sábado, 23 de fevereiro de 2013

[conto #042] Neve

NEVE

Ela tinha apenas doze anos e era branca como a neve. Seus cabelos muito negros cobriam seu rosto, enquanto ela se inclinava para pegar a rosa. Descuidada, espetou o dedo em um espinho e uma gota de sangue surgiu.
-- Cuidado. - disse o rapaz, segurando a mão dela e beijando a ponta de seu dedo, provando o sangue ainda quente.
-- Tudo bem. - ela sorriu para ele.
Eles foram andando de volta até o castelo. Ela parecia triste. Ele não podia se manter calado por muito tempo.
-- O que houve?
-- O que?
-- Você parece triste.
-- Não estou, não.
-- Tem certeza? - ele parou e segurou as mãos dela - Não precisa esconder de mim.
Com receio, ela olhou para o castelo. Apesar de estarem atrás de algumas árvores, seria possível vê-los das janelas.
-- Mamãe não gosta de mim. - ela disse por fim.
-- Claro que gosta.
-- Não, não gosta. Ela tem raiva de mim. - uma lágrima surgiu no canto de um olho e caiu por seu rosto - Eu a ouvi conversar com o espelho. Disse que ela sempre foi a mulher mais bonita do reino, mas agora que estou crescendo, estou me tornando mais bela do que ela, e ela amaldiçoava aos céus por ter tido uma filha mulher que se tornasse mais bela do que ela.
-- Não acredito nisso. Você deve ter ouvido errado. Mamãe te ama tanto quanto a mim.
-- Mas se ela souber...! - ela sufocou as palavras quase gritadas em um soluço - Se ela souber...
-- Ela não vai saber. E não somos culpados de nada, nunca fizemos nada de errado.
-- Mas se alguém souber o que se passa em meu coração! Se alguém soubesse que te amo... - a voz morreu em seus lábios, e mais lágrimas caíram - Se soubessem que amo meu próprio irmão... De forma que nunca devia amar... Da mesma forma que mamãe ama papai...
-- Ninguém saberá. - ele a abraçou com força - Nunca saberão. Será nosso segredo, hoje e sempre.
-- Eu acho que mamãe suspeita. Talvez por isso ela me odeie.
-- Mamãe não te odeia e não suspeita, tire isso da cabeça. Ninguém nunca saberá.
-- Mas você me ama?
-- Claro que amo.
-- Me amará para sempre?
-- Sim. - ele se aproximou, hipnotizado por aqueles olhos negros - Minha alma te pertence.
Os lábios muito vermelhos pareciam prestes a aceitar os dele, mas então ela o empurrou e murmurou um "não!", assustada, saindo correndo em direção ao castelo.

* * * * *

A porta do quarto estava apenas encostada. Ela a empurrou e entrou, receosa. Lá dentro, sua mãe a aguardava, sentada diante da grande cômoda. De pé, em um canto, estava seu prometido. Ela o cumprimentou, timidamente e sem alegria.
-- O que deseja de mim, mamãe?
-- Seu noivo me pediu permissão para leva-la em uma caçada e eu autorizei. Vá se preparar.
-- Caçar? Mas os criados que sempre nos acompanham estão a serviço de papai, acompanhando ele na floresta.
-- Eu sei. Irão apenas vocês dois. Ele não irá longe e vocês não irão demorar. - a garota ficou olhando como se não tivesse entendido - Não há problema algum em irem só os dois. Seu noivo é uma pessoa de confiança, e será por pouco tempo. Vá se arrumar.
-- Sim, senhora. - ela fez uma reverência e saiu.
O rapaz parecia um pouco tenso, quase constrangido. Disse:
-- A senhora tem certeza?
-- Absoluta.
-- Realmente quer que eu...
-- Sim.
-- Mas... Eu não entendo.
-- O casamento de vocês deve acontecer o quanto antes. Não podemos mais esperar que ela faça quinze anos.  Faça o que tem que fazer.
-- Mas por quê? Eu a amo e não me importo de esperar. Ela ainda é tão jovem.
-- Se não ocorrer em breve, pode nunca acontecer. Eu suspeito que você tenha um rival.
-- Rival? - o tom dele mudou - Diga quem é e o matarei!
-- Quero evitar que qualquer sangue seja derramado. Mas se minhas suspeitas estiverem certas, esse rival é alguém inaceitável, que seria morto e causaria a morte de minha filha caso algo acontecesse entre os dois. É por esse motivo que não podemos correr o risco de esperar até a idade combinada. Ela já está em condições de se casar. Isso deve acontecer o mais breve possível. - ela olhou para ele com determinação - Estou fazendo isso pelo bem dela.
-- Sim, senhora.
-- Espero que faça o que deve ser feito. Não hesite.
-- Não hesitarei.

