sexta-feira, 31 de maio de 2013

[conto #043] O Conto do Gato e da Lua

O CONTO DO GATO E DA LUA

Todos sabem que os gatos são servos da lua.
Todas as noites de lua cheia, quando o poder da lua está em seu ápice, ela desce para a Terra e escolhe um gato para ser seu amante. Quando se aproxima o alvorecer, a lua retorna ao céu, e o gato escolhido se torna enfeitiçado, ganhando o dom de se transformar em humano durante a noite.
Conta-se que, há muito tempo atrás, a lua veio para a Terra, em busca de um amor para uma noite, e encontrou o gato mais belo que já existira: seus olhos brilhavam como estrelas na escuridão da noite, seu pelo era sedoso como o mais nobre dos tecidos. Só de vê-lo, a lua sentia seu brilho aumentar.
"O tomarei para mim, como meu amante", ela pensou. "Para que possa acalmar meu coração, e para que eu o esqueça com o alvorecer".
Assim que viu a lua se aproximando, o gato se sentiu corroer de paixão. Era impossível resistir à sua luz e beleza, e ele a amou incondicionalmente. Estendeu os braços para ela, implorando por seu calor frio, e ela se entregou a ele em meio à escuridão da noite.
Quando o sol avisou que em breve seria dia, a lua voltou para o céu, deixando na Terra o seu amante adormecido.
Mas algo estranho aconteceu. Pela primeira vez, a lua não conseguia esquecer seu amante. Se viu desejando a presença de seu amado, querendo experimentar novamente seus carinhos noturnos. Durante o dia, chorava de saudade e solidão; à noite, passava o tempo todo seguindo-o com o olhar, vendo-o tão distante, sem poder tocá-lo ou falar com ele.
Pela primeira vez em sua existência, a lua estava apaixonada.
Quando a próxima noite de lua cheia chegou, ela mal conseguia conter sua ansiedade. Desceu para a Terra, exatamente no lugar em que estava o seu amado. Ele ficou surpreso ao reencontrá-la.
-- E uma grande honra revê-la, minha amada, mas achei que a lua nunca voltasse para ver um amante.
-- E estava certo em seu pensamento, meu amado. Porém, pela primeira vez em minha vida, estou apaixonada. Eu o amo, querido, e desejo ter você, não só nessa noite, como em todas as noites de lua cheia.
-- Mas este é o sonho da vida de qualquer gato! Será uma honra e um prazer para mim, minha senhora.
Mais uma vez eles fizeram amor. Quando, no dia seguinte, a lua voltou para o céu, sentia o coração leve, pois sabia que mesmo com a ausência, voltaria a ter seu amado para si dali a um mês, e assim seria em todas as suas visitas à Terra.
Aconteceu, porém, que em uma noite tranquila de lua nova, o gato resolveu experimentar o dom que a lua lhe concedera, e se transformou em homem. Enquanto andava pelas ruas em sua forma humana, avistou uma jovem, a mais linda jovem que existia naquela cidade; e estando ele em forma de homem, seu coração batia como o de um homem, e ele se apaixonou por ela. Aproximou-se, cortejando-a, e sendo ele belo tanto na forma de gato quanto na forma humana, a menina logo se apaixonou. Ele tentou seduzi-la, mas mesmo tomada por amor ela recusou seus beijos.
-- Não posso beijar um homem que nunca me deu uma flor, ela disse.
-- Pois venha amanhã a noite até essa praça, e lhe darei a mais linda flor que já existiu.
Quando amanheceu, o gato voltou a sua verdadeira forma e correu para a floresta. Andou por trilhas desconhecidas, por bosques tenebrosos e por vales verdejantes, até chegar à única roseira do mundo na qual nasciam rosas azuis. Ele colheu uma das rosas e voltou para a cidade, chegando quando o sol já se punha. Logo escureceu, e ele ficou escondido, observando a praça. Quando a garota apareceu, ele se transformou em homem e foi até ela.
-- Eis aqui, senhorita - ele lhe entregou a rosa - a flor que muitos dizem não existir, a mais bela rosa do mundo. Eu lhe dou para ter seu amor.
-- É linda, cavalheiro. Eu agradeço.
Ele tentou beijá-la, mas ela o afastou, dizendo:
-- Estou grata pela flor, mas não posso amar um homem que nunca me escreveu cartas.
-- Me espere amanhã ao anoitecer, e lhe escreverei a mais bela carta de amor que alguém já escreveu.
Durante o resto daquela noite o gato escreveu, pois quando voltasse a forma de animal não poderia fazer isso. Quando os primeiros raios de sol iluminaram a terra e ele abandonou a forma humana, a carta estava pronta e ele estava exausto, de forma que dormiu durante todo o dia.
Quando a noite chegou, ele encontrou a garota na praça, e lhe entregou a carta. Ela a leu; seus olhos se encheram de lágrimas com emoção, e seu coração acelerou com a doçura e a paixão ali contidas; mas quando o gato foi beijá-la, ela o impediu, dizendo:
-- É a mais linda carta que já li, mas não posso amar um homem que nunca me cantou poemas.
-- Pois esteja aqui amanhã a noite, e lhe cantarei os mais lindos poemas que alguém já compôs.
E assim ele fez, e assim se seguiram muitos e muitos dias; a jovem nunca o aceitava, pois sempre pedia uma nova prova de amor. Paciente, ele esperava, e a todos os seus pedidos atendia.
Até que novamente chegou a noite de lua cheia. O gato não se deu conta de que era o dia, até que e lua surgisse diante dele, nua, bela e brilhante.
-- Minha amada, ele disse e a tomou pela mão, embora, para sua surpresa, não sentisse mais a mesma paixão de antes.
-- Você está diferente, meu amado. Sinto como se seu amor por mim não fosse mais o mesmo.
-- Está enganada, minha senhora, e ele a tomou para si mais uma vez.
Mas durante todo o tempo, era na jovem garota humana que ele pensava; e seu coração parecia vazio e frio, mesmo tendo a lua em seus braços. E pela primeira vez ele percebeu que realmente amava a jovem.
Mas a lua me quer, e nunca permitirá que eu tenha outros amores, ele pensou. Depois que a lua se foi com o dia, ele passou longas horas pensando no que fazer. Como todos os gatos, era um servo da lua, e estava em seu poder; se ela se voltasse contra ele, seria o seu fim.
Quando a noite chegou, ele foi novamente até a praça, onde sua amada o esperava, com um olhar triste. Transformou-se em homem e foi até ela. Beijou sua mão respeitosamente e disse:
-- A senhorita parece triste.
-- Estou triste - ela se afastou - porque você diz me amar, mas não veio me ver ontem à noite.
-- Sinto muito. Eu não pude vir. Mas a amo. - ousadamente, ele a segurou pelo braço e se aproximou - Te amo como nunca uma mulher antes foi amada. Te amo mais do que os gatos amam a lua. Mas a senhorita não me ama, e zomba de meu amor.
-- Como ousa dizer que não o amo? Já não lhe falei de meu amor?
-- Palavras, apenas palavras! Eu já lhe dei o céu e a terra, e a senhorita continua a não crer em meu amor. Não percebe o quanto sofro? Não pode ver? - ele a agarrou pelos braços, em desespero - A amo como nunca amei mulher alguma, farei qualquer coisa por você, mas a senhorita zomba de mim e de meu amor. Brinca comigo, me tortura com pedidos de provas de amor e promessas, mesmo sabendo que meus sentimentos são verdadeiros! Nosso amor é tolo e impossível, e a senhorita é cruel e sem coração.
Ele se afastou, com o coração despedaçado, mas a jovem correu até ele, implorando para que ficasse.
-- Espere! Espere, meu querido. Por favor, perdoe-me. Em minha inocência e juventude, tive medo de seu amor, e tentei testa-lo de todas as formas. Mas é verdade que você me ama, e eu o amo. Quero ficar com você por toda a minha vida.
E finalmente, eles se beijaram, sob o céu estrelado.
Mas no céu, a tudo a lua via. Furiosa pela traição, ordenou às nuvens do céu que se juntassem e cobrissem a Terra com a chuva mais fria que já caíra. Na terra, os dois amantes tiveram que correr pelas ruas, e se proteger em um velho teatro abandonado.
-- Essa chuva é tão misteriosa que má dá medo, disse a jovem, assustada.
-- Não há mistério, embora haja razão em seu medo. Essa chuva foi causada pela lua.
-- Mas por que a Senhora de todos os amantes derramaria lágrimas frias sobre o nosso amor?
-- Porque ela me quer. Há um segredo sobre mim que você não sabe. Embora tenha me conhecido sob a forma de homem, eu na verdade sou um gato, um dos escolhidos da lua.
Todos sabem que os gatos são servos da lua, e a jovem também sabia. Diante de tão terrível revelação, ela se sentiu perder as forças, e se apoiou na parede; pois amar um ser de outra espécie só poderia trazer tristeza e sofrimento.
-- Há três luas cheias, a lua veio até mim, e me escolheu como seu amante. Tendo me deitado com ela, eu fui abençoado com o dom de me tornar em homem durante as noites. Mas a lua se apaixonou por mim, e voltou a me procurar na lua cheia seguinte, dizendo que queria que eu fosse dela para sempre. Como todo gato, sou seu servo fiel, e fiquei honrado com sua preferência por mim; mas me apaixonei por você, e agora meu amor pela lua parece apenas o pálido reflexo de uma paixão, em comparação ao que sinto por você.
-- Então, tudo é muito pior do que eu imaginava. Além de sermos seres destinados a nunca ficarem juntos, nosso amor ofendeu à lua! Nosso amor é mais do que impossível, é amaldiçoado!
