou na cama, assistindo a discussão.
-- Isso não vai se repetir. - disse Bono – Eu não permitirei. O manterei sob vigilância.
-- Não. Você já teve sua chance e a perdeu. Não tolerarei mais um humano aqui. Faça como preferir, mas ele deve estar morto antes do pôr do sol.
-- Isso não é necessário, pai. O erro foi meu por tê-lo deixado sozinho. Isso não vai se repetir, eu juro. O castigarei de tal forma que ele jamais ousará me desobedecer novamente.
-- Se não quiser que ele morra, pode transformá-lo em um de nós. É um direito seu, já que o quer. Mas não continuaremos convivendo com um caçador dentro de nossa própria casa.
Bono hesitou.
-- Ele não está pronto para se tornar um vampiro.
-- Então o mate. Não podemos esperar mais até que ele esteja pronto.
-- Olha – disse Edge – eu acho que estou pronto, Bono, eu já disse que não me importo...
-- Cale-se. - disse o pai de Bono – Você não quer mordê-lo, Bono, mas não é por ele não estar pronto. Ali também não estava pronta quando você a trouxe para cá e a obrigou a se casar com você. O que você não quer é perder o seu brinquedinho humano. Estar com ele é quase voltar a ser humano para você.
-- Isso não é verdade! Se foram Gavin e Guggi que disseram isso...
-- Ninguém precisa me dizer coisa alguma. Eu te conheço muito melhor do que você imagina. Sei que você nunca se conformou por ser um vampiro. Queria poder voltar a ser um humano, mas nada do que fizer vai mudar quem você é.
-- Eu não quero ser um humano, não sei de onde tirou isso.
-- Come comida humana mesmo sabendo que vai passar mal, se expõe ao sol mesmo se queimando, estuda em uma escola apenas para ter convívio com os humanos. Faz sexo como se fosse um deles, e obriga a Ali a se submeter a isso, mesmo sendo doloroso tanto para você quanto para ela. E bebe o sangue desse humano como se isso pudesse fazer você mesmo ser um pouco mais humano. Devia se envergonhar disso. Não é a toa que seus irmãos te acusam de ser um traidor.
Aquilo fez Bono recuar como se tivesse levado um tapa, e baixar a cabeça. Houve um longo silêncio.
-- Eu não quero matá-lo. - Bono disse, finalmente – Por favor, pai. Eu o amo. Eu o quero para mim.
-- O transforme, então.
-- Eu o quero como um humano. Não sei se o amarei tanto se ele for um vampiro.
-- Você passou a amar menos Ali depois de transformá-la?
-- Não, mas é diferente. Por favor, deve haver outra forma, eu posso... Posso hipnotizá-lo. O hipnotizarei permanentemente, ele não terá mais vontade própria nem nos oferecerá risco. Será como se estivesse morto, mas poderei continuar tendo ele sempre que quiser.
Bob pensou por algum tempo. Aparentemente, Bono não conseguia ler os pensamentos dele.
-- Prefere isso do que matá-lo? Sabe o que vai acontecer se o mantiver sob hipnose por um longo tempo. Sabe que ele pode jamais se recuperar.
-- Eu prefiro assim.
-- Jura que não o trará de volta em nenhuma hipótese?
-- Posso trazê-lo de volta quando quiser tê-lo, e voltar a hipnotizá-lo logo depois.
-- Se prefere assim, eu permito. Mas mais um erro, e tanto você quanto ele serão eliminados. Não tolerarei mais problemas aqui.
-- Sim senhor.
-- Vou deixá-los sozinhos para que faça o que deve fazer. Me procure quando terminar.
-- Sim.
Quando ele saiu, Bono se voltou para Edge e lhe deu um tapa no rosto. Edge se assustou, pois não estava esperando aquilo.
-- Viu o que fez, seu idiota? – Bono disse – Teve muita sorte de meu pai permitir que você continuasse vivo! Achou mesmo que conseguiria sair daqui? Estúpido!
Ele deu outro tapa em Edge. Batera sem força, pois Edge sabia que, se ele usasse a força, poderia até arrancar sua cabeça.
-- O que vai acontecer comigo?
-- Vou te hipnotizar. Te manterei hipnotizado o tempo todo, e você estará sob minhas ordens. Só o trarei de volta quando quiser fazer amor com você, ou em alguma situação muito especial.
-- Seu pai disse que aconteceria algo ruim se eu ficasse muito tempo sob hipnose.
-- E vai. Chega uma hora que a mente se desliga de vez do corpo, e não consigo mais te trazer de volta. Será como um morto-vivo, como os escravos que nos servem aqui.
-- E você prefere isso do que me transformar em um vampiro? Achei que me amasse. Achei que todas aquelas...
-- Nunca – ele apertou o pescoço de Edge, o fazendo se calar – nunca ponha meu amor por você em dúvida, está ouvindo? Você não pode entender meus motivos. Ninguém pode.
Edge tentou soltar as mãos de Bono; mas este o olhou nos olhos, durante alguns segundos, e sua visão começou a ficar embaçada, até que tudo sumiu no meio de uma nuvem escura.
* * * * *
Edge abriu os olhos lentamente. O quarto estava escuro, e ele estava de pé. Estava nu, e Bono estava diante dele, tocando seu peito.
-- Bono...?
-- Olá. - Bono disse, com um sorriso, e o beijou.
-- O que... Onde...
-- Você estava hipnotizado. Acabei de te acordar. - ele o beijou de novo – Preciso de você comigo agora.
Ele beijou Edge novamente, mas este estava bastante tonto.
-- Espera só um pouco. Eu... Você pode acender a luz?
-- Claro. - as luzes se acenderam magicamente – Vem cá. - ele beijou o peito de Edge - Você deve estar sentindo vontade, não é? Deve estar precisando muito disso.
Realmente, Edge sentia. Percebeu que seria inútil ficar negando a Bono o que ele queria, e se deixou levar. Sentou-se na cama e permitiu que Bono o beijasse onde quisesse.
-- Bono...
-- Diz que você gosta disso. Diz que você precisa disso.
-- Meu Deus, eu preciso... - ele arranhou as costas de Bono, com força – Meu Deus...
-- Diz o que você quer.
-- Me morde...
-- Peça. Implore.
-- Por favor... Me morde, Bono, eu preciso disso... - ele virou a cabeça, expondo o pescoço – Por favor, faz isso...
Com um sorriso, Bono se inclinou para ele, procurando o lugar certo. No lado esquerdo ainda havia algumas marcas recentes de mordidas, mas do lado direito todas já haviam cicatrizado. Bono afastou os cabelos de Edge, fez ele virar bastante o pescoço, e o mordeu. Imediatamente Edge perdeu as forças, sentindo todo o seu corpo relaxar. Ele cairia, mas Bono o segurou e o deitou suavemente na cama, bebendo o máximo possível de seu sangue.
* * * * *
As nuvens em seus olhos lentamente desapareceram. Edge olhou ao redor. Estava sentado em um sofá, em seu quarto, e Bono estava sentado ao lado dele.
-- Bono?
-- Como você está?
-- Um pouco tonto, eu acho.
-- Vai melhorar. Eu te chamei porque quero te mostrar uma coisa.
-- O que?
-- Espere. - ele se levantou – Só um instante.
Ele se levantou e foi para seu quarto. Voltou instantes depois, trazendo um bebê nos braços. Sentou-se ao lado de Edge, sorrindo.
-- Essa é a minha filha. Minha e de Ali. O nome dela é Eve.
A bebê sorria e brincava com o paninho que a cobria. Edge mexeu nela, encantado.
-- Que gracinha... Então, já houve a festa?
-- Sim. Foi há uma semana. Não te acordei antes porque eu e Ali viajamos em lua-de-mel.
-- Nossa... Mas parece que só fiquei dormindo alguns minutos.
-- É normal que se sinta assim. Quer pegá-la no colo?
-- Posso?
-- Claro.
Edge pegou Eve no colo, com cuidado. A menina sorriu para ele.
-- Ela se parece com você.
-- Escolhi uma criança que tivesse alguns traços meus e de Ali. Ela adorou, queria tanto uma filhinha. Agora somos uma família completa.
-- Parabéns. - Edge entregou a bebê de volta para Bono – Fico feliz por vocês dois. Ela tem sorte por você amá-la tanto.
-- E eu tenho sorte por ela corresponder aos meus sentimentos. - ele se levantou – Venha até aqui.
Eles foram até o quarto de Bono. Mesmo depois de todo aquele tempo, era a primeira vez que Edge entrava ali. Aquele quarto era muito maior que o seu, e havia alguns toques femininos que definitivamente eram coisa de Ali. A garota estava sentada diante da penteadeira, arrumando os cabelos e se maquiando. Bono também estava arrumado, e Edge percebeu que eles deviam estar prestes a sair.
-- Vocês vão a algum lugar?
-- À ópera. - disse Bono, pondo a bebê no berço – Querida, já está pronta?
-- Só mais cinco minutos, bebê. - disse Ali – O que achou da nossa filhinha, Edge?
-- Linda, Ali. - disse Edge – Meus parabéns. Estou muito feliz por vocês. E parabéns atrasados pelo aniversário de casamento.
-- Bodas de prata. - Bono foi até Ali e pôs as mãos nos ombros dela, a olhando por seu reflexo no espelho – E continuaremos juntos por muito mais do que vinte e cinco anos.
-- Para sempre. - ela sorriu, tocando a mão dele.
-- Sempre.
Os dois se olharam de uma forma completamente apaixonada. Edge começou a ficar sem jeito, e com um pouco de ciúmes.
-- Eu, ahm... Acho melhor voltar para o meu quarto.
-- Vou te hipnotizar primeiro. - disse Bono, voltando-se para ele – Eu te levaria com a gente como ontem, mas como...
-- Ontem?
-- Você estava hipnotizado, não se lembra. Mas saiu várias vezes conosco. Ontem fomos ao teatro. Foi muito divertido, você gostou bastante.
-- Mas como posso ter gostado se não estava realmente ali?
-- Uma parte de você sempre está presente, embora não possa se lembrar. Eu te levaria hoje, mas preciso que fique cuidando da Eve para mim. Prometo que amanhã te levarei, já conseguimos uma nova babá.
-- Mas vou ficar hipnotizado enquanto cuido dela? Não é perigoso?
-- Nem um pouco. Eu tenho acesso total à sua mente, sei tudo o que você está fazendo e posso te controlar à distância.
-- Estou pronta, bebê. - disse Ali, dando um último retoque no batom e se levantando – Como estou?
-- Linda, meu anjo. Linda como uma rainha. Você é a coisa mais doce na minha vida. - ele a beijou – Ela não está maravilhosa, Edge?
Ali estava usando um longo vestido preto que, junto da maquiagem, a deixava muito bonita, e parecendo ter mais de vinte anos. Bono também parecia mais velho do que o normal. Edge já percebera que eles se esforçavam bastante para parecerem adultos. Ser um eterno adolescente podia não ser tão bom quanto parecia.
-- Sim, está. Linda.
-- Vamos, não quero chegar atrasado. O motorista nos levará. - ele foi até Edge – Boa noite, querido. Não vamos demorar.
-- Tudo bem.
Bono o beijou nos lábios, e então olhou em seus olhos por alguns instantes, fazendo Edge mergulhar em brumas novamente.
* * * * *
Eles haviam acabado de fazer amor, e Edge se aconchegou a Bono. Sabia que o outro o hipnotizaria antes que dormissem, e sabia que estavam quase dormindo. Por isso, achou melhor falar logo.
-- Eu quero perguntar uma coisa, Bono.
-- Pergunte. – Bono mexia nos cabelos dele, sonolento.
-- Como está a situação com os caçadores?
Ele sentiu Bono ficar tenso.
-- Não muito bem.
-- E os vampiros que haviam sido capturados?
-- Mortos. Estão todos mortos.
-- O que!? Cinco vampiros morreram e você não me disse nada?
-- Foram mais do que cinco. Houve outros ataques. Até agora nove dos nossos se foram.
-- Meu Deus... Bono, eu sinto tanto... Sinceramente, eu... Eu faria tudo para que nada disso tivesse acontecido. Não quero mal a nenhum deles.
-- Não se preocupe com isso. Não é mais problema seu. – ele beijou Edge, tentando fingir que estava tudo bem – Seu único mundo sou eu, agora. Você vive para mim.
Era verdade, Edge pensou. Bono só o acordava quando queria fazer amor, ou para qualquer outro tipo de carinho. Edge tinha a impressão de que fora a única coisa que fizera nos últimos dias – mesmo sabendo que deviam ter se passado muito mais do que alguns dias.
-- Mas eu quero saber se está tudo bem com você. Afinal, como você disse, você é meu mundo.
-- Está tudo bem. Não se preocupe. Eu tenho você e minha esposa e minha filha, e é o que importa.
-- E meus pais? Teve notícias deles?
-- Eles estão bem.
-- E meus irmãos?
-- Todos da sua família estão bem.
-- E os outros caçadores?
-- Muitos deles foram mortos. Mas chegaram mais. Existem dezenas de caçadores na cidade agora.
-- Céus... E eles não suspeitam de você?
-- Ainda não. Eu cobri bem os meus rastros. Eles também não suspeitam dessa casa.
-- Mas...
-- É melhor dormir, amor. Você deve estar cansado. – ele beijou Edge – Depois nós conversamos.
Edge ia protestar, mas antes que o fizesse, Bono o hipnotizara.
* * * * *
Dessa vez, não estava tudo escuro; quando Edge abriu os olhos, algumas velas iluminavam o quarto. Aquilo não era muito comum, pois o quarto tinha uma lâmpada, mas Bono já comentara uma vez que os vampiros preferiam luz de velas, por ser mais fraca. Antes mesmo que voltasse totalmente a si, Edge foi abraçado por Bono com tanto desespero que quase perdeu o equilíbrio.
-- B-Bono? – ele piscou, tentando recobrar de vez os sentidos, mas se sentia bastante sonolento – O que...
Quando Bono o soltou e olhou para ele, Edge viu que ele estava chorando. E não era apenas um choro contido: as lágrimas escorriam por seu rosto, e ele soluçava.
-- Bono! – ele despertou completamente – O que aconteceu? Ali está bem? Aconteceu algo com Eve?
-- N-não. Elas estão bem. – Bono respirou fundo e tentou se controlar – Estão todos bem.
-- Por que você está chorando assim?
-- Não foi nada. – ele abraçou Edge novamente – Está tudo bem, agora. Você acordou. Está tudo bem.
-- Eu...? Por quê? Havia algo de errado comigo?
-- Você só demorou um pouco mais do que de costume para acordar, eu... Eu achei que... – ele abraçou Edge com mais força, esquecendo que poderia machuca-lo – Eu fiquei muito tempo sem te trazer de volta, e tive medo de que você... – ele não conseguiu dizer – Mas você acordou, está tudo bem agora.
Edge o abraçou de volta, tentando confortá-lo, mas também estava assustado em saber que estava ficando mais difícil traze-lo de volta. E se um dia ele não acordasse mais?
-- Isso não vai acontecer. – Bono murmurou, em resposta aos pensamentos de Edge – Não pode acontecer.
-- Me transforme, Bono. Eu quero ficar com você para sempre. Eu quero ser um vampiro, quero lutar com vocês contra os caçadores.
-- Você não poderia lutar contra sua própria família.
-- Eu não os mataria, mas impediria que fizessem mal a vocês.
-- Não, Edge. Sinto muito. – Bono apoiou a cabeça no ombro de Edge – Você ainda não está pronto.
Com um suspiro, Edge balançou a cabeça.
-- Eu estarei pronto um dia?
-- Sim. Mas não ainda. Quando o momento chegar, eu o transformarei, e passaremos a eternidade juntos. Mas não agora.
-- Por quê?
-- Porque você ainda não está pronto.
-- E quando estarei?
-- No momento certo. Confie em mim, Edge. – ele tocou no rosto de Edge – No momento certo, eu te tornarei um de nós.
Eles se beijaram, e Edge não o questionou mais.
* * * * *
Edge abriu os olhos, sentindo-se completamente tonto. Estava de pé, e estava escuro. Sentiu um vento frio batendo em seu rosto, e percebeu que não estava em seu quarto. Havia árvores em volta: devia estar na floresta. Só depois de alguns instantes percebeu que Bono estava a poucos passos dele, ajoelhado no chão, parecendo estar sentindo muita dor.
-- Bono...? – ele disse, confuso – O que...
-- Mortos. – Bono disse, entre soluços – Estão todos mortos.
-- O que?
Só então Edge conseguiu voltar completamente. Quando olhou para frente, ele viu: havia cerca de vinte cruzes em uma enorme clareira na floresta, com cordas penduradas, como se pessoas houvessem sido amarradas ali. O chão estava coberto de cinzas.
-- O que aconteceu? – ele foi até Bono e o abraçou – Como... Quem...
-- Guggi. Gavin. Lizza. Howell. Todos eles. – ele tremia – Estão mortos. Mortos pelos... Caçadores...
Bono deu um soco no chão e gritou tão alto que Edge deu um pulo para trás. Dezenas de pássaros saíram voando das árvores, assustados. Em seguida Bono se levantou e foi até as cruzes, tocando uma por uma, como se tentasse adivinhar quem fora preso a cada uma delas.
-- Meus amigos... Minha família... Todos eles...
-- Onde estão seus pais?
-- Foram cuidar pessoalmente dos responsáveis por isso. – ele se abraçou a uma das cruzes – Guggi...
De repente eles ouviram um barulho, como o de um corpo sendo arrastado e alguém sentindo muita dor. Bono correu para o lugar de onde o barulho vinha, entre as raízes de uma árvore. De lá saiu Derek, arrastando-se com dificuldade.
-- Derek! – Bono o puxou para fora e o deitou no chão – Irmãozinho...
Derek estava sem roupas, e completamente queimado, o corpo em carne viva. Se fosse humano, com certeza já estaria morto. Não conseguia sequer falar, e sua respiração estava difícil.
-- Você vai ficar bem, não vai mais sentir dor, eu prometo... Edge! Venha cá!
Edge se aproximou, ainda um pouco zonzo por despertar de repente no meio daquilo tudo. Bono o puxou pelo braço, fazendo-o se ajoelhar, e mordeu seu pulso. Edge deu um grito de dor, mas antes que pudesse protestar, Bono já estava fazendo Derek beber o sangue que saía dele.
-- Beba, Derek... Isso, assim... Logo vai passar, calma...
O outro bebia o sangue com desespero. Edge estava um pouco incomodado por ser tratado daquela forma, mas achou que não era o momento para fazer protestos, já que Derek estava quase morrendo. Após alguns minutos e uma grande quantidade de sangue bebida, Derek começou a se recompor, bem lentamente. Sua pele começou a cicatrizar, e ele conseguiu falar, embora ainda estivesse muito fraco.
-- Sinto tanta... Dor...
-- Vai passar, maninho, vai passar... – Bono beijava os cabelos dele – Estou aqui agora, ninguém vai te fazer mal...
-- Os outros... Não pude salvá-los... Era tarde...
-- Não pense nisso agora, não foi culpa sua... Você sobreviveu, é o que importa...
Bono parou de repente, e seu olhar mudou. Olhou ao redor e disse:
-- Eles estão aqui.
-- Quem? – disse Edge.
-- Os caçadores. Estão na floresta, estão nos procurando. – ele olhou ao redor, como se estivesse escutando algo – Eles sabem quem eu sou. Já sabem onde vivemos.
-- O que? Mas como eles...
-- Derek – Bono ignorou Edge – consegue ir para casa?
-- Sim...
-- Vá, lá eles o levarão para um lugar seguro. – Derek fechou os olhos e desapareceu, desfazendo-se como névoa – Edge – Bono se voltou para ele – você tem que ir até nossa casa e pegar Eve. Ali não pode se teletransportar com ela. Pegue Eve e a leve para um lugar seguro. Haverá um carro te esperando, o motorista saberá para aonde ir.
-- Mas e você?
-- Vou atrás dos caçadores. Ali não vai querer ir sozinha, mas diga a ela que eu ordenei. Diga a ela que em breve estarei com ela. Agora vá.
-- Mas Bono...
-- Vá! – ele segurou o braço de Edge, que ainda sangrava, e passou a mão por seu pulso, fazendo o sangue parar – E proteja minha filha.
Edge pensou em protestar, mas por fim apenas balançou a cabeça e se levantou. Começou a se afastar, e quando olhou para trás, Bono já não estava ali. Ele começou a correr pela floresta, o mais rápido possível.
* * * * *
A cada segundo, ele se sentia mais enjoado. Devia fazer séculos que não corria, nem tinha nenhum tipo de tensão. Seu corpo estava acostumado a ficar naquele estado de inércia hipnótica, e agora que estava acordado, parecia estar no meio de algum pesadelo.
Quando chegou à casa, ele parou. Aquilo estava quieto demais. Não havia nem vampiros, nem caçadores ali. Ao entrar, ele encontrou Ali na sala, com Eve nos braços. Edge levou um susto ao ver o quanto a menina crescera, e tentou calcular quanto tempo se passara desde que começara a ser hipnotizado.
-- Edge? – Ali se levantou – Onde está o Bono?
-- Ele ficou na floresta, vai atrás dos caçadores. – Edge estava ofegante – Ele disse que você deve ir para um lugar seguro. Me mandou levar Eve para lá. Eu vou com ela no carro, você deve me esperar lá.
-- De jeito nenhum! Não vou deixar minha filhinha sozinha, e não vou deixar Bono sozinho com os caçadores! Eles mataram nossa família, não vou deixar que matem Bono também!
-- Ali, por favor! Os caçadores sabem sobre essa casa, vão estar aqui em minutos! Se não sairmos daqui agora, eles vão pegar você e sua filha!
Ali ficou indecisa um instante, olhando ao redor como se buscasse uma solução, e enfim disse:
-- Leve a Eve, não deixe que os caçadores a peguem. Eu vou atrás do Bono.
E antes que Edge pudesse argumentar, ela se fora.
* * * * *
O carro seguia solitário pela estrada deserta. Edge olhava pela janela, seus pensamentos longe dali. Em seu colo, Eve dormia. A menina estava completamente acostumada a ele, e o chamava de “tio Edge”; ele concluiu que devia servir de babá para ela durante boa parte do dia. Ficou se perguntando quanto tempo se passara, e o que acontecera. A última coisa de que se lembrava era de estar fazendo amor com Bono, e de aquela ter sido uma noite fantástica. Muita coisa devia ter acontecido desde então.
Ele cochilou sem querer; foi acordado minutos depois, pelo som do carro parando. Confuso, ele olhou em volta. Ainda estavam no meio da estrada. E então ele percebeu que estavam cercados por carros e motos, e que homens começavam a descer e a avançar para eles.
-- O que devo fazer? – disse o motorista, que era um escravo humano.
-- Fique aqui. – ele disse, pois não havia outra opção, e abriu a porta.
Quando ele desceu do carro, carregando Eve, os homens apontaram armas para ele, e um deles disse:
-- Não se mexa! Fique onde está ou atiraremos!
-- Espere, estou com um bebê! – Edge disse depressa – Quem são vocês? O que querem?
-- Somos caçadores. – disse outro, que não estava armado – Assim como você foi um dia. Agora coloque a criança no carro.
-- Nos deixem em paz, eu não sou um vampiro. Se atirarem em mim, vou morrer. Só quero ir para casa, está bem? Não há nenhum vampiro conosco.
-- Acha que acreditaremos em você, traidor amigo de vampiros? Sabemos que está do lado deles, que está ajudando eles. Nos entregue o bebê, e te deixaremos vivo.
-- Não. Eu jurei que ia proteger ela e que não ia deixar que a pegassem. Se a querem, terão que me matar.
-- Se é o que prefere. – disse um dos que estava armado, e engatilhou a arma.
Nesse momento uma estaca de madeira atravessou o homem, que caiu no chão sem um único ruído. Todos se voltaram para trás, mas não havia mais nada ali. Então Bono se materializou em meio a eles e pulou sobre outro caçador, arrancando sua cabeça como se ele fosse um boneco. Os outros começaram a atirar desesperadamente, mas Bono novamente sumira e se materializara em cima de outro, o mordendo até quase abrir seu pescoço ao meio.
Edge correu para dentro do carro e fechou a porta. Eve acordara com o barulho, e agora chorava. Ele se encolheu, sem querer ver o que aconteceria. Depois de pouco mais de cinco minutos, os barulhos do lado de fora cessaram. Relutante, ele abriu a porta. Todos os caçadores estavam mortos, e Bono ainda estava sobre um deles, bebendo seu sangue.
-- Papai... – Eve foi correndo até Bono e praticamente se jogou em cima dele – Papai...
Bono largou o homem e se voltou para Eve. A abraçou e a pegou no colo, com certo alívio. Beijou o rosto dela, e ela parecia imensamente feliz, sem se importar com o sangue que pingava em seu rosto e suas roupas.
-- O papai está aqui agora. – ele disse, a reconfortando em seus braços – Nada de mal vai acontecer. Está tudo bem.
-- Papai...
Ele se levantou e foi até Edge. O abraçou também, e se deixou ficar por alguns instantes em seus braços.
-- Eles chegaram a te machucar?
-- Não. – Edge fechou os olhos e apoiou a cabeça no ombro de Bono – Você chegou a tempo.
-- Como você se sente?
-- Um pouco tonto ainda.
-- Isso é normal, deve passar depois de um tempo. – ele foi beijar Edge, mas este virou o rosto – O que foi?
-- Eu não gosto de sangue.
-- Oh. Desculpe. – ele se afastou – Para aonde foi Ali?
-- Eu tentei convencê-la a ir comigo, mas ela quis ir atrás de você, eu não pude...
-- Sim, isso eu sei, ela esteve lá. Mas ela veio na frente para encontrar vocês.
-- Não, ela não chegou aqui. Não a vi desde que saímos da casa.
-- Mas ela não... – ele parou – Ela não chegou aqui?
-- Ela pode ter se teletransportado direto para a outra casa.
-- Não, ela... Ela ia se teletransportar até certo ponto, e ia ficar esperando vocês lá, mas... – ele parou novamente – Eles a pegaram.
-- Não, Bono, impossível. Ela estava se teletransportando, como...
-- Ela não consegue se teletransportar para longe, então tem que ir saltando aos poucos até o lugar em que quer chegar. – ele se afastou alguns passos – Eles a pegaram. Perto da saída da cidade.
-- Como você...
-- Segure ela. – ele pôs Eve no colo de Edge – Continue a viagem como planejamos. Eu vou encontrar Ali.
Edge pegou Eve, e antes que pudesse falar mais alguma coisa, Bono se fora.
* * * * *
O lugar era uma casa antiga mas muito bonita, grande, com um enorme jardim na frente. Havia grossas cortinas tapando todas as janelas, mas em geral, era uma casa normal. Edge ordenou ao motorista que este fosse dormir, e foi arrumar as coisas para acomodar a si mesmo, Eve, Bono e Ali. Estava quase amanhecendo.
Eve já dormira, e Bono não voltara. Aos poucos, a noite foi deixando de ficar tão escura. Edge andava pela casa, e toda hora ia até a varanda, ver se havia algum sinal de Bono. As sete horas da manhã, o dia começou realmente a surgir, e Edge viu o sol nascer no horizonte. Pouco a pouco, a claridade aumentou, até cobrir o jardim. Edge estava a ponto de entrar em casa, pois Bono não voltaria mais; mas nesse momento o outro se materializou em frente à casa, caindo com estrondo no chão, como se tivesse sido jogado. Levantou-se com dificuldade, sem conseguir abrir os olhos, e sua pele estava vermelha como se ele estivesse dentro de um forno.
-- Bono! – Edge correu para ele – Entre depressa!
-- Não me toque! – Bono fez um gesto para que ele se afastasse – Dói!
-- Entre na casa, agora!
Bono correu para a casa, sua pele cada vez mais vermelha, bolhas de queimaduras começando a surgir por todo o seu corpo. Ele chegou na varanda e parou segurando na porta.
-- Diga que posso entrar!
-- Entre! Você pode, entre!
No segundo seguinte Bono estava dentro da casa, caído no chão, e Edge estava apoiado contra a porta fechada, ofegante, como se quisesse impedir que ela fosse arrombada.
-- Bono... – ele trancou a porta e se ajoelhou ao lado de Bono – Oh Deus...
O outro desmaiara; estava com o rosto e as mãos completamente queimados, como se tivesse sido mergulhado em água fervente. Mas Edge estava impressionado pela sua resistência: nunca vira um vampiro ser exposto ao sol por tanto tempo e não explodir em chamas.
-- Você vai ficar bem... – ele pegou uma faca de cima da mesa, e suas mãos tremiam tanto que ele a deixou cair duas vezes – Eu vou fazer você ficar bem... Eu vou cuidar de você como você cuidou de mim...
Um pouco hesitante, Edge fez um corte em seu próprio pulso. Doeu infinitamente mais do que quando Bono o mordia, e ele gritou. Mas continuou, colocando seu pulso na boca de Bono para que ele bebesse seu sangue. Após algum tempo, as feridas do outro foram cicatrizando, até que ele abriu os olhos.
-- Edge...?
-- Estou aqui. – Edge beijou os cabelos dele – Estou aqui para proteger você.
Bono segurou o braço de Edge e continuou bebendo seu sangue por muito tempo, até que Edge perdesse as forças e desmaiasse.
* * * * *
Quando Edge acordou, estava deitado em uma cama, em um quarto estranho. As cortinas estavam fechadas, e quando ele espiou por elas, viu que o dia estava amanhecendo. Ele devia ter dormido por bastante tempo.
Ele levantou, sentindo-se fraco. Na copa, encontrou Bono com Eve no colo, dando mamadeira para ela.
-- Bono...
-- Oh, você acordou... - Bono colocou Eve em uma cadeirinha e foi até Edge, o abraçando – Como você está?
-- Um pouco estranho. Me sinto fraco.
-- Você perdeu muito sangue, dormiu por quase dois dias. Vem cá, tem comida pra você aqui.
Edge comeu, e quando a sensação de fraqueza passou, ele disse:
-- E a Ali? Você a encontrou?
Bono ficou muito sério.
-- Os caçadores a pegaram.
-- O que!? Ah, Deus... E... Eles...
-- Eles não a mataram. Ainda. - ele desviou o olhar – Devem estar tentando fazê-la falar, para ajudá-los a encontrar o resto de nossa família. Mas ela não vai falar, e eles vão matá-la. Talvez aconteça no próximo amanhecer. Eu procurei em todos os lugares, matei vários caçadores, mas não consegui descobrir onde ela está presa.
-- Não podemos desistir! - Edge se levantou – Temos que encontrá-la, temos que...
-- Está amanhecendo. - ele segurou o braço de Edge – Sair seria suicídio. É tarde, Edge. E eu não quero que você se machuque, nem que seja pego pelos caçadores. - ele pôs as mãos sobre os ombros de Edge – Eu quero que você cuide da Eve quando eu morrer.
-- O que está dizendo? - Edge se desesperou – Você não vai morrer! Os caçadores não vão nos encontrar aqui, eles não...
-- Eu e Ali somos casados. Se ela morrer, eu morrerei também.
-- Você vai se matar? Não pode fazer isso, Bono, por mais que doa... Pense em mim, pense na Eve...
-- Não, não vou me matar. Você não sabe? Quando fazemos o ritual de união, nós nos prendemos um ao outro para sempre. A vida dela é a minha vida. Se um morrer, o outro morre também.
-- Mas... Mas não tem jeito de...
-- Não. E eu não quero pensar nisso. Se minha Ali se for, eu não quero continuar vivo.
-- Bono... - Edge começava a chorar – Não faz isso comigo...
-- Vem cá. - ele se sentou no colo de Edge e o abraçou – Eu sinto muito. Sinto muito por ter te envolvido nisso tudo, por ter te tirado da sua vida e deixado você se apaixonar por mim. Se nada disso tivesse acontecido, você estaria lá com eles, e vocês estariam ganhando dos vampiros e você estaria feliz agora. Talvez até estivesse apaixonado por outra pessoa.
-- Não. Eu não me arrependo de nada, de nada. Eu faria tudo de novo por você.
-- Promete que cuida da minha filha? Não vai deixar os humanos pegarem ela?
-- Prometo. Mas os seus pais...
-- Quando ela crescer, se ela quiser, você deve entregá-la aos meus pais para que a transformem em um vampiro. Conte a ela quem foram os pais dela, mostre fotos nossas. Eu quero que ela se orgulhe de mim e da Ali. Diga a ela que nós a amávamos muito.
-- Eu direi. Contarei tudo sobre vocês a ela.
Os dois se beijaram. Edge tentava não chorar, mas era difícil.
-- Eu preciso saber o que aconteceu, Bono. - ele disse – Há quanto tempo estou sendo hipnotizado?
-- Faz quase dois anos. A última vez que te acordei foi há dois meses. As coisas estavam ficando difíceis, e eu não queria que você percebesse que havia algo de errado.
-- Como os caçadores conseguiram pegar vocês? Digo, vocês são tantos, e...
-- Há dezenas de caçadores na cidade, talvez até mais de cem. Nem sabia que existiam tantos. Eles ficaram um tempo fazendo apenas operações pequenas, mas parece que estavam na verdade pesquisando sobre nós. E de repente eles atacaram, todos de uma vez. Dezenas dos nossos foram capturados. Na cidade só restam pouco mais de trinta dos nossos, os outros foram mortos ou fugiram. Os únicos irmãos que me sobraram foram Derek e Norman. Matamos muitos caçadores, mas não foi o suficiente para pará-los. Eles são muitos, com armas que não conhecemos. Tentamos sair todos daqui, fugir, mas eles não permitiram. Meus pais conseguiram ir nos tirando daqui aos poucos, mas enquanto isso a guerra continua, muitos dos nossos ainda estão sendo capturados.
-- Os meus pais...
-- Eles estão bem. Ninguém os machucou. Talvez tenham se ferido durante alguma luta, mas nem se compara ao que fizeram a muitos dos meus.
-- Como eles descobriram quem você era?
-- Um dia, eu e Ali estávamos no teatro, e havia vários caçadores lá. Um deles podia ler pensamentos. Nós tentamos sair sem que nos vissem, mas já era tarde, eles já sabiam. Por pouco não nos pegaram nesse dia. A partir de então temos nos escondido. Eu não vi mais seus pais depois disso, mas com certeza eles logo ficaram sabendo.
-- Mas você vinha vendo meus pais sempre?
-- Às vezes. - algo no olhar dele mudou – Só algumas vezes.
Eve começou a chorar, e Bono se levantou, indo cuidar dela. Quando voltou, um tempo depois, Edge o fez se deitar, pois ele precisava descansar.
-- Não fique tão perto de mim. - Bono disse, quando Edge se deitou ao lado dele e o abraçou – Eu posso morrer a qualquer momento. Não quero te machucar sem querer caso pegue fogo.
-- Eu quero ficar perto de você mesmo assim. - Edge o apertou com força contra si e começou a chorar de novo – Me morda, Bono. Me transforme em um vampiro também.
-- Não.
-- Por favor. Eu já escolhi de que lado estou, e é do seu lado. Quero ser como você.
-- Não, Edge. Me peça qualquer coisa, menos isso.
-- Mas por quê? Eu achei que você...
-- Eu te amo e te quero para sempre comigo. Mas existe um motivo muito maior do que tudo isso para que eu nunca tenha te transformado em um de nós.
-- E qual é?
Bono hesitou por um momento.
-- Eu não quero que você sofra como eu e Ali sofremos.
-- O que?
-- Eu fui mordido aos dezesseis anos. Mordi Ali quando ela tinha quinze. - ele suspirou – Eu não devia ter mordido ela, devia ter esperado. Mas achei que ter alguém igual a mim faria a dor diminuir.
-- Que dor?
-- Nós somos adolescentes eternos, Edge. Estamos casados há mais de vinte anos, e continuamos adolescentes. Até certo ponto isso é divertido, mas chega uma hora em que você não agüenta mais. Você não imagina o que é saber que nunca vou ser um homem de verdade. E ela também sofre, nunca vai ser mais do que uma garotinha. Eu não quero que você passe pela mesma coisa.
-- Eu não me importaria.
-- Você diz isso porque agora é ótimo ser adolescente. Mas você só tem dezesseis anos. Uma hora vai querer crescer, ter o corpo de um adulto, ser visto como um adulto. Meu pai disse uma vez que eu queria voltar a ser humano, mas isso não é verdade. O que eu queria era poder ter me tornado um adulto antes de ser um vampiro.
Edge entendia o que Bono estava dizendo, e não insistiu mais. Mas aquilo lhe doía muito: sabia que, se Bono morresse, nunca teria coragem de deixar outro vampiro o morder. E ele não imaginava como poderia continuar vivendo sem ter alguém para lhe beber o sangue, a não ser que se tornasse um vampiro também.
* * * * *
Antes mesmo que o sol se pusesse por completo, Bono já saíra de casa. A pouca claridade apenas fazia sua pele arder, como se estivesse tocando uma planta venenosa, pois ele tinha uma resistência ao sol muito maior do que a maioria dos vampiros. Edge o seguiu, levando Eve no colo.
-- Eu vou com você.
-- Não. Você vai ficar aqui e cuidar da Eve.
-- Não vou ficar aqui sem saber o que te aconteceu. Não há o que discutir, Bono, e eu quero encontrar a Ali tanto quanto você. Pode deixar que não vou deixar Eve se machucar, ela ficará bem. E se algo acontecer, eu voltarei imediatamente para cá.
Bono hesitou, mas acabou permitindo que Edge o acompanhasse. Os dois foram de carro até a cidade, e ao chegarem, foram a pé para a floresta.
-- Os outros vampiros não estão mais aqui? - disse Edge.
-- Não. Foram todos embora. Só restaram Ali e eu.
-- Os seus pais parecem tão poderosos, porque eles não interferem?
-- Eles interferiram. Mas não tinham como lutar contra os caçadores e nos proteger ao mesmo tempo. Então eles escolheram nos proteger.
-- Como sabe que Ali está aqui?
-- Eu sinto a presença dela.
Eles continuaram adentrando a floresta, e Edge percebeu que Bono ficava cada vez mais ansioso. Até que chegaram a uma grande clareira; ali estava uma enorme cruz de madeira, onde Ali estava amarrada, parecendo desmaiada.
-- Ali! - Bono gritou e correu para ela – Minha querida, meu amor... O que fizeram com você...
Ainda faltavam algumas horas para o amanhecer, e Edge se perguntou por que teriam a amarrado ali e a deixado sozinha. Mas Bono não estava preocupado com isso naquele momento: desamarrou Ali e a deitou no chão, com cuidado.
-- Ali... Querida, abra os olhos... Sou eu, estou aqui...
-- Ela foi envenenada. - Edge se ajoelhou junto a ele – Esse veneno faz o vampiro ficar desacordado por horas.
-- Dê seu sangue para ela. – Bono pegou o braço de Edge – Não vamos conseguir sair a tempo com ela desmaiada.
Bono já estava prestes a morder o braço de Edge, mas este o puxou de volta.
-- Eu perdi muito sangue da última vez. Vou ficar muito fraco se fizer isso de novo.
-- Edge, é preciso! Depois você vai ter tempo para se recuperar, mas se não a acordarmos agora, os caçadores vão chegar e não conseguiremos fugir!
Ele mordeu o pulso de Edge antes que este pudesse fazer mais protestos, e o colocou sobre os lábios de Ali, forçando-a a beber o sangue. Após alguns momentos, ela despertou, abrindo os olhos, embora parecesse muito fraca.
-- Bono...
-- Ali... Vai ficar tudo bem, querida... Bebe, você precisa se recuperar...
Ela continuou bebendo o sangue de Edge por um tempo. Edge começava a se sentir tonto; ainda não se recuperara totalmente da última vez em que Bono bebera seu sangue.
-- Bono... – ele apoiou a cabeça no ombro de Bono, começando a tremer – Eu vou desmaiar...
-- Agüente só mais um pouco, querido... Ali, se sente melhor?
-- Sim. – ela bebeu mais um pouco de sangue, e então parou – Eu acho.
-- Eles te machucaram?
-- Me machucaram, Bono, me machucaram tanto... – ela estava chorando – Eu achei que fosse morrer...
-- Não diga isso, já passou... Eu estou aqui agora, vou te proteger...
-- Cadê minha filhinha... – ela pegou Eve dos braços de Edge – Me dá ela... Oh, Eve, vem com a mamãe...
-- Vamos, querida, precisamos ir. – ele se levantou, e ajudou Ali a ficar de pé – Temos que ir antes que... Edge!
Edge tentara se levantar, mas caíra no chão, e agora tremia incontrolavelmente. Bono o segurou, e percebeu que ele estava gelado.
-- Edge! O que houve?
-- Frio... – Edge sentia um enjôo muito forte, e suava frio – Muito... Frio...
-- Droga... Calma, é só uma fraqueza... Você já fez mais do que isso por mim, você consegue...
Mas a sensação de Edge era que estava morrendo. Ele tentou se controlar, mas tudo ficou escuro; ele ainda ouviu sons, como ecos, que pareciam vir de quilômetros de distância, e por fim desmaiou.
-- Edge! – Bono o abraçou – E agora, nós...
Quando ele levantou os olhos, viu que eles estavam cercados por dezenas de pessoas, todas com armas estranhas. Ali se encolheu junto a Bono, segurando firmemente Eve em seus braços.
-- Bono...
-- Calma. – ele sussurrou para ela, a abraçando contra si – Não vou deixar ninguém te machucar.
Ele fez Ali se encolher contra ele, como se tentasse escondê-la, e os dois protegiam Eve. Puxou Edge para o mais perto possível, e encarou o que parecia ser o líder dos caçadores.
-- Não vão tocar neles. – ele disse, para todos – Não me importo com o que vão fazer comigo, mas não vão tocar na minha família.
-- Nos entregue o bebê. – o homem disse, simplesmente.
-- Ninguém vai tocar na minha filha. – os olhos de Bono ficaram brancos, e ele assumiu uma postura de ataque – Nem na minha esposa, nem no Edge.
