quinta-feira, 21 de maio de 2009

[conto #011] Espíritos dos Natais Passados


ESPÍRITOS DOS NATAIS PASSADOS

1958:
Como se já não bastasse a neve, o frio, e os desprazeres de andar de moto sob uma nevasca, tinha que dar problema no motor. Era claro, Willian pensou, se fosse qualquer outro que estivesse com a moto, aquilo não teria acontecido. Mas com ele, se algo podia dar errado, então com certeza iria dar errado.
Ele desistiu de consertar o motor. Estava muito frio, e suas mãos estavam congelando. Ele foi arrastando a moto pelo acostamento, até parar num estacionamento. Apesar de já serem dez horas, todas as lojas estavam abertas e havia muita gente na rua. Claro, era véspera de Natal; todos estavam felizes fazendo compras, e logo estariam em suas casas com as famílias cantando alegremente. Só ele, Willian, não tinha ninguém.
Não havia condições de arrastar a moto até sua casa. A solução era procurar um lugar seguro para deixá-la até o dia seguinte, e ir embora de táxi. Ele olhou em volta; havia uma loja que ficava junto a uma casa, logo adiante, e que tinha uma garagem. Ele foi até lá, conversar com o dono, e ver se não teria problema deixar a moto ali. Afinal, era Natal: as pessoas costumavam ajudar umas as outras nessa época.
Era uma loja de flores. Ele entrou, e um sininho tocou quando abriu a porta. Era um lugar muito bonito, mas ele achou “fofo” demais, com as flores e os enfeites de madeira e ursinhos de pelúcia e um monte de coisas inúteis mas bonitinhas. Não era o estilo dele, definitivamente.
Quando ele entrou, não havia ninguém. Ele ficou olhando os arranjos de flores, esperando para ver se alguém apareceria. Depois de alguns instantes, ouviu passos que se aproximavam, e uma vozinha disse:
-- Olá, bem vindo, desculpe a demora...
Ele se virou para a pessoa que falara, certo que se tratava de uma criança. Mas não era uma criança, embora não fosse uma adulta. Era uma garotinha de uns catorze ou quinze anos, com um vestido curto – apesar do frio – vermelho, de natal, todo rendado e enfeitado. Era pequena, com longos cabelos dourados que caíam em grandes cachos pelos ombros, e ar infantil.
-- Ahm... - ele disse – Eu... Eu estou... Minha moto quebrou, e... Eu queria saber se não poderia deixá-la na garagem ao lado, até amanhã, porque moro longe e não tenho como consertá-la...
-- Claro! Digo, tenho que pedir pro papai... Mas ele vai deixar, tenho certeza! Você quer biscoitinho?
-- Que?
-- Biscoitinho! - ela pegou um pote de biscoitos e estendeu pra ele – Eu que fiz! É de nata!
-- Ah... Obrigado...
-- Qual o seu nome?
-- Willian Hawseen.
-- Meu nome é Bianca Ksysthirryaen! Mas como o sobrenome é estranho, pode me chamar só de Bianca! Muito prazer, senhor Hawseen!
-- Muito prazer... Bianca.
Ela tinha olhos como os de um bebê, curiosos e castanhos. Havia um pote de mel no balcão, e a cor do mel era exatamente igual à cor dos olhos dela.
-- O senhor estava fazendo as compras de Natal quando sua moto quebrou?
-- Sim... Digo, não, eu... Eu estava trabalhando.