Lágrimas caíram pelos olhos dela, e ele a abraçou. Lá fora a chuva continuava a cair, embora a lua não pudesse vê-los.
-- O que será de nós?, ela perguntou. O que será?
-- Vim até aqui hoje com um plano, mas entenderei se não o aceitar. - ela olhou para ele com esperança - Nós poderemos nos ver apenas a noite, pois de dia serei apenas um gato. Nosso amor durará o tempo entre o crepúsculo e a aurora. E na próxima noite de lua cheia, você deverá me matar quando eu surgir diante de você na forma de um gato.
-- Não, eu nunca poderia fazer isso!
-- Escute-me. Se fizer isso, poderemos ficar juntos. Caso contrário, nunca mais nos veremos. A decisão está em suas mãos.
-- Mas como ficaremos juntos, se eu o matarei?
-- Apenas confie em mim. Ficaremos juntos se você fizer o que lhe peço.
Após muitas lágrimas, ela afinal concordou. Naquela noite, sob a fria chuva que caía lá fora, em um teatro escuro e abandonado, eles se amaram como nunca antes dois amantes haviam amado.
Dias e dias se passaram. Os dias eram tristes e vazios para eles, e assim que as noites caíam, os dois corriam para os braços um do outro, mesmo sabendo que, lá de cima, a lua a tudo via, e planejava vingança. Em todas as noites choveu, uma chuva fina e triste que trazia toda a escuridão que existe ao mundo.
Finalmente, chegou a próxima noite de lua cheia. Assim que escureceu, o gato se transformou em homem, e aguardou. A lua surgiu no céu e desceu para a terra, e foi até ele, ansiosa por vingança.
-- Você me traiu. - ela disse - Ousou me trair, mesmo eu sendo sua senhora. Ousou negar um amor que todos os outros gatos dariam a vida para ter.
-- Sinto muito, minha senhora, mas ao me transformar em homem, meu coração se tornou o coração de um homem. Eu sou devotado a você como todos os gatos, mas é a humana quem amo.
-- Se é assim, a matarei! Matarei a ambos, a ela pela ousadia, e a você pela traição!
Com seu poder, a lua fez com que a jovem surgisse ali. Ela olhou assustada, mas sabia que aquilo aconteceria. Olhou para seu amado; ele esperou um momento, e quando a lua estava prestes a ordenar a morte de ambos, ele se transformou em gato e pulou no colo de sua amada. Com um punhal encantado, ela o apunhalou. Ele deu um grito longo, e seu sangue caiu sobre as pedras da rua.
-- Não! - gritou a lua - O que você fez!
-- Fiz o que qualquer mulher faria pelo homem que ama.
Quando todo o sangue do gato havia saído de seu corpo, ele desapareceu. O sangue no chão começou a borbulhar como água fervente, e se transformou e tomou forma de homem, a forma humana do gato.
-- Agora sou um homem de verdade, e nada mais do que isso, ele disse. Minha alma de gato se foi, e não devo mais servidão a você, lua; sou um homem, e todos os homens são livres.
A lua gritou de frustração, e os dois amantes se abraçaram, felizes. Mas ela não se deu por vencida. Disse, levantando as mãos aos céus:
-- Não sou mais sua senhora, mas ainda tenho o poder dos Céus para fazer com que vocês nunca fiquem juntos! Vocês, que se conheceram e se amaram sob a lua e as estrelas, jamais viverão sob o sol novamente! Eu os condeno a vagar eternamente na escuridão!
E com isso uma grande luz encheu a Terra. O gato e sua jovem amada foram transportados para o céu e se transformaram em estrelas, estrelas pequenas mas muito brilhantes, que orbitavam uma ao redor da outra.
Diz-se que até hoje, nos céus, é possível ver as duas estrelas, girando lentamente ao redor uma da outra, amando-se eternamente. Nas noites de lua cheia, elas se escondem no céu, por medo da vingança da lua; e em todas as outras noites elas iluminam os caminhos daqueles que têm um amor proibido.
É isso que se conta, desde aqueles dias até hoje.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu escrevi esse conto logo depois de ler Sandman, então, embora aparentemente não tenha nada a ver, a história de Neil Gaiman teve uma grande influência nele. Eu comecei com uma ideia e acabei enveredando por um caminho completamente diferente. Tinha duas histórias na cabeça: ou a do amor impossível da lua por um gato, ou do amor impossível do gato por uma mulher. Escolhi a primeira mas acabei misturando a segunda, e ficou uma coisa que nem eu sei de onde saiu, confesso que não tenho a menor ideia de como a história teve esse final. Mas acho que ficou até bom; se tivesse seguido o plano inicial, talvez tivesse ficado ainda mais clichê. A ideia era fazer um conto de fadas para adultos, e acho que ficou razoável nesse sentido.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