* * * * *

Os dois adentravam a floresta mais do que de costume. Normalmente conversavam pouco, ele tentava falar mais do que ela, mas dessa vez o silêncio entre os dois parecia um gigantesco muro de pedra. Somente quando atravessaram a ponte sobre o riacho ela percebeu o quão longe haviam ido, e parou.
-- Para aonde estamos indo? Mamãe disse para não irmos longe.
Ele parou e olhou para ela.
-- Tem razão. Me desculpe, eu estava distraído. - ele desmontou do cavalo - Mas aqui é um bom lugar.
-- Tem certeza? - ela hesitou, mas acabou descendo do cavalo, com a ajuda dele - Não será melhor voltarmos um pouco? Pode ser perigoso aqui.
-- Não é, eu conheço esse lugar. - ele olhou em volta, e depois olhou para ela - Eu não vou deixar você se machucar.
Ela ficou vermelha e baixou o olhar. Não o amava, mas gostava dele; era um bom rapaz e se conheciam há muito tempo. Porém, a ideia de se casar com ele a apavorava.
De repente, ele se ajoelhou diante dela e beijou sua mão. Ela se assustou por um momento, surpresa, mas logo o susto deu lugar a curiosidade.
-- O que o senhor está fazendo?
-- Você aceita se tornar minha esposa?
-- Somos prometidos. - ela disse, confusa - Já vamos nos casar.
-- Eu sei. Mas você aceitaria se tornar minha esposa hoje? - ela o olhava atordoada - Sei que ainda é muito jovem. Mas eu a amo demais e já tenho dezessete anos. Muito em breve serei rei. Preciso de uma esposa agora, não sei se poderei esperar por muito tempo e com certeza não poderei esperar mais três anos.
Paralisada, ela apenas olhava para ele. Ele sabia que ela estava surpresa e confusa demais para esboçar qualquer reação. Foi com remorso, mas sem hesitar, que ele a puxou para si, fazendo-a cair em seus braços, e a beijou.
A reação dela foi mais violenta do que ele esperava. Ela imediatamente começou a gritar e se debater, lutando com todas as forças. Mas era muito menor do que ele, o que tornava suas tentativas de luta apenas um leve incômodo. Ele tomava o cuidado de só usar a força suficiente para imobiliza-la, de forma que não a machucasse.
-- Desculpe - ele disse - mas esse é o único jeito. Apenas dessa forma seu pai permitirá que case antes do tempo combinado. - ele a deitou no chão - Prometo que não irei machuca-la. Por favor, não chore.
Ela ainda tentou fugir, mas ele a segurou de forma que ela não podia se mexer. Disse:
-- Não se preocupe. Vamos nos casar em breve, e você logo será minha rainha. Eu não vou te machucar hoje, assim como nunca a machucarei depois de nos casarmos. Você não tem porquê ter medo, já que estamos destinados a nos casar de qualquer forma.
-- Não... - ela chorava - Não, por favor...
-- Há outro? Eu soube que você ama outro rapaz. - ela o  olhou surpresa, e virou o rosto - Então é verdade, seu coração pertence a outro. Mas não importa. Depois que seu corpo for meu, logo será também seu coração. Eu te farei esquecer qualquer homem que tenha um dia amado.
Não havia como fugir, e logo a luta infrutífera fez com que ela perdesse as forças. Aos poucos foi parando de se debater, até se deixar ficar inerte no chão, seus soluços e lágrimas sendo seu único sinal de resistência.
De repente o som de um cavalgar se aproximando depressa, uma espada sendo desembainhada, e antes que ela pudesse abrir os olhos, o rapaz se afastara dela e se levantara; e quando ela olhou, viu seu irmão diante deles, espada em punho, partindo ferozmente para cima do outro. Um reflexo rápido e a espada puxada por instinto foi o que impediu que o outro fosse decapitado.
-- Espere! - gritou o outro, enquanto se defendia com dificuldade - Eu posso explicar o que houve, vamos conversar!
-- O única som que quero ouvir de você é o do seu sangue sendo derramado no chão! Como ousou tocar em minha irmã? Como ousou fazer mal a ela?
-- Fiz isso porque a amo! Você não entende! - ele atacou também, mas apenas com a intenção de desarmar o outro - Agora poderemos nos casar, nos casaremos antes do fim do inverno! Sei que está com raiva por eu ter tocado nela, mas irei cumprir com meus deveres. Você não deve me matar por esse motivo, já que sou o prometido dela.
-- Ela não se casará com você! Jamais permitirei que ela se case com você! - a fúria dele era tão grande que conseguiu desarmar o outro - Qualquer um que toque nela só terá a morte!
-- Não! - a garota gritou, e os dois pararam e olharam para ela. Ela chorava, sentada sobre a neve manchada com seu sangue.
-- Não o mate. Por favor. - ela se arrastou até seu irmão e segurou seu braço - Se fizer isso, será preso e condenado como um assassino!
-- Não, não serei. Eu o matarei para defender a sua honra. Nosso pai não me julgará.
-- Eu fiz isso sob ordens da rainha. - o outro disse, de repente.
-- O que?
-- A rainha ordenou expressamente que eu desonrasse a princesa, para que nos casássemos o quanto antes. Disse que era necessário porque ela está apaixonada por outro. Alguém que acabaria causando a morte dela.
-- Eu disse! Disse que ela me odiava! - a princesa se desesperou - Entende agora o que eu digo? Ela não descansará! Nada do que fizer poderá me impedir de casar com ele, e mesmo que o mate, nosso destino será apenas a desgraça!
Ela se deixou cair no chão, aos prantos. Seu irmão a fitou por um tempo com o coração disparado, a espada ainda apontada para o outro, e por fim disse:
-- Fuja. Fuja daqui, princesa. - ela olhou para ele, confusa - Você está certa, nada do que fizermos impedirá a desgraça sobre nós. Então, se quer lutar contra esse destino, lutar por aquele que ama, fuja! Corra para o coração da floresta e se esconda lá!
-- Não poderei ir sozinha!
-- Eu a encontrarei em breve, mas se não fugir agora, será tarde demais! Se nossa mãe armou isso, de certo haverá guardas a caminho em breve, para que sua desonra se torne pública e o casamento, obrigatório. Fuja, agora!
Ainda tremendo e chorando, ela se levantou e saiu correndo pela floresta, sumindo em meio às árvores escuras.

