terça-feira, 28 de agosto de 2012

[conto #030] Pulsar

PULSAR

Os minutos se passavam e sua vida se encurtava a cada respiração. Sabendo que o prazo de validade do seu coração diminuía setenta batidas a cada minuto. Sabendo que coração algum chegava muito além de bater três bilhões de vezes. Sabendo que devia se sentir privilegiada por isso.
Um coração que batia quase involuntariamente mas que, ela sempre suspeitara, poderia parar a um comando de seu pensamento.
Pensar o pensamento proibido, ordenar aquilo que nunca pensara.
Cada relógio marcava uma hora diferente, e havia milhares deles, um para cada hora possível. Havia relógios pregados à parede, pendurados no teto. Havia relógios caídos no chão e sobre a cama. Um para cada batida que seu coração haveria de dar, um para cada horário em que ele poderia deixar de bater.
Três gotas de água pingaram da torneira e ela soube que era dia. Três vezes um segundo, três vezes setenta dividido por um minuto. Três gotas solitárias que se perderam junto às outras, junto ao sangue no coração, junto aos relógio na parede.
Como se cada segundo despejasse uma gota de sangue.
Sangue pingava dos relógios e inundava o chão por seus pulsos abertos como sua alma. Sangue que tingia o piso e escorria até seus pés descalços.
Imóvel. Apenas os ponteiros se movendo em perfeita sincronia. Apenas o coração batendo quase involuntariamente.
Até o tocar do despertador.
Até a última gota de água.
Até o fim do pulsar.

SOBRE A HISTÓRIA

História escrita com base na sugestão da Le, minha irmã. A inspiração veio da palavra dita por ela (minuto), de um artigo sobre batidas do coração achado aleatoriamente no Google, e da foto de um relógio de parede.
Quanto ao tom estranho do texto... Escrever ouvindo Fever Ray não poderia resultar em nada diferente disso.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

[conto #029] Diários do Guardião

DIÁRIOS DO GUARDIÃO

Existe uma criança que se perdeu.
Essa criança esteve em meus braços antes mesmo que seus olhos pudessem entender o que viam, antes mesmo que o mundo tivesse cor. Mas eu fingi não ver, fingi não saber que ela se perderia, e dessa forma não pude salva-la. Por quê?
Eu odeio pessoas fracas porque não posso protege-las, e todas as pessoas que eu amo são fracas. Eu as odeio, porque posso proteger qualquer um de quase tudo, mas não posso proteger alguém de si mesmo. Apenas a própria pessoa é capaz de se proteger de si, e para uma pessoa fraca, isso é impossível.
Existe uma criança que se perdeu.
E eu sou seu guardião.
Eu fingi não ver. Fingi que não havia sombras dentro dele. Fingi que elas não o comiam lentamente. E quando ele chegou à primeira encruzilhada, eu não estava lá e as sombras o levaram para o caminho mais escuro.
Eu estou acostumado a andar por caminhos desconhecidos. As sombras podem cobrir o que está iluminado, mas não podem tocar a luz.
Eu não tenho uma luz pra seguir porque eu sou a luz que guia. Não tenho um deus para amar porque eu sou o deus que é amado. Eu sou aquele que faz com que tristezas sejam esquecidas e sorrisos surjam, não importa a que preço, não importa que eu pague por pecados que não são meus.
Eu sou um guardião.
E minha criança se perdeu.
Quando minha criança chorou, eu a fiz sorrir. Quando o céu estava limpo, eu estava ao seu lado olhando o tempo. Quando ele caiu, eu o fiz se levantar.
Mas quando as sombras chegaram, eu não estava lá.
Você, criança perdida, apenas você, pode voltar pelo caminho errado que escolheu e passar a seguir o caminho certo. Mas não poderá fazer isso se não se transformar em luz. Porque de onde você está, nenhuma luz pode te alcançar e nenhum guardião pode lutar contra os demônios que estão dentro de você.
Eu quero a minha criança de volta. Porque, se durante o caminho as sombras o consumirem completamente, eu serei a responsável por dar fim a sua vida, assim como um certo guardião fez com outra criança perdida.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

[conto #028] No Jardim do Éden II

NO JARDIM DO ÉDEN - II

-- Eu realmente não entendo.
-- O que?
-- Por que você criou... Ela? Digo, você já tinha o jardim, e os bichos, e era tudo lindo e tudo o mais... Aí você criou ele, e até aí eu entendo, porque esse lugar precisava de um pouco de vida e alguém capaz de pensar um pouco mais do que um golfinho... Mas ela? Aí já é demais!
-- Qual é o problema com ela?
-- Como, "qual é o problema"? Olha lá, ela está subindo naquele muro de novo! Vocẽ acabou de dizer pra ela não fazer isso! Ela faz tudo ao contrário do que você manda, tira todas as coisas do lugar, age como se fosse a dona do mundo... E ainda faz ele ir atrás dela! Ele era um garoto tão bom, e por causa dela, olha lá! Está subindo no muro também!
-- Tudo bem.
-- Tudo bem? Tudo bem? Você cria uma... Uma coisa que coloca tudo o que toca de cabeça para baixo, que desobedece todas as suas regras, e acha que está tudo bem?
-- Meu querido... Se eu realmente quisesse que as regras fossem seguidas, eu não precisaria cria-las, certo? - ele olhou para os dois, que se equilibravam em cima do muro - Eu poderia ter criado eles já programados para fazerem exatamente o que eu quero. Sem nem precisar dizer o que pode e o que não pode.
-- Poderia?
-- Claro.
-- Então por que não fez isso?
-- Porque - ele sorriu - não teria graça.
Ela pulou do muro para o chão. Ele foi fazer o mesmo, se desequilibrou e caiu. Ao invés de ajudar, ela riu e saiu correndo.
-- Eu nunca vou te entender.
-- Eu sei. - ele fez uma pausa, pensativo - Um dia, eles vão ter que sair daqui.
-- O que? Por quê?
-- Porque se ficarem aqui para sempre, vão acabar entrando em depressão. Esse mundo precisa de emoções. De movimento. De vida pulando para todos os lados. Quero que eles se multipliquem.
-- Multiplicar? Eles mesmos? Eles podem fazer isso?
-- Ainda não, mas vou fazer umas adaptações nos dois para que seja possível. E para fazer eles saírem daqui, vou precisar da sua ajuda.
-- Como assim?
-- Eu vou criar uma regra e dizer que, se eles descumprirem, vão ser expulsos. E quando eles descumprirem, eu os jogo para fora e aí é que a história começa. E preciso da sua ajuda nisso.
-- Minha ajuda? Por quê?
-- Porque quem vai fazer eles descumprirem a regra - ele colocou a mão sobre o ombro do outro - é vocẽ.
-- ... Eu?
-- Isso aí. - ele voltou a olhar para os dois, com um sorriso - Vai ser divertido.
-- ... Quero só ver no que isso vai dar.
No jardim, os dois corriam atrás um do outro, rindo.


SOBRE A HISTÓRIA