A ALDEIA
As pessoas se acostumam.
Coisas que para outros seriam insuportáveis, são apenas parte da vida quando vividas com frequência.
Ela nascera na aldeia e de lá, como todos os outros, nunca saíra. Seus antepassados haviam construído as primeiras casas no meio da floresta, e desde então, uma vez nascido ali, ali você morreria.
Era apenas um grupo de dez viajantes que se perdera na floresta. Após três dias, e com o grupo reduzido à metade, eles perceberam que jamais sairiam dali. Construíram então uma pequena casa para se abrigar da noite, e ali conseguiram viver, pelo resto de suas vidas.
Havia apenas uma mulher no grupo, que gerara a toda a aldeia.
Mas isso fora há pouco mais de cem anos, quando as vítimas escolhidas eram aleatórias e o medo era constante para todos. Muitas coisas haviam mudado. Havia um pacto, agora. Um acordo. Se uma pessoa fosse levada, todos os meses, por vontade própria, então ninguém mais morreria durante o resto do mês. Um acordo justo.
Por isso, em todas as noites de lua cheia, todas as jovens virgens da aldeia eram amarradas em cruzes na beira da floresta, e lá deixadas até o amanhecer. Sempre, uma era levada, e graças a isso o resto da aldeia podia viver.
Aquela era a quinquagésima noite em que ela seria oferecida. Uma data importante para todas que passavam por ela. Já sobrevivera a quarenta e nove noites; se sobrevivesse a mais uma, teria permissão para se casar e deixar de ser oferecida.
Ela estava sentada em seu quarto, se olhando no espelho rudimentar pregado na parede. Sua irmã, de nove anos, a ajudava a arrumar os cabelos. As jovens oferecidas deveriam estar impecáveis. Havia certo orgulho em ser escolhida. Ninguém sabia como era a morte, o que acontecia com as vítimas, mas ser escolhida significava que havia algo de especial na pessoa. Sobreviver um número suficiente de noites para se casar significava apenas que em breve ela se tornaria uma geradora de novas oferendas.
-- Como ele é? - a criança perguntou pela centésima vez.
-- Ele quem? - ela fingiu não entender.
-- O vampiro.
-- Eu já te disse que não sei. Nós não o vemos.
-- Mas como ele leva uma de vocês e ninguém vê?
-- Ele é só uma sombra passando. Uma hora a pessoa está lá, no momento seguinte não está.
Era tudo o que ela sabia, mas a irmã não estava satisfeita. Mas, é claro, era difícil entender; ela só entendera quando passara por aquilo pela primeira vez.
-- Vamos. - disse sua mãe, abrindo a porta do quarto, e ela se levantou. Seu pai, seu irmão mais velho e seus oito irmãos mais novos, dos quais seis eram meninas, estavam esperando na sala. Na aldeia, as famílias eram incentivadas a terem filhas, muitas filhas; uma família que gerasse mais meninos do que meninas era considerada amaldiçoada. Se não houvesse um número suficiente de garotas virgens na aldeia, todos estariam em perigo.
Os pais saíram na frente, e ela os seguiu, de braços dados com o irmão. Os meninos mais novos vinham logo atrás, seguidos pelas meninas, que ainda eram jovens demais para serem oferecidas. Pela aldeia, as outras jovens também saíam de suas casas, seguindo a mesma formação. Algumas já estavam sendo amarradas. Ao longe, o sol se punha por detrás das árvores.
Ela chegou à sua cruz, onde seus pais já preparavam as cordas. Olhou ao redor, cumprimentando as outras garotas, e avistou o irmão de uma delas, de quem gostava e com o qual já trocara olhares e até algumas poucas palavras. Ele sorriu para ela, ela sorriu de volta.
-- Venha. - disse seu pai. Ela se encostou à cruz, como de costume, e seus braços foram amarrados de forma que ficassem esticados, como a imagem de Cristo. Em seguida foi amarrada pela cintura, e por último suas pernas foram presas juntas. Os nós não apertavam a ponto de machucar, mas a impediam de se mover.
As famílias permaneceram ali por mais algum tempo, mas o sol sumia no horizonte, e começava a chegar a hora perigosa. Aos poucos, mas com certa pressa, todos começaram a se retirar. Seus pais e irmãos se despediram e se afastaram depressa. O rapaz que ela admirava foi até ela, quando já não havia quase ninguém ali, e lhe fez uma reverência.
-- É sua quinquagésima noite?
-- Sim.
-- Assim que o sol nascer pela manhã e você voltar para casa, irei até lá e lhe pedirei em casamento. Antes de um mês você será minha mulher.
Disse isso e saiu depressa, sem esperar resposta. Ela apenas conseguia sorrir. Sobrevivera a quarenta e nove noites; o vampiro não a apreciara, com certeza sobreviveria a mais aquela noite.
Poucos minutos depois, o sol sumiu totalmente. A lua cheia surgiu no céu, iluminando a floresta com sua luz branca. De frente para ela estava a floresta escura. Estava tão próxima das árvores que, se não estivesse amarrada, poderia estender a mão e toca-las.
O tempo passava. Ela já aprendera a contar as horas conforme a posição da lua no céu, e por mais que estivesse acostumada, passar a noite inteira ali era entediante. A ansiedade a impedia de dormir, eram raras as vezes em que ela conseguia adormecer por mais de uma hora. As vezes ela olhava para os lados, para as outra jovens, mas geralmente elas estavam perdidas em seus próprios pensamentos, ou olhando ansiosamente para a floresta. Mesmo quando seu olhar encontrava o de alguma das outras, não havia sorrisos ou palavras; havia apenas o silêncio, o olhar as vezes assustado, as vezes apenas curioso.
Muitas horas se passaram. Devia ser por volta de meia noite, talvez uma da manhã.
E então ela ouviu. As outras deviam ter ouvido também, pois a tensão se espalhou entre elas. Parecia com um leve farfalhar, como o som de passos que não chegam a ser audíveis, mas que é possível perceber - escutar sem escutar. Ela desviou o olhar da floresta, abaixando a cabeça, por puro instinto. Ele estava ali.
Demorou algum tempo - ele estava escolhendo. E então novamente a sombra passando, como em todas as noites. Mas dessa vez não passou: ficou ali, em frente a ela, e de repente estava sobre ela, e dessa vez tudo era diferente, o frio, o escuro, o medo. Demorou alguns instantes ainda para ela perceber que fora a escolhida.
Não era justo, foi tudo o que ela conseguiu pensar. Não era justo. Depois de tanto tempo, tanto tempo - sua última noite. Por que ela? Havia jovens mais atraentes, mais jovens - por quê?
Ela esperou. A escuridão ao seu redor continuava, assim como o frio. Perguntava-se como seria. Se seria rápido. Se seria doloroso. Se ela chegaria a ver o ser que eles chamavam de vampiro. Se ele seria tão assustador quanto as pessoas costumavam imagina-lo. Se teria algo de humano, ou se pareceria algum tipo de animal.
A escuridão absoluta durou por algum tempo, e então cessou. Ela não estava mais amarrada à estaca, nem na beira da floresta. Estava em um lugar escuro, então só podia ver sombras, mas percebeu que não havia árvores em volta. Parecia um lugar fechado, e o chão era de terra. Ela olhou ao redor. Não havia ninguém.
Aquilo era estranho, e ela estava confusa, mas o medo passara. Levantou-se e olhou ao redor, tentando inutilmente enxergar o suficiente para descobrir onde estava. Deu um passo, com as mãos estendidas para não bater em nada, e imediatamente algo surgiu da escuridão e a segurou, jogando-a de volta no chão. Ela caiu, mas não se machucou, e logo se viu amparada por braços. Braços que pareciam humanos.