[fanfic #006] [Sandman] Primórdios do Sonhar

AVISOS:
  • Esta é uma fanfic baseada na HQ Sandman, escrita por Neil Gaiman
  • Na edição 16 de Sandman (Casa de Bonecas - parte 07), Sonho conta para Rose Walker que, a eras atrás, ele falhou em seu dever e um vórtice destruiu um mundo inteiro. Nada mais é dito sobre o fato, e eu usei essa ideia para escrever essa fanfic.
  • Nem de longe essa fanfic faz jus às histórias originais de Sandman, e nem nos meus melhores sonhos acho que chegarei ao nível de Neil Gaiman. Escrevi isso apenas porque... Porque tinha acabado de ler Sandman e minha mente estava eufórica com a história, eu precisava escrever alguma coisa.


PRIMÓRDIOS DO SONHAR

Ela sonhava.
Era uma noite como muitas outras, apenas. E ela sonhava.
Era um sonho estranho. Ela não era do tipo que tinha sonhos estranhos, mas aquele era um. Normalmente, sonhava com o dia-a-dia do castelo, seus afazeres, ou que afinal se declarava para o duque. Dessa vez, não era nada disso. Dessa vez, era...
Era um mundo diferente de qualquer coisa que ela já vira. Uma mistura de imagens e cenas que deveriam ser desconexas, mas não eram. Ali, de alguma forma, o caos fazia sentido. Ela estava no alto de um monte, do lado de duas casas. Criaturas estranhas olhavam para ela como se ela fosse uma intrusa. Ela podia ver, ao longe, um castelo.
O mais estranho era que ela sabia que estava sonhando. Começou a andar em direção à casa, sentindo uma imensa curiosidade, mas as imagens começaram a perder o foco, a sumirem. Ela se sentia ser puxada de volta para seu corpo. E, de repente, sem seu consentimento, ela acordou.
-- Gablin, você está atrasada. - disse sua tia, entrando no quarto sem nenhuma cerimônia - O jardim a aguarda. As plantas estão quase aos prantos porque você se atrasou. O que o duque irá dizer? Ande, criança.
-- Estou indo. - ela se levantou da cama, ainda tonta, e começou a se vestir - Ahm... Tia? Eu tive um sonho estranho...
-- Todos temos. - sua tia a ajudava a fechar o vestido.
-- Mas esse era tão real...
-- Acontece. Ande, vá correndo, ou será castigada como naquela vez!
-- Sim, senhora.
Com um último pensamento para o sonho, Gablin foi até a janela e viu o jardim, onde algumas plantas já começavam a chorar. Ela tomou um impulso e saiu voando pela janela, em direção a ele.

* * * * *

O trabalho do dia fora árduo e desinteressante. As plantas, uma vez que começavam a chorar, dificilmente paravam; as flores mais jovens quase arrancaram as próprias pétalas, e um arbusto praticamente se desfez, ficando espalhado pela grama. Foi preciso horas e horas de canções, histórias e conversas para faze-las se acalmar.
Ao fim do dia, quando o segundo sol começava a se pôr, ela afinal conseguira fazer todas as plantas do dia dormirem. As plantas da noite começavam a despertar, algumas um pouco precocemente; ela as alimentou e cantou para elas, até que chegou a jardineira da noite, e ela afinal pôde se retirar.
Após se alimentar, ela voou para a janela de seu quarto (podia usar as escadas, mas queria evitar esbarrar com qualquer um, principalmente com o duque) e se deitou em sua cama. Estava mais cansada do que o normal, sentira sono durante todo o dia. Quase sem perceber, ela fechou os olhos, e logo adormeceu.
E sonhou.
Dessa vez, estava em outro lugar, embora ainda estivesse no mesmo lugar. Não estava mais ao lado das duas casas, mas podia ve-las ao longe; e estava quase ao lado do castelo. Era um castelo diferente de qualquer outro que ela já havia visto. Foi andando até ele, mas os portões estavam fechados, e eram guardados por seres que ela nunca vira.
-- Quem é você? - um deles disse, de forma não ameaçadora.
-- Sou Gablin, a Jardineira do Dia. Que lugar é este?
-- Aqui é o Sonhar, e este é o castelo do Senhor dos Sonhos, o Rei de tudo o que existe aqui.
-- E eu posso entrar?
-- Nosso mestre permite sua entrada. - os portões se abriram - Siga a trilha, e não se desvie dela, ou coisas terríveis poderão acontecer.
Um pouco assustada por aquele aviso, ela adentrou o palácio. Uma luz a guiou por oníricos corredores, até que ela afinal chegou a uma grande e bela sala, com uma escada que levava a um trono em seu centro; e neste trono, estava sentado um homem. Um homem pálido, com olhos negros como o vazio do universo, no fundo dos quais brilhavam estrelas. Ele vestia um manto negro, que trazia chamas em seu interior. Ela sabia o que ele era, embora nunca tivesse ouvido falar de sua existência; como se desde o momento em que passara a existir, o conhecimento sobre esses mistérios estivesse dentro dela, apenas esperando a hora de se revelar.
-- Você é o Rei dos Sonhos. - ela disse, apenas por não saber o que dizer.
-- Sim, Gablin, Jardineira do Dia. E você é um dos poucos mortais que vêm conscientemente ao meu castelo.