* * * * *

-- Então, o príncipe, aquele que foi prometido à nossa filha, a desonrou durante um passeio pela floresta.
-- Sim, meu rei.
-- E você, meu filho, encontrou os dois e lutou com ele. E durante a luta, a princesa fugiu, perdendo-se na floresta.
-- Sim.
-- Você, príncipe prometido, confessa o que fez?
-- Sim. - a voz dele era apenas um murmúrio fraco.
-- Sendo estes os fatos, a única solução é que o casamento seja adiantado. Deverão se casar o quanto antes. Mas a prioridade nesse momento é encontrar a princesa. Nossos melhores cavaleiros estão vasculhando a floresta, mas vai anoitecer e ainda não a encontraram.
-- Meu pai, peço permissão para me juntar aos cavaleiros e procurar minha irmã.
-- Permissão concedida.
-- Eu também desejo procurá-la, meu rei. - disse o outro.
-- Infelizmente não poderei permitir, príncipe. Sua presença no grupo de buscas geraria rumores e comentários sobre o ocorrido. Além disso, a princesa possivelmente está assustado e fugirá do senhor. Também não permitirei que deixe o castelo até o casamento, para garantir que honre a sua palavra.
-- Sim, senhor.

* * * * *

Ela caiu no chão, exausta. Correra por horas e horas, sem rumo, adentrando cada vez mais a floresta. Estava agora em um lugar onde nunca estivera, provavelmente tão longe do castelo que demoraria horas para ser encontrada. Ou talvez nunca fosse encontrada, e esse pensamento a apavorou.
Não, ela se forçou a pensar, ele disse que me encontraria. Meu irmão irá me encontrar, ele me protegerá. Mas o que fariam depois? Fugiriam juntos? Viveriam escondidos na floresta? Abririam mão de tudo, do título de princesa e príncipe, do castelo, da riqueza, da família e dos amigos? Como sobreviveriam? Era possível viver apenas de amor?
Não pense nisso agora. Ele é mais velho, saberá o que fazer. Ela se levantou e olhou em volta, procurando algum lugar onde pudesse se abrigar. Avistou, um pouco distante, uma saliência no chão que parecia indicar a entrada de uma caverna, e foi até lá. De fato, era uma caverna, mas era profunda, parecendo descer por muitos e muitos metros no subsolo. Em dúvida se seria ou não seguro ficar ali, ela permaneceu parada na entrada, pensativa, e deu um grito estridente quando uma mão pesada tocou em seu ombro.
Ela se virou depressa, em pânico. Havia um homem ali, vestido em trapos e muito sujo. Carregava uma bolsa com ferramentas estranhas.
-- Quem é você? - ele disse, parecendo um pouco assustado pelo grito dela - O que está fazendo aqui?
Ao invés de responder, ela se levantou e tentou sair correndo. Antes que conseguisse dar dois passos, o estranho a pegou e a jogou no chão.
-- Me responda. Quem é você? Ninguém vem até essa parte da floresta. - ele olhou atentamente para ela - Veio do castelo? Suas roupas indicam que é rica. Qual é o seu nome? - ela continuava em silêncio - Se não me responder, irei te causar tanta dor que nunca mais em sua vida poderá falar. Quem é você?
Ela suspeitava seriamente que aquilo não fora apenas uma ameaça, por isso respirou fundo, tentando recuperar o controle, e disse:
-- E-eu me perdi. Vim... Do castelo. Sou a princesa, filha do seu rei.
O homem sorriu. Estendeu a mão para ela, ajudando-a a se levantar, e disse:
-- Você está bem longe. Demorará horas para chegar até o castelo, e já está anoitecendo. É melhor se abrigar em minha casa por essa noite.
-- Você mora aqui? No meio da floresta?
-- Sim, estamos bem perto de lá. Venha comigo. - ele a pegou pela mão, mas ainda ficou algum tempo parado, olhando para ela - Por que seu vestido está sujo de sangue?
-- Eu... Caí. E me machuquei.
Ele apenas balançou a cabeça e a guiou por um caminho na floresta, uma trilha tão escondida que ela nunca veria sozinha. Os dois caminharam por quase quinze minutos, até chegarem a uma clareira, com uma cabana no meio. Parecia uma construção muito antiga, quase se misturava à floresta. A princesa disse:
-- Você mora aqui sozinho?
-- Não. Moro com mais seis irmãos. Morávamos com nossa mãe, mas ela morreu há alguns anos. - ele abriu a pesada porta de madeira - Entre.
Ela o seguiu para dentro da cabana. O interior cheirava a plantas e era pouco iluminado; mas era quente, e havia uma lareira com um fogo crepitante. Ela sentiu também o cheiro de comida, de carne sendo assada, e naquele momento percebeu que não comia há horas. Sentiu-se muito fraca ao pensar nisso.
-- Apareçam. - o homem gritou para dentro da casa - Temos visita.
Aos poucos, outros homens começaram a aparecer. Todos pareciam mais novos do que ele, mas eram muito mais velhos do que ela, e tinham todos o mesmo ar sujo e descuidado. Olhavam para ela com curiosidade e desconfiança.
-- Esta - o estranho anunciou - é a nossa amada princesa, filha do nosso rei. Ela se perdeu na floresta. - os outros sorriram, alguns deram um breve riso - Ela ficará em segurança conosco esta noite, até que esteja apta a voltar para o castelo. Sejam hospitaleiros com ela.
Apesar do ar estranho que envolvia aqueles homens, e da forma peculiar com que olhavam para ela, eles se mostraram amáveis. Lhe deram comida e uma cama limpa para dormir, em um quarto separado do dos outros. Quando ela já estava deitada, o homem que a encontrara na floresta entrou no quarto e se sentou na cama ao lado da dela.
-- Está confortável?
-- Sim.
-- Você precisa descansar e se alimentar bem. Deve estar muito fraca, depois de ter sido violentada na floresta.
Demorou um pouco para ela entender o que ele havia dito.
-- Por que pensa que...
-- É muito óbvio. Não tente esconder nada de mim. - ele passou a mão nos cabelos dela - Não sabe o perigo que corre aqui. Se não estivesse machucada, se não tivesse me despertado compaixão, eu mesmo seria um perigo para você. - ela se encolheu, assustada - E meus irmãos ainda são perigosos para você, mas não farão nada por respeito a mim.
-- Por que está me dizendo essas coisas?
-- Porque quero que saiba quem somos. Como você segue um homem desconhecido para uma casa onde moram sete homens? Como aceita abrigo sem saber nada sobre nós, nem quem somos, nem o que fazemos ou o que realmente queremos de você? Sendo uma princesa, você deveria ser mais cuidadosa.
-- Mas quem vocês são, então? O que querem de mim?
-- Nós vivemos escondidos na floresta. Nossa mãe foi condenada por bruxaria, mas conseguiu fugir para cá com nosso pai, quando eu e meu segundo irmão ainda éramos muito pequenos. Nosso pai morreu logo após  o nascimento do meu irmão mais novo, e nós cuidamos da nossa mãe até a morte dela. Somos mineradores, trabalhamos naquela mina que você encontrou na floresta e em algumas outras, mais distantes. Porém essa atividade nem sempre rende o suficiente, por isso também roubamos viajantes que atravessam a floresta.
-- São ladrões?
-- Sim, as vezes. Além disso, somos perseguidos pela igreja, por sermos filhos de uma bruxa. Somos pecadores e criminosos, por isso vivemos escondidos na floresta.
-- E por que estão sendo tão bons comigo?
-- Porque fiquei com pena de você. E porque pode nos render um bom dinheiro. Sinto lhe dizer que não voltará para casa amanhã. A manteremos conosco e pediremos um valor ao rei pelo seu resgate.
-- Mas eu não quero voltar para casa. Eu... Não posso voltar.
-- Por quê? Tem medo de ser castigada por ter sido desonrada?
-- Meus motivos não lhe dizem respeito. Mas não pretendo voltar para casa, não agora.
-- Infelizmente, você tem um controle muito limitado sobre seu próprio destino. - ele se levantou - Sinto muito, mas você ficará segura aqui, enquanto seguir as nossas regras. Agora durma, você deve estar exausta.
Ele saiu do quarto. Ela tentou pensar no que estava acontecendo, no que faria, mas acabou adormecendo.

