terça-feira, 18 de novembro de 2008

[conto #006] Visões Noturnas

VISÕES NOTURNAS

O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.
Noite escura. As luzes dos prédios e postes e carros ofuscavam o céu e não deixavam ver a lua (nem as estrelas). Uma redoma de vidro cobria a cidade. Como podia saber que estava tarde? Não tinha relógio. Calculara? Há muito essa possibilidade lhe era negada. O fato é que sabia, simplesmente – coisas que vêm conosco e não cabe aqui responder.Fugia da luz. Um beco, uma rua, um prédio, outro, outra rua, outro beco. Odiava vias comuns. O óbvio, sempre o óbvio. Nunca encontrara qualquer linha reta em si mesmo. Sempre o certo, o caminho traçado pela régua. Haveria algo reto em sua vida? Algo certo, óbvio, objetivo? Ele não sabia. Quem, então, poderia? O cálice que caíra a um canto, não se sabia quando nem onde? O vinho amargo como o sangue que pulsava em suas veias? Não sabia.
Chegou, jogou-se insensível numa cadeira e se pôs a beber algo à sua frente que nem pedira. Ou talvez pedira – quem era ele, afinal? Mas isso não importava. Essa noite chove pelos cantos.
Um relógio ao longe soou meia noite e as luzes se apagaram. A única coisa a iluminar o lugar era o brilho fosco de sua mente. Lamparinas apagadas bruxuleavam carregando espíritos. Ele pôs a mão no buraco da porta e puxou para si as pílulas.
Um vermelho vivo invadiu o lugar e tochas foram acesas. Estava em um bar. Que lugar é esse, Deus?
O que estava fazendo? Por que era tão importante? E por que o sigo? Na esperança de soprar nele a chama da vida e fazê-lo enfim despertar? Mas que medo tenho de, com este sopro, acabar apagando a chama que lhe resta...
Onde ele está? Percorro todo o bar, não o encontro; deve ter saído sem que o visse. Atravesso as paredes e saio na rua. Posso sentir sua presença, as marcas do sangue que derramou do copo. Sigo pelos caminhos escuros. Encontro-o.
Anda sem destino. Lembre-se, deve se lembrar – não consegue. Tão escuro. Escuro. Ar parado. Chegou, sem perceber, ao porto. Pelo menos é um lugar. Quando criança vinha aqui. Tem, então, um passado? Mas isso já era demais. Caiu no chão e dormiu profundamente.
O dia virá encontrá-lo caído e o levará embora. Uma mulher grita – quem é ela? Ele dorme o dia todo. As cortinas do quarto não deixam entrar a luz. O seu corpo é branco como só a lua poderia ter deixado. Terá ele absorvido a luz? Porque parece brilhar. Um piano toca em algum lugar – talvez nos sonhos. Será no mesmo lugar em que a luz bate? E há cheiro de terra. Filhos. Quem tocará o piano? Todos somos.
Dorme. Alguém sorriu pra você há muito tempo. Hoje você acorda quando o sol se põe. Chorando sangue. O sangue que escorre das cortinas cor de vinho e tinge o piso. Há três cortes no seu peito e posso ver seu coração. Ele põe uma camisa preta para que não vejam sua alma. Fica cada vez mais branco.
Já anoiteceu. Sai de casa. A mulher grita de novo – o que ela diz? Sabe aonde vai. Foge da luz. Becos, ruas. O hotel, velho, sujo. Procuraria alguém? Não. Não há quem procurar. Entrou em um quarto vazio. Sentou-se no chão e bebeu o líquido vermelho que havia na garrafa. Quantas vezes desejara que ali houvesse veneno... Uma voz sussurrava em seu ouvido palavras que ele não entendia. Cale-se, pelo amor de Deus.
Bebia sem ver. Sequer sentia o gosto. A caixa. Atire-a pela janela. Não olhe. Abra. Não abra. Calem-se! Abriu.
O que será hoje pra você? A alma solta do corpo, há tempos que não se entendiam. Os dois discutiam quando sentiu a picada. Pronto, acabou. A dor some, as nuvens adentram o quarto. Paz.
* * * * *
O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.


SOBRE A HISTÓRIA

Quando comecei a escrever essa história, a idéia não era fazer um conto, e sim algo bem maior. Queria escrever algo que parecesse ter sido criado sob o efeito de alguma substância alucinógena - embora eu nunca tivesse experimentado nenhuma. Também devia ter um tom bem surreal, meio sonho ou alucinação. Depois de escrever o que seria apenas o início do primeiro capítulo, eu percebi que uma história longa toda feita dessa forma seria muito cansativa, enquanto que, para um conto, era perfeito. Eliminei alguns elementos de continuação, e consegui transformá-la em um conto. Foi escrito no final da minha adolescência, o que explica o tom obscuro e um pouco depressivo, algo que não uso mais - não da forma que usava naquela época.

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