-- Por que estou aqui? Isso nunca aconteceu antes.
-- Não, não aconteceu. Não com você. E na verdade, há muitos séculos que algo como você não acontecia.
Ele se levantou e andou até ela. Ela o achava assustador mas, curiosamente, não sentia medo. Ele se aproximou, parecendo olhar dentro de sua alma.
-- Você sabe o que você é, Gablin?
-- Sou a Jardineira do Dia.
-- Sim. Mas você é muito mais do que isso. Você é um vórtice.
-- Um... O que?
-- Um vórtice. Venha comigo, vou lhe mostrar o castelo.
Eles andaram por diversas salas, uma mais estranha do que a outra, e todas fascinantes. Algumas delas ele apenas mostrava de longe, e dizia que seria perigoso demais entrar. Em outras eles entravam, e ele mostrava cada detalhe. Enquanto isso, conversavam.
-- A cada era, com um espaço de muitos milhares de anos, surge um vórtice. Uma pessoa que tem o poder de quebrar as barreiras entre os sonhos. Essa pessoa pode causar danos irreparáveis ao sonhar, pode destruir os sonhadores. É minha obrigação evitar que isso aconteça.
-- Então eu, sendo um vórtice, vou fazer alguma coisa ruim com os sonhos das pessoas, e essa coisa ruim pode matar todo mundo. É isso?
-- Sim, é isso.
-- E como eu faço para impedir que isso aconteça?
-- Não há nada que você possa fazer. É involuntário.
-- Então...
-- Cabe a mim impedir que o pior aconteça.
-- E como você faz isso?
-- Terei que matar você.
Por um segundo ela ficou parada, tentando entender o significado do que ele dissera, e então deu um passo para trás. Estava diante de um ser que era mais do que um deus, e ele dissera que iria mata-la. Ela sabia que, se ele fosse fazer isso, ela não teria como fugir.
-- Vai... Me matar? Mas eu... Eu nunca quis ser um vórtice...
-- Eu sei. Você não teve escolha. E eu também não tenho. Sinto muito, Gablin.
Ela sentiu que uma lágrima caía por seu rosto, mas foi a única, e ela conseguiu se controlar. Pensou em sua mãe. Em seus parentes. Em seus amigos.
No duque.
-- Não será agora. - disse o Senhor dos Sonhos - Por enquanto, não há necessidade de eliminar você. Você continuará vivendo sua vida normalmente, e quando dormir, estará cada vez mais consciente. Poderá vir aqui quando quiser, poderá me pedir um sonho, se quiser. Mas quando sua consciência se expandir para os outros sonhos, eu terei que destruir você.
-- Então, agora, eu... Eu posso voltar para casa?
-- Pode. Mas pode ficar mais um pouco, se quiser. Ainda é cedo.
-- Certo. Eu... Quero ver o resto do castelo.
Eles passearam pelo castelo, e depois de um tempo, ele a chamou para jantar. Os dois foram para um salão com uma enorme mesa, onde ela comeu tudo o que mais gostava - e ficou surpresa por se sentir satisfeita, mesmo em um sonho - e eles conversaram mais. Apesar de parecer frio e assustador, ele era, na verdade, doce, amável e melancólico como os poetas noturnos, e ela se viu apreciando sua companhia.
-- Tenho que voltar. - ela disse - Já deve estar na hora de despertar, e as plantas esperam por mim.
-- As plantas a amam. Eu posso ver nos sonhos delas; a maioria sonha com você, com suas canções. - ele a fitou por um momento - Você cantaria para mim?
-- Cantar? Para você? Eu... Nunca cantei para um deus antes...
-- Não sou um deus. Sou algo mais do que isso, e aprecio as lembranças de suas canções nos sonhos das plantas. Gostaria de ouvir uma das verdadeiras, pois só conheço as sombras delas.
-- Se é o seu desejo, eu cantarei. - ela se pôs de pé, sentindo-se bastante tímida, e começou a cantar. Cantou a canção que cantava para as plantas quando o dia chegava ao fim, dizendo a elas que fechassem suas folhas e pétalas e que se entregassem ao reino dos sonhos; dizendo que a luz da lua as protegeria de qualquer mal, que o som suave de sua voz acalentaria seu sono, e que em breve os sóis renasceriam, trazendo o calor e o despertar. Era uma cantiga de ninar, mas ela a cantou como se fosse um pedaço de sua alma; e quando acabou, sentia-se emocionada com sua própria canção. O Senhor do Sonhar a observava, e embora sua expressão fosse indecifrável para olhos mortais, ela sentia, sabia que sentia, uma profunda admiração vindo dele.
-- Foi... Belíssimo. - ele disse, levantando-se também e indo até ela - A canção que escutei nos sonhos é apenas uma pálida sombra da verdadeira. Você mesma a compôs?
-- Todos os Jardineiros devem compôr suas próprias músicas, pois elas refletem sua alma. - ela se sentia embaraçada e orgulhosa.
-- Sendo assim, sua alma é uma das mais belas que já vi entre seu povo.
Ela sorriu, e ia dizer algo; mas de repente, muito rápido, tudo ao redor ficou enevoado e sumiu em escuridão. E quando ela abriu os olhos, estava em sua cama, e sua tia a sacudia para que ela acordasse.
Estava atrasada de novo.

