terça-feira, 25 de novembro de 2008

[conto #007] 502

502

-- Que coisa horrível, né?
O homem aponta para a manchete do jornal no meu colo: "Criança morre ao cair de sexto andar".
-- O que é horrível?
-- O menino que morreu.
-- O menino é horrível?
-- Não, cara, a morte dele... Não tá sabendo, não?
-- To, sim.
-- Não é horrível?
-- Não acho.
-- Não!? Como, não? Não é horrível um moleque de 6 anos morrer desse jeito?
Ele está sentado a cinquenta segundos do meu lado e já disse trinta e quatro palavras. Incrível.
-- Criança morre a toda hora.
-- Ah, cara, mas assim...
-- Tem muita morrendo agora. De jeitos bem piores. Esse aí morreu bem.
-- Olha, meu, cê tá dizendo isso porque não é ligado em criança. Nunca viu um pequenininho morrer na sua frente. É triste, cara.
-- Eu tive um filho que morreu de câncer há três anos. Ele tinha sete.
Isso faz ele calar a boca por uns três segundos.
-- Porra, meu, sinto muito. Sinto muito mesmo.
-- Tudo bem.
-- Mas cara, eu achei que quando um cara assim tipo você que nem te aconteceu, de perder o filho, o cara ficasse tipo mais sensível com essa parada de criança.
Demoro um pouco pra entender o que ele disse.
-- Acha que, por ter perdido o meu filho, eu deveria ficar triste sempre que ouvir falar da morte de uma criança?
-- Claro, cara, todo pai fica...
Bem, ele quer conversar. Então, vamos conversar.
-- Claro que não. Pelo contrário. A morte do meu filho fez com que eu parasse de me importar com essas coisas.
-- Eu não entendo, meu. Na moral que não entendo.
-- Meu filho morreu, certo?
-- Certo.
-- Ele era a pessoa mais importante pra mim, entende?
-- Claro, cara, se você era o pai dele...
-- Eu não queria que ele morresse.
-- Claro, claro...
-- Mas, como ele morreu, a pessoa mais importante para mim, não me importa mais se as outras crianças vivem ou morrem. Só ele me importava. Quando ele era vivo e eu via casos de morte de crianças, eu ficava preocupado, ficava abalado, porque me colocava no lugar do pai daquela criança e não queria que o mesmo acontecesse com o meu filho. Mas agora que ele morreu, eu não sou mais o pai, e de qualquer forma o pior já aconteceu, então eu não tenho mais com o que me preocupar. Como eu não vou mais ter filhos, nunca mais vou ter que me preocupar com o futuro de criança nenhuma. E, além disso, o mundo já está cheio demais, um a mais ou a menos não faz a menor diferença.
-- É, tá, tem sentido. Mas tipo, sei lá, é um jeito um pouco... Sei lá...
-- Frio.
-- Isso, cara, é um jeito meio frio de ver as coisas. Eu não consigo pensar assim. E esse negócio do mundo já tá cheio...
-- Você acha que não?
-- Não, tipo, ter gente demais, até tem... Mas a gente tem que ter filho, né? Tem que ter família.
-- Eu acho que ter filhos é uma das decisões mais egoístas que alguém pode tomar. Eu tive um filho, fui egoísta também. Quando temos filhos, estamos nos rendendo aos impulsos mais primitivos que temos. Somos animais. Estamos nos tornando apenas um vetor para transmissão de genes, como se fossemos máquinas e fossem os genes que nos dominassem.
-- Claro que não, cara. Um cara tem filho quando quer ter alguma coisa de valor com a mulher que ama, sabe, quer ver um molequinho filho dos dois. Pelo que você tá falando, parece que quer que todo mundo pare de ter filho.
-- Mas é exatamente o que eu quero. Sou a favor da auto-exterminação da raça humana. Já que vamos nos destruir de qualquer jeito, então que pelo menos façamos isso sem destruir o resto do mundo.
-- Você diz isso porque nunca amou ninguém.
-- Mas o que é que tem amor a ver com filho?
-- Tem tudo, cara. Quando você ama alguém, você não pensa em mundo, em genes, em porra nenhuma. Você quer ficar com essa pessoa, quer ter filhos com ela. Se for seguir o que você tá falando, ninguém se casava mais.
-- Opa. Agora, você está falando de casamento. Casamento não tem nada a ver com amor.
-- Claro que tem! Casamento é a maior prova de amor que você pode dar pra alguém.
-- Não. Você está confundindo casamento com sexo. Sexo é amor. Casamentos nada mais são do que a autorização social necessária para se procriar. Não importa se você ama a pessoa ou não, o casamento te permite procriar com ela.
-- Espera, espera. Você disse que sexo é diferente de casamento e que casamento serve pra procriar. Só que sexo só existe pra ter filhos, também.
-- Claro que não. O sexo de verdade é a maior prova de amor que você pode dar para alguém. Não tem nada a ver com procriação. Ou você só faz sexo quando quer ter filhos?
-- Claro que não, mas o motivo do corpo querer é aquela parada de genes que você falou, de procriar.
-- Isso é o que te dizem desde que você nasceu, mas não é verdade. Fazer sexo é gritar "eu te amo" o mais alto possível. Pense na masturbação.
-- O que é que tem a masturbação?
-- Você por acaso tenta ter filhos se masturbando?
-- Ah, mas masturbação não é sexo. É só uma parada que a gente faz quando tá carente ou solteiro.
-- E por que os homens evitam se masturbar quando estão comprometidos?
-- Uai, porque tem uma mulher pra fazer pra eles.
-- Se fosse só isso, nós não sentiríamos vontade de fazer enquanto estamos namorando, certo? Mas a gente sente. Duvido que você nunca tenha sentido vontade de se masturbar, mesmo tendo acabado de sair da casa da sua namorada.
-- Já, mas não tem nada a ver. Se for ver assim, a gente quer sexo toda hora.
-- Então, você está se contradizendo. Você acabou de dizer que masturbação não é sexo.
-- Não, não... Cara, como é que masturbação pode ser sexo? Vai transar com você mesmo?
-- Aí é que está. Eu disse que sexo era uma prova de amor. E masturbação é sexo com alguém que você ama. Quando você se masturba, está fazendo amor com você mesmo. Está fazendo sexo com a pessoa que você mais ama na vida. Pessoas que não se masturbam não se amam.
-- Mas mulher não se masturba.
-- Porque mulher não se ama. Pra que serve a mulher? Pra satisfazer ao homem. Mulheres vivem em função dos homens que elas amam, então elas querem fazer sexo só com esses homens. Já os homens nasceram para serem amados, e para amarem a si mesmos. Aquela história de amar ao próximo como a si mesmo é impossível. Homem nenhum ama outra pessoa tanto quanto se ama. E as mulheres sempre amam mais aos outros do que a si mesmas.
-- Cara, pra mim você tá viajando. Eu não consigo entender esse negócio.
-- Não acha que, quando você se masturba, você ama a você mais do que a qualquer outra pessoa?
-- Não, digo, talvez... Mas e se o cara não se masturba? Ele não se ama?
-- Com certeza. Mas nunca ouvi falar de um homem que não se masturbe. Ao contrário das mulheres, que pelo que dizem nem sabem o que é isso. Se o cara não gosta de dar prazer pra ele mesmo, então eu digo que ele não só não se ama, como não sabe o que é sexo.
-- Como assim? O cara tem que ser virgem só porque ele não se masturba?
-- Ele pode não ser virgem, mas não sabe o que é sexo. Ele... Ei!
-- O que?
-- Por que o ônibus entrou nessa rua?
-- Porque é o caminho dele, ué.
-- Esse não é o 502?
-- Não, cara, é o 526.
-- Merda.
Levanto e dou sinal. O ônibus só para depois de cinco minutos. Eu desço num lugar em que nunca estive. Olho em volta, penso no dinheiro que perdi, penso no trabalho, penso no cara do ônibus que nunca vai entender nem metade do que eu disse. E volto a pé, procurando a rua certa.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto mistura uma série de pensamentos e teorias loucas que eu tenho ou tive, e usa argumentos bem peculiares para explicá-las e defendê-las. Foram usados também as ideias contidas em um artigo que li recentemente, além de uma frase de Woody Allen ("masturbação é sexo com alguém que eu amo"). A personalidade dos dois personagens, assim como as cenas do início e do final do conto, foram baseadas em pessoas reais e em um acontecimento que presenciei dentro de um ônibus.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

[conto #006] Visões Noturnas

VISÕES NOTURNAS

O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.
Noite escura. As luzes dos prédios e postes e carros ofuscavam o céu e não deixavam ver a lua (nem as estrelas). Uma redoma de vidro cobria a cidade. Como podia saber que estava tarde? Não tinha relógio. Calculara? Há muito essa possibilidade lhe era negada. O fato é que sabia, simplesmente – coisas que vêm conosco e não cabe aqui responder.Fugia da luz. Um beco, uma rua, um prédio, outro, outra rua, outro beco. Odiava vias comuns. O óbvio, sempre o óbvio. Nunca encontrara qualquer linha reta em si mesmo. Sempre o certo, o caminho traçado pela régua. Haveria algo reto em sua vida? Algo certo, óbvio, objetivo? Ele não sabia. Quem, então, poderia? O cálice que caíra a um canto, não se sabia quando nem onde? O vinho amargo como o sangue que pulsava em suas veias? Não sabia.
Chegou, jogou-se insensível numa cadeira e se pôs a beber algo à sua frente que nem pedira. Ou talvez pedira – quem era ele, afinal? Mas isso não importava. Essa noite chove pelos cantos.
Um relógio ao longe soou meia noite e as luzes se apagaram. A única coisa a iluminar o lugar era o brilho fosco de sua mente. Lamparinas apagadas bruxuleavam carregando espíritos. Ele pôs a mão no buraco da porta e puxou para si as pílulas.
Um vermelho vivo invadiu o lugar e tochas foram acesas. Estava em um bar. Que lugar é esse, Deus?
O que estava fazendo? Por que era tão importante? E por que o sigo? Na esperança de soprar nele a chama da vida e fazê-lo enfim despertar? Mas que medo tenho de, com este sopro, acabar apagando a chama que lhe resta...
Onde ele está? Percorro todo o bar, não o encontro; deve ter saído sem que o visse. Atravesso as paredes e saio na rua. Posso sentir sua presença, as marcas do sangue que derramou do copo. Sigo pelos caminhos escuros. Encontro-o.
Anda sem destino. Lembre-se, deve se lembrar – não consegue. Tão escuro. Escuro. Ar parado. Chegou, sem perceber, ao porto. Pelo menos é um lugar. Quando criança vinha aqui. Tem, então, um passado? Mas isso já era demais. Caiu no chão e dormiu profundamente.
O dia virá encontrá-lo caído e o levará embora. Uma mulher grita – quem é ela? Ele dorme o dia todo. As cortinas do quarto não deixam entrar a luz. O seu corpo é branco como só a lua poderia ter deixado. Terá ele absorvido a luz? Porque parece brilhar. Um piano toca em algum lugar – talvez nos sonhos. Será no mesmo lugar em que a luz bate? E há cheiro de terra. Filhos. Quem tocará o piano? Todos somos.
Dorme. Alguém sorriu pra você há muito tempo. Hoje você acorda quando o sol se põe. Chorando sangue. O sangue que escorre das cortinas cor de vinho e tinge o piso. Há três cortes no seu peito e posso ver seu coração. Ele põe uma camisa preta para que não vejam sua alma. Fica cada vez mais branco.
Já anoiteceu. Sai de casa. A mulher grita de novo – o que ela diz? Sabe aonde vai. Foge da luz. Becos, ruas. O hotel, velho, sujo. Procuraria alguém? Não. Não há quem procurar. Entrou em um quarto vazio. Sentou-se no chão e bebeu o líquido vermelho que havia na garrafa. Quantas vezes desejara que ali houvesse veneno... Uma voz sussurrava em seu ouvido palavras que ele não entendia. Cale-se, pelo amor de Deus.
Bebia sem ver. Sequer sentia o gosto. A caixa. Atire-a pela janela. Não olhe. Abra. Não abra. Calem-se! Abriu.
O que será hoje pra você? A alma solta do corpo, há tempos que não se entendiam. Os dois discutiam quando sentiu a picada. Pronto, acabou. A dor some, as nuvens adentram o quarto. Paz.
* * * * *
O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.


SOBRE A HISTÓRIA

Quando comecei a escrever essa história, a idéia não era fazer um conto, e sim algo bem maior. Queria escrever algo que parecesse ter sido criado sob o efeito de alguma substância alucinógena - embora eu nunca tivesse experimentado nenhuma. Também devia ter um tom bem surreal, meio sonho ou alucinação. Depois de escrever o que seria apenas o início do primeiro capítulo, eu percebi que uma história longa toda feita dessa forma seria muito cansativa, enquanto que, para um conto, era perfeito. Eliminei alguns elementos de continuação, e consegui transformá-la em um conto. Foi escrito no final da minha adolescência, o que explica o tom obscuro e um pouco depressivo, algo que não uso mais - não da forma que usava naquela época.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

[poesia #010] Pedido

Poema escrito por mim em 27 de fevereiro de 2006

PEDIDO

Fique comigo pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas um segundo

Se você me beijar por apenas uma hora
Eu vou ser a mulher mais feliz de um mundo estranho

Será que a vida é eterna?

O amor dura o instante de um beijo

Fica comigo pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas uma noite

Faz muito tempo que não durmo
E essa noite eu sonhei com você
E – estranho – você me ligava
E pedia pra ser meu mundo
(como se já não fosse ou não soubesse disso)

E ficar com você pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas um abraço
E eu sei que seus abraços são eternos

(eu prometo que vou embora agora
se sair daqui com um filho seu)

Você pode me achar louca
Mas eu fico com você pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Nunca chegue para mim...