Não ver quem a segurava, mais do que saber que só podia ser seu captor, era aterrorizante, o tipo de terror que não te permite nem mesmo gritar. Ela ficou imóvel, sem sequer respirar, esperando o que quer que fosse; mas então aquilo a soltou, e de repente uma luz ofuscante iluminou tudo ao redor.
Ela teve que fechar os olhos. Foi preciso algum tempo para que conseguisse abri-los, mas mesmo antes de fazê-lo percebera que a luz vinha de alguma tocha ou fogueira. Quando afinal conseguiu olhar, viu uma espécie de homem parado diante dela, com uma tocha nas mãos.
"Uma espécie" de homem, porque aquele ser claramente não era humano, embora parecesse com um. Era mais pálido do que uma pessoa poderia ser, mas de uma forma estranha, como se fosse uma estátua de gesso. Seus olhos tinham a íris quase branca, seus lábios não tinham cor, e havia algo em seu olhar que o fazia parecer mais com um animal selvagem do que com um ser racional. E, de alguma forma, era belo, absurdamente belo, mais do que qualquer pessoa que ela já vira. Tinha os cabelos longos, seu corpo estava todo coberto por roupas negras, e seu olhar era o de uma pessoa faminta diante de um banquete.
-- Quem é você? - ela perguntou, já superados o terror e o medo, apenas curiosidade em seu olhar e sua voz.
Ele deixou a tocha sobre um suporte na parede. Parecia que eles estavam em uma caverna, pois as paredes eram de pedra e o teto era muito alto. Estavam no meio de um longo corredor, e não era possível ver a saída. Em silêncio, ele se aproximou dela e se ajoelhou ao seu lado. Ela o olhava com curiosidade. Ele tocou no rosto dela, mas sem delicadeza; parecia estar testando a textura de sua pele. Então disse:
-- Sou aquilo que seu povo chama de vampiro. - a voz dele era profunda, escura e fria como a noite - Sou o senhor dessa floresta que vocês, humanos, invadiram. Sou mais antigo do que a memória da humanidade, e não tenho um nome que possa ser pronunciado por qualquer ser existente. Alimento-me do sangue daqueles que têm uma existência mortal, e só existo enquanto é noite.
-- Por que me escolheu?
-- Porque a escolhi.
-- Vai me matar?
-- A morte sempre foi o seu destino; apenas lhe darei a honra de que ela seja útil a um ser superior a você.
-- E como vai me matar?
-- Morderei seu pescoço e me alimentarei de você. - ela podia ver os caninos grandes e afiados como os de um animal - Beberei seu sangue até que nada mais reste dele em seu corpo.
-- Será doloroso?
-- Será o momento mais prazeroso que terá em sua breve existência.
Ela fechou os olhos quando ele se aproximou, esperando que ele a mordesse; mas, ao invés disso, ele a beijou. Ela abriu os olhos e se debateu, mas ele era muito mais forte, e ela acabou por aceitar. Quando ele se afastou, ela tentou lhe dar um tapa, mas ele apenas segurou seu pulso, com indiferença.
-- Por que me beijou?
-- Por que um homem beija uma mulher?
-- Você não é um homem. E achei que tivesse me trazido aqui para me matar.
-- Está com tanta pressa para morrer? Sou um homem, assim como os homens da sua miserável vila também o são.
-- Você é um vampiro. Vampiros não são humanos.
Ao invés de argumentar, ele a fez se deitar no chão e se deitou sobre ela. Ela tentou se soltar, mas era inútil.
-- Não ofereça resistência. - ele rasgou parte do vestido dela.
-- Não oferecerei, se não me machucar.
-- Não a machucarei.
O vestido que ela escolhera com tanto cuidado foi feito em pedaços. Ele se despiu diante dela, e seu corpo era como seu rosto, branco como gesso. Mas não era um corpo frágil; era o corpo de um homem, um homem forte, selvagem, possivelmente violento, e de uma perfeição e beleza não-humanas. Um corpo que a fez se encolher, com medo, mas que a surpreendeu desde o primeiro toque, demonstrando suavidade apesar da ausência de delicadeza, calor apesar da frieza, doçura apesar da não-humanidade. Beijos e toques que haviam sido aperfeiçoados durante milhares de anos a seduziram, e ela se deixou levar, entregando-se aos seus braços por livre e espontânea vontade.
Depois de se satisfazer, ele se deitou ao lado dela. Demorou um pouco para que ela se recuperasse, e mais um tempo para que ela decidisse o que deveria dizer; mas por fim disse:
-- Deita-se com todas as jovens que escolhe?
Ele apenas a olhou com seus olhos frios, e não respondeu.
-- Há tantas coisas que quero perguntar. - ela disse - Tantas coisas que desejo saber sobre você. Mesmo sabendo que esse conhecimento de nada me servirá, pois em breve morrerei.
-- Não faça perguntas. Não agora.
-- Vai me matar agora?
-- Eu disse - ele se levantou - para não fazer perguntas.
Em silêncio, ele foi andando, nu, pelo corredor de pedra, até desaparecer na escuridão. Ela chamou por ele:
-- Não me deixe sozinha aqui! Volte!
Houve o som de passos que paravam, e então ele retornou.
-- Por que me chama de volta?
-- Tenho medo de ficar sozinha.
-- Deveria temer minha presença. Sabe que irei te matar.
-- Fui preparada para ser morta por você desde que nasci. Mas a solidão me assusta.
-- Levante-se e venha comigo então.
Ela se levantou e o seguiu. Ele pegou a tocha que estava na parede, e eles foram andando pelo corredor que parecia não ter fim.
-- Por favor, me dê algo para vestir.
-- Pelo tempo que lhe resta, permanecerá nua.
-- Que lugar é esse? Uma caverna?
Ele se voltou para ela e lhe deu um tapa no rosto. Ela caiu no chão.
-- Eu a mandei não fazer mais perguntas por agora.
Um pouco trêmula, ela se levantou e voltou a segui-lo em silêncio. O corredor acabava em um grande salão de pedra, que deu a ela a certeza de que estavam em uma caverna. Havia uma enorme cama ali, além de outros móveis.
-- Então você não é tão selvagem assim. - ela disse - Você dorme aqui? Mora aqui?
Assim que fez as perguntas ela se lembrou do tapa anterior, mas era tarde. Outro tapa, ainda mais forte, a jogou no chão e a deixou com o lábio sangrando.
-- Desculpe. - ela murmurou, levantando-se. Percebeu que sua mão direita também sangrava, mas não tinha onde limpa-la. Pela primeira vez até então, sentiu vontade de chorar.
Mas não chegou a chorar. O vampiro a puxou para si, de forma violenta, e lambeu o sangue de seus lábios. Em seguida pegou sua mão e bebeu o sangue que a sujara. Mas era pouco, e aquilo atiçara seu apetite; ele a abraçou com força e tentou morder seu pescoço. Ela lutou e se debateu, assustada pela violência e pelo ataque súbito, mas ele facilmente a dominou.
-- Não resista a mim.
-- Não assim. Por favor, não assim.
-- Achei que ansiasse pela morte.
-- Não a anseio, apenas aguardo por ela.
-- Então a aceite agora.
Ele estava prestes a morde-la, mas subitamente se afastou e a empurrou, fazendo-a cair sobre a cama.
-- Você não é pura. - junto ao tom frio, agora havia ódio - Foi tocada por outro.
-- Não - ela estava confusa - nenhum outro me tocou além de você.
-- Seu corpo não foi tocado, mas seu coração sim. Posso sentir em seu sangue, você deseja a outro, ama a outro. Posso provar em seu sangue assim como você poderia provar vinagre misturado ao vinho.
-- Eu... Eu... Não sabia que... - ela se encolheu, mas então se levantou e o encarou - Essa seria minha última noite. Passei quarenta e nove noites me oferecendo a você, e você nunca me escolheu. Tinha certeza de que não me escolheria hoje também. Assim que o sol nascesse um rapaz da aldeia iria à minha casa me pedir em casamento, e nos próximos dias eu estaria casada com ele. Por que esperou cinquenta noites para me escolher? Havia jovens mais belas do que eu dessa vez, enquanto em outras vezes eu fui a mais bela. Por quê?
Ela estava pronta para outro tapa, ou para outro ataque súbito, mas ele apenas a olhou com frieza e se afastou.
-- Meus motivos não dizem respeito a nenhum mortal.
-- Não sou mais mortal ou imortal, sou apenas alguém que aguarda a morte. Diga-me seus motivos! Diga-me quem você é, de onde veio, que lugar é esse e se há outros como você! Diga-me por que se alimenta de nosso sangue! Diga-me ou mata-me, porque não o temo mais!
Lentamente, ele se virou novamente para ela. Ela esperava que houvesse novamente ódio em seus olhos, mas o olhar dele era impenetrável e não demonstrava nenhuma emoção.
-- A ausência de temor é apenas uma ilusão tola. Não se julgue mais forte do que é.
-- Não sou forte, apenas não o temo. Não temo um ser que se diz superior mas sente ciúmes e inveja, como o mais fraco dos homens humanos sentiria quando a mulher que deseja ama a outro.
Ele foi até ela e lhe deu outro tapa. Em seguida passou a mão diante de seus olhos, fazendo com que ela caísse em um sono profundo.
Mal os primeiros raios de sol surgiram, e as famílias já corriam para a beira da floresta, para chorar pela vítima e se alegrar pelas sobreviventes. Conforme chegavam e encontravam as filhas, os pais as desamarravam depressa, e elas se jogavam nos braços dos familiares. Mas uma das cruzes estava sem ninguém, e àquela família só restava chorar.
O irmão da garota ao lado da cruz vazia não sorria, e não abraçou a irmã com tanto entusiasmo quanto os outros. Mesmo depois que todos haviam ido, ele ficou ali, olhando a cruz vazia. Olhou para a floresta, que mesmo de dia era escura e assustadora. E tomou uma decisão.
Mais tarde, naquele mesmo dia, um grande grupo de pessoas estava reunido ao redor de uma clareira, onde aquele mesmo rapaz falava coisas que nunca ninguém ali havia sequer pensado.
-- Até quando? Quanto mais iremos aguentar? A cada mês, a cada lua cheia, vemos um monstro levar nossas filhas, nossas irmãs! Não pode continuar assim! Quantas mais têm que morrer para que façamos alguma coisa?
-- Cale-se, jovem estúpido! - gritou um ancião - Você não era vivo quando o pacto não existia! Não lembra o terror que era, quando a qualquer dia, qualquer um da aldeia poderia ser levado! Famílias inteiras foram mortas em uma única noite! Quer que as coisas voltem a ser assim?
-- Vocês não entendem que não temos que nos submeter a isso? Somos muitos, e o vampiro é poderoso mas é apenas um! Não precisamos voltar ao terror de outros tempos, mas também não precisamos nos curvar diante dele! Se nos juntarmos podemos vencê-lo!
Os jovens da aldeia aplaudiam e davam vivas. Alguns homens mais velhos se juntaram a eles. Os outros apenas assistiam, com um olhar reprovador.
-- Tolos! - gritou outro ancião - Vão matar a todos! Vão trazer a maldição para esta aldeia!
Mas os jovens não ouviram. Apenas bradavam gritos de guerra, enquanto seu líder começava a expor os planos para a batalha.
Acordar foi como emergir de um lago escuro. Ela abriu os olhos e se viu deitada sozinha na enorme cama, coberta por luxuosos lençóis vermelhos. O salão de pedra estava iluminado por várias tochas.
Ela se sentou e passou a mão pelo pescoço. Não havia sinal de mordidas. Ela se levantou, enrolando-se no lençol, e rodeou a cama, olhando ao redor. Havia uma grande arca, uma mesa, alguns outros objetos, tudo parecendo saído de algum castelo. Tomada pela curiosidade, ela foi até a arca e a abriu. Dentro, centenas de joias e peças de ouro, uma riqueza com a qual ela nunca sequer sonhara. Fechou a tampa e olhou ao redor, receosa de que o vampiro se enfurecesse ao ver que ela estava mexendo naquelas coisas.
No chão, próximo à cama, havia um caixão fechado. Ela ficou olhando aquilo, intrigada, quando de repente a tampa se abriu e o vampiro saiu. Estava nu como ela, mas não se preocupou em se cobrir. Ela queria perguntar o porquê de ele dormir em um caixão, mas conseguiu se conter a tempo. Ele foi até ela e puxou o lençol que a cobria.
-- Eu disse que pelo tempo que lhe resta, ficará nua.
Sem esperar a reação dela, ele se afastou. Ela disse:
-- Estou com sede. E com fome.
-- Você não conhece sede. - ele pegou uma taça que estava sobre a mesa e a encheu com algo que estava em uma garrafa - Não a verdadeira sede.
Ele bebeu. Em seguida fez um sinal para que ela se aproximasse. Ela obedeceu, e quando estava próxima, ele a puxou para si e a beijou.
Dessa vez, o beijo tinha gosto de sangue, e ela tentou de todas as formas se afastar, mas foi inútil. Ele a pegou no colo e a colocou sobre a mesa. Ela protestou, e ele sorriu com os olhos.
-- A mesa é o lugar para você, já que será meu alimento. - ele a deitou - Em breve.
Por mais que ela quisesse resistir, bastavam alguns beijos para que estivesse seduzida, e mais uma vez ela se entregou a ele.
Mais uma vez, após ter o que queria, ele se afastou com indiferença. Disse:
-- As perguntas que tem, poderá fazê-las agora. Porque o momento se aproxima.
Ela se levantou também e o encarou.
-- Por que se alimenta de sangue?
-- Porque é o que sou: um vampiro. Essa é a nossa natureza.
-- "Nossa"? Há outros vampiros então?
-- Sim.
-- E onde eles estão?
-- Em outros lugares. Espalhados pelo mundo.
-- Onde está sua família?
-- Não temos família.
-- Nenhum vampiro tem família? Mãe, pai, irmãos?
-- Não.
-- Mas então, como surgiram? De onde vieram?
-- Temos apenas o nosso criador.
-- E quem é esse criador?
-- O vampiro que nos mordeu, que nos tornou vampiro. Cada um de nós possui seu criador, nosso mestre, pai, irmão e amante. Aquele que nos deu a imortalidade.
-- Espera. - ela tentava absorver tudo o que ele dissera - Então, você... Você nem sempre foi um vampiro? Outro vampiro te mordeu, e então você se tornou igual a ele?
-- Sim.
-- E o que você era antes de ser mordido?
-- Eu era um humano. Um homem humano.
Aquilo era simplesmente absurdo demais, irreal demais, para ser entendido e aceitado imediatamente.
-- Você era... Humano? Humano como... Como meu pai, meu irmão...
-- Sim.
-- Há quanto tempo você... Você se tornou vampiro?
-- Pouco mais de dez mil e trezentos anos.
-- Dez... Mil...
-- Eu não era um homem como você conhece. Nenhum de nós era. Aquela era a aurora dos tempos, o início da humanidade. Nada do que existia então continua a existir hoje. Eu vi nascer os pais da humanidade, vi as primeiras cidades surgirem do pó e ao pó retornarem, vi idiomas nascerem e morrerem, vi a humanidade descobrir e reinventar a escrita centenas de vezes. Diante de mim, as vidas dos mais antigos anciões nada significam. Diante de mim vocês são como a areia soprada pelo vento.
O entendimento da grandeza daquele ser diante dela fez com que ela fosse tomada por um tipo diferente de respeito e admiração. Não era mais a reverência do medo, e sim a reverência da criança diante do ancião. Ela se aproximou, ajoelhou-se diante dele e beijou sua mão.
-- Eu não tinha ideia de quem você realmente era. Perdoa-me.
-- Não há o que perdoar. Levante-se. Sei que ainda tem perguntas a fazer, e seu tempo está se esgotando.
Ela se levantou e o encarou.
-- Onde você nasceu? Onde vivia quando deixou de ser humano?
-- Nasci em um lugar que hoje chamam Egito, e lá vivia quando fui criado.
-- Como foi? Por que te transformaram?
-- Nossas razões não seriam entendidas por mortal algum.
-- Mas como foi? Conte-me.
-- Não há muito para contar. Eu estava caçando com outros de minha tribo, quando fomos atacados por um ser que desconhecíamos. O nome "vampiro" não existia então. Ele matou a todos, exceto eu. Como havia sido mordido, eu me tornei o que sou hoje. Deixei então o meu povo e segui vagando pelo mundo, a princípio em companhia do meu criador, e então, quando estava pronto, sozinho.
-- Então, qualquer humano pode se tornar um vampiro?
-- Sim. Quem for mordido e continuar vivo, irá se tornar um de nós. Mas nós não criamos novos vampiros, exceto em situações excepcionais.
-- Por quê?
-- Porque se muitos dos nossos começassem a surgir, em breve teríamos que criar humanos da mesma forma que humanos criam gado, para podermos nos alimentar. E isso, além de desagradável, não é da nossa natureza. Somos caçadores. A presa que se oferece, que se entrega sem resistência, não nos agrada.
-- Não entendo. Se é assim, porque aceita as oferendas que fazemos? Porque me aceitou?
-- Foi um acordo feito com seus antepassados. Não deixei de caçar, apenas não caço em sua aldeia. E uma jovem virgem e bela é mais do que alimento para mim.
Para a surpresa dele, ela deu um breve riso.
-- Você, apesar de muito superior a nós, ainda é em parte humano. - ela tocou nele - Seu desejo por nós, o ciúme que sente quando a jovem que toma deseja a outro... Isso faz com que parte de você ainda seja humano. Isso o torna ainda mais belo.
Novamente ele sorriu, apenas com os olhos. Ela o abraçou, mesmo sem saber se ele permitiria.
-- Eu gosto de você. - ela disse - É uma pena que tive tão pouco tempo para te conhecer.
Ele permitiu o abraço, e a abraçou de volta.
-- Já anoiteceu. - ele disse - Vamos para a floresta.
-- Para que?
-- Quero te dar o direito de ver o céu pela última vez.
Ela estava na beira do penhasco, olhando o céu. Sentia o vento bater em seu rosto. Sentia o coração bater em seu peito. Sentia-se viva.
Atrás dela, o vampiro apenas a observava, em silêncio.
-- É lindo. - ela se voltou para ele - É a primeira vez que vejo a floresta fora da aldeia.
-- E ainda é muito pouco perto do que há no mundo.
-- Gostaria que me levasse para conhecer o mundo. - ela voltou a olhar o céu - Cada segundo vale a pena se sabemos que há tantas belezas desconhecidas.
Os dois ficaram algum tempo em silêncio; então ele disse:
-- Você é diferente das outras.
-- Diferente? De quem?
-- Das outras jovens que me foram oferecidas. Elas imploravam por sua vida, ou apenas aceitavam a morte. Mas você é diferente.
Ela não entendia exatamente o que ele queria dizer, mas percebeu que era algo bom, e sorriu. Foi até ele e o abraçou.
-- Eu quero que você me tome uma última vez. Quero ser sua aqui, no meio da floresta, sob a lua cheia.
Ele atendeu àquele pedido. A tomou para si, e quando ela estava entregue a seus braços, finalmente a mordeu. A luz da lua fazia o sangue que pingava no chão parecer mais escuro do que de fato era; ele a bebia devagar, saboreando cada gole. Ela estava em uma espécie de êxtase hipnótico, apenas parcialmente consciente.
De repente, o som distante, mas para ele alto e claro, de pessoas andando pela floresta. À sua procura. Ele soltou a garota e olhou na direção das árvores. Ela protestou, pediu para que ele continuasse, mas ele tocou seu pescoço e a fez parar de sangrar. Deixou-a deitada no chão, naquele estado semiadormecido, e adentrou na floresta.
Após algum tempo ela despertou. Sentia-se confusa, era difícil lembrar o que estava fazendo ali ou o que acontecera. Quando se levantou, lembrava-se de que fora mordida, mas não entendia o porquê de ainda estar viva e sozinha ali. Olhou ao redor, e parecia ver o lugar por onde o vampiro passara, o caminho que seguira - como se estivesse ligada a ele e pudesse senti-lo. Correu para a floresta, procurando por ele, e logo chegou a um local com uma cena assustadora: vários homens de sua aldeia estavam mortos no chão, parecendo completamente secos, sem sangue. O vampiro estava próximo a eles, com um dos jovens em seus braços, ainda bebendo seu sangue. Em meio aos corpos ela avistou o rapaz que a prometera em casamento, e correu até ele.
-- Não! - ela se ajoelhou e o tomou em seus braços - Não, não... Por quê... Por que fez isso, por quê...
O vampiro nada disse até ter terminado de beber o sangue do homem em seus braços; então olhou ao redor, como se verificasse se ainda havia algum resquício de sangue que tivesse deixado escapar, e só depois se voltou para a garota. Ela o olhava com ódio, com lágrimas em seus olhos.
-- Por que fez isso? Por que os matou? Você já tinha a mim!
Ele sorriu, um sorriso breve, quase demoníaco. Apesar do escuro, ela podia ver que ele se transformara - sua pele parecia viva, parecia haver sangue e calor em seu corpo, e ele parecia quase tão jovem quanto ela. Apenas seus olhos continuavam mostrando sua natureza não humana, animalesca.
-- Fazia tempo que eu não tinha um banquete como esse. - ele se aproximou dela - Não me olhe com esse ódio no olhar. Essas pessoas invadiram a floresta a minha procura. Descumpriram o trato. A punição para isso é a morte. Espero que os outros aprendam.
-- Eles apenas queriam me salvar! - ela se levantou - Ele me amava, fez isso por mim!
-- Não confunda o amor com a estupidez. Nada do que fizessem poderia lhe salvar, e eles sabiam disso. Essas crianças foram tolas, e isso lhes custou a vida.
Com raiva, ela se jogou sobre ele e começou a lhe bater. Sabia que seria inútil, mas não importava. Queria poder mata-lo, despedaça-lo com suas próprias mãos.
-- Não há nada que o mate? - ela gritava - Nada que mate um monstro como você? Como Deus pôde permitir o surgimento de criatura tão maldita?
Sem demonstrar irritação ou impaciência, ele a segurou e a jogou no chão.
-- Há coisas que me matam. Jamais disse que não havia. Mas nada que esteja ao alcance de vocês.
Subitamente, ela se levantou e saiu correndo pela floresta. Não queria fugir, queria apenas ficar o mais longe possível dele. Não permitiria mais que ele provasse uma única gota de sangue dela. Ela chegou novamente ao penhasco em que estava antes e, com um último olhar breve para a lua, se jogou.