* * * * *

Ela não sabia mais o que era real e o que não era.
Durante todo o dia, não conseguia se concentrar em suas tarefas. Cantava para as plantas de forma distraída, as regava sem lhes falar de seu carinho, e mal sentia o calor do sol em sua pele. Pensava no sonho, ainda mais estranho do que o anterior, e não tinha certeza do quanto era sonho e do quanto era real. Assim que acordara, as imagens começaram a se tornar distantes, irreais. Despertara com a convicção de que era tudo verdade, mas agora já não tinha certeza.
Ao fim do dia, ela estava cansada, mas não foi para o seu quarto. Andou entre as plantas adormecidas até o lago nos limites do jardim, despiu-se e entrou em suas águas. Queria se banhar, queria pedir conselhos aos Deuses das Águas sobre o que estava acontecendo com ela.
Enquanto se banhava, ela murmurava de forma quase inconsciente uma canção que inventava na hora, sobre a água fria do lago, sobre o luar, sobre as estrelas e sobre o amor de tudo o que é vivo; e sem perceber, a canção tornou-se uma canção sobre os sonhos, sobre castelos infinitos, sobre um Senhor do Reino dos Sonhos que tinha estrelas nos olhos e chamas em seu manto. Quando ela virou-se para sair do lago, o Rei dos Sonhos estava sentado sobre a grama, olhando para ela.
O susto foi enorme, e ela deu um breve grito antes de tapar a boca com as mãos. O Rei dos Sonhos pareceu achar graça na reação dela, e disse:
-- Essa canção foi ainda mais bela do que a que você cantou para mim ontem.
-- Eu a inventei agora. - ela saiu do lago, sentindo o ar frio em sua pele nua - Estou sonhando?
-- Não. Eu vim ao Mundo Desperto.
-- Não sabia que podia fazer isso.
-- Eu posso. Você me chamou em sua canção, e eu vim.
Ela se sentou ao lado dele na grama, sob a luz do luar.
-- Me sinto espionada. - ela disse - Mas apesar de parecer um homem, você não é realmente um, certo?
-- Certo.
-- Então, quer dizer que mesmo eu estando nua, você não me olha como os homens de minha espécie olhariam. Meu corpo não significa nada para você.
-- Errado.
Intrigada e um pouco preocupada, ela olhou para ele; mas ele agora olhava para o céu.
-- Me sinto importante. - ela disse, após um tempo - O Rei do mundo dos sonhos veio ao meu mundo apenas para ouvir minha canção.
-- Eu iria muito mais longe para ouvir canções tão belas. - ele se virou para ela e, surpreendentemente, tocou em seu rosto - Se passasse a eternidade te ouvindo cantar, meu fardo seria mais leve sobre meus ombros.
Suas palavras, a forma como ele a olhava, e a forma como a tocava, fizeram ela suspeitar de que estava sendo cortejada. Antes que ele a tocasse, ela pensara, por algum motivo, que sua pele fosse fria como a noite; mas havia calor em seu toque, um calor suave que a fazia querer se aninhar a ele, se esconder sob a escuridão de seu manto, por toda a eternidade.
"Mas o que estou fazendo?", ela pensou. "Me apaixonando por algo que está acima dos deuses? Isso não é muito esperto. Não é nada esperto".
-- Tenho que voltar ao palácio. - ela disse - Estou cansada, e amanhã tenho trabalho a fazer.
-- Venha. Venha para o meu reino. Venha para dentro de mim. - ele se levantou e a ajudou a fazer o mesmo - Estarei te esperando em meu castelo.
Ela se vestiu, e foi andando em direção ao castelo. Ao olhar para trás, o Senhor dos Sonhos desaparecera. Ela começou a andar mais depressa e afinal alçou voo, ansiosa para reencontra-lo.

* * * * *

O sonho daquela noite foi ainda mais maravilhoso do que o das noites anteriores. O Rei dos Sonhos a levou para andar pelo seu mundo, por jardins mais belos do que quaisquer outros que existissem no mundo desperto, por praias onde ele moldava sonhos e pesadelos, por mundos inteiros onde as pessoas buscavam repouso ao dormir.
-- Mestre dos Sonhos - ela disse, quando os dois contemplavam as belezas de um mar cor-de-rosa - você tem um nome? Até agora, só lhe chamei por títulos.
-- Me chamam de muitos nomes. Mas seu povo não tem um nome para mim. De forma que pode me chamar de Sonho.
-- Sonho é o nome do seu reino.
-- Não. Sonho é o meu reino, e é o que sou. Eu sou o sonho e o sonho sou eu. Somos todos uma coisa só. Eu sou apenas uma personificação, um aspecto do sonho.
Demorou um pouco para que ela entendesse. Não seria tão difícil aceitar aquilo, se ele não estivesse sentado ao seu lado, conversando com ela; se ela não tivesse escutado sua vóz e sentido seu toque.
-- Mas você parece tão real. - timidamente, mas de forma ousada, ela tocou a mão dele - Tudo em você... Você não parece só uma personificação. Parece algo vivo.
-- De fato, sou real. - ele tocou no rosto dela - E embora minha existência não possa ser chamada de vida, sou um ser consciente, assim como você. Embora sejamos formas de consciência diferentes.
-- Você é real... Claro. Tão real que estava ao meu lado no jardim, no Mundo Desperto. Tão real que vai me destruir quando chegar a hora. - a esse pensamento, ela se entristeceu, e o soltou - Falta muito?
-- Receio que não. Mas você ainda tem algum tempo.
-- Algum tempo... Sinto que deveria fazer algo para aproveitar meus últimos momentos. Mas não sei o que. - ela olhou para o mar cor-de-rosa - Nunca tive grandes sonhos. Nunca sonhei com mares cor-de-rosa, com animais que não existem, com poderes que não tenho. De certa forma, a vida que tenho é a única vida que sempre quis. Acho que não sou uma pessoa que você considere interessante, sendo o próprio Sonho.
Os dois permaneceram em silêncio por um longo tempo. E então ele pediu, mais uma vez:
-- Cante para mim.
Ela cantou. Dessa vez uma canção triste, melancólica, sobre amores perdidos, vidas que se foram, mundos que deixaram de existir. Sonhos que nunca se realizarão e pessoas que nunca serão amadas. Uma canção doce, de tristeza e solidão.
Quando acabou, ela estava chorando. Não olhou para ele; de certa forma, tinha medo de olhar para um ser tão poderoso, num momento em que ela se sentia tão frágil. Mas ele a procurou; seus braços a envolveram, e quando ela deu por si, estava nos braços dele, seu manto a envolvia, e ela se surpreendeu mais uma vez ao ver que ele era quente, que sua pele era suave, e que ele a abraçava com o carinho e o calor com que um homem de seu mundo abraça a mulher amada. Ela olhou para ele, e seu rosto estava tão próximo que ela achava que podia sentir o calor das estrelas no fundo de seus olhos. Tocou em seu rosto, em silêncio, e em silêncio permitiu que ele a beijasse.
"Estou sendo beijada pelo Sonho", ela pensou. "De todas as coisas misteriosas de que já ouvi falar, essa é a mais estranha de todas".
O beijo durou a eternidade de um sonho, e ainda assim acabou muito cedo. Ele a fitou por um tempo, com um sorriso tímido que destoava completamente de um ser como ele, e estava prestes a beija-la de novo, quando ela o afastou.
-- Não. Está quase amanhecendo. Preciso ir.
-- Fique. Fique aqui, e estará segura. A cada vez que voltar para o mundo desperto, estará mais próxima da destruição.
-- Não posso ficar, meu querido Sonho. Não posso ficar. - ela se libertou de seus braços e se levantou - Ou a minha própria existência se tornará um sonho. Devo ir, devo acordar e aceitar meu destino. E, se essa noite ainda eu viver, então voltarei para cá.
E antes que ele pudesse aceitar ou protestar, ela se fora.

* * * * *

Ao contrário dos últimos dias, ela não se sentiu cansada ou sonolenta durante o dia. Estava estranhamente eufórica, como se a proximidade do fim e a possibilidade de reencontrar Sonho lhe dessem um ânimo que ela nunca tivera.
Ao fim do dia, ela deixou o jardim e voltou para o palácio. Dessa vez não foi voando para sua janela, preferindo passar pelos salões e corredores. Queria ver as pessoas com quem vivera sua vida toda, pois podia ser a última vez. Cada boa noite seria uma despedida.
Depois de passar bastante tempo conversando com as pessoas no salão, ela subiu as escadas para o seu quarto. No caminho, porém, encontrou com a última pessoa que esperava: o duque.
-- Gablin, Jardineira do Dia. - ele disse, fazendo-lhe uma mesura - Já está indo se recolher, assim tão cedo?
-- Sim, tenho que trabalhar amanhã cedo, senhor.
-- A senhorita não gostaria de me acompanhar por um passeio pelo castelo?
Ela não conseguia acreditar: durante metade da sua vida, tudo o que quisera fora ser convidada para andar ao lado do duque, poder passar algum tempo com ele, para que, quem sabe, ele pudesse vê-la como mais do que a Jardineira do Dia. Sempre pedira por uma chance de declarar o seu amor. E a chance vinha justo agora, quando ela estava prestes a desaparecer.
Mas ela não podia recusar o pedido. Aceitou o braço que ele lhe estendia, e os dois saíram caminhando juntos pelo palácio. Acabaram indo até uma das grandes sacadas que dava de frente para o jardim, e se sentaram ali, conversando.
Conversaram durante algum tempo, sobre a vida no castelo e as pessoas, sobre as plantas do jardim e sobre o reino. A conversa era leve e agradável, mas de repente ela se pegou desejando estar em seu quarto, dormindo, mergulhando no caótico mundo dos sonhos, onde um ser da idade do Universo a aguardava para ama-la e pôr fim em sua vida...
-- Gablin?
-- Ahm?
-- Você parece tão distante, querida.
Ao olhar para ele, ela percebeu o que estava acontecendo. Estivera distante, sim, porque seus pensamentos estavam naquele que amava, e ela não amava mais o duque. Aquele a quem amava estava esperando por ela em outro mundo.
-- Desculpe, senhor, mas estou muito cansada. - ela se levantou - Adorei passear com o senhor pelo castelo, mas agora devo me recolher.
Ele parecia surpreso, mas não protestou. Beijou a mão dela e disse:
-- Como quiser. Vá, senhorita, e descanse.
Ela lhe fez uma mesura e saiu. Teve que se controlar para não correr em direção ao quarto, pois se ficasse muito agitada, não conseguiria dormir. No caminho, pensava em Sonho, e no que acontecera na noite anterior. Ela não achava que sonhos pudessem amar, mas ele a amava. Ela tentava imaginar como seria fazer amor com o Sonho. Se seria algo permitido pelas leis do Universo. Mas afinal, de leis do Universo ela pouco entendia; devia confiar nele para definir o que seria certo e errado.
Ela não conseguia dormir; pensamentos cruzavam sua cabeça o tempo todo, a deixando agitada.
-- Sonho - ela disse, afinal - não consigo dormir.
Como um fantasma, ele surgiu ao seu lado, sorrindo para ela. Levou a mão até seus olhos e deixou cair uma areia fina e branca, dizendo:
-- Venha.
E como por mágica, ela estava dormindo; e se viu imersa em sonhos, e de repente estava novamente no castelo de Sonho, e ele estava ao lado dela.
-- Você demorou. - ele disse.
-- Não conseguia dormir. E antes de deitar, fiquei andando pelo castelo com o duque.
-- O duque é aquele a quem você ama, não? - ele parecia melancólico - Tenho te visto sonhar com ele durante muito tempo.
Ela percebeu sua tristeza. Disse:
-- É verdade. Eu o amei durante muito tempo. Dediquei a maior parte de minha vida a ele, na esperança de que um dia ele recebesse meu amor. E hoje, pela primeira vez, ele me deu uma chance de ter seu amor. - ela segurou a mão de Sonho - Mas eu não o amo mais, e recusei a chance que ele me ofereceu. A recusei porque era você quem eu queria.
Com isso, ela o abraçou e o beijou, sentindo-se corajosa por buscar ela mesma o beijo; e ele a aceitou, e a levou para a escuridão de seu manto.

* * * * *

Ela acordou em sua cama, e para sua surpresa, ele estava deitado ao seu lado, embora não dormisse.
-- O que faz aqui?
-- Achei que fosse ficar feliz por eu estar aqui.
-- Estou feliz. - ela sorriu - Mas achei que não fosse te ver durante o dia.
-- Não é um bom comportamento o amante deixar que sua amada acorde sozinha.
-- Você é muito gentil.

* * * * *

Dessa vez, ela dormira rápido.
Rápido demais, talvez.
E, dessa vez, não foi para o castelo do Senhor do Sonhar. Viu-se flutuando sobre um mundo de sonhos, e sentia-se mais consciente do que nunca. Podia ver os sonhos de todas as pessoas do castelo, de todas as pessoas daquele reino, e dos reinos vizinhos, e de todo o mundo; e percebeu o quanto era tênue as linhas que dividiam os sonhos. Bastaria um empurrão, e todos os sonhos se misturariam. Um a um, ela começou a derrubar os limites entre os sonhos, unindo todos em um grande sonho, um sonho único, um sonho...
-- PARE!
A voz a trouxe de volta à razão, mas continuava sendo compelida a derrubar as paredes entre os sonhos, como se isso fosse uma tentação irresistível, algo que ela tinha que fazer. Mas Sonho estava segurando ela, a levando para algum lugar; e eles se encontraram novamente nas margens do mar cor-de-rosa.
-- O que aconteceu? - ela perguntou, confusa.
-- O vórtice em você atingiu seu ápice. Se eu não te destruir, você destruirá todos os sonhadores.
-- Então... Você vai me matar.
-- Sim.
Ela tentava não entrar em pânico. Sabia que não havia outro jeito. Sabia que ele estava fazendo o que era seu dever fazer.
Mas mesmo assim, ela tinha medo.
-- Tudo bem. Foi bom o tempo que passamos juntos. - ela olhou nos olhos dele - Faça.
Ele se aproximou dela e a abraçou. Ela fechou os olhos, esperando. E então...
E então, não houve nada. Ela abriu os olhos; ele ainda estava na mesma posição, segurando ela, e parecia incapaz de se mover.
-- Deuses não devem hesitar. - ela disse, suavemente.
-- Não sou um deus. - ele disse mais uma vez - E não sei se posso fazer isso.
-- Há outra forma?
-- Receio que não.
-- Sonho... - ela o beijou - Faça o que tem que fazer. Só... Só não deixe que eu sinta dor, por favor.
-- Não deixarei.
Novamente ela esperou, mas novamente ele hesitou, por um segundo; e esse segundo foi fatal. De repente, ela se sentiu ser puxada para um turbilhão de sonhos, sentiu que sua simples existência derrubava todas as barreiras entre eles. Os sonhos foram se misturando, se unindo, tornando um único sonho de muitas mentes, até que se tornou incapaz de ser suportado por aqueles que sonhavam e implodiu.
A implosão fez estremecer os mundos entre o sonhar e o despertar, e criou um gigantesco buraco negro, que sugou as almas de tudo o que sonhava. A última alma a ser sugada foi a de Gablin; mas, naquele momento, ela já não tinha uma consciência própria, era apenas um emaranhado de sonhos de todos os seres vivos.
E então, acabou.
Tudo o que restou foi o silêncio. Em todo o mundo, todos os seres que sonhavam pareciam dormir; mas agora eram apenas cascas, coisas ocas, vazias. De suas almas, restara somente escuridão.
De seu castelo, desolado e impotente, Sonho assistia enquanto parte do seu reino se tornava cinzas.
-- O que aconteceu? - disse Morte, surgindo ao lado dele, invadindo seu reino sem cerimônia.
-- Eu falhei.
-- Isso eu estou vendo! - ela parecia furiosa - Sabe quanto trabalho me deu? Um mundo inteiro, Sonho! Um mundo inteiro!
-- Eu sei.
-- E tudo por quê? Porque você não teve coragem de matar sua namoradinha! Pra começo de conversa, porque você começou a se envolver com a mulher que você sabia que teria que matar? E além do mais, isso não adiantou nada, ela morreu do mesmo jeito!
-- Eu sei.
Ela pôs as mãos na cintura e olhou para ele, impaciente. Mas, aos poucos, sua irritação foi dando lugar à compaixão. Os dois eram ainda muito jovens, afinal; tinham poucos milhões de anos. Pouca coisa sabiam da existência. Pouca experiência tinham.
-- Olha, tudo bem. - ela pôs a mão no ombro dele - Você cometeu um erro, mas crianças cometem erros, certo? Ainda temos muito a aprender, nós dois. Tudo o que você pode fazer agora é aprender com seu erro e não deixar que ele se repita.
-- Não deixarei.
-- E tire esse ar melancólico, me irrita. - ela o abraçou - Sinto muito, maninho. Sinto muito pelo mal que aconteceu no mundo dos sonhos, e por ter perdido sua amada.
Ele aceitou o abraço, e os dois ficaram olhando para o que restara daquele mundo. Apenas vazio e escuridão.