domingo, 10 de agosto de 2008

[conto #002] Memórias

MEMÓRIAS

Hoje minha casa cheira a mofo mas se eu tentar ainda posso sentir o cheiro dele, cheiro de colônia e suor e areia, ele sempre tinha um cheiro doce e salgado. E sexo, ele cheirava a sexo, emanava paixão por todos os poros. Eu gostava daquele cheiro.
Tudo o que resta de cor agora são os retratos desbotados na parede. A poeira cobrindo os móveis. Pra que tudo isso, meu deus? Ele dizia isso e ria porque não acreditava em Deus. Em um dia frio, ele levou nossa mesa de jantar para a praia e pôs fogo nela. Não precisamos de mesa pra comer. E nem podemos comer a mesa.
Mamãe dizia que ele não tinha futuro. E não tinha mesmo, mas eu gostava de seus cabelos compridos e dos seus olhos escuros e do jeito que ele tocava e ria e corria e gritava como se fosse louco, ou como uma criança no auge de suas forças. Eu gostava da força que vinha dele porque era viva, e quase me fazia ser viva também porque eu girava em torno dele, lenta dança de sol e terra.
Não há mais vida agora, apenas a luz pálida daqueles dias. Veio o diploma que hoje está empoeirado na parede, vieram o trabalho, as roupas, as reuniões. Tudo tão escuro mas parecia certo. E ele, tão feliz com suas roupas simples e suas cores e seu violão e seu cabelo comprido, o lado errado da minha vida.
Tomo mais um gole de vinho e me lembro de nós dois dançando em volta da mesa em chamas como numa festa de julho mas era outubro, não que realmente importasse. Não sei quanto tempo o fogo durou mas sei que já tínhamos feito amor mil vezes e ele continuava aceso, lento crepitar.
Ele me dava comida e sua casa e seu amor, mas minhas amigas tinham vestidos e perfumes e joias caras. Minhas amigas tinham noivos e grandes festas de casamento e bailes e festas. E ele não podia me dar isso.
Não sei quando foi que vim para esta casa, nem quando as coisas se cobriram de pó. Só sei que um dia ele se foi. Eu o mandei ir e ele foi, levando seu violão e seus olhos escuros. Foi porque me amava, e não podia me dar o que eu queria.
E eu tive, tive tudo, as joias, os vestidos, as festas, o marido. E tive essa casa e esses móveis e uma mesa de jantar, e nós não dançamos em volta dela. E a vida que eu tinha tomado de meu jovem amor foi indo embora, esvaindo-se, sublimando como gelo em direção ao céu. Restou só a casa, e as joias, e o pó.
Ele morreu há três dias.
Pouca coisa restou agora de mim. É quase como se eu fosse essa casa, grande, rica, cheia de móveis, mas tão vazia, tão cheia de pó.
O vinho evapora do copo. Eu assisto a ele ir embora, assim como você foi embora, assim como a vida foi embora. Até que não restará nada, em mim e em lugar algum.


SOBRE A HISTÓRIA

Tentei fazer esse conto baseado em outro, fantástico, cujo autor não me lembro. Não consegui. Apenas a ideia da história ficou parecida, mas o ambiente, o clima, e a emoção transmitida com a narração, não chegaram nem perto do que eu pretendia ou do original. Apesar disso, não ficou um conto tão ruim assim, por isso resolvi publicá-lo.

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