Ela tentou manter os olhos abertos, enquanto caía e caía, eternamente. Podia ver o chão escuro se aproximar com uma velocidade assustadora. Mas muito antes do impacto, foi envolta por trevas e frio, e de repente estava de volta à beira do penhasco, sob a lua.
-- Tento entender - disse o vampiro - o que faz uma pessoa escolher a morte lenta e dolorosa provocada por uma queda como essa, ao invés da morte rápida e prazerosa que eu lhe ofereço.
-- Não tenho medo, nem da dor nem da morte. - ela se levantou e o encarou - Ao contrário de você, que deve temer tanto a morte que escolheu para si uma vida imortal! Se hoje voltasse a ser humano, tenho certeza de que morreria pelo simples terror da morte! Você se diz superior a nós, mas apenas aqueles que aguardam o fim estão realmente vivos!
Sem palavras ou reações, ele a segurou, deitou-a no chão e a mordeu novamente. Ela se debateu, obrigando a si mesma a não cair naquele torpor hipnótico; mas a sensação dele bebendo seu sangue era prazerosa demais para ser suportada por alguém consciente, e ela desmaiou.
Ela abriu os olhos. Estava claro, mas era um tipo de claridade que ela nunca vira. Como se houvesse luz no escuro. Como se as sombras brilhassem.
Sentia-se estranha. Seu corpo era estranho. Sua própria mente, seus pensamentos - tudo estranho, tudo diferente. Levantou-se, percebendo que estava deitada na mesma cama que o vampiro a deitara antes. Estava de volta à caverna.
Quando seus pés tocaram o chão, a sensação que teve era a de que estava tocando o solo pela primeira vez. O chão parecia mais real, a terra parecia mais terra, as pedras eram mais sólidas do que normalmente seriam. O ar ao seu redor era mais vivo, mais existente - como se anteriormente as coisas tivessem a consistência de um sonho, e só agora ela estivesse realmente desperta.
Ela se levantou, ouvindo o som da própria respiração, dos seus pés tocando o chão, do ar se movendo ao seu redor e correndo pelos corredores até a entrada da caverna, para então se misturar ao vento que soprava na floresta - um vento aquecido pelo sol, pois era dia. Ela ouvia tudo, sentia tudo. Cambaleou, assustada, e percebeu que andar era quase flutuar, que ela era leve, que seus pés não deixavam pegadas. Podia sentir cada som da floresta, cada ser vivo, cada folha de árvore, cada pulsar de coração; estava prestes a gritar, em pânico, quando sentiu algo surgir atrás de si, e se viu envolvida por braços fortes, quentes, reconfortantes.
-- Não tenha medo. - o vampiro disse, suavemente, e sua voz, mesmo fria, tinha um calor suave.
-- O que está havendo? - ela ainda estava muito assustada - Eu morri? Isso é a morte?
-- Não. Você está viva. Nunca esteve tão viva quanto agora. - ele a virou para si - Pode sentir?
-- Eu sinto... Tudo. - ela começava a entender o que acontecera - Eu sou... Um vampiro?
-- Sim.
-- Por quê? Por que não me matou?
-- Porque apenas uma pessoa que não teme a morte pode se tornar imortal.
-- Eu... Eu não quero... Ser imortal...
-- Não a obrigarei a isso. Entenda, você não é invulnerável. Apenas não envelhecerá, não adoecerá, e seu corpo irá se recuperar da maioria dos ferimentos. Mas não de todos, e por isso ainda poderá ser morta. E a luz do sol a queimará até que só restem cinzas. Se quiser dar fim a sua vida, basta permitir que a luz do sol toque sua pele.
A vontade dela era falar, gritar, que aquilo não era o bastante, que ela queria ser humana, queria morrer humana; mas uma sede de séculos travou sua garganta, uma sede que também era fome, e ela caiu de joelhos no chão, com as mãos no pescoço, em agonia.
-- O que... É isso...
-- É a sede. A verdadeira sede. - ele se ajoelhou também - Não tenha medo. Não lute contra isso. Apenas aceite. Tome aquilo que deseja.
Ao olhar para ele, em meio às névoas daquela sede devastadora, ela podia ouvir as batidas do seu coração, e o sangue fluindo com força por cada veia, cada artéria em seu corpo; era quase como se o visse sob a pele. E de repente, ela estava abraçada a ele, mordendo seu pescoço, e beber aquele sangue era como provar o mais puro dos vinhos, o mel mais doce, que saciava seu corpo e acalmava seu coração.
As pessoas se acostumam.
Só havia se passado dois dias, mas já era toda uma vida. Tornar-se um vampiro não fora uma transformação; fora uma ressurreição. Aquela era sua única vida agora.
Eles não estavam mais nus. Ele vestia novamente as roupas pretas que cobriam todo o seu corpo; ela vestia um longo vestido negro, belo como nunca vira igual, e que a tornava ainda mais branca. Branca como um vampiro, ela pensou ao ver seu reflexo no espelho.
-- Para aonde iremos?
-- Para longe. - ele lhe estendeu a mão - Para lugares em que haja sangue suficiente para nós. Para que você veja tudo o que exista no mundo, tudo o que eu já vi e que um dia verei.
-- Veremos outros como nós?
-- Eventualmente. Mas nós nunca andamos juntos, somos seres solitários. Você também, daqui a alguns séculos, sentirá a necessidade da solidão, e então nos separaremos.
-- Já saberei de tudo o que você sabe quando esse momento chegar?
-- Você nunca saberá de tudo o que sei, pois dez mil anos nos separam; mas saberá muito mais do que qualquer humano sonhará em saber.
Ela segurou sua mão, e sorriu. Os dois caminharam pela floresta, até uma clareira banhada pelo luar. E ali desapareceram.
Coisas que para outros seriam insuportáveis, são apenas parte da vida quando vividas com frequência.
Ela nascera na aldeia e de lá, como todos os outros, nunca saíra. Seus antepassados haviam construído as primeiras casas no meio da floresta, e desde então, uma vez nascido ali, ali você morreria.
Era apenas um grupo de dez viajantes que se perdera na floresta. Após três dias, e com o grupo reduzido à metade, eles perceberam que jamais sairiam dali. Construíram então uma pequena casa para se abrigar da noite, e ali conseguiram viver, pelo resto de suas vidas.
Havia apenas uma mulher no grupo, que gerara a toda a aldeia.
Mas isso fora há pouco mais de cem anos, quando as vítimas escolhidas eram aleatórias e o medo era constante para todos. Muitas coisas haviam mudado. Havia um pacto, agora. Um acordo. Se uma pessoa fosse levada, todos os meses, por vontade própria, então ninguém mais morreria durante o resto do mês. Um acordo justo.
Por isso, em todas as noites de lua cheia, todas as jovens virgens da aldeia eram amarradas em cruzes na beira da floresta, e lá deixadas até o amanhecer. Sempre, uma era levada, e graças a isso o resto da aldeia podia viver.
Aquela era a quinquagésima noite em que ela seria oferecida. Uma data importante para todas que passavam por ela. Já sobrevivera a quarenta e nove noites; se sobrevivesse a mais uma, teria permissão para se casar e deixar de ser oferecida.
Ela estava sentada em seu quarto, se olhando no espelho rudimentar pregado na parede. Sua irmã, de nove anos, a ajudava a arrumar os cabelos. As jovens oferecidas deveriam estar impecáveis. Havia certo orgulho em ser escolhida. Ninguém sabia como era a morte, o que acontecia com as vítimas, mas ser escolhida significava que havia algo de especial na pessoa. Sobreviver um número suficiente de noites para se casar significava apenas que em breve ela se tornaria uma geradora de novas oferendas.
-- Como ele é? - a criança perguntou pela centésima vez.
-- Ele quem? - ela fingiu não entender.
-- O vampiro.
-- Eu já te disse que não sei. Nós não o vemos.
-- Mas como ele leva uma de vocês e ninguém vê?
-- Ele é só uma sombra passando. Uma hora a pessoa está lá, no momento seguinte não está.
Era tudo o que ela sabia, mas a irmã não estava satisfeita. Mas, é claro, era difícil entender; ela só entendera quando passara por aquilo pela primeira vez.
-- Vamos. - disse sua mãe, abrindo a porta do quarto, e ela se levantou. Seu pai, seu irmão mais velho e seus oito irmãos mais novos, dos quais seis eram meninas, estavam esperando na sala. Na aldeia, as famílias eram incentivadas a terem filhas, muitas filhas; uma família que gerasse mais meninos do que meninas era considerada amaldiçoada. Se não houvesse um número suficiente de garotas virgens na aldeia, todos estariam em perigo.
Os pais saíram na frente, e ela os seguiu, de braços dados com o irmão. Os meninos mais novos vinham logo atrás, seguidos pelas meninas, que ainda eram jovens demais para serem oferecidas. Pela aldeia, as outras jovens também saíam de suas casas, seguindo a mesma formação. Algumas já estavam sendo amarradas. Ao longe, o sol se punha por detrás das árvores.
Ela chegou à sua cruz, onde seus pais já preparavam as cordas. Olhou ao redor, cumprimentando as outras garotas, e avistou o irmão de uma delas, de quem gostava e com o qual já trocara olhares e até algumas poucas palavras. Ele sorriu para ela, ela sorriu de volta.
-- Venha. - disse seu pai. Ela se encostou à cruz, como de costume, e seus braços foram amarrados de forma que ficassem esticados, como a imagem de Cristo. Em seguida foi amarrada pela cintura, e por último suas pernas foram presas juntas. Os nós não apertavam a ponto de machucar, mas a impediam de se mover.
As famílias permaneceram ali por mais algum tempo, mas o sol sumia no horizonte, e começava a chegar a hora perigosa. Aos poucos, mas com certa pressa, todos começaram a se retirar. Seus pais e irmãos se despediram e se afastaram depressa. O rapaz que ela admirava foi até ela, quando já não havia quase ninguém ali, e lhe fez uma reverência.
-- É sua quinquagésima noite?
-- Sim.
-- Assim que o sol nascer pela manhã e você voltar para casa, irei até lá e lhe pedirei em casamento. Antes de um mês você será minha mulher.
Disse isso e saiu depressa, sem esperar resposta. Ela apenas conseguia sorrir. Sobrevivera a quarenta e nove noites; o vampiro não a apreciara, com certeza sobreviveria a mais aquela noite.
Poucos minutos depois, o sol sumiu totalmente. A lua cheia surgiu no céu, iluminando a floresta com sua luz branca. De frente para ela estava a floresta escura. Estava tão próxima das árvores que, se não estivesse amarrada, poderia estender a mão e toca-las.
O tempo passava. Ela já aprendera a contar as horas conforme a posição da lua no céu, e por mais que estivesse acostumada, passar a noite inteira ali era entediante. A ansiedade a impedia de dormir, eram raras as vezes em que ela conseguia adormecer por mais de uma hora. As vezes ela olhava para os lados, para as outra jovens, mas geralmente elas estavam perdidas em seus próprios pensamentos, ou olhando ansiosamente para a floresta. Mesmo quando seu olhar encontrava o de alguma das outras, não havia sorrisos ou palavras; havia apenas o silêncio, o olhar as vezes assustado, as vezes apenas curioso.
Muitas horas se passaram. Devia ser por volta de meia noite, talvez uma da manhã.
E então ela ouviu. As outras deviam ter ouvido também, pois a tensão se espalhou entre elas. Parecia com um leve farfalhar, como o som de passos que não chegam a ser audíveis, mas que é possível perceber - escutar sem escutar. Ela desviou o olhar da floresta, abaixando a cabeça, por puro instinto. Ele estava ali.
Demorou algum tempo - ele estava escolhendo. E então novamente a sombra passando, como em todas as noites. Mas dessa vez não passou: ficou ali, em frente a ela, e de repente estava sobre ela, e dessa vez tudo era diferente, o frio, o escuro, o medo. Demorou alguns instantes ainda para ela perceber que fora a escolhida.
Não era justo, foi tudo o que ela conseguiu pensar. Não era justo. Depois de tanto tempo, tanto tempo - sua última noite. Por que ela? Havia jovens mais atraentes, mais jovens - por quê?
Ela esperou. A escuridão ao seu redor continuava, assim como o frio. Perguntava-se como seria. Se seria rápido. Se seria doloroso. Se ela chegaria a ver o ser que eles chamavam de vampiro. Se ele seria tão assustador quanto as pessoas costumavam imagina-lo. Se teria algo de humano, ou se pareceria algum tipo de animal.
A escuridão absoluta durou por algum tempo, e então cessou. Ela não estava mais amarrada à estaca, nem na beira da floresta. Estava em um lugar escuro, então só podia ver sombras, mas percebeu que não havia árvores em volta. Parecia um lugar fechado, e o chão era de terra. Ela olhou ao redor. Não havia ninguém.
Aquilo era estranho, e ela estava confusa, mas o medo passara. Levantou-se e olhou ao redor, tentando inutilmente enxergar o suficiente para descobrir onde estava. Deu um passo, com as mãos estendidas para não bater em nada, e imediatamente algo surgiu da escuridão e a segurou, jogando-a de volta no chão. Ela caiu, mas não se machucou, e logo se viu amparada por braços. Braços que pareciam humanos.
Não ver quem a segurava, mais do que saber que só podia ser seu captor, era aterrorizante, o tipo de terror que não te permite nem mesmo gritar. Ela ficou imóvel, sem sequer respirar, esperando o que quer que fosse; mas então aquilo a soltou, e de repente uma luz ofuscante iluminou tudo ao redor.
Ela teve que fechar os olhos. Foi preciso algum tempo para que conseguisse abri-los, mas mesmo antes de fazê-lo percebera que a luz vinha de alguma tocha ou fogueira. Quando afinal conseguiu olhar, viu uma espécie de homem parado diante dela, com uma tocha nas mãos.
"Uma espécie" de homem, porque aquele ser claramente não era humano, embora parecesse com um. Era mais pálido do que uma pessoa poderia ser, mas de uma forma estranha, como se fosse uma estátua de gesso. Seus olhos tinham a íris quase branca, seus lábios não tinham cor, e havia algo em seu olhar que o fazia parecer mais com um animal selvagem do que com um ser racional. E, de alguma forma, era belo, absurdamente belo, mais do que qualquer pessoa que ela já vira. Tinha os cabelos longos, seu corpo estava todo coberto por roupas negras, e seu olhar era o de uma pessoa faminta diante de um banquete.
-- Quem é você? - ela perguntou, já superados o terror e o medo, apenas curiosidade em seu olhar e sua voz.
Ele deixou a tocha sobre um suporte na parede. Parecia que eles estavam em uma caverna, pois as paredes eram de pedra e o teto era muito alto. Estavam no meio de um longo corredor, e não era possível ver a saída. Em silêncio, ele se aproximou dela e se ajoelhou ao seu lado. Ela o olhava com curiosidade. Ele tocou no rosto dela, mas sem delicadeza; parecia estar testando a textura de sua pele. Então disse:
-- Sou aquilo que seu povo chama de vampiro. - a voz dele era profunda, escura e fria como a noite - Sou o senhor dessa floresta que vocês, humanos, invadiram. Sou mais antigo do que a memória da humanidade, e não tenho um nome que possa ser pronunciado por qualquer ser existente. Alimento-me do sangue daqueles que têm uma existência mortal, e só existo enquanto é noite.
-- Por que me escolheu?
-- Porque a escolhi.
-- Vai me matar?
-- A morte sempre foi o seu destino; apenas lhe darei a honra de que ela seja útil a um ser superior a você.
-- E como vai me matar?
-- Morderei seu pescoço e me alimentarei de você. - ela podia ver os caninos grandes e afiados como os de um animal - Beberei seu sangue até que nada mais reste dele em seu corpo.
-- Será doloroso?
-- Será o momento mais prazeroso que terá em sua breve existência.
Ela fechou os olhos quando ele se aproximou, esperando que ele a mordesse; mas, ao invés disso, ele a beijou. Ela abriu os olhos e se debateu, mas ele era muito mais forte, e ela acabou por aceitar. Quando ele se afastou, ela tentou lhe dar um tapa, mas ele apenas segurou seu pulso, com indiferença.
-- Por que me beijou?
-- Por que um homem beija uma mulher?
-- Você não é um homem. E achei que tivesse me trazido aqui para me matar.
-- Está com tanta pressa para morrer? Sou um homem, assim como os homens da sua miserável vila também o são.
-- Você é um vampiro. Vampiros não são humanos.
Ao invés de argumentar, ele a fez se deitar no chão e se deitou sobre ela. Ela tentou se soltar, mas era inútil.
-- Não ofereça resistência. - ele rasgou parte do vestido dela.
-- Não oferecerei, se não me machucar.
-- Não a machucarei.
O vestido que ela escolhera com tanto cuidado foi feito em pedaços. Ele se despiu diante dela, e seu corpo era como seu rosto, branco como gesso. Mas não era um corpo frágil; era o corpo de um homem, um homem forte, selvagem, possivelmente violento, e de uma perfeição e beleza não-humanas. Um corpo que a fez se encolher, com medo, mas que a surpreendeu desde o primeiro toque, demonstrando suavidade apesar da ausência de delicadeza, calor apesar da frieza, doçura apesar da não-humanidade. Beijos e toques que haviam sido aperfeiçoados durante milhares de anos a seduziram, e ela se deixou levar, entregando-se aos seus braços por livre e espontânea vontade.
Depois de se satisfazer, ele se deitou ao lado dela. Demorou um pouco para que ela se recuperasse, e mais um tempo para que ela decidisse o que deveria dizer; mas por fim disse:
-- Deita-se com todas as jovens que escolhe?
Ele apenas a olhou com seus olhos frios, e não respondeu.
-- Há tantas coisas que quero perguntar. - ela disse - Tantas coisas que desejo saber sobre você. Mesmo sabendo que esse conhecimento de nada me servirá, pois em breve morrerei.
-- Não faça perguntas. Não agora.
-- Vai me matar agora?
-- Eu disse - ele se levantou - para não fazer perguntas.
Em silêncio, ele foi andando, nu, pelo corredor de pedra, até desaparecer na escuridão. Ela chamou por ele:
-- Não me deixe sozinha aqui! Volte!
Houve o som de passos que paravam, e então ele retornou.
-- Por que me chama de volta?
-- Tenho medo de ficar sozinha.
-- Deveria temer minha presença. Sabe que irei te matar.
-- Fui preparada para ser morta por você desde que nasci. Mas a solidão me assusta.
-- Levante-se e venha comigo então.
Ela se levantou e o seguiu. Ele pegou a tocha que estava na parede, e eles foram andando pelo corredor que parecia não ter fim.
-- Por favor, me dê algo para vestir.
-- Pelo tempo que lhe resta, permanecerá nua.
-- Que lugar é esse? Uma caverna?
Ele se voltou para ela e lhe deu um tapa no rosto. Ela caiu no chão.
-- Eu a mandei não fazer mais perguntas por agora.
Um pouco trêmula, ela se levantou e voltou a segui-lo em silêncio. O corredor acabava em um grande salão de pedra, que deu a ela a certeza de que estavam em uma caverna. Havia uma enorme cama ali, além de outros móveis.
-- Então você não é tão selvagem assim. - ela disse - Você dorme aqui? Mora aqui?
Assim que fez as perguntas ela se lembrou do tapa anterior, mas era tarde. Outro tapa, ainda mais forte, a jogou no chão e a deixou com o lábio sangrando.
-- Desculpe. - ela murmurou, levantando-se. Percebeu que sua mão direita também sangrava, mas não tinha onde limpa-la. Pela primeira vez até então, sentiu vontade de chorar.
Mas não chegou a chorar. O vampiro a puxou para si, de forma violenta, e lambeu o sangue de seus lábios. Em seguida pegou sua mão e bebeu o sangue que a sujara. Mas era pouco, e aquilo atiçara seu apetite; ele a abraçou com força e tentou morder seu pescoço. Ela lutou e se debateu, assustada pela violência e pelo ataque súbito, mas ele facilmente a dominou.
-- Não resista a mim.
-- Não assim. Por favor, não assim.
-- Achei que ansiasse pela morte.
-- Não a anseio, apenas aguardo por ela.
-- Então a aceite agora.
Ele estava prestes a morde-la, mas subitamente se afastou e a empurrou, fazendo-a cair sobre a cama.
-- Você não é pura. - junto ao tom frio, agora havia ódio - Foi tocada por outro.
-- Não - ela estava confusa - nenhum outro me tocou além de você.
-- Seu corpo não foi tocado, mas seu coração sim. Posso sentir em seu sangue, você deseja a outro, ama a outro. Posso provar em seu sangue assim como você poderia provar vinagre misturado ao vinho.
-- Eu... Eu... Não sabia que... - ela se encolheu, mas então se levantou e o encarou - Essa seria minha última noite. Passei quarenta e nove noites me oferecendo a você, e você nunca me escolheu. Tinha certeza de que não me escolheria hoje também. Assim que o sol nascesse um rapaz da aldeia iria à minha casa me pedir em casamento, e nos próximos dias eu estaria casada com ele. Por que esperou cinquenta noites para me escolher? Havia jovens mais belas do que eu dessa vez, enquanto em outras vezes eu fui a mais bela. Por quê?
Ela estava pronta para outro tapa, ou para outro ataque súbito, mas ele apenas a olhou com frieza e se afastou.
-- Meus motivos não dizem respeito a nenhum mortal.
-- Não sou mais mortal ou imortal, sou apenas alguém que aguarda a morte. Diga-me seus motivos! Diga-me quem você é, de onde veio, que lugar é esse e se há outros como você! Diga-me por que se alimenta de nosso sangue! Diga-me ou mata-me, porque não o temo mais!
Lentamente, ele se virou novamente para ela. Ela esperava que houvesse novamente ódio em seus olhos, mas o olhar dele era impenetrável e não demonstrava nenhuma emoção.
-- A ausência de temor é apenas uma ilusão tola. Não se julgue mais forte do que é.
-- Não sou forte, apenas não o temo. Não temo um ser que se diz superior mas sente ciúmes e inveja, como o mais fraco dos homens humanos sentiria quando a mulher que deseja ama a outro.
Ele foi até ela e lhe deu outro tapa. Em seguida passou a mão diante de seus olhos, fazendo com que ela caísse em um sono profundo.
* * * * *
Mal os primeiros raios de sol surgiram, e as famílias já corriam para a beira da floresta, para chorar pela vítima e se alegrar pelas sobreviventes. Conforme chegavam e encontravam as filhas, os pais as desamarravam depressa, e elas se jogavam nos braços dos familiares. Mas uma das cruzes estava sem ninguém, e àquela família só restava chorar.
O irmão da garota ao lado da cruz vazia não sorria, e não abraçou a irmã com tanto entusiasmo quanto os outros. Mesmo depois que todos haviam ido, ele ficou ali, olhando a cruz vazia. Olhou para a floresta, que mesmo de dia era escura e assustadora. E tomou uma decisão.
