sexta-feira, 31 de maio de 2013

[conto #043] O Conto do Gato e da Lua

O CONTO DO GATO E DA LUA

Todos sabem que os gatos são servos da lua.
Todas as noites de lua cheia, quando o poder da lua está em seu ápice, ela desce para a Terra e escolhe um gato para ser seu amante. Quando se aproxima o alvorecer, a lua retorna ao céu, e o gato escolhido se torna enfeitiçado, ganhando o dom de se transformar em humano durante a noite.
Conta-se que, há muito tempo atrás, a lua veio para a Terra, em busca de um amor para uma noite, e encontrou o gato mais belo que já existira: seus olhos brilhavam como estrelas na escuridão da noite, seu pelo era sedoso como o mais nobre dos tecidos. Só de vê-lo, a lua sentia seu brilho aumentar.
"O tomarei para mim, como meu amante", ela pensou. "Para que possa acalmar meu coração, e para que eu o esqueça com o alvorecer".
Assim que viu a lua se aproximando, o gato se sentiu corroer de paixão. Era impossível resistir à sua luz e beleza, e ele a amou incondicionalmente. Estendeu os braços para ela, implorando por seu calor frio, e ela se entregou a ele em meio à escuridão da noite.
Quando o sol avisou que em breve seria dia, a lua voltou para o céu, deixando na Terra o seu amante adormecido.
Mas algo estranho aconteceu. Pela primeira vez, a lua não conseguia esquecer seu amante. Se viu desejando a presença de seu amado, querendo experimentar novamente seus carinhos noturnos. Durante o dia, chorava de saudade e solidão; à noite, passava o tempo todo seguindo-o com o olhar, vendo-o tão distante, sem poder tocá-lo ou falar com ele.
Pela primeira vez em sua existência, a lua estava apaixonada.
Quando a próxima noite de lua cheia chegou, ela mal conseguia conter sua ansiedade. Desceu para a Terra, exatamente no lugar em que estava o seu amado. Ele ficou surpreso ao reencontrá-la.
-- E uma grande honra revê-la, minha amada, mas achei que a lua nunca voltasse para ver um amante.
-- E estava certo em seu pensamento, meu amado. Porém, pela primeira vez em minha vida, estou apaixonada. Eu o amo, querido, e desejo ter você, não só nessa noite, como em todas as noites de lua cheia.
-- Mas este é o sonho da vida de qualquer gato! Será uma honra e um prazer para mim, minha senhora.
Mais uma vez eles fizeram amor. Quando, no dia seguinte, a lua voltou para o céu, sentia o coração leve, pois sabia que mesmo com a ausência, voltaria a ter seu amado para si dali a um mês, e assim seria em todas as suas visitas à Terra.
Aconteceu, porém, que em uma noite tranquila de lua nova, o gato resolveu experimentar o dom que a lua lhe concedera, e se transformou em homem. Enquanto andava pelas ruas em sua forma humana, avistou uma jovem, a mais linda jovem que existia naquela cidade; e estando ele em forma de homem, seu coração batia como o de um homem, e ele se apaixonou por ela. Aproximou-se, cortejando-a, e sendo ele belo tanto na forma de gato quanto na forma humana, a menina logo se apaixonou. Ele tentou seduzi-la, mas mesmo tomada por amor ela recusou seus beijos.
-- Não posso beijar um homem que nunca me deu uma flor, ela disse.
-- Pois venha amanhã a noite até essa praça, e lhe darei a mais linda flor que já existiu.
Quando amanheceu, o gato voltou a sua verdadeira forma e correu para a floresta. Andou por trilhas desconhecidas, por bosques tenebrosos e por vales verdejantes, até chegar à única roseira do mundo na qual nasciam rosas azuis. Ele colheu uma das rosas e voltou para a cidade, chegando quando o sol já se punha. Logo escureceu, e ele ficou escondido, observando a praça. Quando a garota apareceu, ele se transformou em homem e foi até ela.
-- Eis aqui, senhorita - ele lhe entregou a rosa - a flor que muitos dizem não existir, a mais bela rosa do mundo. Eu lhe dou para ter seu amor.
-- É linda, cavalheiro. Eu agradeço.
Ele tentou beijá-la, mas ela o afastou, dizendo:
-- Estou grata pela flor, mas não posso amar um homem que nunca me escreveu cartas.
-- Me espere amanhã ao anoitecer, e lhe escreverei a mais bela carta de amor que alguém já escreveu.
Durante o resto daquela noite o gato escreveu, pois quando voltasse a forma de animal não poderia fazer isso. Quando os primeiros raios de sol iluminaram a terra e ele abandonou a forma humana, a carta estava pronta e ele estava exausto, de forma que dormiu durante todo o dia.
Quando a noite chegou, ele encontrou a garota na praça, e lhe entregou a carta. Ela a leu; seus olhos se encheram de lágrimas com emoção, e seu coração acelerou com a doçura e a paixão ali contidas; mas quando o gato foi beijá-la, ela o impediu, dizendo:
-- É a mais linda carta que já li, mas não posso amar um homem que nunca me cantou poemas.
-- Pois esteja aqui amanhã a noite, e lhe cantarei os mais lindos poemas que alguém já compôs.
E assim ele fez, e assim se seguiram muitos e muitos dias; a jovem nunca o aceitava, pois sempre pedia uma nova prova de amor. Paciente, ele esperava, e a todos os seus pedidos atendia.
Até que novamente chegou a noite de lua cheia. O gato não se deu conta de que era o dia, até que e lua surgisse diante dele, nua, bela e brilhante.
-- Minha amada, ele disse e a tomou pela mão, embora, para sua surpresa, não sentisse mais a mesma paixão de antes.
-- Você está diferente, meu amado. Sinto como se seu amor por mim não fosse mais o mesmo.
-- Está enganada, minha senhora, e ele a tomou para si mais uma vez.
Mas durante todo o tempo, era na jovem garota humana que ele pensava; e seu coração parecia vazio e frio, mesmo tendo a lua em seus braços. E pela primeira vez ele percebeu que realmente amava a jovem.
Mas a lua me quer, e nunca permitirá que eu tenha outros amores, ele pensou. Depois que a lua se foi com o dia, ele passou longas horas pensando no que fazer. Como todos os gatos, era um servo da lua, e estava em seu poder; se ela se voltasse contra ele, seria o seu fim.
Quando a noite chegou, ele foi novamente até a praça, onde sua amada o esperava, com um olhar triste. Transformou-se em homem e foi até ela. Beijou sua mão respeitosamente e disse:
-- A senhorita parece triste.
-- Estou triste - ela se afastou - porque você diz me amar, mas não veio me ver ontem à noite.
-- Sinto muito. Eu não pude vir. Mas a amo. - ousadamente, ele a segurou pelo braço e se aproximou - Te amo como nunca uma mulher antes foi amada. Te amo mais do que os gatos amam a lua. Mas a senhorita não me ama, e zomba de meu amor.
-- Como ousa dizer que não o amo? Já não lhe falei de meu amor?
-- Palavras, apenas palavras! Eu já lhe dei o céu e a terra, e a senhorita continua a não crer em meu amor. Não percebe o quanto sofro? Não pode ver? - ele a agarrou pelos braços, em desespero - A amo como nunca amei mulher alguma, farei qualquer coisa por você, mas a senhorita zomba de mim e de meu amor. Brinca comigo, me tortura com pedidos de provas de amor e promessas, mesmo sabendo que meus sentimentos são verdadeiros! Nosso amor é tolo e impossível, e a senhorita é cruel e sem coração.
Ele se afastou, com o coração despedaçado, mas a jovem correu até ele, implorando para que ficasse.
-- Espere! Espere, meu querido. Por favor, perdoe-me. Em minha inocência e juventude, tive medo de seu amor, e tentei testa-lo de todas as formas. Mas é verdade que você me ama, e eu o amo. Quero ficar com você por toda a minha vida.
E finalmente, eles se beijaram, sob o céu estrelado.
Mas no céu, a tudo a lua via. Furiosa pela traição, ordenou às nuvens do céu que se juntassem e cobrissem a Terra com a chuva mais fria que já caíra. Na terra, os dois amantes tiveram que correr pelas ruas, e se proteger em um velho teatro abandonado.
-- Essa chuva é tão misteriosa que má dá medo, disse a jovem, assustada.
-- Não há mistério, embora haja razão em seu medo. Essa chuva foi causada pela lua.
-- Mas por que a Senhora de todos os amantes derramaria lágrimas frias sobre o nosso amor?
-- Porque ela me quer. Há um segredo sobre mim que você não sabe. Embora tenha me conhecido sob a forma de homem, eu na verdade sou um gato, um dos escolhidos da lua.
Todos sabem que os gatos são servos da lua, e a jovem também sabia. Diante de tão terrível revelação, ela se sentiu perder as forças, e se apoiou na parede; pois amar um ser de outra espécie só poderia trazer tristeza e sofrimento.
-- Há três luas cheias, a lua veio até mim, e me escolheu como seu amante. Tendo me deitado com ela, eu fui abençoado com o dom de me tornar em homem durante as noites. Mas a lua se apaixonou por mim, e voltou a me procurar na lua cheia seguinte, dizendo que queria que eu fosse dela para sempre. Como todo gato, sou seu servo fiel, e fiquei honrado com sua preferência por mim; mas me apaixonei por você, e agora meu amor pela lua parece apenas o pálido reflexo de uma paixão, em comparação ao que sinto por você.
-- Então, tudo é muito pior do que eu imaginava. Além de sermos seres destinados a nunca ficarem juntos, nosso amor ofendeu à lua! Nosso amor é mais do que impossível, é amaldiçoado!
Lágrimas caíram pelos olhos dela, e ele a abraçou. Lá fora a chuva continuava a cair, embora a lua não pudesse vê-los.
-- O que será de nós?, ela perguntou. O que será?
-- Vim até aqui hoje com um plano, mas entenderei se não o aceitar. - ela olhou para ele com esperança - Nós poderemos nos ver apenas a noite, pois de dia serei apenas um gato. Nosso amor durará o tempo entre o crepúsculo e a aurora. E na próxima noite de lua cheia, você deverá me matar quando eu surgir diante de você na forma de um gato.
-- Não, eu nunca poderia fazer isso!
-- Escute-me. Se fizer isso, poderemos ficar juntos. Caso contrário, nunca mais nos veremos. A decisão está em suas mãos.
-- Mas como ficaremos juntos, se eu o matarei?
-- Apenas confie em mim. Ficaremos juntos se você fizer o que lhe peço.
Após muitas lágrimas, ela afinal concordou. Naquela noite, sob a fria chuva que caía lá fora, em um teatro escuro e abandonado, eles se amaram como nunca antes dois amantes haviam amado.
Dias e dias se passaram. Os dias eram tristes e vazios para eles, e assim que as noites caíam, os dois corriam para os braços um do outro, mesmo sabendo que, lá de cima, a lua a tudo via, e planejava vingança. Em todas as noites choveu, uma chuva fina e triste que trazia toda a escuridão que existe ao mundo.
Finalmente, chegou a próxima noite de lua cheia. Assim que escureceu, o gato se transformou em homem, e aguardou. A lua surgiu no céu e desceu para a terra, e foi até ele, ansiosa por vingança.
-- Você me traiu. - ela disse - Ousou me trair, mesmo eu sendo sua senhora. Ousou negar um amor que todos os outros gatos dariam a vida para ter.
-- Sinto muito, minha senhora, mas ao me transformar em homem, meu coração se tornou o coração de um homem. Eu sou devotado a você como todos os gatos, mas é a humana quem amo.
-- Se é assim, a matarei! Matarei a ambos, a ela pela ousadia, e a você pela traição!
Com seu poder, a lua fez com que a jovem surgisse ali. Ela olhou assustada, mas sabia que aquilo aconteceria. Olhou para seu amado; ele esperou um momento, e quando a lua estava prestes a ordenar a morte de ambos, ele se transformou em gato e pulou no colo de sua amada. Com um punhal encantado, ela o apunhalou. Ele deu um grito longo, e seu sangue caiu sobre as pedras da rua.
-- Não! - gritou a lua - O que você fez!
-- Fiz o que qualquer mulher faria pelo homem que ama.
Quando todo o sangue do gato havia saído de seu corpo, ele desapareceu. O sangue no chão começou a borbulhar como água fervente, e se transformou e tomou forma de homem, a forma humana do gato.
-- Agora sou um homem de verdade, e nada mais do que isso, ele disse. Minha alma de gato se foi, e não devo mais servidão a você, lua; sou um homem, e todos os homens são livres.
A lua gritou de frustração, e os dois amantes se abraçaram, felizes. Mas ela não se deu por vencida. Disse, levantando as mãos aos céus:
-- Não sou mais sua senhora, mas ainda tenho o poder dos Céus para fazer com que vocês nunca fiquem juntos! Vocês, que se conheceram e se amaram sob a lua e as estrelas, jamais viverão sob o sol novamente! Eu os condeno a vagar eternamente na escuridão!
E com isso uma grande luz encheu a Terra. O gato e sua jovem amada foram transportados para o céu e se transformaram em estrelas, estrelas pequenas mas muito brilhantes, que orbitavam uma ao redor da outra.
Diz-se que até hoje, nos céus, é possível ver as duas estrelas, girando lentamente ao redor uma da outra, amando-se eternamente. Nas noites de lua cheia, elas se escondem no céu, por medo da vingança da lua; e em todas as outras noites elas iluminam os caminhos daqueles que têm um amor proibido.
É isso que se conta, desde aqueles dias até hoje.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu escrevi esse conto logo depois de ler Sandman, então, embora aparentemente não tenha nada a ver, a história de Neil Gaiman teve uma grande influência nele. Eu comecei com uma ideia e acabei enveredando por um caminho completamente diferente. Tinha duas histórias na cabeça: ou a do amor impossível da lua por um gato, ou do amor impossível do gato por uma mulher. Escolhi a primeira mas acabei misturando a segunda, e ficou uma coisa que nem eu sei de onde saiu, confesso que não tenho a menor ideia de como a história teve esse final. Mas acho que ficou até bom; se tivesse seguido o plano inicial, talvez tivesse ficado ainda mais clichê. A ideia era fazer um conto de fadas para adultos, e acho que ficou razoável nesse sentido.

Nenhum comentário: