quarta-feira, 23 de julho de 2008

[conto #001] A Mulher Perfeita

A MULHER PERFEITA

Ele estava arrumado e limpo e pronto pra sair, a gravata azul apertando seu pescoço de advogado formado há vinte anos, o terno preto revestindo sua empáfia de moralista. Quando abriu a porta, deparou-se com uma cabeça no chão.
Era uma cabeça, não havia dúvidas, e estava sobre o tapete importado. Ele – o homem, não o tapete – cutucou aquela peça bizarra com o pé. Sim, era real, uma cabeça loira de mulher. Na tentativa de ver o rosto ele a inclinou com a ponta do pé, e isso a fez tombar e sair rolando pelo corredor. Ele correu atrás dela desesperado e a alcançou antes que caísse pela escada.
Só depois percebeu, com horror, que estava com a cabeça nas mãos. Era macabro, mas agora já estava feito e ele pigarreou e a analisou pela primeira vez. Era uma cabeça bonita, loira, boca bem feita, olhos verdes muito abertos a encará-lo como se pudessem vê-lo.
Enfim, ele estava atrasado. Correu para dentro de casa, pôs a cabeça em cima da mesa e saiu para o trabalho. Tinha que defender um cliente importante ainda naquela manhã, e nunca se atrasava.

* * * * *

Ele abriu a porta e entrou e deu um grito ao se deparar com uma cabeça sobre sua mesa de jantar. Mas logo se lembrou de que fora ele mesmo quem a colocara ali, e voltou à sua compostura habitual.
Tinha que fazer algo em relação àquilo. Não era recomendável jogá-la no lixo. Podia levá-la a um terreno baldio ou jogá-la no rio. Mas, afinal, era uma cabeça bonita, e ele estava se sentindo sozinho com a sua. De forma que a guardou dentro do guarda-roupas.
Conviviam bem, ele e a cabeça. Ele chegava do trabalho, abria o guarda-roupas e passava horas conversando com ela. E ela nunca o interrompia.
Quando ia trocar de roupa, ele a virava para o fundo do móvel. Era, afinal, um cavalheiro. O homem, não o móvel.
Um dia, quando abriu a porta, deparou-se com um braço. Não pensou duas vezes: o pegou, colocou ao lado da cabeça e saiu para o trabalho. Afinal, nunca se atrasava.

* * * * *

Os pedaços começaram a chegar, sem ordem ou regularidade aparente. Uma perna, um pé, o outro braço, a outra perna. Ele esvaziara um lado do guarda-roupas para poder guardar as peças. Gostava de manter a cabeça perto do resto do corpo.
A última parte a chegar foi a mão esquerda. O homem deu pulos de alegria ao ver que tinha ali todas as partes do corpo. Tirou-as do guarda-roupas e as espalhou pelo chão da sala. Pegou a linha, a agulha, e começou a costurar.
Naquele dia o homem não foi trabalhar. Nem no outro. E nem no outro. Na noite do terceiro dia de trabalho ininterrupto, ele deu o último ponto na costura e cortou a linha. Estava pronto: agora, no chão da sala, havia um corpo inteiro de mulher.
Ele pegou a mulher no colo e a levou para a sua cama. Agora, não precisaria mais dormir sozinho. E ela nunca lhe negava nada.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa foi um dos primeiros contos com temática surrealista que escrevi. Baseado em nada além da minha imaginação insana, foi escrito em apenas um dia, em um ritmo bem frenético, passando apenas por uma leve revisão antes de ser publicado. Todas as pessoas que o leram antes da publicação não apreciaram a ideia, mas eu simplesmente adorei, e imagino que as (poucas) pessoas com um pensamento parecido com o meu também o apreciarão.

Nenhum comentário: