terça-feira, 12 de maio de 2009

[conto #010] Breve Visão

BREVE VISÃO

Ela está parada no ponto, esperando o ônibus. São quatro horas da tarde. Às quatro e quinze, ela deve estar no consultório do médico. O ônibus vai demorar trinta minutos do ponto até o consultório. Há algo errado nisso.
O calor é insuportável, e ela olha saudosa para a barraquinha de água de coco. Se comprar uma, pode não dar tempo de beber antes do ônibus chegar; se não comprar, vai morrer de sede antes de chegar no médico. Se comprar, não vai ter dinheiro para comer depois, caso fique com fome; se não comprar, vai ter que beber água no bebedouro do terminal...
Perdida nesse dilema, ela demora para perceber o homem. Ele já devia estar ali há uns cinco minutos quando ela o vê. Deve ter uns setenta, setenta e poucos anos; está parado, perto dela, olhando fixamente para ela. Quando o vê, ela desvia o olhar, finge que não o viu. A última coisa que precisa é ganhar uma cantada de um velho no meio da rua.
Quando volta a olhar - talvez ele já tenha ido - ele está bem mais perto dela. Continua se aproximando; ela dá um passo para trás, mas ele toca em seu braço e diz:
-- Você é tão bonita... - ela pensa em como lhe dar um fora de forma educada, mas ele continua - Você se parece com a minha neta.
Isso não parece uma cantada. O velho olha para ela como se estivesse tendo uma visão mística. Ela quer dizer alguma coisa interessante:
-- Ah é?
Isso não foi interessante. O velho continua olhando fixo para ela, e aquilo a constrange. Ok, vovô, eu pareço a sua neta, não precisa ficar aí olhando pra mim assim. E então ele diz, mais para si mesmo do que para ela:
-- Ela morreu há três anos...
Ótimo. Agora, a vontade dela é sair correndo. O homem está vendo nela a imagem da neta morta. Muito bem. Onde está o maldito ônibus?
-- Ela era muito bonita. - o velho continua murmurando, e sorri - Você é idêntica a ela.
Ela sorri de volta. O que dizer numa hora como essa? O velho tem os olhos vermelhos, parece prestes a chorar. Continua murmurando:
-- Você é muito bonita... Muito parecida...
-- Obrigada. - ela diz, sem saber se era isso o que devia dizer. O velho sorri e finalmente a solta.
-- Ela era tão bonita... - ele sai, murmurando pela rua - Minha neta... Tão parecida...
O ônibus chega.


SOBRE A HISTÓRIA

Como algumas pessoas perceberam, esse conto foi baseado em uma situação real pela qual eu passei. As coisas aconteceram basicamente como foram escritas, e tudo o que posso dizer é que foi profundamente perturbador.

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