-- O senhor trabalha em que?
-- Eu sou entregador, vim trazer uma encomenda.
-- E agora o senhor vai passar o Natal onde?
-- Na minha casa.
-- O senhor...
-- Não. - ele interrompeu – Não precisa me chamar de senhor.
-- Ah, é que o senhor é mais velho... - ela riu, e ele ficou tentando entender do que ela ria – Então tá! Você é casado? Vai passar o Natal com sua esposa?
-- Não, eu... Eu não sou casado.
-- Então, vai passar com seus pais?
-- Meus pais moram muito longe. Faz anos que não os vejo.
-- Ah, tadinho... Vai ficar com quem, então?
-- Com ninguém. Devo ir pra um desses bares de pessoas solitárias que têm por aí.
-- Você não tem ninguém?
-- Não. Digo, tenho amigos, mas eles estão com as famílias deles. Eu não tenho ninguém pra mim.
-- Ah... - ela segurou a mão dele – Tadinho...
Por um momento, quando ela tocou na mão dele, ele teve a nítida impressão de que o mundo estava rodando um pouco mais rápido do que de costume. Mas nessa hora um homem mais velho apareceu, vindo dos fundos da loja.
-- Papai! - ela disse, soltando a mão dele e se virando para o homem – Esse moço se chama Willian Hawseen e está com a moto quebrada, e perguntou se pode deixar a moto na garagem de casa até amanhã!
O homem olhou para Willian, analisando-o.
-- Claro, por que não? O senhor estava fazendo compras de Natal?
Antes que Willian pudesse abrir a boca, Bianca falou:
-- Não, ele estava trabalhando, ele é entregador, e veio aqui trazer uma encomenda, mas aí a moto dele quebrou, e ele vai voltar pra casa e...
-- Bianca – disse o homem – eu perguntei pra ele.
-- Ah, foi mal...
-- Desculpe a minha filha, senhor Hawseen. Ela não tem muito juízo.
-- Não, não, tudo bem... É uma garota adorável. Foi muito gentil comigo.
-- Imagino. Ela é um doce.
Bianca deu um risinho.
-- Ah, gente, que é isso...
-- Mas então, o senhor quer deixar a moto aqui e vir pegar ela amanhã?
-- Se não for incômodo, senhor...
-- Pode me chamar de Dom. Não é meu nome mas todos me chamam assim, de qualquer forma. É claro que não vai ser incômodo, a garagem está vazia... Mas não vai ser ruim pra você? Amanhã é Natal, deve querer ficar com sua família. Pode vir pegá-la depois de amanhã, se quiser.
-- Ah, eu não tenho família. Não é problema pra mim, vou ficar à toa em casa, mesmo.
-- Olha, papai, ele vai passar o natal sozinho! Que triste!
-- Nem todas as pessoas têm família, Bianca.
-- Então, por que não chama ele pra passar o Natal com a gente?
Por um segundo, os dois ficaram olhando para ela, atônitos.
-- Não, obrigado. - disse Willian, poupando o outro de ser obrigado a convidá-lo – Eu gosto de ir a um bar nessa época, há muitas pessoas como eu por aí.
-- Bem, ela gostou de você. - disse Dom – Se quiser, pode vir amanhã almoçar com a gente. Somos só eu, minha esposa e Bianca. Será divertido ter mais alguém conosco.
-- Eu realmente agradeço, mas não posso aceitar. Venho amanhã de manhã pegar minha moto, e tenho que estar com ela pronta depois de amanhã.
-- Bem, o convite está feito. Se mudar de idéia...
-- Obrigado.