* * * * *

Ainda estava muito cedo, mas ela foi acordada pelo barulho da casa. Os homens estavam se aprontando para sair. Todos carregavam ferramentas para o trabalho na mina, e alguns levavam também armas de caça. O mais velho, que a encontrara na floresta, apenas conversava com os outros e parecia dar ordens, mas não carregava nada.
Ela se manteve no quarto até que o barulho houvesse cessado. Correu para a janela, e viu os homens indo embora, mas não avistou o mais velho deles. Nesse momento a porta do quarto se abriu, e ele entrou.
-- Eles estão indo trabalhar. - ele disse - Não irei com eles hoje. Ficarei aqui, cuidando de você para que não fuja.
-- Não vou fugir. - ela se aproximou dele - Mas estou feliz por ter ficado.
Ele não disse nada, mas pareceu surpreso. Ela se aproximou mais.
-- O que vai fazer comigo agora?
-- Mandarei um dos meus irmãos com uma mensagem para o rei, dizendo que estamos com você e cobrando nosso preço para devolve-la. Estamos seguros aqui, não corremos o risco de ser encontrados pelos cavaleiros.
-- E depois? Se meu pai se recusar a pagar?
-- Então ficaremos com você. Você só sairá daqui quando alguém pagar por você.
-- E - ela estava tão perto dele que quase se encostavam - o que fará comigo enquanto isso?
A reação dele foi mais forte do que ela esperava: ele a abraçou pela cintura e a puxou com força para junto de si, colando-se a ela. Ela deu um grito.
-- Cuidado. - ele disse, em um tom de voz que a fez se encolher - Não brinque com algo que não pode controlar. Não é a toa que foi estuprada.
Ao ouvir essas palavras, ela sentiu a garganta apertar e os olhos se encherem de lágrimas. Tentou se afastar dele, mas ele a manteve firme junto a si.
-- Quem foi? - ele disse - Quem fez isso com você?
-- Não importa.
-- É importante o bastante para que você não queira voltar para o castelo.
-- Isso é problema meu!
Ela tentou se soltar, furiosa, mas ele não só não a soltou, como aumentou a força do abraço. Quando ela ameaçou gritar, ele a calou com um beijo.
-- Menina tola. - ele finalmente a soltou quando ela começou a chorar, mas ela deu apenas um passo para longe dele - Por que tentou me seduzir? Ou sequer sabia o que estava fazendo?
-- Eu não posso voltar para o castelo. - ela segurou a mão dele - Por favor, não diga a meu pai que estou com vocês! Me deixe ficar aqui até que... - ela parou.
-- Até que o que?
-- Não importa. Apenas me deixe ficar aqui. Por favor.
Ele se afastou dela e se sentou na cama. Fez um sinal para que ela se aproximasse, e quando ela estava perto a segurou pela cintura. Aproximou-se como se fosse beija-la de novo, e ela se encolheu, mas ele parou sem encostar nela.
-- O que pensa em fazer? Me seduzir para que eu desista de pedir seu resgate? Não tem coragem sequer de permitir que eu a beije. E acha que dormir comigo seria o suficiente? Esquece-se dos meus irmãos, eles não aceitariam que você permanecesse aqui sem que ganhassem algo com isso. Teria que servir a nós todos. Uma moça tão nova quanto você, uma princesa, jamais conseguiria sobreviver a isso. - ela considerou a possibilidade por um instante, mas foi obrigada a concordar - O que tem de tão terrível no castelo para que você prefira ser estuprada por um bando de mineradores da floresta do que voltar para lá?
Após um instante de silêncio, ela acabou dizendo a verdade:
-- Se eu voltar, jamais poderei ficar com o homem que amo. Serei obrigada a me casar com o meu prometido.
-- Ah, agora entendo. Um amor proibido. E imagino que esse seu amado tenha prometido encontra-la na floresta, e você esteja esperando por ele.
-- Sim.
-- Nesse caso, podemos fazer uma troca. Eu não direi ao rei que você está aqui, e seu amado poderá lhe levar... Contanto que pague por você.
-- Pagar? Por mim?
-- Sim. Não será um resgate, será como um... Um prêmio por termos te mantido a salvo.
Aquilo era ruim, mas era muito melhor do que ser levada de volta para o castelo; de forma que ela não protestou, e ele a deixou em paz.

* * * * *

O príncipe cavalgava pela floresta havia horas, mas não se sentia cansado. A necessidade de encontrar a princesa, o medo pelo que podia ter acontecido a ela, o remorso por ter permitido que ela passasse a noite inteira sozinha na floresta, tudo isso o mantinha desperto e em alerta máximo. O mesmo, porém, não podia ser dito de seu cavalo, que apresentava sinais de exaustão. Ele foi obrigado a parar próximo a um rio para que o animal descansasse.
Quando ele próprio foi beber água, percebeu que do outro lado, próximo à margem, havia pegadas. Atravessou o rio através de um tronco que servia de ponte entre as duas margens, e analisou as marcas no chão: eram de pés pequenos, e seguiam em direção à entrada de uma caverna. Onde houvera neve na noite anterior não havia marcas, pois a neve derretera; mas ele sabia que se a princesa procurava abrigo, com certeza aquele seria um bom lugar para se esconder. Foi até a entrada da caverna e chamou por ela várias vezes, mas não houve resposta. Estava prestes a entrar, quando ouviu o som de várias pessoas se aproximando, e depressa se escondeu atrás de uma grande árvore, um pouco afastada.
Um grupo de meia dúzia de homens se aproximava. Pareciam mineradores, possivelmente renegados que haviam se abrigado na floresta. Conversavam e riam alto, e ele ouviu claramente referências a uma garota que haviam encontrado no dia anterior. Depois que o último deles entrou na caverna, o príncipe saiu de seu esconderijo e correu até seu cavalo, que descansava às margens do rio. Fez o animal atravessar a água gelada e seguiu até próximo a caverna. As pegadas dos homens eram claramente visíveis, no solo úmido pela neve que derretera, e seriam fáceis de serem seguidas. Ele montou em seu cavalo e seguiu a trilha pela floresta, o mais rápido possível.

* * * * *

Ele se aproximou da clareira com cautela. A casa tinha um aspecto abandonado, mas a fumaça que saía pela chaminé indicava que estava habitada. Ele amarrou o cavalo em uma árvore próxima e desembainhou a espada. Aproximou-se devagar e bateu na porta.
-- Há alguém aí? - ele chamou - Procuro alguém que se perdeu na floresta! Respondam!
-- Pessoas se perdem com frequência na floresta - veio a voz de trás dele, e ele se voltou - e jamais são encontradas. Quem é você?
O homem que falara tinha aspecto ameaçador, e trazia nas mãos uma espada.
-- Sou o seu príncipe e herdeiro do trono. Abaixe essa espada, ou poderá ser preso por traição.
-- Para alguém que veio aqui pedir ajuda, Vossa Alteza não está se portando bem. Não abaixarei minha espada enquanto não fizer o mesmo com a sua. - o príncipe hesitou, mas acabou por baixar sua espada, e só então o outro fez o mesmo - O que quer aqui?
-- Procuro por minha irmã. Ela se perdeu na floresta ontem, no fim da tarde.
-- Uma mulher perdida na floresta dificilmente sobreviveria a uma noite inteira.
-- Eu saberia se algo houvesse acontecido com ela. Sei que ela está bem. Você a viu? Ou viu algum sinal dela?
-- Talvez tenha visto.
-- Diga logo o que sabe! Preciso encontra-la antes que...
Nessa hora a porta da casa se abriu, e a princesa apareceu. Olhou para seu irmão por um momento, como se não acreditasse que ele estivesse ali, e então se jogou nos braços dele, aos prantos.
-- Você veio, você veio mesmo...
-- Eu disse que te encontraria. Você está bem? - ele olhou para o outro homem com desconfiança - Alguém te machucou?
-- Não, eles me trataram bem, me acolheram... Mas disseram que iam me vender de volta para o nosso pai, que pediriam um resgate por mim...
-- Sequestradores? Imagino então que não a deixará ir sem ganhar algo por isso, certo?
O outro riu. Olhava para os dois com um olhar penetrante.
-- Agora entendo o que ela quis dizer quando disse que tinha um amor proibido. - o príncipe ficou surpreso, e a princesa enrubesceu - Sim, eu estava pensando em pedir um resgate por ela... Imagino que ela valha muito para você. E imagino também que não voltarão ao castelo. Portanto, não seria nada bom caso os guardas de seus pais aparecessem por aqui e nós disséssemos a eles o que sabemos.
-- Entendo. - o príncipe soltou a princesa e foi até o cavalo, onde pegou uma bolsa e tirou de dentro algumas moedas de ouro - Isso basta para você?
-- Isso não é nem um quarto do que sua querida irmã vale, Vossa Alteza.
Furioso, mas sem falar nada, o príncipe pegou mais moedas na bolsa e as entregou ao homem.
-- Isso é tudo o que posso lhe dar. O que me restou foi apenas o suficiente para eu e minha irmã sobrevivermos. Espero comprar com isso o seu silêncio.
Ele aceitou o dinheiro, com um sorriso. Pegou a mão da princesa e a beijou, dizendo:
-- Espero que seja feliz, princesa. - ele a soltou e se voltou para o príncipe - O pecado de vocês é muito maior do que qualquer pecado que eu e meus irmãos carreguemos. Espero que saiba que não importa para aonde forem, jamais poderão fugir do castigo de Deus.
-- E quem é você para me falar de Deus? - disse o príncipe, ajudando a princesa a montar em seu cavalo. Em seguida ele subiu também, e se foi.

* * * * *

Eles cavalgaram o dia todo. Praticamente toda a neve já derretera, e o solo estava molhado e difícil de andar. Eles temiam que a qualquer momento os guardas do castelo os alcançassem, mas quando começou a escurecer, o príncipe foi obrigado a procurar um abrigo para passarem a noite. Foi difícil encontrar um local adequado, pois a terra estava muito úmida, mas afinal encontraram um lugar entre as raízes de uma árvore, onde a neve parecia ter derretido há mais tempo e o solo estava seco. O príncipe acendeu uma fogueira e preparou uma refeição, enquanto a princesa permaneceu deitada sobre mantas, descansando. Os dois comeram juntos, em silêncio; somente após o jantar, sentiram-se com mais forças e mais tranquilos para conversar. A princesa contou tudo o que lhe acontecera, e o príncipe contou qual fora a reação de seus pais em relação ao ocorrido e como as buscas estavam sendo feitas pela floresta.
-- Você estava certa. - ele disse - Há um complô contra nós criado por nossa mãe. Ela planejou tudo para que você fosse obrigada a se casar com seu prometido, para que nunca pudéssemos ficar juntos. Temia que eu a desonrasse e que a desgraça caísse sobre nós.
-- Eu sempre disse isso. Mamãe me odeia! Eu já a ouvi várias vezes falando sobre mim em um tom de rancor. Com certeza usou magia para descobrir sobre nós, e para obrigar meu prometido a fazer o que fez!
-- Não me lembre daquilo. - ele a abraçou com força - Só de pensar que outro homem a tocou... Mas eu não acredito que nossa mãe te odeie. Se ela fez o que fez, foi porque pensou que era o melhor para você. E não sei se ela usou magia ou não, mas talvez tenha simplesmente deduzido.
-- Eu não sei. - ela se aconchegou a ele - Tenho medo de que sejamos separados para sempre.
-- Não importa o futuro. - ele a olhou - Estamos juntos agora. Pela primeira vez, podemos ficar juntos sem medo que nos descubram. O que quer que façamos aqui, mesmo que sejamos encontrados depois, ninguém nunca saberá.
Parecia que pela primeira vez ela realmente entendia o que aquilo significava. Olhou para seu irmão por um tempo, com um misto de fascínio e medo em seu olhar; e dessa vez, não se afastou quando ele buscou seus lábios. Os dois se beijaram, um beijo demorado, calmo e receoso, cuidadoso como se pudesse quebra-los em mil pedaços caso se tornasse mais intenso. Quando se afastaram, ambos traziam alegria e medo em seu olhar.
-- Eu achei que o pecado fosse amargo e pesado. - disse o príncipe, tomando a irmã nos braços e a colocando em seu colo - Mas ele é doce como seus lábios e suave como seu corpo.
-- Esperei tantos anos por esse beijo...
-- Espero por esse beijo desde o momento em que você nasceu. - ele a beijava no rosto, no pescoço, nos lábios, com um fervor febril - Desde o momento em que você foi colocada em meus braços pela primeira vez, tão pequena que podia segura-la com uma das mãos, eu espero por esse beijo. Sabia que você seria minha, sempre soube.
A paixão dele a assustou, e ela resistiu a ele por um tempo; mas afinal se entregou, quando os beijos dele pareceram tomar sua alma, e nada mais importava além dele.