-- Se atacar, vamos matar todos agora. – ele apontou a arma para Bono – Não se mexa.
Ali olhou para o caçador, também com os olhos totalmente brancos, e deu um grito, uma espécie de guincho ameaçador. Colocou Eve no chão, junto a Edge, e encarou os caçadores, que apontavam suas armas. Ela e Bono se olharam brevemente, conversando por pensamento; então os dois atacaram ao mesmo tempo, sendo atingidos por tiros de todos os lados.
* * * * *
Quando Edge abriu os olhos, tudo estava mais claro do que ele jamais vira antes, e ele teve que fechá-los de novo, com um murmúrio de dor. Há séculos não se expunha daquela forma à luz. Demorou um pouco para que recuperasse totalmente a consciência e pudesse abrir os olhos de vez. Quando o fez, viu que estava em um quarto branco, deitado em uma cama pequena e coberto por lençóis brancos. Ao seu lado, estava seu pai.
Garvin não disse nada quando Edge olhou para ele; apenas continuou a fitá-lo com uma expressão indecifrável. Edge disse, descobrindo que falar era algo muito doloroso naquele momento.
-- Onde... O que...
-- Você está em um lugar seguro. – Garvin disse simplesmente – Os médicos cuidaram de você. Não corre mais risco de morte.
-- Estou em um... Hospital...?
-- Não.
Nessa hora Gwenda entrou no quarto.
-- Edge... – ela foi até ele – Você acordou...
-- Mãe... – ele tentou se levantar, mas não conseguiu – Como eu vim parar aqui?
-- Não se esforce. – disse Garvin, empurrando Edge de novo para a cama, para que ele não se levantasse – Você ainda está muito fraco.
-- Como eu vim parar aqui?
-- Nossos colegas te trouxeram. – disse Gwenda – Se não fosse por eles, você não teria resistido.
-- Resistido...?
Mas então ele se lembrou: a floresta, ele e Bono, Ali. Desmaiara ao dar seu sangue para Ali, mas não sabia o que acontecera depois.
-- Onde... – ele tentou se levantar de novo, dessa vez conseguindo se sentar na cama – Onde está... Onde está ele, onde está...
-- Não, Edge, não se esforce assim... – Gwenda tentou empurrá-lo de volta para a cama.
-- Onde... Bono... – ele se debateu quando Garvin o segurou, tentando colocá-lo de volta na cama – Bono, onde está Bono... O que fizeram com ele, onde está...
Aquele esforço para se levantar foi demais para ele; o frio voltou, e tudo ficou escuro.
* * * * *
Dessa vez, quando ele acordou, a luz não o machucou tanto. Ao seu lado, estava Dick.
-- Dick...
-- Olá. – o outro disse simplesmente.
-- Onde estou? – ele já conseguia falar melhor.
-- Em um lugar seguro.
-- Onde estão papai e mamãe?
-- Estão todos lá embaixo. Daqui a pouco eles vêm te ver.
-- Como eu vim parar aqui? Onde está o Bono?
Dick ficou muito sério; parecia quase com raiva.
-- Seu namoradinho vampiro está trancado em uma jaula, que é onde animais perigosos devem ficar. – ele se levantou – E você tem muita sorte de não estar lá com ele.
-- O que fizeram com Ali e Eve?
-- Quem são essas?
-- A esposa e a filha de Bono.
-- A vampira também está presa. O bebê está em um lugar seguro.
-- O que vai acontecer com Eve?
-- Vai ser levada para um lar de verdade, com pais de verdade, e espero que nunca se lembre de nada do que passou vivendo no meio de monstros.
-- Eles não são monstros! Você não sabe nada sobre eles!
Nesse momento a porta se abriu, e Garvin entrou.
-- Pelo jeito, agora acordou de vez. – ele se aproximou da cama – Dick, me deixe sozinho com ele.
Apesar de parecer não gostar daquilo, Dick obedeceu, deixando os dois a sós. Garvin se sentou na cadeira ao lado da cama e ficou um tempo olhando para Edge.
-- Há quanto tempo você sabia?
Edge olhou para ele, confuso.
-- O que?
-- Sobre Bono. Quando você soube que ele era um vampiro?
Ao invés de responder, Edge virou o rosto. Não ia começar a falar, não ia dizer nada que pudesse ajudar os caçadores. Não ia trair Bono.
-- Você já sabia quando deixou que ele fizesse coisas com você? – Garvin insistiu – Sabia quando deixou ele entrar na nossa casa e se aproximar de nós e de seus irmãos?
-- Não. – ele acabou dizendo – Só soube depois.
-- Quando?
-- Quando vocês me expulsaram de casa.
-- Como soube? Descobriu sozinho, ou ele te contou?
-- Ele me contou. Eu já tinha desconfiado antes, mas ele tinha conseguido me convencer de que era humano.
-- Então, ele te levou para o ninho deles e te tornou escravo deles. E você aceitou isso.
-- Eu não era escravo deles! Eu era muito bem tratado ali, eles me protegiam! E o Bono me amava.
-- Claro. Ele te amava tanto que sugava o seu sangue todos os dias. E ainda ia pra cama com você quando ficava entediado. Você era só o brinquedo dele, Edge. Um bichinho de estimação.
-- Não é verdade! Os outros não me aceitavam entre eles porque eu ainda sou humano, mas o Bono enfrentou todos eles para continuar comigo. Ele me ama, e eu também amo ele.
-- Nem vou entrar na discussão sobre vocês dois serem homens. Mas a pessoa que você diz amar simplesmente não existe. Ele não é um ser humano, ele é um vampiro. Você ainda não tinha avançado o suficiente em seus estudos para compreender a verdadeira natureza de um vampiro. Se soubesse tanto quanto eu sei, jamais teria tocado em Bono.
-- E o que você pensa que sabe? Aquelas pessoas não têm culpa do que são! Eles são uma família de verdade, eles se amam e cuidam de quem eles gostam! O que eu vi ali não era nada diferente de qualquer outro lar humano!
-- Só palavras não vão servir para te convencer. Assim que você estiver melhor, eu vou te mostrar, e você vai entender.
-- Me mostrar o que?
-- Você verá. – ele se levantou – Eu não vou desistir de você, David. Você ainda é meu filho e tem sangue de caçadores, eu não vou simplesmente te entregar aos vampiros. Os outros teriam te matado se eu não tivesse interferido, mas eu tenho certeza de que valerá a pena. Por você, e por nós também.
Ele saiu, deixando Edge novamente sozinho.
* * * * *
Só depois de muitos dias Edge se recuperou definitivamente, e pôde deixar o quarto onde estava. Descobriu que estava em uma casa enorme, em um lugar afastado da cidade, e que pelo menos vinte caçadores estavam morando ali, fora os outros que iam e vinham a todo momento. A casa tinha três andares superiores, e mais três no subsolo. Ali os caçadores mantinham presos os vampiros capturados, e também desenvolviam novas armas e técnicas para a luta.
-- Eu quero ver Bono. – foi a primeira coisa que ele disse, após sair de seu quarto e encontrar seus pais na sala, conversando com outros caçadores.
Todos pararam e olharam para ele. Edge já percebera que os caçadores não o queriam ali. Como dissera seu pai, provavelmente teria sido morto se ele não houvesse interferido.
-- Não diga besteiras. – disse Gwenda, com um olhar que o fez se encolher.
-- Vocês não podem simplesmente mantê-lo preso. Ele tem direitos. Se a polícia aparecer, vão achar que estão mantendo alguém como refém.
-- A polícia sabe sobre nossas atividades e está nos ajudando. – disse Garvin – Mas tudo bem, se quer vê-lo, eu o levarei até lá.
-- Garvin! – disse Gwenda – Eu não acho...
-- Vamos deixar que ele veja. Vamos deixar que acompanhe tudo. Só assim perceberá pelo que se apaixonou.
Edge não entendeu o que seu pai dizia, mas ficou feliz por poder ver Bono. Garvin o levou para o subsolo, no último andar, onde prendiam os vampiros.
Aquele lugar parecia um enorme laboratório, cheio de tubos, frascos e equipamentos estranhos. As celas onde os vampiros ficavam eram uma espécie de caixa de vidro, com pequenas aberturas. O material do qual eram feitas era forte o suficiente para resistir até ao mais furioso dos vampiros.
Havia mais três vampiros presos ali, além de Bono e Ali. Edge os viu conforme andava pela sala, mas eles estavam encolhidos no canto mais escuro da cela. Eles chegaram na última cela, onde Bono e Ali estavam presos juntos. Edge demorou um pouco para os ver: eles estavam encolhidos em um canto, como os outros, e as sombras os escondiam. Bono abraçava Ali, e eles pareciam estar dormindo.
Edge se aproximou, relutante. Seu pai se deixou ficar para trás, apenas observando. Edge disse, sem saber se o outro o ouvia:
-- Bono...
Bono imediatamente levantou a cabeça. No escuro, seus olhos pareciam emitir alguma luz fantasmagórica. Ele soltou Ali, com cuidado, e foi lentamente até Edge, parecendo hesitante de se aproximar. Quando afinal a luz caiu sobre ele, Edge pôde ver que ele estava muito machucado, e que parecia estar sofrendo algum tipo de transformação: sua pele estava branca como a de um cadáver, seus lábios estavam escuros, seus olhos estavam fundos e ele estava absurdamente magro. Se não estivesse andando, Edge acharia que estava morto já há alguns dias.
-- Edge... – Bono murmurou, com uma voz muito fraca.
-- Bono... – Edge tocou no vidro – O que aconteceu com você...
-- Edge. – Bono tocou no vidro também, no mesmo lugar que Edge, de forma que suas mãos estavam separadas por apenas poucos centímetros – Eles não te machucaram?
-- Não, eles... Eles cuidaram de mim, eu tinha perdido muito sangue mas fizeram uma transfusão, e eu já estou melhor. Meu pai não permitiu que me fizessem mal.
-- Que bom.
O pai de Edge se afastara, indo para o outro lado da sala, conversar com outro caçador. Edge sabia que ele estava vigiando, mas que não podia ouvi-lo claramente; por isso baixou a voz e disse:
-- Eu vou te ajudar, Bono. Vou tirar você e Ali daqui, eu prometo. Assim que surgir uma chance...
-- Não, Edge. – Bono também baixara a voz – Não traia sua família. Você está tendo uma segunda chance, não jogue isso fora. Fique com eles, faça com que o perdoem, torne-se um caçador. Será melhor pra você se esquecer o tempo que viveu comigo.
-- O que está dizendo? Ficou louco? Nem que eu quisesse eu poderia esquecer o que passei com você e voltar feliz para a minha vida de caçador. Eu já te disse que tomei minha decisão. É do lado dos vampiros que eu estou. Não vou deixar que te matem, nem que te tirem de mim.
Nessa hora Garvin voltou para junto deles, dizendo:
-- Muito bem, já basta. O tempo acabou, Edge, vamos embora.
Edge se voltou para Garvin, com um olhar decidido.
-- Eu vou sim. Mas quero que saiba que não vou permitir que matem Bono e Ali. Não vou permitir que machuquem eles novamente. E se não puder impedir, eu me vingarei de qualquer um que os machuque.
Ao contrário do que Edge esperava, Garvin sorriu.
-- Nós não vamos matá-lo. Se fosse nossa intenção, já teríamos feito.
-- Não? – Edge e Bono se olharam – O que vão fazer, então?
-- Primeiro, queremos arrancar algumas informações deles. E eu não quero que Bono morra porque, se ele morrer, isso só vai fazer você ficar ainda mais apaixonado por ele. Antes que ele morra, eu quero que você perceba que quem você ama não existe. – ele olhou para Bono, que olhava com um ar preocupado para ele – Quero que descubra o que realmente é um vampiro.
-- Do que você está falando? O que vai fazer com ele?
-- Nada. Vamos apenas deixá-lo preso aí, pelo tempo que for necessário. Provavelmente, alguns meses serão suficientes. E durante esse tempo, ele não receberá uma única gota de sangue.
Bono ficou ainda mais pálido. Edge disse:
-- Mas se fizer isso, ele vai morrer! Vampiros precisam de sangue para se alimentar!
-- Claro que não. Seria muito mais fácil se pudéssemos matar um vampiro simplesmente lhes negando sangue. Eles continuam vivos mesmo que passem séculos sem tomar uma única gota.
-- Mas então... – ele olhou para Bono, curioso – Qual o problema de deixá-los sem sangue?
-- Você descobrirá quando chegar a hora. Agora vamos.
Edge tocou uma última vez no vidro que o separava de Bono, e eles se olharam de uma forma triste. Então ele saiu, seguindo seu pai para fora da área das celas.
* * * * *
Edge estava sentado em sua cama, com lágrimas caindo pelo rosto. Estava assim havia quase duas horas, desde que vira Bono. Tinha muito medo do que iria acontecer a ele, e mais medo ainda de não poder fazer nada para impedir. Ele era só um adolescente, um ex-aprendiz de caçador; o que poderia fazer contra dezenas de caçadores adultos?
Estava pensando nessas coisas, quando Dick apareceu. Edge só o percebeu quando ele já estava dentro do quarto, diante dele.
-- O que você quer? – disse Edge, um pouco aborrecido pelo outro ter entrado sem bater.
Dick ficou algum tempo apenas olhando para ele; e então falou, com muita raiva na voz:
-- Acha que pode voltar como se nada tivesse acontecido?
-- O que?
-- Eu não vou aceitar você aqui. Mamãe e papai realmente acham que você foi enganado pelo Bono, que pode voltar a ser um caçador, mas eu sei que não. Você sabia muito bem o que estava fazendo quando fugiu daqui.
-- Eu não fugi, eu fui expulso. Eles me jogaram na rua de madrugada, no meio de uma tempestade, e eu teria sido feito em pedaços pelos vampiros se Bono não me salvasse.
-- Eles te expulsaram porque te pegaram na cama com o Bono! – ele aumentara o tom de voz – Seria bem feito se tivesse morrido! Dormir com outro homem já seria imperdoável, com um vampiro então é... É a coisa mais monstruosa que alguém poderia conceber! Seria o mesmo que transar com o demônio em pessoa!
-- Pense pelo lado positivo. – Edge mantinha o tom calmo da voz – Pelo menos eu contribuí para o estudo da vida sexual dos vampiros.
Furioso, Dick deu um tapa no rosto de Edge, o jogando contra a cama. Edge se levantou novamente, com o lábio sangrando, e manteve o ar impassível.
-- Você deve estar se divertindo, não é? – disse Dick – Você pode enganar os outros, mas não a mim. Eu nunca vou te perdoar pelo que você fez, nem pelo que se tornou. Você não passa de um monstro como eles, uma aberração. Um escravo dos vampiros.
-- Pense o que quiser. Eu sei o quanto Bono me ama e não vou discutir por causa disso.
-- Você devia estar lá, trancado com ele. Nunca vai ser um caçador, nunca. Sempre foi um fraco covarde. Se escondia atrás de nós quando íamos caçar, nunca capturou sozinho um único vampiro. Com dez anos nossa irmã era mais corajosa do que você.
-- Não fala isso dele!
Os dois se voltaram. Quem falara fora Gill, que estava parada na porta do quarto, parecendo furiosa. Edge se assustou com o quanto ela crescera desde a última vez que haviam se visto.
-- Não se mete, Gill. – disse Dick – Isso é conversa de gente grande.
-- Pára de me tratar como se eu tivesse cinco anos! – ela se aproximou deles – Não liga para o que ele está dizendo, Edge. Ele só está com raiva porque a namorada caçadora dele foi pega pelos vampiros na frente dele, e ele não pôde fazer nada para impedir.
-- E como você queria que eu estivesse? – ele gritou – Mataram ela, aqueles malditos mataram ela e conseguiram fugir!
-- Era uma luta! Ela atacou eles e eles se defenderam! O que você esperava, que eles ficassem quietinhos esperando serem mortos? Quem entra nessa sabe que pode morrer e não tem que se importar com isso! Eu posso morrer, mamãe e papai podem! Ninguém tem culpa de nada nisso! – ela se voltou para Edge – Maninho, que saudade...
Ela o abraçou. Edge achava que sentira mais falta de Gill do que de qualquer um dos outros. Ela era a única que não lhe fazia cobranças.
-- Eu também senti muito a sua falta, Gill.
-- Por que você foi embora? – ela olhou para ele com lágrimas nos olhos – Você nem se despediu da gente. Por quê?
-- Eu não fui embora. Papai e mamãe me expulsaram de casa, eu não tive outra escolha.
-- Mas por quê? Eles disseram que você tinha feito uma coisa muito ruim, mas eu não consigo imaginar você fazendo nada ruim!
Edge hesitou e olhou de Dick para Gill.
-- Eles não te contaram?
-- Contaram o que?
-- O motivo de terem me expulsado de casa.
-- Não. Só disseram que você tinha feito uma coisa muito errada, e que tinha se sentido muito culpado e resolvido ir embora.
-- Edge – disse Dick, em um tom de aviso – chega, não vamos entrar nesses detalhes. Ela não precisa saber.
-- Como, “ela não precisa saber”? Ela tem o direito de saber! Por que não contaram a ela?
-- Ela só tem treze anos! Eu não vou permitir que você deixe ela confusa com essa história, vai fazer mal a ela!
-- Ela não é nenhum bebê, Dick! Não acredito que esconderam isso dela! – ele se voltou para Gill, apesar dos protestos de Dick – O que eles disseram não é verdade, Gill. Eu não fiz algo errado, muito menos me arrependi. Eu fui expulso de casa justamente por não me arrepender.
-- Se arrepender do que? Se você disse que não fez nada de errado...
-- Eu não acho que seja errado, mas mamãe e papai não concordam comigo, e o Dick também não. – ele hesitou por um momento, mas então segurou as mãos de Gill e disse – Eu fui expulso por causa do Bono.
-- Por quê? A gente ainda não sabia que ele era um vampiro.
-- Eu sei, não foi por isso. Foi porque... Eu e o Bono tínhamos nos tornado amigos, você via ele direto aqui em casa, sabe que a gente vivia junto... Mas com o passar do tempo eu e ele passamos a gostar um do outro de um jeito diferente, e a gente acabou se tornando mais do que só amigos.
-- Como assim? – ela parecia estar começando a entender.
-- Eu e o Bono nos apaixonamos, Gill. Eu e ele éramos namorados. E papai descobriu isso e me expulsou de casa. E esse tempo todo que eu estive fora, eu estava vivendo com o Bono. Mesmo ele sendo um vampiro, nós éramos namorados.
Gill ficou um longo tempo apenas olhando para ele, com um ar completamente atônito. Então seus olhos se encheram de lágrimas, e ela saiu correndo do quarto.
-- Gill! – Edge chamou e se levantou, mas ela já se fora.
-- Viu o que você fez? – Dick gritou com ele, e os dois foram atrás de Gill.
Eles a encontraram no quarto dela, deitada na cama, chorando sem parar, abraçada ao travesseiro. Edge se sentou ao lado dela e pôs a mão em seu ombro.
-- Ei, maninha, não chora... Você está com raiva de mim? Olha, eu sei que isso pode parecer uma coisa horrível, mas eu fui muito feliz com o Bono. Mesmo ele sendo um vampiro, mesmo nós dois sendo meninos, nós tivemos momentos muito felizes juntos. Mas eu vou entender se disser que está com raiva de mim por causa disso, ou que tem vergonha de ser minha irmã ou qualquer coisa assim.
-- Deixa ela em paz! – Dick disse, empurrando Edge para fora da cama – Não vê que já causou problemas demais? Ela não precisa de você, não precisa de um irmão traidor, muito menos de um irmão gay!
-- Ah, claro! Ela precisa muito mais de um irmão que não escuta ela nem dá a mínima para o que ela pensa!
-- Não diz besteiras! – ele agarrou Edge pela gola da camisa – A Gill é muito importante pra mim e eu sempre estive ao lado dela, enquanto você estava vivendo como se fosse a namoradinha do vampiro!
-- Chega! – Gill gritou de repente, levantando-se – Parem!
-- Gill – disse Dick – não grite assim. Eu só estou te protegendo.
-- Eu não preciso que ninguém me proteja!
-- Claro que precisa, olha como você ficou quando o Edge contou que ele era... Que ele tinha namorado com o Bono.
-- Eu não to nem aí pra isso!
Ela saiu do quarto, furiosa. Edge e Dick ficaram um tempo parados, atônitos, e então foram atrás. Ela já descera para o primeiro andar e continuou descendo as escadas, até a parte subterrânea da casa, onde ficavam as celas dos vampiros e os laboratórios. Edge e Dick só chegaram quando ela já estava lá.
-- Gill, o que está fazendo? – disse Dick, correndo atrás dela – Aqui é perigoso!
Mas ela não só não deu ouvidos, como caminhou decidida até a última cela, onde estava Bono. Na parede havia uma espécie de painel, e ao tocar ali, a cela se abriu. Ela entrou e o vidro voltou a se fechar.
-- Gill! – Dick e Edge gritaram, e então Dick – Não! Saia daí!