* * * * *

Willian achou que seria deselegante aparecer muito cedo para buscar sua moto, embora tivesse certa pressa em consertá-la; por isso, só apareceu na casa da floricultura por volta das nove e meia.
-- Oi, Willian! - disse Bianca, abrindo a porta para ele – Feliz Natal!
-- Bom dia, feliz Natal.
-- Entra, entra! - ela o puxou pela mão para dentro da casa – Fique à vontade! Quer tomar café? Eu que fiz!
-- Muito obrigado, mas eu já comi. Só vim para pegar minha moto.
-- Tá bom... - ela parecia um pouco decepcionada – Vem, ela tá aqui atrás...
-- Seus pais estão?
-- Eles foram para a casa da minha tia na rua ao lado, mas disseram para você ficar à vontade!
Ela o levou até a garagem, onde a moto estava. Willian foi até ela e deu uma olhada geral.
-- Talvez eu possa fazer ela pegar, pra pelo menos chegar em casa com ela.
-- Willian...
-- Sim?
Como ela não disse mais nada, ele olhou para ela, interrogativamente. Surpreendeu-se ao perceber um ar triste naqueles olhos de mel.
-- O que foi?
-- Você não quer ficar pra almoçar?
-- Muito obrigado, mas eu não posso. - ele voltou a examinar o motor – Tenho que consertar isso, vou trabalhar amanhã cedo.
-- Você não gostou de mim?
Ele parou de mexer no motor e olhou para ela.
-- Do que está falando?
-- Você não gosta de mim?
-- Eu... Ora, Bianca... - ele riu, sem jeito – Por que eu não gostaria de você?
-- Eu gosto de você. - ela parecia ainda mais triste – Você é muito bonitinho.
Willian não pôde deixar de rir, e se levantou. Fazia no mínimo vinte anos que ninguém dizia que ele era “bonitinho”.
-- Obrigado. Você também é uma menina muito bonita.
-- Só isso?
-- E o que mais você quer?
-- Não sei. - ela baixou a cabeça – Ontem, quando você estava na floricultura, você pareceu ter me achado mais do que “uma menina bonita”.
-- Certo. Você é mais do que isso. É linda. É a garota mais bonita que eu já vi na minha vida, e juro que ontem, enquanto estive com você, foi como se tivesse entrado em algum mundo estranho que eu não conhecia. Chego a ficar tonto quando estou perto de você, é como se de repente eu voltasse a ser um adolescente de dezesseis anos que está se apaixonando pela primeira vez. Chego a ter medo de olhar para você.
Dessa vez, quem pareceu surpresa foi ela. Não esperava que ele falasse dessa forma. 
-- Nossa... - ela ficou vermelha – Obrigada.
-- Só estou dizendo a verdade. - ele se aproximou dela – Há tempos nenhuma garota me deixa como você me deixou.
Ele tocou no rosto dela, mas ela se afastou, parecendo um bichinho assustado.
-- Qual o problema?
-- Nada... - ela não olhava para ele – É que você falando assim me deixa com vergonha...
-- Você não tem que ter vergonha do que você é.
Novamente ele se aproximou, e tentou beijá-la. Ela virou o rosto no último instante.
-- Não.
-- Deixa...
-- Pára.
-- Eu achei que você quisesse.
-- Eu não disse isso.
-- Mas deu a entender. Não disse que gostou de mim?
-- Mas eu não preciso te beijar só por causa disso.
Com um suspiro, ele se afastou. Voltou a examinar a moto, ignorando Bianca. Ela se apoiou na parede, e ficou um tempo em silêncio. Então disse, subitamente: 
-- Você é mau.
Ele parou de mexer na moto, mas não olhou para ela. 
-- O que você quer? Fica se insinuando pra mim, depois foge, e agora age como se a culpa fosse minha.
-- Eu não fugi de você.
-- Eu tentei te beijar, e você não quis.
-- Eu deixo você me beijar. - ele olhou para ela – Mas só se você disser que casa comigo.
-- O que?
-- Se você casar comigo, eu te beijo.
-- Por favor. - ele se levantou novamente, olhando para ela – Esse negócio de só beijar depois do casamento é coisa do século passado.
-- Não estou dizendo que só vou te beijar depois do casamento. Disse que vou te beijar se você jurar casar comigo.
-- Não me diga que nunca beijou ninguém.
-- Uns três ou quatro.
-- E todos eles disseram que iam casar com você?
-- Não. Mas eu não amava nenhum deles do jeito que amei você quando te conheci.
Dessa vez, o silêncio durou um pouco mais.
-- Você nem me conhece.
-- Você também não me conhece. Mas você me ama.
-- Por que acha que eu te amo? Só por que eu disse que você é bonita?
-- Não. Porque eu sei. - ela sorriu – Uma vez eu sonhei com alguém com os olhos iguais aos seus.
-- Sonhou?
-- É. E eu acho que a gente vai casar, vamos ter um filhinho e vamos ser muito felizes.
-- Por que você acha isso?
-- Porque é o que eu gostaria que acontecesse.
-- Quantos anos você tem?
-- Quinze.
-- Eu tenho vinte e seis. Seus pais nunca iam deixar a gente se casar. Talvez não deixassem nem mesmo nós namorarmos agora.
-- E se deixassem?
Ao invés de responder, ele voltou a mexer na moto, e disse, após um tempo:
-- Está pronto. Acho que consigo ligar.
Ele deu partida, e a moto ligou. Fez isso algumas vezes, para ter certeza de que estava tudo certo, e então a desligou.
-- Está funcionando. Acho que consigo chegar em casa.
-- Que bom.
Por um momento, os dois ficaram parados, em silêncio. Então, ele se aproximou dela e tocou em seu rosto.
-- Casa comigo?
-- Sim.
E eles se beijaram pela primeira vez.


SOBRE A HISTÓRIA

Este conto originalmente faz parte de uma série que estou escrevendo para minha irmã, sendo um capítulo especial desta. Por causa do motivo pelo qual foi escrito, ele é totalmente sem pretensões. A personagem feminina do conto tem uma personalidade muito próxima à minha quando eu tinha quinze anos. 

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