* * * * *

Ela pegava a água do rio com um balde, para ferve-la, quando a rainha apareceu. Vinha coberta com uma capa, e a princesa não a percebeu até que ela estivesse ao seu lado.
-- Mamãe! - ela gritou e deixou cair o balde.
-- Não me chame de mãe. Você, que é a mais maligna das feiticeiras e a mais suja das meretrizes.
-- Mamãe, o que está dizendo? Como me encontrou aqui? Por acaso usou magia?
-- Usei, a mesma magia que ensinei a você e que você passou a usar para o mal. Eu sei o que fez. - ela se aproximou - Sei que usou bruxaria para seduzir seu irmão, para prender a alma dele à sua. Conseguiu deitar-se com ele na lua cheia, para completar o feitiço, e agora ele te pertence e te seguirá cegamente. O que pretende agora? Sei que não ficará escondida na floresta para sempre.
-- Por que não? Tudo o que quero é o amor de meu irmão. E não sei porque pensa que fiz essas coisas ruins ou que usei magia para prendê-lo. Ele me ama desde que nasci, ele mesmo disse isso.
-- Não pense que me deixarei convencer por suas palavras. Não sou tola como os outros a quem enganou, e seus feitiços de manipulação não funcionam em mim.
-- Por que me odeia tanto, mamãe? É porque sou mais bela do que você? Porque roubei o filho que tanto amava? Ou porque sabe que me tornarei rainha em seu lugar?
-- Então é isso. Pretende tomar o trono. Menina tola, o reino jamais aceitará que um casal incestuoso o governo. Você não passa de uma criança que tem poder demais a seu dispôr, mas que não entende de verdade o que está fazendo. Venha comigo, e ainda podemos consertar isso.
-- Consertar como? Não vai conseguir me afastar de meu irmão! Nada do que fará poderá destruir o amor que sentimos um pelo outro.
-- Nesse caso, serei obrigada a usar a força. - ela deu as costas à princesa e se afastou - Espero que esteja pronta para arcar com as consequências.
E ela se foi, desaparecendo na floresta.

* * * * *

-- O que? Nossa mãe?
-- Sim, eu a vi, a encontrei. Ela nos fez ameaças, disse que vai nos separar!
-- Minha amada, você deve estar enganada. Deve ter tido um sonho e se confundiu. É impossível que alguém tenha nos encontrado, e mais impossível ainda que nossa mãe nos encontrasse aqui, sozinha, e fosse embora sem chamar os cavaleiros.
-- Mas eu a vi, e não estava sonhando! Ela deve ter usado magia!
-- Por que tem tanta certeza de que nossa mãe sabe magia?
-- Porque já a vi usando outras vezes. Por favor, irmão, acredite em mim! Temos que sair da floresta, temos que fugir depressa antes que ela nos encontre!
Ele continuava a não acreditar nela, mas seu desespero o convenceu de que era melhor concordar.
-- Tudo bem, meu amor, tudo bem. Não fique com medo. - ele a abraçou - Seguiremos nossa viagem mais depressa e mais atentos. Mas não tenha medo, eu estou aqui. Ninguém poderá te fazer mal.
Ela não tinha tanta certeza disso, mas retribuiu ao abraço, sentindo-se confortável junto a ele.