Sem dar ouvidos, Gill caminhou pela cela até Bono, que se levantara quando ela entrara, parecendo confuso. Então, sem uma única palavra, ela lhe deu um tapa no rosto, com toda a força que tinha – mesmo sabendo que isso era insignificante para ele.
-- Ahm? – ele a olhou, confuso – O que você está...
-- Cala a boca! – ela lhe deu um soco no peito – Cretino! Se eu pudesse eu te daria um surra!
-- O que eu fiz!?
-- O que você fez? O que você fez? – ela gritava – Eu já sei de tudo! Você estava namorando o Edge! Seu, seu... – ela gritou, com raiva – Ahhhh!!!!
Ela dava chutes e socos nele, e ele apenas olhava para ela, surpreso. Dick pegou uma arma e disse:
-- Gill, vou abrir a porta para te tirar daí! Você, se afaste dela! Se a machucar eu acabo com você!
-- Eu? Machucar ela? – Bono olhou para Dick – Ela é que está me atacando!
Dick abriu a porta, apontando a arma para Bono.
-- Gill, vem! Saia daí agora mesmo!
-- Eu vou sair mas porque eu quero! – ela deu um último soco em Bono – Otário! Cretino!
Gill saiu da cela e Dick a fechou novamente, parecendo aliviado; mas então Gill se voltou novamente e ficou encarando Bono, que ainda parecia bastante surpreso.
-- Você não presta. – ela disse – Você... – só então ela viu Ali – Quem é essa?
Bono olhou para Ali, que olhava a cena com total indiferença, sentada no chão. Então olhou novamente para Gill, parecendo ainda mais apreensivo.
-- Ela é a Ali.
-- Quem?
-- É a esposa dele. – disse Dick – Ele tem uma parceira e os dois estavam tentando ter uma cria.
-- ESPOSA? Você é casado?
-- Há muitos anos. – disse Bono, tentando se explicar – Mas é comum um vampiro ter mais de um parceiro, a Ali permite que eu...
-- Eu não quero saber o que ela permite e nem se isso é comum entre vocês! – ela deu um soco no vidro – Você mentiu pra mim!
-- Eu nunca menti pra você, eu só...
Mas ela lhe deu as costas e saiu, antes que ele pudesse tentar se explicar. Dick foi atrás dela, e Edge olhou para Bono, buscando alguma explicação. Mas Bono apenas virou o rosto, parecendo incomodado com alguma coisa. Então Edge seguiu Dick, indo atrás de Gill, que fora novamente para o quarto.
Dessa vez, Gill não chorou. Furiosa, jogou tudo o que estava sobre a mesinha de estudos no chão, e começou a xingar e murmurar sozinha.
-- Gill, o que está havendo? – disse Dick, segurando ela para que ela parasse de jogar coisas longe – Foi loucura entrar assim na cela dos vampiros! E por que diabos você está desse jeito?
-- Porque aquele cara é um cretino! – ela empurrou Dick, se soltando dele – Ele não presta! Ele não vale nada!
-- Está dizendo isso por ele ter namorado comigo? – disse Edge – Gill, ele não fez nada contra a minha vontade. Aliás, fui eu quem...
Por causa dos gritos e do barulho, os pais deles haviam ido até o quarto, ver o que estava acontecendo. Gill gritou:
-- Eu não estou falando de você! Estou falando de mim! – ela jogou um vaso de flores no chão – Aquele cretino mentiu pra mim esse tempo todo!
-- Do que você está falando? – disse Garvin – Pare de quebrar as coisas! Gill, fazia séculos que nós não víamos o Bono. Você pode me explicar quando foi que ele mentiu pra você e por que isso te deixou nesse estado?
Gill se sentou na cama, batendo os pés no chão com força. Mas aos poucos, sua raiva foi parecendo diminuir, e ela ficou com uma expressão mais triste do que inconformada.
-- Ele mentiu pra mim. – ela disse de novo, sem gritar.
-- Mentiu como, maninha? – Edge se sentou ao lado dela – Fazia tanto tempo que vocês não se viam...
-- Não. – ela olhou para Edge, mas então baixou a cabeça – Faz pouco tempo que eu vi ele.
-- Você o viu recentemente? – disse Garvin – Quando?
-- Faz menos de duas semanas.
-- Mas... Mas nós já sabíamos que ele era um vampiro. – disse Dick.
-- É.
-- E você conversou com ele? – disse Garvin.
-- Conversei.
-- Gill. – Gwenda se sentou ao lado dela – O que aconteceu? Que mentira ele disse pra você?
Demorou um pouco para que Gill respondesse.
-- Ele disse que gostava de mim.
Dick e Garvin deram um suspiro de impaciência.
-- Então – disse Garvin – você esteve com o Bono, sabia que ele era um vampiro, mas não tentou capturá-lo porque ele disse que gostava de você.
-- Não! Não foi nada disso. – ela suspirou – A gente já estava se vendo há muito tempo.
-- Gill, agora você vai contar essa história desde o início. – disse Gwenda – O que foi que aconteceu?
Gill olhou para eles, parecendo na dúvida. Olhou por um longo tempo para Edge, baixou a cabeça, hesitou; mas, com um suspiro, ela começou a contar.
* * * * *
Um ano e alguns meses atrás:
Gill estava voltando da escola, sozinha. Não nevava mais, mas o chão estava coberto por uma camada tão grossa de neve que ela afundava até a altura dos joelhos. Resolvera passar perto da floresta, na esperança de encontrar alguma pegada ou pistas sobre as últimas três garotas desaparecidas; mas tudo o que conseguira fora ficar completamente molhada e com muito frio. Quando estava dando meia volta para ir novamente para a estrada, pisou em um buraco coberto de neve e afundou até a altura da barriga.
-- Droga – ela murmurou, jogando sua mochila para o lado e tentando inutilmente sair dali. De repente, o som de passos; quando ela olhou para frente, viu que Bono estava bem diante dela.
Ela ficou olhando para ele, espantada. Ele estava a alguns passos de distância, e seus pés deixavam apenas uma marca leve sobre a neve, quase como se ele flutuasse. E ele estava vestindo apenas uma calça comum e camiseta.
-- Bono...? – ela murmurou, confusa.
-- Sabia que menininhas não devem andar sozinhas pela floresta? – ele foi até ela e sorriu – Existem muitas coisas ruins aqui.
Ele a segurou e a tirou do buraco sem a menor dificuldade. Mas ao invés de colocá-la no chão, ele a segurou no colo.
-- Você se parece muito com seu irmão. – ele disse.
-- O que você tá fazendo? Me põe no chão.
Por um instante pareceu que ele não ia obedecer, mas então ele a pôs no chão. Disse:
-- Como você vai?
-- Bem. – ela estava um pouco vermelha, e tentou disfarçar, pegando sua mochila do chão e a ajeitando – E você?
-- Não tão bem como gostaria, mas vou indo. – ele ficou um tempo apenas olhando para ela – Seu irmão mandou dizer que sente saudades.
-- O Edge? – ela esqueceu sua timidez e se aproximou – Você viu ele? Como ele está?
-- Ele está bem, mas sente muitas saudades de vocês. Ele está morando lá em casa por uns tempos. Ele não tinha para aonde ir, e meus pais o acolheram.
-- E por que ele não vem me ver?
-- Porque ele está com uns problemas. Ele não anda muito bem. Mas ele me pediu pra ficar perto de você, e pra te proteger.
-- Me proteger?
-- Dos vampiros. Ele me contou tudo sobre vocês. Eu sei que vocês são caçadores e que estão procurando os vampiros que vivem nessa floresta.
-- Ele não devia ter te contado isso! – Gill estava inconformada – Você é só uma pessoa comum, pode ser perigoso saber sobre eles! Se você...
-- Gill. – ele tocou no rosto dela, e ela imediatamente ficou muito vermelha e se calou – Edge me contou isso porque ele confia em mim. E ele quer que você também confie. Eu só quero te proteger, ouviu? Não importa o que aconteça daqui pra frente, saiba que tudo o que eu quero é o seu bem.
-- Tá. – ela abaixou a cabeça, para não ter que olhar nos olhos dele.
-- Vem, eu vou te levar de volta para a estrada.
Bono deu a mão para Gill, e eles foram andando até a estrada, onde havia menos neve. Dali ela seguiu sozinha, olhando a todo momento para trás, até que estivesse longe demais para ver Bono.
Eles voltaram a se encontrar daquela forma várias vezes, sempre por acaso. Como na maioria das vezes os encontros eram perto da floresta, Gill começou a passar por ali sempre, na esperança de encontrar Bono. Na maioria das vezes, ele estava lá.
Um dia, ela teve que ficar na escola até mais tarde, fazendo um trabalho. Quando saiu, já estava escuro, e ela sabia que era um horário perigoso. Mesmo assim, resolveu passar perto da floresta, para ver se Bono estava ali.
Quando chegou lá, não viu ninguém. Aquela parte da floresta não era tão escura, pois havia postes por perto, e ela não sentia tanto medo – mesmo à noite, os vampiros não costumavam atacar em lugares iluminados. Estava prestes a voltar para a estrada, quando ouviu um barulho mais para dentro da floresta. Pensando que poderia ser Bono, ela correu para lá; mas teve que se esconder atrás de uma árvore ao perceber que o barulho que ouvia vinha de duas pessoas, dois rapazes que ela nunca vira, e que eles arrastavam o corpo de uma garota.
-- Pra que estamos indo lá pra dentro? – disse um deles – Aqui já está bom, ninguém vai ver!
-- Ainda estamos muito perto da estrada. – disse o outro – Não quero ter problemas se alguém aparecer. Papai já brigou com a gente por causa disso.
-- Seu pai se preocupa à toa. Vamos, Derek, estou morrendo de fome...
Com um suspiro, Derek soltou a garota. Os dois se ajoelharam e tiraram as roupas dela. Então o outro – que parecia mais ansioso – afastou os cabelos dela e mordeu seu pescoço. O vampiro chamado Derek ficou um tempo apenas brincando com ela, lambendo-a, até que a mordeu também, na perna.
Gill pegou uma faca que sempre trazia consigo, e se preparou para atacar. Não ia deixar que os vampiros fizessem mais uma vítima. Sabia que suas chances eram mínimas, mas tinha que tentar. Saiu de trás da árvore, e quando ia correr até eles, alguém a segurou, tapou sua boca, e pulou com ela para um galho de uma árvore, a pelo menos dez metros do chão. Ela se debateu, tentando se soltar, mas então ouviu a voz de Bono murmurar:
-- Não faça barulho. Se te virem, eles vão te fazer em pedaços.
Ela parou de se debater. Olhou para baixo; viu os dois vampiros sobre o corpo da garota, e a neve em volta estava manchada de vermelho. Depois de vários minutos, eles saíram de cima dela, conversaram mais um pouco, e então desapareceram. Ficou apenas o corpo coberto de sangue. Bono tirou a mão da boca de Gill, permitindo que ela falasse.
-- B-bono...
Bono a segurou firmemente e pulou com ela para o chão. Então a soltou e foi até o corpo da menina.
-- Tsc tsc... – ele se ajoelhou ao lado dela – Quanto desperdício.
Ele se inclinou para ela e lambeu o sangue que havia sido derramado sobre seu corpo. Gill ficou olhando, parecendo quase assustada.
-- Os tempos estão difíceis. – Bono disse, levantando-se depois de beber todo o sangue que pôde – Aqueles dois deviam levar uma surra por deixar...
Quando ele se virou para ela, ela lhe apontava a faca, com uma expressão decidida.
-- O que é isso? – ele disse.
-- Não se mexa! – ela se aproximou – Vampiro!
-- Por favor. – ele balançou a cabeça e lhe deu as costas, se voltando novamente para a garota caída – Você pretende me matar com uma...
Mas ele parou. Gill cravara a faca em suas costas, até o cabo.
-- Isso dói, sabia? – ele tirou a faca de seu corpo e a jogou no chão – Vou fazer em você pra você ver como dói.
Gill pegou a faca do chão e partiu para cima dele, tentando lhe cortar o pescoço. Bono sorriu; ela sabia o que estava fazendo. Se cortasse seu pescoço, ele perderia uma grande quantidade de sangue muito rápido, e ficaria inconsciente. Assim ela poderia lhe amarrar e o levar para seus pais. Mas para isso ela precisaria ter uma força que não tinha.
-- Ok, Gill, chega. Boa tentativa, mas você não vai conseguir. Pare, pare. – ele tomou a faca dela e logo a imobilizou – Vai acabar se machucando assim.
-- Você me enganou esse tempo todo! O que quer de mim? Queria pegar informações sobre nós? Ou quer me seqüestrar para fazer chantagem com os caçadores? Isso não vai funcionar! Eu vou...
-- Não é nada disso. Eu não queria te enganar. E nunca falei que era um humano. O Edge...
-- O que você fez com ele? O que fez com meu irmão? – ela começou a dar socos e chutes nele – Se tiver machucado ele, se tiver mordido ele... Eu te mato, tá ouvindo? Te faço em pedacinhos, seu vampiro!
-- Pare com isso, vai machucar sua mão. Me escuta, Gill. – ele a segurou firmemente – Não fiz nenhum mal ao seu irmão. Ele está muito bem e ele sabe sobre mim. Eu não sou como os outros vampiros. Se fosse, já teria te mordido há muito tempo, ou feito uma das coisas que você disse.
-- O que você quer então?
-- Quero ajudar você. E quero que você me ajude.
-- Ajudar em que?
-- Eu tenho um plano. Eu acredito que humanos e vampiros possam viver em paz. Eu quero acabar com essa guerra.
-- Isso é impossível. Vocês se alimentam da gente, nós não podemos permitir isso!
-- Não, nós não precisamos nos alimentar de vocês. Ou melhor, não precisamos matar ninguém para isso. Faz muito tempo desde que matei uma pessoa por esse motivo pela última vez. Os outros vampiros sabem que é possível, mas como você já sabe, eles não se importam. Mas eu me importo, eu não quero machucar ninguém. Eu não escolhi me tornar um vampiro, Gill. Ninguém escolhe. – ele tinha lágrimas nos olhos – Por favor, me ajude. Tantas pessoas estão morrendo, eu não quero mais isso. Vamos acabar com essa guerra.
Ela estava na dúvida. Não sabia se devia acreditar nele. Por outro lado, Bono parecia tão humano, tão sincero. Se não tivesse visto ele pular dez metros de altura e beber o sangue do corpo da garota, ela jamais acreditaria que ele era um vampiro.
-- Por que eu? – ela disse.
-- Porque você é especial. Edge confia em você, então eu também confio.
-- Edge está te ajudando nisso?
-- Não, ele não sabe sobre isso. Ele não pode me ajudar, ele é fraco demais. Mas você não, Gill, você é forte, é corajosa, e tem muitos poderes. E você é inteligente o suficiente para perceber que essa guerra não tem sentido. Nós juntos podemos acabar com isso.
-- Eu não tenho tantos poderes. Aliás, não tenho nenhum poder. A única coisa que eu faço é enxergar no escuro.
-- Não, você tem muitos outros. Tem poderes que nem imagina. – ele tocou no rosto dela – Por algum motivo, eu não consigo ler seus pensamentos. E os outros também não conseguem, caso contrário teriam percebido sua presença. Você consegue bloquear nossa capacidade de ler pensamentos, e esse é um poder raríssimo entre os vampiros. Se você o tem, deve ter muitos outros escondidos.
-- Eu não sei. Não sabia que não conseguiam ler meus pensamentos. Não faço nada para isso.
-- Porque é inconsciente. Se conseguir controlar isso, tenho certeza de que poderá fazer muitas outras coisas. E eu posso te ajudar, posso fazer você desenvolver esses poderes. Aceite, Gill, me ajude e me deixe ajudar você.
-- Eu não sei. – ela se afastou – Tenho que pensar.
-- Você vai contar aos seus pais sobre mim?
-- Não sei. Tenho que pensar.
-- Eu podia te impedir de ir, Gill, mas não vou te impedir porque eu confio em você. Por favor, confie em mim também. Mantenha meu segredo. Você sabe que eu jamais faria mal para a sua família.
-- Eu vou pensar.
E ela saiu dali correndo.
Só depois de quase uma semana Gill voltou ao lugar onde costumava encontrar Bono. Ficou ali por um tempo, esperando, até que ele se materializou em cima de uma árvore.
-- Gill. – ele pulou da árvore e foi até ela – Você veio.
-- Vim. – ela parecia um pouco sem jeito – Eu pensei no que você disse.
-- E então?
-- Eu vou ajudar você. Mas só estou confiando em você porque o Edge também confia.
-- Obrigado. – ele sorriu – Eu sabia que você ia tomar a decisão certa. Você contou a alguém sobre isso?
-- Não, ninguém sabe. – ela se sentou em uma pedra – E então, qual é o plano?
-- Temos que parar a guerra. – Bono se sentou na neve, ao lado dela. Estava usando uma bermuda e uma camiseta, e não parecia sentir nenhum frio – Temos que impedir os vampiros de continuarem fazendo vítimas, e impedir os caçadores de continuarem matando vampiros. Depois, temos que juntar o líder dos caçadores e o líder dos vampiros e fazer eles entrarem em um acordo.
-- O líder dos caçadores é meu avô.
-- Eu sei. E o líder dos vampiros é meu pai. Se conseguirmos conversar com eles e eles entrarem em um acordo, a guerra vai acabar. Talvez ainda haja algumas mortes, por causa de vampiros e caçadores que agem sozinhos, mas vai acabar esse massacre.
-- Por que meu irmão não pode te ajudar?
-- Porque ele não está pronto para isso. Ele tem medo, e além do mais, ele foi expulso de casa por seus pais. – ele tocou no rosto de Gill – Você é a única que pode me ajudar, Gill.
-- Certo. – ela ficou muito vermelha – Eu vou te ajudar. Vou tentar impedir os caçadores de matarem mais vampiros.
-- E eu vou impedir os vampiros de continuarem matando as vítimas.
Eles passaram a se encontrar em um horário certo quase todos os dias, para contarem o que tinham conseguido e se seus planos estavam dando certo.
-- Bono! Bono! – Gill correu até ele, em um dia em que parara um pouco de nevar e ela conseguia andar com mais firmeza.
-- Vocês encontraram as garotas? – Bono disse, tão ansioso quanto ela.
-- Sim! – ela dava pulos de alegria – Três garotas ao pé do salgueiro! Foi você, não foi?
-- Sim! Meus irmãos haviam pego elas, mas eu consegui fazê-los desistir.
-- Eu sabia que tinha sido você! – ela pulou sobre ele, o abraçando – Que bom! Nosso plano está dando certo! Eu também consegui impedir meu irmão de matar dois vampiros que estavam andando na rua!
-- Eu sei, foram Gavin e Norman. Eles me contaram que seu irmão estava vigiando eles e que pensava em atacá-los, mas que de repente desistiu. Eu imaginei que tivesse sido você.
-- Estou tão feliz! Estamos conseguindo, eu sei que vai dar certo.
-- Vai. – ele a abraçou também – Vai sim.
Bono a beijou. Quando a soltou, Gill estava muito vermelha, e parecendo confusa.
-- P-por que você fez isso?
-- Porque você queria.
-- Você... Você disse que não podia... Ler meus pensamentos...
-- Eu não preciso ler seus pensamentos pra saber que você queria isso.
Ele a beijou novamente, e ela deixou. Mas quando a soltou, ela o afastou.
-- Não faz mais isso.
-- Por quê?
-- Porque você é um vampiro. Vampiros não...
-- Vampiros também têm sentimentos, eles também se apaixonam. – ele tocou no rosto dela, e os olhos dela brilharam – Eu gosto de você, Gill. Você é muito especial.
-- Mesmo? – ela parecia não acreditar, e ao mesmo tempo querer muito que aquilo fosse verdade.
-- Sim. – ele a abraçou de novo – Eu estou apaixonado por você.
Mais uma vez, ele a beijou. Dessa vez, Gill não tentou fugir quando ele a soltou.
-- Ninguém nunca tinha se apaixonado por mim. – ela disse – E o primeiro que diz essas coisas tinha que ser um vampiro.
Bono riu levemente.
-- Vampiros também amam. – ele dava beijos leves no rosto dela, e falava em um tom muito suave – E também fazem amor.
Nessa hora ela o empurrou, e Bono percebeu que ela estava muito ofendida.
-- Sai fora! Eu não vou... Eu não... Se você acha... Seu... – ela começou a bater nele, furiosa.
-- Ei, o que foi? – ele não estava entendendo nada – O que eu fiz?
-- O que você acha? “Também fazem amor”... Você acha o que? Que vai me chamar pra ir pro meio do mato com você e que eu vou aceitar? – ela deu um soco nele – Safado!
-- Gill, eu não quis dizer isso! Desculpa! – ele a segurou, antes que ela fosse embora – Eu só disse isso porque... Que droga, eu achei que seria romântico, sei lá... Esqueci que você só tem doze anos, desculpa...
-- Se ponha no seu lugar. – ela lhe apontava o dedo, ainda com raiva – Eu não sou que nem essas garotas com quem você faz sabe Deus o que. Se acha que é só falar meia dúzia de coisas bonitas que eu vou dormir com você, está muito enganado!
-- Eu não acho isso, Gill, jamais nem tentaria isso... Me desculpa, por favor, esquece o que eu falei. Desculpa. – ele se ajoelhou e beijou as mãos dela – Desculpa. Me perdoe, por favor. Juro que nunca mais vou faltar ao respeito com você de novo.
Ela ainda estava brava, mas se acalmara.
-- Hunf. – ela deu de ombros – Tá, tá, levanta. Mas se fizer isso de novo, eu nunca mais falo com você.
-- Ok. Desculpa.
Durante alguns meses, eles ficaram se encontrando sempre naquele mesmo lugar. Até que um dia, durante a noite, Bono bateu na janela do quarto de Gill.
-- Bono? – disse Gill, ao abrir a janela – O que você...
-- Preciso conversar com você. – ele falava em voz baixa – Me deixa entrar.
-- Falar o que?
-- Não aqui. Podem ouvir.
-- Espera.
Ela fechou a janela, e voltou a abri-la depois de alguns minutos. Estava usando outra roupa, e pulou a janela, saindo de casa.
-- Vamos para algum lugar em que não nos vejam. – ela disse.
-- Seria melhor no seu quarto.
-- Não. Vamos para aquela casa abandonada.
Bono a pegou no colo, e em dois pulos estava na casa abandonada, que ficava um pouco longe da casa de Gill. Ele não podia voar, mas pulava tão alto que às vezes parecia estar flutuando.
Eles entraram na casa, e ao terem certeza de que estavam seguros, Gill disse:
-- O que você quer falar?
-- Por que você não me deixou entrar na sua casa?
-- Era isso o que você queria falar?
-- Só fiquei curioso. Seria mais prático se tivesse me deixado entrar.
-- Primeiro, porque não é legal eu ficar deixando garotos entrarem no meu quarto pela janela no meio da noite. Segundo, porque você é um vampiro. Eu confio em você, mas não posso obrigar meus pais e meu irmão a confiarem e não vou pôr a vida da minha família em risco.
Ao contrário do que ela esperava, Bono sorriu.
-- Esse é um dos motivos de eu ter escolhido você pra me ajudar. Você é inteligente e muito prática. – ele passou a mão nos cabelos dela – E é linda.
Ele a beijou. Gill gostava daquilo, mas não queria perder o foco das coisas.
-- Afinal – ela o afastou – você só queria me beijar ou queria realmente dizer alguma coisa?
-- Certo, vamos ao que interessa. – ele se sentou sobre uma cama velha – Cinco vampiros estão planejando um ataque amanhã. Eles convenceram umas garotas do colegial a irem com eles para a floresta, para uma “festinha”. Pretendem matar elas lá. Dessa vez, eu não posso fazer nada para impedir. Você e os caçadores vão ter que agir.
-- Em que lugar eles estarão?
-- Bem para dentro da floresta. Depois da cachoeira, você anda uns vinte minutos seguindo o rio, e vai avistar um lugar cheio de roseiras. Então você vira a direita e vai ver uma trilha. Siga essa trilha por mais trinta minutos, e chegará até um carvalho enorme, muito antigo. É para lá que eles vão.
-- Nossa... Não sei se consigo encontrar.
-- Posso acompanhar você até certa parte do caminho, mas não muito longe. Eles não podem me ver, não podem nem desconfiar que estou ajudando vocês.
-- Certo. Amanhã, então, vou te esperar no lugar de sempre. Vou levar alguns caçadores comigo, mas vou dar um jeito de me afastar deles e só chamá-los depois, pelo rádio, para que eles não te vejam.
-- Certo.
-- Ótimo, agora eu vou pra casa antes que...
-- Espera. – ele se levantou e a segurou – Espera só um pouco.
Ela ia perguntar o porquê, mas ele a beijou, e ela entendeu. Dessa vez, ela não mandou que ele parasse, e os dois ficaram se beijando durante muito tempo. Depois continuaram abraçados, e Gill passou a mão pelo peito de Bono, com certa curiosidade.
-- Você disse uma vez... – ela disse, um pouco tímida – Que vampiros também... Faziam amor...
-- Fazemos, sim. A maioria não faz, porque é um pouco diferente para nós, mas alguns fazem.
-- Você faz?
-- Sim.
-- Mas... Vocês não são humanos, né? Então... Será que é... Digo... Será que vocês são... Iguais a gente? Digo...
-- Meu corpo é igual ao corpo de qualquer homem humano. – ele se afastou um pouco – Eu vou te mostrar.
Gill assistiu, fascinada, a Bono tirar a camisa; mas então foi até ele e segurou sua mão, antes que ele fizesse mais alguma coisa.
-- T-tá bom. Já me convenceu.
-- Convenci mesmo? – ele a abraçou firmemente – Tem certeza?
Ele a colocou contra a parede e se encostou nela, de forma que ela pôde ter a certeza absoluta de que o corpo dele era exatamente igual ao de um homem humano. Ela abaixou o rosto, para não ter que olhar nos olhos dele, mas ele a segurou com cuidado e a beijou novamente.
-- Pára... – ela murmurou.
-- Sabe – ele disse, quase sussurrando – você é muito mais jovem do que eu.
-- Muito?
-- Muito. Você poderia ser... Minha bisneta. Talvez até mais. – ele a beijou novamente – Eu provavelmente não estaria mais vivo se não fosse um vampiro.
-- Você tem quantos anos?
-- Muitos. Mas sabe, se alguém me perguntasse se eu gosto de ser um vampiro... Eu pensaria em você, e diria que sim. Porque assim eu pude conhecer você.
Ela ficou muito vermelha. Ele a beijou novamente, e a pegou no colo. Quando Gill abriu os olhos, estava deitada na cama, e Bono estava em cima dela.
-- Não... – ela disse, mas não fez nada para afastá-lo – Pára...
-- Gill... – ele começou a desabotoar a blusa dela.
-- Não, Bono...
Ele beijou o pescoço dela, e ela se afastou, assustada; mas ele sorriu e olhou nos olhos dela:
-- Eu não vou te morder. Eu juro. – ele voltou a beijar o pescoço dela – Confie em mim... Gill...
-- Bono...
E ela não protestou mais naquela noite.
Conforme se passavam os meses, a situação entre vampiros e caçadores se complicava. Por mais que Bono e Gill se esforçassem para evitar mortes, o número de vítimas, de ambos os lados, estava aumentando.
-- Seus poderes estão mais fortes. – Bono disse, em um dia em que eles se encontraram na casa abandonada para discutir o andamento das coisas – Você está indo muito melhor do que eu tinha imaginado.
-- Mas não está servindo para nada. Mais pessoas estão morrendo, mais vampiros estão sendo destruídos. Estão chegando mais caçadores, e eles são muito poderosos. Eu posso influenciar minha família até certo ponto, mas minha opinião não vale nada para essas pessoas que estão vindo.
Eles estavam sentados no chão, muito próximos. Gill estava praticamente no colo de Bono.
-- Vamos treinar de novo. – ele tocou no rosto dela – Tente ler meus pensamentos.
-- Mas dói... Aquele dia eu fiquei o dia inteiro ouvindo um zumbido.
-- Mas conseguiu ver o que eu estava pensando. Esses poderes vão melhorando e se tornando mais fáceis de serem usados conforme você se força a usá-los. Vamos, Gill. Você é aquela que vê o que ninguém mais vê, lembra? Então, veja dentro de mim.
Gill respirou fundo e olhou dentro dos olhos de Bono, tentando entrar em sua mente. Bono tentava ajudá-la, tendo pensamentos muito claros para que ela pudesse visualizá-los. Por um tempo Gill pareceu não conseguir; mas então sua expressão mudou, como se ela estivesse vendo alguma coisa. E de repente ela deu um grito e se levantou, afastando-se o máximo que podia.
-- O que foi? – Bono também se levantou, assustado pelo grito que ela dera – O que aconteceu?
-- Não chega perto! – ela pegou o abajur e apontou para ele como se fosse uma arma – Fica aí!
-- Gill! O que está acontecendo? O que você viu?
-- Eu vi... Parecia... Dentro de você. – ela engoliu em seco – Eu não vi seus pensamentos, eu vi mais fundo... Dentro... Como se...
Ela não encontrava palavras para explicar. Ele tentou se aproximar, mas ela parecia estar em pânico, e ele decidiu se manter afastado.
-- Calma, Gill. Me explica o que foi que você viu, eu não estou entendendo. Você não tem motivos pra ter medo de mim, abaixa isso.
-- E-eu vi... Uma coisa.
-- Que coisa?
-- Eu não sei o que era... Parecia um... Um monstro...
-- Monstro?
-- Primeiro ficou tudo escuro, foi como se eu estivesse mergulhando dentro de você, e de repente apareceu, esse, essa, essa coisa... Parecia um bicho, um monstro, eu não sei o que é...
Por alguns momentos, Bono pareceu tão confuso quanto ela; mas então seu olhar mudou, e ele pareceu entender. Suspirou e baixou o olhar, e então voltou a olhar para ela.
-- Você não tem que ter medo disso. Não vai te fazer mal.
-- Não? Era uma coisa horrível, e ele parecia furioso com alguma coisa... Não, parecia que a única coisa que ele era capaz de sentir era ódio, como um... Um bicho, um demônio ou sei lá o que...
-- Ele não vai te machucar. Eu não vou permitir.
-- Por que você tem essa coisa dentro de você?
-- Todos nós temos. Todos os vampiros.
-- Todos? Mas... Como assim?
-- Você já deve ter ouvido mais de uma vez os caçadores falando que os vampiros são monstros, não é? Monstros que se fingem de humanos. Pois então, essa coisa dentro da gente é o motivo de eles dizerem isso.
-- E que coisa é essa?
-- É um vampiro. Isso é um vampiro. Eu, esse Bono que você está vendo, sou um vampiro em forma humana. Se eu perdesse meu lado humano, o que apareceria seria aquela coisa.
-- Eu não entendo...
-- Eu não saberia te explicar muito bem. – ele se sentou na cama – Mas você não precisa se preocupar. Pense nessa coisa dentro de mim apenas como um... Um sonho ruim ou qualquer coisa assim. Ele está preso na minha mente e é lá que vai continuar. Não vou deixar ele sair.
-- Tem certeza?
-- Sim. Eu preferiria morrer do que me tornar um vampiro puro.
A última vez que eles se encontraram, foi um dia depois de um grupo de vampiros ter sido capturado e morto pelos caçadores.
-- Eles eram seus irmãos?
-- Dois eram. – Bono tinha lágrimas caindo pelo rosto, enquanto olhava as quatro cruzes na clareira, e as cinzas no chão – As duas vampiras eram as esposas deles.
-- Sinto muito... Eu não pude fazer nada para impedir.
-- Não é culpa sua. – ele a abraçou e lhe deu um beijo no rosto – Eles tinham filhos. Ainda são crianças, não são vampiros. Ficarão sob os cuidados dos meus pais agora. Pelo menos não caíram nas mãos dos caçadores.
-- As coisas estão ficando tão difíceis, Bono. Esses caçadores que vieram, eles parecem mais matadores de aluguel... O único objetivo deles é exterminar todos os vampiros, todos.
-- Não deviam ser chamados de caçadores. São assassinos. – ele suspirou – As coisas estão ficando muito difíceis para nós. Meus pais não podem mais garantir nossa segurança aqui. Nós vamos embora.
-- O que? Você vai embora?
-- É preciso. Está ficando muito perigoso aqui. Ainda mais agora que seus pais têm a ajuda da polícia e já sabem que eu sou um vampiro.
-- Mas e eu? Você vai me deixar?
-- Um dia eu voltarei para te ver. Além disso, seu irmão está comigo, e duvido muito que ele vai querer ficar muito tempo sem te ver. Mas meu lugar é com a minha família.
-- Promete que volta?
-- Prometo. Eu voltarei pra te ver. Eu e o Edge.
Eles se beijaram. O inverno se aproximava novamente, e Gill se encolheu junto a Bono.
-- Eu gosto muito de você. – ela disse.
-- Eu também gosto muito de você.
Bono a beijou pela última vez, e desapareceu como névoa na floresta.
* * * * *
Gill permaneceu de cabeça baixa. Todos no quarto olhavam para ela, em silêncio. Edge não poderia falar mesmo que quisesse. Sentia que nunca mais na sua vida poderia falar.
-- Então – Gwenda disse, depois de um tempo – você já sabia que ele era um vampiro há mais de um ano. E não só não nos disse nada, como ficou se encontrando com ele e passando informações sobre nós.
-- Um espião em nossa própria casa. – disse Garvin – Em nossa própria família. Você tem idéia de quantas pessoas inocentes podem ter morrido por sua causa? De quantos caçadores foram mortos graças às informações que você deu ao Bono?
-- Bono só matou caçadores para se defender, e foram poucas vezes. – disse Gill – E eu não passava nenhuma informação confidencial para ele. Apenas o avisava das operações que íamos fazer para que ele pudesse evitar que mais vampiros fossem mortos.
-- Não seja ingênua, Gill! Você realmente acha que Bono mandava os vampiros se esconderem quando sabiam onde íamos estar? É claro que eles iam nos atacar! Várias vezes nossas operações falharam e muitos morreram porque os vampiros pareciam saber exatamente onde estaríamos e nos encurralavam.
-- Eu não acredito que Bono faria isso! Eu li a mente dele, confio nele! E mesmo que fosse, mesmo que ele estivesse armando emboscadas para nós, qual o problema? Nós estamos atacando eles sem motivo algum! Muitos dos que nós matamos jamais haviam machucado alguém! E muitos dos que fizeram vítimas não foram pegos, nós estamos atacando sem nenhum objetivo! O que estamos fazendo é um massacre!
-- Não diga besteiras! O que fazemos é para proteger as pessoas, para impedir que famílias inteiras morram!
-- E as famílias deles? Vocês não pensam no que eles sentem? Eles também sofrem, também sentem dor quando alguém da família é morto! O que faz vocês pensarem que nossa dor é maior do que a deles?
-- Eles não sentem nada, isso é tudo uma simulação! Você não entende suficientemente o que é um vampiro, por isso não compreende os nossos atos. Eles não são humanos, não têm sentimentos e muito menos família.
-- Você não sabe o que está falando! Eu convivi com Bono, Edge conviveu com ele! Nós sabemos melhor do que ninguém que ele... Edge?
Edge se levantara e saíra do quarto, sem falar com ninguém. Voltou a descer para a parte subterrânea da casa, onde os vampiros eram presos, e foi até a cela onde Bono estava, pela terceira vez naquele dia. Bono estava de pé, apoiado na parede, parecendo estar esperando por ele. Os dois se olharam por um tempo, e então Edge disse:
-- Por que você fez isso?
-- Eu não fiz nada.
-- Não? – ele bateu no vidro – Você estava tendo um caso com a minha irmã!
-- Não fiz nada contra a vontade dela. Muito pelo contrário.
-- Ela é só uma criança! Ela só tinha doze anos quando você... Como teve coragem? Minha própria irmã!
-- Ela não é nenhuma menininha indefesa. Além disso, você também tinha doze anos quando se apaixonou pela primeira vez.
-- Você abusou dela, usou os sentimentos dela para conseguir se aproximar dos caçadores! E ainda fez ela acreditar que estava apaixonado, só pra dormir com ela! Enquanto eu estava lá, hipnotizado, sem saber de nada, achando que você me amava! Você enganou a mim e a ela!
-- Pare de gritar. – ele se aproximou – Em primeiro lugar, eu jamais menti para você. Eu te amo. Mas também nunca disse que seria fiel a você, do mesmo jeito que não sou fiel a ninguém. “Fidelidade” é um conceito humano. Eu não tenho nenhum interesse em ir contra a minha natureza. Além disso, eu também não menti para ela. Eu a amo.
-- Como pode amar ela? – Edge tinha lágrimas nos olhos – Ela é minha irmã, você devia ter...
-- Justamente por ela ser sua irmã eu me apaixonei por ela. – ele tocou no vidro, tentando tocar no rosto de Edge – Vocês são tão parecidos. No início meu único objetivo era que ela me ajudasse, mas com o passar do tempo eu não pude deixar de olhar para ela e lembrar de você. Eu não podia te tirar da hipnose, então de certa forma estar com ela era quase estar de novo com você.
-- Isso não é certo. Não é justo com a gente, não é. Você não podia ter feito isso.
Edge saiu quase correndo, sentindo mais raiva de Bono do que já sentira em toda a sua vida. Bono ficou parado, olhando ele ir.
* * * * *
Edge chorara a noite inteira, e adormecera sem nem perceber. Ninguém havia ido ao seu quarto, o que para ele foi um alívio: precisava mais do que nunca ficar sozinho. Só quando acordou e foi para a cozinha, na manhã seguinte, encontrou seus pais. Não havia muitos caçadores dessa vez, e ele se sentiu um pouco menos constrangido de estar ali.
Gill também estava ali, tomando café da manhã, mas não havia sinal de Dick. Seus pais pareciam estar esperando por ele.
-- Como você está? – disse Gwenda, quando ele chegou.
-- Bem. – ele disse, em um tom não muito sincero, e começou a comer.
-- Se alimente, você está muito fraco. Ainda está em recuperação.
-- Eu estou bem. Fraco eu sempre fui.
-- Não diga bobagens. – disse Garvin – Tome seu café da manhã. Depois eu quero mostrar uma coisa para vocês dois.
-- Que coisa? – disse Gill.
-- Você vai ver. Mas agora terminem de comer.
Depois de tomarem café da manhã, Gill e Edge seguiram Garvin para o andar de baixo da casa. Conforme andavam, Garvin falava – em um tom muito mais tranqüilo do que Edge o vira usando no dia anterior.
-- Eu conversei muito com a mãe de vocês e com alguns outros caçadores. Nós achamos que os últimos acontecimentos, por mais graves que tenham sido, não foram culpa de vocês. Vocês não tinham idéia do que estavam fazendo, não tinham conhecimento suficiente sobre o que é um vampiro. É muito comum uma pessoa normal ser seduzida por eles, eles são bons em simular um comportamento humano. Tanto que o Bono se passou por humano durante meses, e nem mesmo eu e sua mãe, que somos caçadores experientes, percebemos. Vocês são crianças, não é justo culpar vocês por um erro que até caçadores adultos já cometeram.
Eles chegaram até um dos laboratórios, na parte subterrânea da casa. Edge disse:
-- O que estamos fazendo aqui?
-- Quero que vocês vejam uma coisa. – ele cumprimentou a mulher que estava ali, e que parecia uma médica ou algo do tipo – Essa é a doutora Jeany. Ela é pesquisadora e estuda os vampiros há muito tempo. É uma das maiores especialistas da atualidade.
Gill já a conhecia, e Edge a cumprimentou, ainda sem entender porquê estavam ali. Garvin pegou uma prancheta que estava sobre a mesa e a mostrou para os dois, dizendo:
-- O que vocês vêem aqui?
Havia a foto de um rapaz, que Edge imediatamente reconheceu.
-- Um menino. – disse Gill.
-- É um vampiro. – disse Edge – Esse é Frederick, primo de Bono.
-- Sim, muito bem. Agora me digam como ele é. O que vocês vêem. Ele parece um rapaz normal?
-- Sim. – disse Gill – Se Edge não tivesse dito, eu jamais saberia que é um vampiro.
-- Vocês acham que ele poderia conviver normalmente com humanos? Olhando bem para ele, acham que ele é praticamente um humano?
-- Sim. – disseram os dois.
-- Muito bem. – ele colocou a foto novamente sobre o balcão – Isso o que vocês viram não passa de uma ilusão. Essa pessoa não existe.
-- O que? Como assim?
-- Frederick Hewson realmente existiu. Ele nasceu em mil novecentos e catorze, aqui mesmo em Dublin. Mas quando ele tinha vinte e cinco anos foi mordido por um vampiro, e morreu.
-- Ele não morreu. – disse Edge, confuso – Eu o conheço. Ele foi mordido porque quis, pela mãe dele, e ela deixou que ele bebesse o sangue dela.
-- Exatamente. E quando fez isso ele morreu, e um vampiro assumiu seu corpo e sua personalidade, fazendo-se passar por ele.
-- Eu não entendo.
-- O que é um vampiro? O que acontece quando uma pessoa é mordida e se torna um vampiro? – nenhum dos dois respondeu, pois estavam confusos – A pessoa morre. Embora aparentemente ela esteja viva, ela não está. O que acontece é que um outro ser, um vampiro, assume seu corpo. Essa criatura assume a identidade da pessoa infectada e a usa para conseguir vítimas.
-- E o que é essa... “Criatura”? – disse Edge.
-- É o que Gill viu quando tentou ler a mente de Bono. Não sei como ela conseguiu isso, pouquíssimos vampiros conseguem, antigamente achava-se até que era impossível. O que você fez, Gill, foi quebrar as barreiras mentais que o vampiro cria entre sua verdadeira forma e a do hospedeiro. Como o próprio Bono disse, ele é apenas um disfarce humano. O verdadeiro vampiro fica escondido em sua mente, apenas controlando.
-- Ele disse que ele é que tinha o controle. – disse Gill – Que não ia deixar aquela coisa aparecer, que preferia morrer do que se tornar aquilo.
-- Isso faz parte das defesas de um vampiro. Talvez ele próprio acredite que “Bono” é a identidade verdadeira, e que o vampiro é apenas algo em seu subconsciente. Mas existem muitos estudos que mostram que não é assim. É do vampiro que vem a vontade de beber sangue, o medo da luz. Quando expomos um vampiro humano ao sol, ele queima de dentro para fora. Isso mostra que o corpo humano que ele usa não tem nenhum problema com o sol, e que a parte afetada é a de dentro, do vampiro. Um vampiro em um disfarce humano.
-- Que seja. – disse Edge – Afinal, essa criatura, esse vampiro que vive dentro dos vampiros, ou o que quer que seja isso... O que ele é? No que é diferente de um humano?
-- Um vampiro puro é tão diferente de um humano quanto uma pedra é diferente de uma árvore. Vampiros são seres totalmente irracionais. Não possuem sentimentos, nem pensamentos complexos. Têm tanta capacidade de raciocínio quanto qualquer animal selvagem, talvez menos. São movidos puramente por instinto, e são extremamente violentos. Atacam a qualquer coisa, inclusive a seus semelhantes. As fêmeas têm algum instinto de reprodução, mas os machos sempre matam suas vítimas. Existe uma forma de sexo entre eles, mas é totalmente diferente de qualquer coisa que vocês já tenham visto e até hoje não se sabe exatamente qual é o objetivo, já que não é reprodutivo. Enfim, eu posso ficar horas aqui falando, mas acho que é melhor mostrar a vocês.
-- Mostrar? Vocês têm um vampiro assim aqui?
-- Temos. Esse mesmo de quem mostrei a foto, Frederick. Ou pelo menos esse é o nome pelo qual ele atendia. Agora, já tentamos usar diversas palavras, mas ele não atende a nenhuma.
Ele fez um sinal para a cientista, e ela apertou um botão que fez abrir uma espécie de janela diante deles, fechada pelo mesmo vidro reforçado que fechava as celas. A janela dava para a parte de cima de uma espécie de sala, muito maior do que as outras celas, cujo chão ficava um nível abaixo do deles. Estava tudo completamente escuro ali, e eles podiam ouvir, através dos auto-falantes na mesa de controle, algo se movimentando e emitindo pequenos grunhidos.
-- Acenda as luzes. – disse Garvin, para Jeany – Mas mantenha elas bem baixas. Não queremos que ele fique tão agressivo novamente.
Ela aumentou gradualmente a iluminação do lugar, até que fosse possível ver o que havia ali. A princípio Edge não conseguiu distinguir o que era aquilo, pois aquela coisa – fosse o que fosse – estava agachada em um canto, como se para se proteger da claridade; mas ao ver que a luz não lhe fazia mal, ela se pôs de pé – não como uma pessoa ficaria, mas de uma forma encurvada e inclinada para a frente, como se aquela não fosse sua forma natural de andar. Então ele se virou na direção da janela e olhou para cima, diretamente para eles, embora não pudesse vê-los. Edge deu um grito abafado, e Gill tapou a boca com as mãos.
-- Meu Deus. – Edge chegou a se afastar, pois a visão daqueles olhos era assustadora – O que é isso?
-- Isso é um vampiro. – disse Garvin – Isso é uma das criaturas que vocês disseram que em nada diferem dos humanos, e com as quais vocês se envolveram sentimentalmente.
Edge não conseguia acreditar. Não havia nada naquela coisa que sequer lembrasse qualquer vampiro que ele conhecesse, muito menos Frederick. Aquilo – ele não conseguia se referir ao vampiro como uma pessoa, pois não havia nada de humano nele – tinha uma espécie de membrana ao invés de pele, parecendo ser grudada nos ossos, e era completamente branco, de forma não-natural; não havia um único pêlo em seu corpo, seus olhos não tinham íris nem pupilas, sua boca parecia apenas um rasgo disforme no rosto, e os caninos grandes e afiados ficavam ameaçadoramente aparentes. A própria estrutura de seu corpo parecia antinatural, deformada; e não havia nada que indicasse se ele era macho ou fêmea
-- O que aconteceu com ele? – disse Edge, pois Gill era incapaz de falar.
-- Nós tiramos a parte humana dele. Obrigamos o vampiro a se revelar.
-- Como?
Dessa vez, foi a doutora Jeany que respondeu:
-- Um vampiro precisa de sangue para manter sua parte humana. Sangue humano. Quando não recebe quantidade suficiente, ou quando se alimenta apenas de sangue de outros animais, ele perde gradualmente essa parte. Estamos estudando esse processo há muitos anos e ainda não há nada conclusivo, mas acreditamos que o sangue humano serve para manter a parte humana “viva”, porque o processo de deterioração que ocorre no corpo e na mente poderia ser comparado à decomposição de um cadáver, em certos aspectos. Depois que o processo chega a um certo nível, não há como revertê-lo. O vampiro jamais consegue recuperar as informações sobre o ser humano que foi contaminado. Caso voltemos e alimentá-lo com sangue, ele desenvolverá uma nova forma humana, mas com uma identidade diferente da que tinha antes. Geralmente ele se torna um misto das pessoas de quem bebeu o sangue. Mas as quantidades precisariam ser muito grandes, nunca testamos em laboratório esse procedimento.
-- Então – disse Gill – Frederick está morto.
-- Já estava antes de fazermos isso. – disse Garvin – Como eu disse, aquele Frederick que vocês viram na foto, e que Edge conheceu, era apenas um disfarce, pois o verdadeiro estava morto há anos. Apenas tiramos o disfarce.
-- Não é possível. – disse Edge – Então quer dizer que o Bono é só um disfarce? Que na verdade é como se ele fosse um... Um robô controlado por um vampiro?
-- Sim.
-- Eu não acredito nisso! – disse Gill – Eu conheci o Bono e outros vampiros, e muitos eram ruins, mas não eram como aquilo que está ali! – ela apontou para o vampiro, que agora andava pelas paredes – Eles têm uma personalidade própria, eles pensam e tem opiniões! Como aquilo ali poderia simular um comportamento humano, se ele não tem nada de humano? Como algo irracional pode simular e controlar uma coisa racional?
-- Isso é algo que ainda está sendo estudado. – disse Jeany – O que sabemos é que o que você disse, Gill, a personalidade que o vampiro demonstra, na verdade é apenas simulada com base na personalidade da pessoa que foi transformada. Tanto é assim que, ao perder o corpo humano, o vampiro precisa absorver a personalidade de outras pessoas para voltar a ter uma forma humana. Se esse processo acontecer diversas vezes, o mesmo vampiro pode se tornar centenas de pessoas diferentes ao longo de sua vida.
-- Eu não posso acreditar nisso. – Edge estava ficando desesperado – O Bono é muito mais do que isso. Eu convivi com a família dele, se os vampiros fossem apenas o que você disse, eles não conseguiriam criar uma comunidade como aquela que eu conheci. E ele tinha... Sentimentos. – ele ficou vermelho – Ele tinha as pessoas que ele amava, que eram importantes para ele. Ele tem uma família, uma filha, uma esposa...
-- Você não vai acreditar até ver ele sofrer o processo. – disse Garvin – Nós vamos privá-lo de sangue, e você vai ver o que vai acontecer.
-- Vão transformar o Bono em um vampiro puro? – disse Gill.
-- Sim. Mas se querem mais uma prova de que o que estamos dizendo é verdade, porque não perguntam ao próprio Bono? Peçam a ele para explicar a vocês a natureza de um vampiro. Perguntem se o que eu disse é verdade ou não.
-- Eu posso falar com ele?
-- Claro, vá.
Quase correndo, Edge foi até a cela de Bono. O outro estava dormindo, encolhido junto a Ali no canto mais escuro da cela.
-- Bono. – Edge chamou, batendo de leve no vidro – Está me ouvindo?
Bono despertou, olhando para os lados, confuso. Seus olhos estavam brancos como os do vampiro que Edge vira na outra sala, e isso o assustou um pouco; mas, ao ver Edge, a cor dos olhos de Bono foi escurecendo até se tornar novamente azul.
-- Edge... – ele se levantou com dificuldade – Achei que seus pais não fossem deixar você vir aqui.
-- Eles me deixaram para que eu possa te perguntar uma coisa.
-- Que coisa?
-- Há um outro vampiro aqui. O Frederick. Ele está preso em uma cela do segundo andar.
-- Frederick está vivo? – Bono subitamente se animou – Ele foi capturado há meses, achamos que já tivesse sido morto! Como ele está? Você o viu?
-- Vi, e ele está... Fizeram uma coisa com ele. Uma coisa... Horrível.
-- O que?
-- Eles o deixaram sem sangue, não o deixaram beber nem uma gota de sangue humano desde que foi preso, e ele virou... Virou um monstro. Eu o vi, ele está... Irreconhecível.
Demorou para que Bono dissesse alguma coisa; ele parecia não ter entendido o que Edge dissera.
-- Eles fizeram... O que?
-- Eles deixaram Frederick sem beber sangue para que ele se tornasse um vampiro puro. Tiraram a parte humana dele.
-- Não. Não é possível, nem os caçadores fariam uma coisa como essa. É... É horrível demais, é monstruoso...
-- Mas fizeram. E meu pai me disse que na verdade a parte humana de um vampiro não passa de um disfarce, que o que ele é realmente é aquela coisa, aquele monstro... Que vocês não têm consciência, que tudo, seus pensamentos, sentimentos, tudo é na verdade uma simulação, com base naquilo que vocês eram antes de serem mordidos. Que o verdadeiro Bono morreu há décadas, e que você não passa de um monstro fingindo ser humano.
-- Não! – Bono deu um soco no vidro, com tanta força que fez as paredes tremerem, e Edge se afastou alguns passos – Isso é mentira! Os caçadores não sabem nada sobre nós! Quem eles pensam que são para julgarem se temos ou não uma alma, se o que sentimos é verdade ou não? Eles não têm o direito de nos usarem como animais de laboratórios! Não tinham o direito de fazer isso com Frederick, eles mataram ele da forma mais cruel que alguém poderia conceber!
-- Eu não sei no que devo acreditar. – Edge tinha lágrimas nos olhos – O que ele me mostrou, aquele vampiro... Não havia nada de humano naquilo. E se aquilo estava fingindo ser Frederick esse tempo todo...
-- Aquilo não estava fingindo ser Frederick. Aquilo vivia dentro de Frederick, e ao negarem sangue humano a ele, Frederick não teve forças para contê-lo e aquilo tomou o controle. Eu sei o que sou, Edge, sei o que sinto e o que penso. Existe sim uma coisa como aquela dentro de mim, mas eu não sou aquilo! Se pudesse, me livraria desse monstro, mas eu não posso! E ele não me controla, eu é que controlo ele!
-- E como vamos saber que o que está dizendo não é apenas o vampiro dentro de você tentando nos convencer de que ainda é um pouco humano?
Quem falara fora Garvin, que chegara silenciosamente. Edge olhou dele para Bono.
-- Não tem como saber. – disse Bono, com um olhar que indicava que ele mataria Garvin se pudesse – Da mesma forma que não posso saber se o que está dizendo vem de você ou se está apenas repetindo o que está programado em sua mente. Mas quem você pensa que é para dizer quem aqui tem consciência e quem não tem?
-- Temos estudos, vampiro. – Garvin se aproximou da cela – Estamos estudando isso há mais de trinta anos. Temos um grande número de evidências que indicam que tudo o que eu disse é verdade.
-- Pro inferno com as suas evidências! O que são trinta anos? Há trinta anos eu já era um vampiro há décadas! – ele se afastou do vidro e encarou Garvin – A culpa de tudo isso é sua. Você começou tudo. Se eu tivesse te matado no início, não teria trago tantos assassinos para cá.
-- Não são assassinos, e você deveria ter mais respeito por eles, garoto, porque esses caçadores salvaram dezenas de vidas que a sua “família” teria tirado.
-- Em primeiro lugar, não me chame de “garoto”. Você é uma criança perto de mim. E é tão arrogante quanto qualquer humano jovem. – ele se aproximou novamente; Edge percebeu que Ali acordara, e que estava agora sentada, observando atentamente – Você é o garoto aqui. Todos vocês. Os caçadores com os seus brinquedos, torturando os vampiros como se eles fossem ratos de laboratório. Vocês não tinham o direito de fazer o que fizeram com Frederick. Eu vi aquele menino nascer, eu o vi crescer e se tornar um vampiro. O pai dele foi capturado antes de ele se transformar, e eu fui quase um segundo pai para ele, o ensinei muita coisa. Coisas que você só vai aprender daqui a vinte anos, se tiver sorte. E vocês destruíram tudo isso, arrancaram a mente dele como se fosse tudo uma... Uma mentira, um disfarce, como se não significasse nada. Quem vocês pensam que são para decidir o que se passa na mente de outra pessoa? Vocês não são nada. Não passam de monstros. Tudo o que disse é apenas uma desculpa para matar vampiros, mesmo que eles não façam nada contra vocês.
Edge se afastara um pouco, com medo. Aquela discussão estava ficando mais tensa do que ele gostaria.
-- Se vocês tivessem realmente alguma coisa de humano – disse Garvin – jamais matariam outras pessoas, mesmo que sua sobrevivência dependesse disso.
-- Pois eu decidi me tornar vampiro quando ainda era humano, e não dei muita importância para esse detalhe.
-- Você quer me convencer? Me dê uma única prova de que você e os outros não são apenas marionetes controladas por monstros famintos por sangue, e talvez nós poupemos vocês de se tornarem o que Frederick se tornou.
-- Eu poderia lhe dar mil provas, e você não aceitaria nenhuma delas. Mesmo que eu diga que sou o mesmo Bono que era quando era humano, e que te explique todos os meus pensamentos e as coisas que sinto, você diria que tudo não passa de uma simulação. Encontraram o argumento perfeito, para que nós não possamos contradizer vocês.
-- Seja como for, estamos fazendo um bem para a humanidade. – Garvin lhe deu as costas – Você ficará preso aqui, e enquanto for capaz de responder às nossas perguntas, nós tentaremos fazer você falar tudo o que sabe para que possamos capturar os vampiros que restaram. Quando perder sua consciência, nós o manteremos por um tempo, para estudarmos seu comportamento, e então o eliminaremos.
-- Eu não vou me tornar um vampiro puro. Prefiro morrer antes.
-- Morrer seria pouco para pagar o que você fez com meus filhos.
Garvin saiu. Bono suspirou e se apoiou na parede. Ali disse:
-- Eles tiraram a alma de Frederick?
-- Sim. – ele olhava para o teto – E vão fazer o mesmo com todos nós. Vão arrancar nossa parte humana.
-- Por que não nos matam de uma vez?
-- Porque querem nos usar para experiências. E porque aquele caçador me culpa por ter roubado os filhos dele.
Edge, que se mantivera calado até então, disse:
-- Sinto muito. – ele se aproximou novamente da cela – A culpa de tudo é minha.
-- Claro que não. – disse Bono – Não diga bobagens.
-- É minha culpa, sim. Você devia ter matado meus pais, mas não matou por minha causa. E por causa disso, eles chamaram outros caçadores, e sua família foi capturada e você está preso aqui, agora.
-- Você não tem culpa pelas decisões que eu tomei. Podia ter matado seus pais mesmo com você me pedindo para não fazer isso. Eu sabia do risco quando me envolvi com você. Você não tem culpa se eu me apaixonei.
-- Eu não quero te perder. – ele tocou novamente no vidro, começando a ficar desesperado por não poder tocar em Bono – Não posso deixar eles fazerem isso com você, Bono. Não posso viver sem você.
Bono ficou um tempo olhando para o chão.
-- O que fizeram com Eve?
-- Eve? Eu não sei direito. Disseram que iam levá-la para um lugar seguro, e que iam entregá-la para um casal humano.
-- Humanos? – Ali se levantou – Não podem fazer isso! Minha filha não pode ser criada no meio de humanos! Vão dizer mentiras a ela, coisas ruins sobre nós! Vão fazê-la ficar do lado dos caçadores!
-- Eu faria qualquer coisa para recuperar Eve e tirar vocês daqui, mas... Eles são muitos, eu não posso...
-- Não se preocupe com a gente. – disse Bono – Eu só estou preocupado com a minha filha. Você tem que encontrá-la e levá-la embora, Edge. Se não quiser deixar sua família, então ao menos entregue ela para os meus pais. Por favor. Não deixe minha filha se esquecer de nós.
-- Eu não sei como. Você sabe que eu sou fraco demais. Não posso lutar contra os caçadores. E se tentar fazer algo contra a vontade deles, eles vão me matar.
-- Por favor, Edge. Eu sei que você consegue. Você prometeu que ia proteger a Eve quando eu não pudesse fazer isso. Você é quase um pai para ela.
-- Eu vou tentar. – embora ele não tivesse a menor idéia do que fazer para encontrar Eve e levá-la para os vampiros – Vou fazer de tudo para tirar ela dos caçadores.
-- Obrigado. – Bono ficou um tempo em silêncio – Eu quero te pedir mais uma coisa.
-- Pode pedir.
-- Não importa o que aconteça... Não importa o que eu me torne, ou o que eles façam comigo... Não acredite no que os caçadores dizem sobre nós. Nós não somos monstros. O que eu sinto por você é real, meus pensamentos são reais. Eu sou o mesmo que era antes de me tornar um vampiro. Mesmo que eles me matem ou me transformem em um vampiro puro, o que houve entre nós foi real, a minha vida foi real, como humano e como vampiro. Não deixe eles fazerem você duvidar disso.
Por alguns momentos, Edge realmente duvidara, ao ver o que Frederick se tornara; mas agora, olhando para Bono, ele não podia acreditar que tudo o que ele era fosse apenas uma simulação criada por um monstro para conseguir mais vítimas.
-- Eu sei. – disse Edge – Acredito em você.
-- Obrigado. E eu quero que você... Não venha mais me ver.
-- O que!? Por quê?
-- Porque eu não quero que você me veja neste estado. Você não pode fazer nada por mim aqui. Por favor, Edge, não volte mais aqui.
-- Mas...
-- Por favor.
-- ... Está bem. Eu... Não vou mais vir aqui.
-- Obrigado.
-- Então, eu... Eu vou embora.
-- Sim.
-- Adeus, então.
-- Adeus.
Edge saiu dali, indo lentamente para os andares de cima, até chegar ao seu quarto. Não vira sua irmã no caminho, não tinha a menor idéia de onde ela estava. Ficou parado, diante de sua cama, olhando o vazio. A única coisa que via era os olhos de Bono, como fantasmas em sua mente.
-- Você demorou. – ele ouviu a voz de Garvin, atrás dele – E então? Agora entende o que é um vampiro?
Ele não respondeu. Continuou olhando o vazio. Não conseguia entender o que seu pai dizia, não conseguia entender onde estava nem o que estava fazendo ali.
-- Edge? – Garvin se aproximou – Está me ouvindo?
Garvin tocou no ombro de Edge, e este não se moveu.
-- Você está bem? O que o vampiro falou pra você?
Mas Edge já não ouvia a voz de Garvin, apenas ecos distantes. Sua visão perdeu totalmente o foco, tudo escureceu, e ele desmaiou.
* * * * *
Ele acordou encharcado de suor. Apesar disso, tremia de frio, e sentia calafrios pelo corpo. Não conseguia pensar direito, não conseguia entender o que estava acontecendo. Havia pessoas ao redor, pessoas que ele não conhecia. Uma mulher o segurou e tentou lhe dar uma injeção, mas ele se debateu, a empurrando e tentando se levantar. Dois homens tentaram segurá-lo também, mas ele lutava, tentando desesperadamente sair dali. Sua cabeça doía tanto que parecia prestes a explodir, e ele começou a gritar, querendo que a dor acabasse, que aquelas pessoas o deixassem em paz.
De repente, alguém muito mais forte o segurou e o imobilizou. Edge continuou gritando, mas sentiu uma agulha furar sua pele, e pouco depois uma espécie de dormência se espalhou por todo o seu corpo. Ele não conseguia mais se mover, e foi posto novamente na cama. Após alguns minutos, seus pensamentos começaram a clarear. Ele percebeu que toda a sua família estava ao lado de sua cama, olhando com um ar muito preocupado para ele. Havia outras pessoas ao redor, que pareciam médicos. Alguns Edge reconhecia como caçadores, outros ele nunca vira.
-- O que aconteceu? – ele perguntou, tentando novamente se levantar, e descobrindo que era impossível comandar seu próprio corpo.
-- Você está doente. – disse Garvin – Trouxemos médicos para cuidar de você.
-- Doente...
Gwenda colocou a mão em sua testa e em seu pescoço, e então disse:
-- A febre diminuiu um pouco, mas ainda está quente.
-- Febre? – Edge não estava entendendo – Por que estou com febre?
-- Estamos cuidando de você, deve melhorar em poucos dias. – disse Garvin, enquanto Dick saía do quarto, parecendo incomodado por ficar muito tempo perto de Edge.
Gill também olhava para Edge com preocupação. Edge começou a sentir uma formigação no pescoço, e passou a mão por ele, pelo lugar em que Bono costumava mordê-lo. Só de pensar nisso ele sentiu um arrepio: daria a alma para sentir aquilo novamente, sentir Bono rasgando sua pele com cuidado, entrando nele, bebendo avidamente seu sangue...
Ao pensar nisso, ele sentiu sua temperatura aumentar ainda mais, e começou a ter dificuldades para respirar. Gill disse:
-- O que houve? Está se sentindo mal?
-- E-eu sinto... Tanta falta... – ele se encolheu e abraçou o travesseiro – Tanta falta dele...
Os três se olharam. Garvin disse:
-- Gill, fique aqui tomando conta do seu irmão. Eu e sua mãe precisamos conversar com o médico.
-- Tá bom.
Eles saíram. Gill se sentou ao lado de Edge e, ao ter certeza de que estavam sozinhos, disse:
-- Maninho, você não pode ficar doente agora! Temos que tentar salvar o Bono e os outros vampiros que estão presos!
-- Eu não sei por que estou doente. – Edge estava começando a tremer – Não me lembro de ter ficado doente.
-- Não é uma doença normal. – ela baixara a voz – Mamãe e papai não querem que eu diga. Você está assim porque está viciado em ser mordido.
-- Ahm? Como assim?
-- O médico explicou que é como uma droga. Quando um vampiro te morde várias vezes, você fica viciado, seu corpo pede pra ser mordido. Nós tivemos que tirar um pouco do seu sangue, porque você está produzindo mais do que o necessário. E os sintomas são iguais aos de uma crise de abstinência.
Por um momento Edge pensou em dizer que aquilo era loucura; mas só de ouvir a palavra “morder”, ele se lembrou de Bono o mordendo, e a febre aumentou ainda mais.
-- E como se cura isso?
-- Passa com o tempo. Eles estão te dando remédios pra te manter sedado, pra que você não fique muito agressivo.
-- Eu não posso ficar sedado. Bono me pediu ajuda pra resgatar Eve e levá-la para os pais dele, e eu jurei que ia fazer de tudo para conseguir isso.
-- Quem é Eve?
-- É a filha deles. Os caçadores a pegaram, mas eu não sei onde ela está.
-- Eles devem ter levado ela para alguma família de caçadores. Pode estar na casa da cidade.
-- Que casa da cidade?
-- A nossa casa. Papai deixou uma família de caçadores morando ali, e eles cuidam das vítimas. Eve deve estar lá também.
-- Temos que tirar ela de lá, Gill. – ele segurou o braço dela – Temos que entregá-la para os pais do Bono.
-- Não. O que temos que fazer é tirar o Bono daqui, e deixar que ele mesmo salve Eve.
-- Não vamos conseguir, ele está sendo vigiado e há muito caçadores. E ele me pediu pra não ir mais vê-lo. Disse que agora vai ficar cada vez pior, e não quer que eu o veja assim.
-- Isso é uma grande bobagem! Se eu fosse escutar metade das besteiras que o Bono me diz, já teria morrido, ou ele já estaria morto. – ela se levantou – Eu estou com muita raiva dele por ele ter mentido pra mim e me enganado. Mas eu ainda gosto dele, e mesmo que não gostasse, não é certo o que os caçadores estão fazendo. Eles não têm o direito de torturar e matar os vampiros dessa forma. Eu vou ajudar eles, ou vou morrer tentando, e você tem que me ajudar, Edge!
Edge ficou olhando para ela, pensando em como o ar decidido dela o fazia se sentir um completo covarde. Então pensou em tudo o que acontecera entre ele e Bono, em como sentia falta dele, e sua única certeza era de que preferia morrer a ver ele ser torturado e morto na sua frente.
-- Você tem razão. – ele disse, afinal – Não importa o que o Bono diga, nós temos que salvá-lo. Vamos tirar ele daqui ou vamos morrer tentando!
-- Isso, Edge! – ela bateu palminhas – Agora, nós precisamos de um plano.
-- Eu tenho uma idéia. – ele se sentou na cama e se levantou em seguida – Nós podemos...
Mas mal ele ficara de pé, tudo ficou escuro, e ele desmaiou novamente.
* * * * *
Edge se lembrava de flashes, da sensação de pessoas ao redor, de estar sendo carregado de um lugar para o outro; mas essas lembranças eram mais vagas do que sonhos. Quando afinal acordou, estava em seu quarto, deitado, e seu pai estava ao seu lado.
-- Pai...?
Garvin olhou para ele e não disse nada, como se estivesse esperando alguma coisa. Edge olhou em volta, confuso:
-- Que horas são? O que aconteceu?
-- Qual é o seu nome?
-- Que? – ele balançou a cabeça, confuso – The Edge. Digo, David Evans.
-- Seu nome completo.
-- David Howell Evans.
-- Quantos anos você tem?
-- Dezesseis.
-- Que dia é hoje?
-- Não tenho a menor idéia.
O outro balançou a cabeça, parecendo satisfeito.
-- Acho que você está melhor.
-- O que aconteceu?
-- Você esteve muito doente nos últimos dias. Tivemos que te deixar dormindo para que você não se machucasse. Nas vezes em que acordou, você não reconhecia as pessoas e nem sabia quem era. Mas parece que está melhor. Era esperado que acordasse em breve.
Edge lembrava-se da última conversa com sua irmã. Parecera que fora há poucos minutos, mas ele imaginava que tivessem se passado alguns dias. Estava muito preocupado com Bono; sem sangue, ele devia estar se deteriorando muito rápido.
-- A última coisa que me lembro – Edge disse – é de estar conversando com Gill aqui. Eu já estava doente.
-- Sim, logo depois disso você desmaiou.
-- E quanto tempo fiquei inconsciente?
-- Menos de dois meses.
-- O que!? – ele tentou se sentar na cama, mas estava muito fraco e não conseguiu – Esse tempo todo? Como é possível?
-- Nós tivemos que te deixar em uma espécie de coma induzido. Você estava muito agressivo, fora de controle. Mas as coisas devem estar melhores agora.
-- Como está... – ele ia perguntar de Bono, mas mudou de idéia – Como está Gil? Ela está bem?
-- Gil está ótima. Quer vê-la?
-- Sim, por favor. Quero falar com ela.
-- Certo, vou chamá-la. – ele se levantou – Ah, tenho uma boa notícia. A cidade está limpa. Não há mais vampiros aqui.
-- Mesmo? – Edge tentou não demonstrar nenhum sentimento em sua voz – Que bom. Vocês fizeram um bom trabalho.
Garvin saiu, e pouco depois, Gil chegou.
-- Edge, eu achei que você não fosse acordar nunca mais! – ela praticamente se jogou sobre ele, o abraçando – Que coisa horrível fizeram com você!
-- Do que você está falando?
-- Eu tentei impedir de todos os jeitos, mas eles não me deixavam nem chegar perto de você. – ela olhou para a porta, que estava fechada, e só continuou após ter certeza de que não havia ninguém escutando a conversa – Eles te amarraram, te deixaram sedado, para que você não tentasse fugir nem machucasse as pessoas... Mas eles não tinham o direito de te tratar como te trataram! Eles testaram medicamentos em você, fizeram experiências... Te machucaram...
-- Isso não importa. – ele passou a mão no rosto dela, para acalmá-la – Não se preocupe comigo, eu estou bem agora. A única coisa que me preocupa é o Bono. Como ele está?
-- Eu não sei. – ela tinha lágrimas nos olhos – Eles isolaram toda a área subterrânea. Eu não tenho autorização para entrar lá desacompanhada, e todas as vezes que pedi ao papai que me deixasse ver o Bono, ele se recusou. Eu tenho investigado, descobri que Eve está mesmo na nossa antiga casa, mas não tenho autorização para sair daqui. Eles parecem saber que estamos tentando ajudar o Bono, e eu não entendo como! Existe um caçador aqui que consegue ler pensamentos, mas Bono me disse que ninguém conseguia ler os meus!
-- Talvez eles não tenham lido seus pensamentos. Talvez estejam tomando esses cuidados apenas por precaução. – ele se sentou na cama, com bastante cuidado para não ficar tonto nem desmaiar novamente – Temos que agir depressa. Essa noite iremos ao subterrâneo ver como Bono está, para sabermos como agir.
-- E se ele estiver... – ela hesitou – Se ele tiver virado...
-- Não. Ele não virou um vampiro puro. Ele sabe que tem que resistir, tenho certeza de que vai lutar até o último minuto para não perder a consciência completamente.
-- E como entraremos lá?
-- Nós daremos um jeito.
* * * * *
Havia caçadores acordados na casa o tempo todo. Porém, durante um período da madrugada, parte do subterrâneo ficava vazia. Apenas as portas de acesso eram vigiadas. E Edge estava disposto a passar pelos vigias a qualquer custo.
Eles se esconderam em um pequeno quarto vazio, o mais próximo possível de um dos elevadores, que era vigiado por uma caçadora pouco mais velha do que eles. Após alguns minutos de intensa concentração, Gil conseguiu ler os pensamentos dela. Ficaram vigiando, até que, depois de quase meia hora, Gil disse:
-- Ela vai no banheiro agora.
-- No banheiro? Como é que um vigia abandona seu posto para ir no banheiro?
-- Ela está aqui obrigada, acha essa vigia totalmente sem sentido. Afinal, estamos dentro de casa e os vampiros não podem entrar aqui. E os que estão presos não podem sair.
-- Realmente. – Edge ficou sério – Ninguém espera que o ataque venha de sua própria casa.
-- Você quer desistir?
-- Não.
De fato, pouco depois, a garota saiu de seu posto, indo para o banheiro. Imediatamente Gil e Edge saíram de seu esconderijo e entraram no elevador. Antes que a garota voltasse, eles estavam no subterrâneo.
-- Nós vamos ter problemas para sair daqui. – disse Gill.
-- Depois a gente pensa nisso. – ele a segurou pela mão – Vamos.
Nenhuma luz estava acesa, mas Gill podia ver no escuro, e foi indo na frente. Edge acendeu uma pequena lanterna, com a luz bem baixa, apenas para não tropeçar em nada. Os dois seguiram pelos corredores escuros, em meio às celas. Ele via vultos de vampiros que estavam presos ali, mas não se atrevia a olhar diretamente. Afinal chegaram até a última cela, que era a de Bono e Ali.
-- Bono? – Edge chamou, em um tom baixo para não assustá-lo, e apontou a lanterna para dentro da cela.
-- Ah, não... – ele ouviu Gill murmurar.
Dentro da cela, ele podia ver alguém encolhido em um canto. Um ser muito parecido com o vampiro que Garvin mostrara a eles há algum tempo atrás, embora com traços mais humanos. Tinha a pele muito branca e nenhum pêlo no corpo, e parecia estar dormindo.
-- Meu Deus. – Gill se virou para Edge, falando em voz baixa – A gente chegou tarde.
Edge não conseguia falar nada. Deixou a luz da lanterna ir iluminando o resto da cela, e quando ela bateu na região bem à sua frente, ele deu um grito: outro vampiro estava ali, com características semelhantes à do outro, embora com alguns pêlos e traços não tão agressivos. Estava com as duas mãos espalmadas contra o vidro, olhando fixamente para Edge, com olhos completamente brancos, sem íris nem pupilas. Tanto ele quanto o vampiro encolhido no canto estavam nus, mas o outro era de sexo indefinido, enquanto este ainda era possível ver que era um homem.
A aparição fora tão repentina que Edge deu um grito e deixou a lanterna cair. A pegou depressa e a apontou novamente para o vampiro, que continuava na mesma posição, embora parecesse incomodado com a luz. Gil se afastara alguns passos.
-- B-bono? – Edge disse, tentando manter o controle e dizendo a si mesmo que estavam seguros, uma vez que as celas estavam fechadas – É você?
O vampiro balançou a cabeça, dizendo que sim. Olhava para Edge com certa curiosidade, o estudando atentamente.
-- Você consegue entender o que eu digo? – disse Edge.
Dessa vez, ele não respondeu. Ficou olhando para ele, sem expressão.
-- Bono – Gil se aproximou – você está aí? Ainda consegue entender o que a gente diz?
-- Vão embora. – ele disse, com uma voz que Edge jamais reconheceria como a de Bono – Saiam daqui.
-- Não iremos. – Edge tocou no vidro, a despeito do medo que sentia – Nós viemos te tirar daqui e não vamos desistir até libertarmos você e Ali.
-- Se você abrir essa cela - ele falava com visível dificuldade – nós vamos matar vocês e quem mais aparecer aqui.
-- Eu não acredito nisso. Eu confio em você, sei que você nunca me machucaria.
-- Não seja idiota! – ele bateu com tanta força no vidro que a casa inteira pareceu tremer – Olhe pra mim! Quanto tempo você acha que tenho até não conseguir mais falar ou pensar? Nada do que fizer agora vai poder reverter o processo! Olhe para Ali, ela não me reconhece mais, não reconhece o próprio nome!
Com os gritos de Bono, o outro vampiro – Ali – acordara. Antes que Edge se desse conta, ela pulara sobre o vidro, tentando atacá-los, e agora gritava e batia com toda a força nas paredes. Bono se afastou, para que ela não o atacasse também.
-- Faça ela parar! – disse Gill, desesperada – Ela está se machucando!
Mas Bono apenas se afastou. Edge não sabia o que fazer.
-- Eu não vou desistir de você. – disse Edge – Eu vou lutar contra todos os caçadores e vou te tirar daí e vou dar todo o meu sangue para que você e Ali voltem a ser o que eram. Eu sei que você faria o mesmo por mim.
-- Não perca seu tempo. Mesmo que nós bebêssemos o sangue de cem pessoas, jamais voltaríamos a ser como éramos. O processo é irreversível.
-- Mas eu vou tentar. Eu não vou simplesmente te abandonar aqui e deixar você morrer. – ele tocou no vidro, a despeito de Ali continuar batendo nas paredes – Eu te amo, Bono. E eu sei que você só consegue manter sua parte humana ainda porque também me ama.
Bono deu um suco no vidro com tanta força que Edge foi jogado para trás e caiu no chão.
-- Amor? – ele parecia furioso – Vampiros não amam. Achei que já tivesse entendido isso.
-- Isso... É mentira. – ele se levantou, com a ajuda de Gill – Eu vivi tempo demais com você. Eu sei o que você sente por mim.
-- Você é tão tolo. Humano. – a voz de Bono ficava cada vez mais não-humana – Vampiros não amam, vampiros não sentem nada. Eu não queria você, queria o seu sangue. Você era só um escravo, uma fonte inesgotável de sangue. – ele sorriu de um jeito debochado – Foi tão fácil. Até sua irmãzinha foi mais difícil de seduzir do que você. Na primeira vez que você conversou comigo eu li seus pensamentos. A gente nem se conhecia, e você já estava louco pra dormir comigo, como uma vadiazinha que fica se atirando pro primeiro homem que vê. E na primeira vez que eu disse “eu te amo”... Não, eu nem precisei dizer, eu apenas insinuei que poderia gostar de você... E você já se entregou completamente a mim. Tão tolo, humano. Como se a palavra “amor” significasse alguma coisa. – ele se afastou – Eu devia ter te matado logo, não preciso de alguém tão fraco quanto você. Caçador ridículo.
Edge ficou olhando para ele. Não conseguia dizer nada, sua mente tomada pelas palavras que Bono dissera.
-- Não escuta ele, Edge! – disse Gill, o segurando pelo braço – Não é o Bono que está dizendo isso, é o vampiro! Ele está fazendo de propósito, para que a gente vá embora e desista de salvar ele! Você não pode acreditar nele!
-- Não. – Edge murmurou – Papai estava certo. Tudo, as emoções, os sentimentos... É só um disfarce. Um vampiro em um disfarce humano.
-- Não! Eu não acredito nisso! E acredito que a gente ainda possa salvar o Bono! – ela se voltou para Bono – Você pode dizer o que quiser, você pode enganar o Edge e fazer ele desistir, mas não pode enganar a mim! Eu vou tirar vocês daqui, Bono, e não só por você, mas por tudo o que eu acho certo! Eu posso ler sua mente, e sei que os sentimentos e os pensamentos da sua parte humana são verdadeiros, não importa o que o vampiro diga!
Ele a olhou com desprezo.
-- Saia daqui, criança humana. – ele se afastou para dentro da cela – Você não me serve mais.
Nesse momento, as luzes se acenderam. Bono e Ali gritaram como se estivessem sob a luz do sol, e se encolheram no fundo da cela, se debatendo e tentando se proteger. Gill e Edge se voltaram para trás, e ali estava Garvin, acompanhado de mais dois caçadores.
-- Então – ele disse – parece que pelo menos Edge entendeu o que é um vampiro.
Os dois nada disseram. Garvin se aproximou.
-- Acham que não sabíamos o que estavam planejando? Estamos vigiando vocês o tempo todo. Só deixei que chegassem até aqui porque sei que era seguro e que vocês precisavam ver com seus próprios olhos o que acontece quando a parte humana do vampiro está se desfazendo.
-- Nada do que disserem vai me fazer acreditar nisso. – disse Gill – Eu sei que o vampiro realmente é um monstro, não tem sentimentos, mas tudo o que a parte humana diz e pensa é verdadeiro. Mesmo que Bono suma, e que só reste o vampiro, eu sei que ele existiu de verdade, que tudo o que eu vi dele não era só um disfarce.
-- Não, Gill. – disse Edge – Ele está certo. O Bono que a gente conheceu nunca existiu de verdade. Era só um disfarce. Ele só usou a gente.
-- Edge, não acredito que está dizendo isso! Você sabe melhor do que ninguém que o Bono era real!
-- Você é muito jovem, Gill. – disse Garvin, colocando a mão em seu ombro – E muito ingênua. Seu irmão é mais velho, e parece que finalmente está criando algum juízo. É mais fácil para ele entender.
-- Vamos sair daqui. – Edge disse – Eu não quero continuar nesse lugar cheio de vampiros.
Eles saíram dali, Edge na frente, e Gill praticamente arrastada por seu pai. Os vampiros só pararam de gritar quando as luzes foram novamente apagadas.
* * * * *
-- Estou tão feliz por você ter entendido, Edge. – Gwenda o abraçou – Fiquei com tanto medo de que você nunca se recuperasse.
-- Eu tinha certeza de que ele superaria. – Garvin sorria, apoiado na mesa e olhando para Edge – Ele é um caçador. Só se deixou enganar daquela forma pelo vampiro porque ainda é muito jovem, mas parece que finalmente está se tornando um adulto. E eu espero que Gil um dia possa entender também.
-- Nunca. – Gil estava sentada no sofá, abraçada a uma almofada, e com os olhos vermelhos – Nunca vou esquecer o Bono. Nunca vão me fazer acreditar que ele não existia.
-- Ela vai se conformar com o tempo. – disse Edge – Agora eu preciso dormir. Isso tudo me deixou muito cansado. – ele suspirou – Talvez dormindo eu possa esquecer tudo isso.
-- Pode ir, querido. – Gwenda lhe deu um beijo – Boa noite. Qualquer coisa nos chame.
Edge foi para o seu quarto e se deitou na cama, mas não dormiu. Ficou lá por muito tempo, olhando para o teto e ouvindo os barulhos da casa. Ouviu sua irmã indo dormir, em seguida seu irmão, e por último seus pais. Ouviu alguém levantar, ir para a cozinha e voltar para seu quarto em seguida. Ouviu mais alguns sons indefinidos, até que tudo ficou no mais absoluto silêncio. O tempo todo ele mantinha a mente vazia, sem pensamentos.
Depois de um tempo, ele se levantou. Em silêncio, e ainda mantendo qualquer pensamento claro o mais longe possível de sua mente, ele atravessou a sala e abriu a porta, saindo para a varanda. A noite estava nublada e muito fria, e a rua estava deserta. Ele respirou fundo e permitiu que os pensamentos voltassem à sua cabeça, sentindo-se um pouco amedrontado por estar sozinho ali.
Mas logo ele não estava mais sozinho. Sem som algum, sem o menor movimento do ar ao redor, centenas de vampiros se materializaram ali, ao redor dele. À sua frente, estavam os pais de Bono.
Iris se aproximou de Edge, silenciosamente, e Edge agradeceu por ser ela e não o pai de Bono. Os dois se olharam por algum tempo, como se ele pudesse conversar por telepatia; e então ele disse, em um tom humilde:
-- Minha irmã está do nosso lado. E ela é só uma criança.
-- Nós sabemos.
-- Promete que não vão machuca-la?
-- Ninguém tocará nela.
Edge balançou a cabeça, desviou o olhar por alguns momentos, e então disse:
-- Vocês podem entrar.
Um a um, a começar pelos pais de Bono, os vampiros foram entrando na casa. Em silêncio, sem som de passos ou vozes. Apenas depois de alguns minutos sons vieram de dentro da casa, gritos, sons de coisas se quebrando, de lutas que logo eram interrompidas. E então o cheiro de sangue logo tomou o ar, pesado, enjoativo. Edge olhava para o interior escuro da casa, de onde vinham os sons, mas não se atrevia a entrar para ver o que estava acontecendo.
Mas isso durou apenas alguns minutos. Logo vários caçadores surgiram na sala, correndo, fugindo ou lutando contra vampiros. Ele viu um dos cientistas que estudavam os vampiros passar correndo, e em seguida ser derrubado por três vampiros, que se jogaram sobre ele e sugaram até a última gota de seu sangue. O mesmo ocorreu com mais algumas dezenas de caçadores, e os poucos que conseguiam fugir para a varanda eram pegos pelos vampiros que esperavam do lado de fora. Edge não suportou mais ficar ali, sem saber o que estava acontecendo, e entrou na casa.
Por onde quer que ele fosse, havia poças de sangue no chão. Ele correu para o quarto de Gil, mas ela não estava ali; correu para o quarto de Dick, e lá havia dois corpos no chão que ele não pôde identificar, pois vários vampiros estavam sobre eles. Edge engoliu em seco, sem querer verificar se um dos corpos era ou não o de seu irmão, e correu para o quarto de seus pais, mas não havia ninguém ali. O barulho maior vinha na direção do porão, onde ficavam os laboratórios; ele correu naquela direção, mas bateu de frente no corredor com ninguém menos do que Bono.
Bono estava um pouco mais humano do que há poucas horas atrás, e seu corpo estava coberto de sangue. Os dois pararam por um momento e se olharam; e então Bono pulou sobre Edge, tentando lhe morder.
-- Não, Bono! – Edge gritou, tentando se defender – Sou eu, Edge!
Mas Bono não entendia o que ele dizia. Quando estava prestes a lhe morder – e faria isso de tal forma que Edge não teria a mínima chance de sobrevivência – foi arrancado de cima dele por Bob, que o jogou contra a parede.
-- S-senhor Hewson... – Edge murmurou, assustado.
-- Ele e Ali devem ir para a rua. – Bob disse – Eles precisam de uma quantidade muito grande de sangue.
Edge balançou a cabeça, concordando. Saiu correndo atrás de Bono, que já saíra da casa, parando apenas por um momento para pegar uma barra de ferro que estava no chão, e que seria útil caso precisasse se defender. Viu Bono correr pela rua em uma velocidade maior do que poderia alcançar, mas foi atrás mesmo assim. No meio do caminho, porém, se deparou com seu irmão, que acabara de derrubar um vampiro.
-- Edge! – Dick olhou para ele – Achei que tinham te matado! Como você escapou?
Sem saber o que dizer, Edge apenas balançou a cabeça e saiu correndo, tentando recuperar a pista de Bono. Dick ficou parado por um instante, surpreso, e então correu atrás dele e o segurou.
-- Foi você! Você permitiu que eles entrassem!
-- Me solta! – Edge tentava empurrá-lo – Eu preciso encontrar Bono!
-- Traidor! Como pôde? Você matou todos eles! – ele deu um soco em Edge que o jogou longe – Matou todos os caçadores! Você devia ter sido morto como um vampiro, porque é como eles!
-- Os caçadores tiveram aquilo que mereciam ter. – Edge se levantou – Vocês sim são monstros, não os vampiros. Vocês é que deviam ser amarrados a estacas e queimados vivos.
Dick avançou para ele, e Edge o atacou com a barra de ferro. Dick estava em nítida vantagem, pois era tão forte quanto um vampiro; mas o desespero para salvar Bono fazia com que Edge atacasse com tal ferocidade que seu irmão não estava conseguindo se defender. No meio da luta, porém, eles ouviram gritos vindos de uma rua próxima, e os dois pararam de lutar e correram para lá.
Eles chegaram até a rua, e encontraram a fonte dos gritos: duas meninas que corriam em desespero, enquanto Bono estava inclinado sobre o corpo de uma terceira garota, bebendo seu sangue. Ele levantou-se quando o sangue se esgotou, e avançou para as duas meninas que fugiam. Dick tentou correr para impedi-lo, mas Edge avançou para ele e o derrubou com um golpe da barra de ferro.
-- O que está fazendo? – Dick gritou – Ele vai mata-las!
-- Ele precisa do sangue! – Edge gritou – E a culpa disso é de vocês!
Edge bateu com toda a força na cabeça de Dick, o deixando desmaiado. Virou-se para Bono, que pegara as duas meninas ao mesmo tempo e bebia o sangue das duas, revezando entre elas. Quando o sangue de ambas acabou, ele se levantou e olhou para Edge. A cada nova vítima, ele se tornava um pouco mais humano; mas ainda estava muito longe de ser o Bono de antes.
-- Mais. – ele disse em uma voz cavernosa, indo em direção a Edge – Preciso de mais.
-- Venha. – Edge tentava não sentir medo; sabia desde o início que aquele momento chegaria – Estou aqui para isso.
Bono o segurou pelo pescoço e o imprensou contra o muro. Edge deixou cair a barra de ferro.
-- V-você deve encontrar Ali. – Edge disse, com dificuldade – Eu não sei onde ela está.
-- Eu a encontrarei.
-- Eve. Sua filha. Ela está na minha antiga casa. Você deve...
-- Filha? – Bono o interrompeu – Eu não tenho filha.
-- Claro que tem, você... Dentro de você, Bono, suas lembranças têm que estar aí, em algum lugar, você não pode ter esquecido... Você ainda é o Bono de antes, tem que ser...
-- Meu nome não é Bono. – ele jogou Edge no chão e se inclinou para cima dele.
-- É sim... Bono... – ele fechou os olhos quando Bono o fez virar a cabeça, expondo seu pescoço – Seu nome é Bono, você é casado com a Ali, você a ama... Vocês dois têm uma linda filhinha chamada Eve... E você me ama, nós...
Ele se calou quando Bono mordeu seu pescoço. Dessa vez, diferente de antes, foi muito doloroso, e ele emitiu murmúrios de dor. Mesmo sendo muito difícil falar, ele disse:
-- Nos conhecemos... Na floresta... – ele segurou nos cabelos de Bono, que haviam surgido de novo – A caverna... Com a cama... E a lua... – ele abriu os olhos, mas tudo o que viu foi o céu pesado e sem estrelas – Nós... Juntos... Para sempre...
Novamente ele fechou os olhos, e parecia estar vendo tudo de novo, a primeira vez que vira Bono, quando se beijaram na praça, quando fizeram amor pela primeira vez. As lembranças se tornaram cada vez mais apagadas, até que desapareceram, restando apenas a escuridão e um grande vazio.
* * * * *
Garvin cravou a lâmina fundo no peito do vampiro, e antes mesmo que ele desmaiasse devido ao veneno, o atirou do alto do prédio, para a escuridão profunda. Era o último que restara dos que o perseguira até ali, mas havia muito mais, soltos pela cidade.
-- Garvin! – sua esposa correu até ele – Onde estão as crianças? Eu não os encontrei!
-- Eu não sei. Não os vi desde o ataque. – ele a abraçou – Eles podem estar...
-- Não! Não meus filhos, não!
-- Mamãe! – eles se voltaram, e viram que fora Gill quem gritara, e que a garota corria para eles – Papai!
Ela não parecia ferida, mas estava em pânico. Abraçou-se à mãe, chorando incontrolavelmente.
-- Calma, querida, está tudo bem... Que bom que você está bem...
-- Cadê os maninhos?
-- Não sei, nós...
Nessa hora Dick apareceu ali também. Havia visto sinais de lutas que levavam até ali, e pelo tipo de marcas, só poderia ter sido seus pais.
-- Mãe! Pai! Gill! Vocês estão bem?
-- Sim. – disse Garvin – Mas não sabemos onde está seu irmão.
-- Morto. – ele falava com dificuldade, e havia sangue em seu rosto – Ele foi morto por Bono.
-- Não! – Gill gritou – Ele não pode estar morto, não!
-- Foi tudo culpa dele. Ele que permitiu aos vampiros entrarem na nossa casa, e depois foi atrás do Bono, e se ofereceu a ele em sacrifício. Permitiu que Bono bebesse todo o seu sangue para que voltasse à forma humana.
-- Não, Dick, não é possível. – disse Gwenda – Ele já tinha se conformado, já tinha entendido...
-- Era tudo mentira, ele estava fingindo. Acho que já estava pensando nisso há algum tempo. Eu vi com meus próprios olhos, ele me impediu de salvar duas garotas que Bono estava perseguindo, as entregou como alimento para ele.
-- Teve o fim que merecia ter. – disse Garvin, com o olhar baixo – Nas mãos de um vampiro. Um fim adequado a um traidor.
-- Como pode dizer isso? – disse Gill, afastando-se deles – Ele era meu irmão! Era parte da nossa família! Se chegou tão longe, foi por culpa de vocês, para fazer o que ele achava que era certo!
-- Cuidado, Gill. – disse Dick – Se continuar pensando dessa forma, vai acabar igual a ele.
-- Temos que voltar para a rua. – Gwenda disse – Ainda deve haver muitos caçadores vivos. Temos que encontra-los e ajuda-los a lutar.
-- Sim. – disse Garvin – Vamos.
Gill olhava para eles, sem acreditar que pudessem agir tão naturalmente depois de receber a notícia de que Edge estava morto. Balançou a cabeça e saiu correndo pelo terraço, sem saber direito aonde estava indo, mas querendo se afastar o máximo possível deles.
-- Gill, não! – Dick gritou para ela – Não se afaste da gente, é perigoso!
Mas Gill não teve tempo de pensar no que ele dissera: duas mãos a agarraram, e de repente ela estava sendo erguida no ar a uma velocidade impressionante. Foi parar no alto da caixa d’água do prédio, e quando olhou para a pessoa que a segurava, viu que era Bono.
-- Não! – Garvin gritou, correndo até a caixa d’água, mas sem ter como subir – Não toque nela!
Bono soltou Gill, a colocando no chão, e ela se afastou, com medo. Ele estava novamente na forma humana, praticamente igual à antes. Seus cabelos estavam um pouco mais escuros, talvez ele estivesse mais alto, mas eram diferenças quase imperceptíveis. Estava vestido, e usando um longo sobretudo preto; Gill se perguntou onde conseguira aquelas roupas, pois na última vez que o vira, ele estava nu.
-- B-bono...?
-- Criança humana. – ele tocou no rosto dela, olhando dentro dos seus olhos – Perdoe-me pelas coisas que disse em minha forma de vampiro. Você não deve dar atenção às minhas palavras, elas não eram verdadeiras.
Ela sentiu o medo diminuir um pouco; ele parecia ter recuperado o controle. Garvin disse:
-- Não toque na minha filha! Quem é você? Que nome usa agora?
-- O mesmo de antes. Pode me chamar de Bono, ou de Paul. Embora a boa educação diga que você deveria me chamar pelo sobrenome, uma vez que sou muito mais velho do que você. – ele pulou da caixa d’água para o terraço, deixando Gill sozinha lá em cima – Mas não espero tanto de você, caçador.
Garvin ficou olhando para ele, confuso por alguns instantes.
-- Mas... Como...
-- Como sou o mesmo de antes? Me responda você, caçador. Você, que é o conhecedor de toda a verdade. – ele olhou para as próprias mãos, com curiosidade – Mesmo entre nós, acreditava-se que após chegar ao estado em que eu estava, era impossível recuperar a consciência anterior. Um novo vampiro deveria ter surgido, não eu. Mas aqui estou, com todas as minhas lembranças e com minha aparência quase idêntica à de antes. Explique-me como isso é possível, se não temos alma e somos apenas um disfarce para um monstro faminto por sangue.
-- Isso não importa. – disse Garvin, após um momento de hesitação – Não me importa o que você é ou não é. Vocês são monstros, todos vocês. Devem ser exterminados.
-- Que bom. Obrigado por ser sincero. Me irrita quando usam argumentos falsos para nos caçar como animais.
-- Por que deixou minha irmã lá em cima? – disse Dick, já em postura de ataque – Pretende mata-la como fez com meu irmão?
Bono olhou para ele com aparente curiosidade.
-- Pelo contrário, caçador. A deixei lá porque ela é a única de vocês que continuará viva. Não quero que se machuque.
-- Acha que será fácil? – disse Gwenda, puxando sua arma – Já acabamos com muitos...
Sem que Bono fizesse um único movimento, Dick e Gwenda foram atirados longe, cada um para um lado. Ficaram caídos no chão, conscientes mas sem conseguir se mover, presos por uma força invisível. Garvin parecia quase assustado: poucos vampiros tinham aquele tipo de poder.
-- Saborearei eles depois. – Bono disse, aproximando-se de Garvin – Mas meu assunto principal é com você. Não vou esperar nem mais um segundo para te matar, caçador maldito.
Garvin puxou sua arma e disparou, mas Bono se desviou e avançou para ele. Garvin atirava muito rápido, mas o outro se movia de uma forma que era quase impossível de seguir; e em um momento em que ele se distraiu, Bono se jogou sobre ele, fazendo-o deixar cair a arma e o jogando no chão.
-- Não! – a esposa dele gritou – Garvin!
Bono o segurou pelo pescoço, mas não para mordê-lo; aparentemente, pretendia sufoca-lo ou arrancar sua cabeça. Mas de alguma forma Dick conseguiu se libertar da força invisível que o prendia, e atirou-se sobre Bono, o jogando longe e o fazendo bater contra a parede. Bono se levantou imediatamente, surpreso.
-- Conseguiu se soltar? Incrível. – ele avançou para Dick – Eu pretendia te matar depois, mas se faz tanta questão de ser agora, eu farei isso por você.
Os dois começaram a lutar, mas Dick conseguia encarar Bono quase de igual para igual. Nesse momento uma voz soou:
-- Parem!
Todos pararam. Quem gritara fora Edge, que estava parado no meio do terraço, surgido aparentemente por mágica.
-- Edge! – Gill gritou, e havia tanta felicidade em sua voz que Edge sorriu – Você tá vivo!
-- Oi, Gill.
Ele trazia Eve nos braços, e ao lado dele estava Ali, também recuperada. A aparência dela estava mais alterada do que a de Bono – ela estava ruiva – mas aparentemente continuava sendo a mesma de antes.
-- Mas como... – Dick murmurou – Ele não te matou...?
-- Talvez isso seja estranho para os humanos, mas eu não costumo matar aqueles que eu amo. – Bono disse, e foi até Edge – Minha filha. Dê ela para mim, por favor.
Edge entregou Eve, que dormia, para Bono. Ele a pegou no colo com carinho e a abraçou; então foi até Ali e tocou em seu rosto. Os dois se abraçaram em silêncio, aparentemente trocando confissões por pensamentos. Dick tentou aproveitar aquele momento para atacá-los, mas Edge se colocou à sua frente.
-- Não ouse encostar neles. – disse Edge – Se fizer isso, permitirei que ele te mate.
-- Saia da minha frente, seu traidor desgraçado! Se não foi morto pelos vampiros, será morto por nós!
Dick tentou empurrá-lo, mas, para a surpresa de todos, Edge segurou seu golpe sem nem piscar, quase por reflexo. Ficou olhando com curiosidade para Dick e para suas próprias mãos.
-- Você não parece mais tão forte – ele segurou Dick pelo braço e o jogou com toda a força contra a parede – maninho.
Com um estrondo, Dick bateu na parede e caiu no chão. Gwenda deu um grito, e Garvin disse:
-- Vampiro... – ele se levantou com dificuldade – Então, você tomou a decisão que não pode ser desfeita. Tornou-se um deles.
-- Eu? Eu não tomei decisão nenhuma. Foi o outro Edge quem decidiu isso. De acordo com vocês, eu agora não passo de um disfarce sem alma e sem pensamentos próprios, controlado por um monstro sedento por sangue. Não é minha intenção tentar convencê-los do contrário.
Garvin tentou pegar sua arma, mas sua esposa se jogou sobre ele, o impedindo.
-- Garvin, não! É o Edge! Você não pode matar ele!
-- Ele é um vampiro!
-- Ele é nosso filho! Não importa o que ele seja ou de que lado ele esteja! – ela chorava – Ele é nosso filho e não quero que ele seja morto, muito menos pelos próprios pais!
Edge sorriu levemente, e então se voltou para Bono. Este disse:
-- Você sabe que tomei minha decisão. Não vou poupar nenhum deles, mesmo que me peça.
-- Achei que ainda acreditasse na paz entre vampiros e caçadores.
-- E acredito. Mas nunca existirá paz enquanto homens como o seu pai e seu irmão continuarem vivos. – ele se aproximou de Garvin – Homens que matariam os próprios filhos, apenas por eles serem vampiros. Mesmo que nunca tivessem machucado alguém.
-- Edge matou pessoas. – disse Dick – Permitiu que os vampiros entrassem em nossa casa. Ele é responsável pela morte de dezenas de caçadores.
-- Vê, querido? – Bono tocou no rosto de Edge – Enquanto continuarem vivos, eles perseguirão os vampiros. Caçadores como eles devem ser mortos.
-- Eu sei. – Edge baixou a cabeça – Mas são meus pais. Eu não faço questão de vê-los nunca mais, mas não quero que morram. Você entende, você sente o mesmo pelos seus pais.
-- E se eles não fossem mais caçadores? – Gill disse, de cima da caixa d’água.
Todos se voltaram para ela.
-- Como assim? – disse Edge.
-- Se eles perdessem os poderes, não poderiam mais ser caçadores, não é? Mesmo que tentassem fazer algo contra os vampiros, não ofereceriam riscos. Os caçadores não aceitam pessoas comuns entre eles.
-- Você pode fazer isso? – disse Bono.
-- Posso.
Bono pulou até onde Gill estava, a pegou e voltou para o terraço com ela. Disse:
-- Faça. Transforme-os em pessoas comuns. E se mesmo depois disso eles continuarem a nos causar problemas, eu os matarei.
-- Está bem.
Ela se virou para seus pais e seu irmão, ficou olhando para eles por um momento, e então fechou os olhos. Passou-se alguns segundos, e aparentemente ela não fizera nada; mas de repente, os três caíram no chão, desmaiados. Ela abriu os olhos; estava ofegante, e por pouco não desmaiou também. Bono a segurou, para que ela não caísse no chão.
-- Você está bem?
-- Sim. – ela passou a mão pelo rosto – Está feito.
-- Como saberemos se funcionou? – disse Ali, olhando-a com desconfiança.
-- Podem esperar eles acordarem para verificar.
-- Não será necessário. – disse Bono – A presença deles diminuiu. Se tornou igual às pessoas comuns.
-- O que vai acontecer agora? – disse Gill – Tem um milhão de vampiros nas ruas, e um milhão de caçadores, e está um caos...
-- Em breve irá amanhecer. Todos nós iremos embora da cidade antes do sol nascer. Meus pais pretendem se encontrar com os líderes dos caçadores em breve, para negociar um acordo de paz. Enquanto isso eu me retirarei para um lugar seguro, para proteger minha família.
-- Você virá com a gente, maninha. – disse Edge, passando a mão nos cabelos dela, com carinho – Você não precisa se tornar um vampiro agora, nem deixar que alguém te morda. Mas poderá ficar com a gente, como se fosse um de nós.
Gill segurou a mão de Edge, como se tivesse medo que ele sumisse, e disse:
-- Você virou mesmo um vampiro, maninho? Dick tinha dito que Bono tinha matado você...
-- Foi por muito pouco. – disse Bono – Eu quase o matei. Suguei tanto sangue dele, que a única forma de mantê-lo vivo foi o transformando. Eu o fiz beber meu sangue, e agora ele é um de nós. Mas eu sinto muito por ter feito isso, por ter te obrigado a isso.
-- Você não me obrigou. – disse Edge – Eu queria isso. Se esse for o preço que tenho que pagar para ficar ao seu lado, então eu pagarei.
Bono o abraçou, e eles se beijaram. Gill baixou a cabeça, vermelha, e Bono se virou para ela.
-- Desculpe por ter mentido pra você, Gill. Mas eu sempre fui sincero quando falei sobre o que eu sentia. Eu amo você, e por isso vamos te levar com a gente.
Ela olhou para eles.
-- Eu não vou.
-- O que?
-- Desculpa, Bono... Maninho... Mas eu não posso ir. – ela olhou para seus pais e seu irmão, que estavam desmaiados no chão – Não posso abandonar eles.
-- Mas, Gill... – disse Edge – Não sabe como eles vão reagir quando acordarem. Não sabe se eles vão te aceitar.
-- Eu sei que talvez eu tenha problemas com eles, mas... Eles são minha família. Você também, maninho, mas você ainda tem o Bono. Eles agora são só pessoas comuns, precisam de mim.
Edge ficou em silêncio por algum tempo, pensativo; e então disse:
-- Se é isso o que você acha certo fazer, então faça. – ele a abraçou – Eu vou sentir muito a sua falta, maninha.
-- Eu também vou sentir sua falta. Promete que volta um dia pra me ver?
-- Prometo.
Eles se afastaram; mas então Edge pegou a mão dela, delicadamente, e mordeu a ponta de seu dedo, fazendo cair apenas algumas gotas, que ele bebeu. Ela a princípio pareceu confusa, mas então sorriu, entendendo.
-- Quando quiser se juntar a nós – ele disse, beijando a mão dela e a soltando – basta me chamar, e eu virei. Não deixarei nenhum outro vampiro tomar o seu sangue. Apenas eu poderei te transformar.
-- Obrigada, maninho.
Ele sorriu para ela, e então seguiu Bono e Ali para fora do terraço, desaparecendo na noite.