* * * * *

Ela acordou com os primeiros raios do amanhecer. Seu irmão dormia ao seu lado, ainda profundamente adormecido. Ela se levantou e foi andando pela floresta, até uma macieira próxima dali. Colheu uma maçã e murmurou algumas palavras, olhando para ela. Então a colocou de novo no galho onde ela estava, e o talo se refez, como se nunca houvesse sido cortado.
Quando seu irmão acordou, ela já havia voltado e estava deitada novamente ao lado dele. Eles começaram a se preparar para partir, mas antes de irem, ela disse:
-- Estou com muita fome e vi uma macieira carregada aqui por perto. Posso ir colher algumas maçãs antes de partirmos?
-- Claro, vá. Eu terminarei de preparar o cavalo.
Sem pressa, ela foi andando em direção à macieira e pegou a mesma maçã que colhera antes. Murmurou de novo algumas palavras, e então ouviu passos atrás de si. Virou-se depressa, e viu sua mãe ali, atrás dela.
-- Olá, mamãe.
-- Sei que estava esperando por mim. Como sabia que eu viria?
-- As filhas sempre pressentem suas mães. O que faz aqui?
-- Vim impedir que partam.
-- E como vai fazer isso? Me matando, mamãe? Vai matar sua própria filha?
-- Você sabe que eu jamais faria isso. Mas você me obriga a usar um feitiço que aprisionará você e seu irmão e os obrigará a voltar para o castelo contra a vontade de vocês.
-- Seria uma pena se você fizesse isso. - ela levantou a maçã - Não quer comer essa maçã? Estou dando ela de presente a você. É a maçã mais bonita que já vi.
-- Não sou tola a ponto de aceitar comer algo oferecido por você.
-- É uma pena. Você não devia recusar um presente de sua própria filha.
Inesperadamente, a princesa mordeu a maçã. Quase de forma imediata caiu no chão, pálida e parecendo sem vida. Na mesma hora, o príncipe apareceu, chamado por um pressentimento que sua irmã lhe enviara.
-- Não! - ele correu para o corpo inerte da irmã - O que fez com ela?
-- Não seja tolo! - disse a mãe deles, entendendo o que a princesa fizera - Ela fez isso com ela mesma!
-- Não minta! Você a envenenou! - ele foi até ela, empunhando sua espada - Traga-a de volta! Traga-a ou te matarei!
-- Vai matar sua própria mãe? Meu filho, abra seus olhos! Livre-se do feitiço que ela colocou sobre você! - ela deu um passo atrás quando ele se aproximou - Ela não está envenenada, só está fingindo! Veja por si mesmo!
Hesitante, ele se voltou para a garota caída no chão. Correu até ela e a abraçou, tentando sentir algum sinal de vida.
-- Ela não respira. - ele encostou o ouvido no peito dela - O coração dela não bate. Ela está morta! - ele olhou para a mãe com profundo ódio - Você a matou.
-- Não, eu não a matei! - a rainha tentava evocar algum feitiço que pudesse controlar o príncipe, mas o ódio dele era maior do que o poder dela - Ela fez isso consigo mesma!
-- Não sei se sua morte poderá traze-la de volta - ele foi novamente até a rainha - mas poderá aplacar o ódio do meu coração! Que Deus a perdoe por ter matado sua própria filha!
Em um gesto rápido, ele baixou a espada, cortando a cabeça da rainha. O sangue manchou de vermelho os resquícios de neve que ainda restavam no chão.
Imediatamente, ele ouviu o som de alguém que lutava para respirar, como se estivesse se afogando. Voltou-se para sua irmã e viu que ela recobrara a cor, e que tentava respirar, parecendo engasgada. Correu para ela e a tomou em seus braços, fazendo-a cuspir o pedaço de maçã que a engasgava. Imediatamente ela abriu os olhos, parecendo confusa e assustada. Antes mesmo que ela estivesse totalmente recuperada, ele já a beijava com ardor.
-- O que aconteceu, meu amor? - ele disse, a apertando com força contra si - O que houve antes que eu chegasse aqui?
-- Nossa mãe... Apareceu. - ela ainda tinha dificuldades em falar - Ela disse que sentia muito por tudo o que tinha me dito, que queria fazer as pazes... Que nos perdoava por tudo... E me deu uma maçã que trazia. Eu a mordi e... - ela começou a chorar - E então...
-- Já acabou, ela não vai mais nos fazer mal. - ele a abraçou com força - Eu dei um fim a isso. A matei, e o feitiço que ela colocou em você se foi. Ela nunca mais vai nos fazer nenhum mal. Eu devia ter acreditado em você antes, sinto muito.
-- Tudo bem. Tudo bem, meu querido. - ela o beijou - Estamos juntos agora. Nada irá nos separar.

* * * * *

O sol brilhava alto no horizonte. Ela se abraçou a ele com mais força quando o cavalo começou a correr pelo vale.
-- Para aonde iremos? - ela disse.
-- Para um vale vizinho ao nosso reino. Lá não há reis, apenas povos sem governo, e poderemos ser felizes sem ninguém para nos julgar. Ninguém saberá a verdade sobre nós.
-- Um dia voltaremos para cá? Eu desejo me tornar rainha. Você realizará meu desejo?
-- Sim. Realizarei todos os seus desejos. Em breve voltaremos para cá, quando nosso pai não estiver mais apto a governar, e tomaremos o reino. Seremos rei e rainha dessas terras.
-- Sim. - ela sorriu, satisfeita - E seremos felizes para sempre.
-- Para sempre.
E eles seguiram cavalgando, em direção ao horizonte.