Mais tarde, naquele mesmo dia, um grande grupo de pessoas estava reunido ao redor de uma clareira, onde aquele mesmo rapaz falava coisas que nunca ninguém ali havia sequer pensado.
-- Até quando? Quanto mais iremos aguentar? A cada mês, a cada lua cheia, vemos um monstro levar nossas filhas, nossas irmãs! Não pode continuar assim! Quantas mais têm que morrer para que façamos alguma coisa?
-- Cale-se, jovem estúpido! - gritou um ancião - Você não era vivo quando o pacto não existia! Não lembra o terror que era, quando a qualquer dia, qualquer um da aldeia poderia ser levado! Famílias inteiras foram mortas em uma única noite! Quer que as coisas voltem a ser assim?
-- Vocês não entendem que não temos que nos submeter a isso? Somos muitos, e o vampiro é poderoso mas é apenas um! Não precisamos voltar ao terror de outros tempos, mas também não precisamos nos curvar diante dele! Se nos juntarmos podemos vencê-lo!
Os jovens da aldeia aplaudiam e davam vivas. Alguns homens mais velhos se juntaram a eles. Os outros apenas assistiam, com um olhar reprovador.
-- Tolos! - gritou outro ancião - Vão matar a todos! Vão trazer a maldição para esta aldeia!
Mas os jovens não ouviram. Apenas bradavam gritos de guerra, enquanto seu líder começava a expor os planos para a batalha.
* * * * *
Acordar foi como emergir de um lago escuro. Ela abriu os olhos e se viu deitada sozinha na enorme cama, coberta por luxuosos lençóis vermelhos. O salão de pedra estava iluminado por várias tochas.
Ela se sentou e passou a mão pelo pescoço. Não havia sinal de mordidas. Ela se levantou, enrolando-se no lençol, e rodeou a cama, olhando ao redor. Havia uma grande arca, uma mesa, alguns outros objetos, tudo parecendo saído de algum castelo. Tomada pela curiosidade, ela foi até a arca e a abriu. Dentro, centenas de joias e peças de ouro, uma riqueza com a qual ela nunca sequer sonhara. Fechou a tampa e olhou ao redor, receosa de que o vampiro se enfurecesse ao ver que ela estava mexendo naquelas coisas.
No chão, próximo à cama, havia um caixão fechado. Ela ficou olhando aquilo, intrigada, quando de repente a tampa se abriu e o vampiro saiu. Estava nu como ela, mas não se preocupou em se cobrir. Ela queria perguntar o porquê de ele dormir em um caixão, mas conseguiu se conter a tempo. Ele foi até ela e puxou o lençol que a cobria.
-- Eu disse que pelo tempo que lhe resta, ficará nua.
Sem esperar a reação dela, ele se afastou. Ela disse:
-- Estou com sede. E com fome.
-- Você não conhece sede. - ele pegou uma taça que estava sobre a mesa e a encheu com algo que estava em uma garrafa - Não a verdadeira sede.
Ele bebeu. Em seguida fez um sinal para que ela se aproximasse. Ela obedeceu, e quando estava próxima, ele a puxou para si e a beijou.
Dessa vez, o beijo tinha gosto de sangue, e ela tentou de todas as formas se afastar, mas foi inútil. Ele a pegou no colo e a colocou sobre a mesa. Ela protestou, e ele sorriu com os olhos.
-- A mesa é o lugar para você, já que será meu alimento. - ele a deitou - Em breve.
Por mais que ela quisesse resistir, bastavam alguns beijos para que estivesse seduzida, e mais uma vez ela se entregou a ele.
Mais uma vez, após ter o que queria, ele se afastou com indiferença. Disse:
-- As perguntas que tem, poderá fazê-las agora. Porque o momento se aproxima.
Ela se levantou também e o encarou.
-- Por que se alimenta de sangue?
-- Porque é o que sou: um vampiro. Essa é a nossa natureza.
-- "Nossa"? Há outros vampiros então?
-- Sim.
-- E onde eles estão?
-- Em outros lugares. Espalhados pelo mundo.
-- Onde está sua família?
-- Não temos família.
-- Nenhum vampiro tem família? Mãe, pai, irmãos?
-- Não.
-- Mas então, como surgiram? De onde vieram?
-- Temos apenas o nosso criador.
-- E quem é esse criador?
-- O vampiro que nos mordeu, que nos tornou vampiro. Cada um de nós possui seu criador, nosso mestre, pai, irmão e amante. Aquele que nos deu a imortalidade.
-- Espera. - ela tentava absorver tudo o que ele dissera - Então, você... Você nem sempre foi um vampiro? Outro vampiro te mordeu, e então você se tornou igual a ele?
-- Sim.
-- E o que você era antes de ser mordido?
-- Eu era um humano. Um homem humano.
Aquilo era simplesmente absurdo demais, irreal demais, para ser entendido e aceitado imediatamente.
-- Você era... Humano? Humano como... Como meu pai, meu irmão...
-- Sim.
-- Há quanto tempo você... Você se tornou vampiro?
-- Pouco mais de dez mil e trezentos anos.
-- Dez... Mil...
-- Eu não era um homem como você conhece. Nenhum de nós era. Aquela era a aurora dos tempos, o início da humanidade. Nada do que existia então continua a existir hoje. Eu vi nascer os pais da humanidade, vi as primeiras cidades surgirem do pó e ao pó retornarem, vi idiomas nascerem e morrerem, vi a humanidade descobrir e reinventar a escrita centenas de vezes. Diante de mim, as vidas dos mais antigos anciões nada significam. Diante de mim vocês são como a areia soprada pelo vento.
O entendimento da grandeza daquele ser diante dela fez com que ela fosse tomada por um tipo diferente de respeito e admiração. Não era mais a reverência do medo, e sim a reverência da criança diante do ancião. Ela se aproximou, ajoelhou-se diante dele e beijou sua mão.
-- Eu não tinha ideia de quem você realmente era. Perdoa-me.
-- Não há o que perdoar. Levante-se. Sei que ainda tem perguntas a fazer, e seu tempo está se esgotando.
Ela se levantou e o encarou.
-- Onde você nasceu? Onde vivia quando deixou de ser humano?
-- Nasci em um lugar que hoje chamam Egito, e lá vivia quando fui criado.
-- Como foi? Por que te transformaram?
-- Nossas razões não seriam entendidas por mortal algum.
-- Mas como foi? Conte-me.
-- Não há muito para contar. Eu estava caçando com outros de minha tribo, quando fomos atacados por um ser que desconhecíamos. O nome "vampiro" não existia então. Ele matou a todos, exceto eu. Como havia sido mordido, eu me tornei o que sou hoje. Deixei então o meu povo e segui vagando pelo mundo, a princípio em companhia do meu criador, e então, quando estava pronto, sozinho.
-- Então, qualquer humano pode se tornar um vampiro?
-- Sim. Quem for mordido e continuar vivo, irá se tornar um de nós. Mas nós não criamos novos vampiros, exceto em situações excepcionais.
-- Por quê?
-- Porque se muitos dos nossos começassem a surgir, em breve teríamos que criar humanos da mesma forma que humanos criam gado, para podermos nos alimentar. E isso, além de desagradável, não é da nossa natureza. Somos caçadores. A presa que se oferece, que se entrega sem resistência, não nos agrada.
-- Não entendo. Se é assim, porque aceita as oferendas que fazemos? Porque me aceitou?
-- Foi um acordo feito com seus antepassados. Não deixei de caçar, apenas não caço em sua aldeia. E uma jovem virgem e bela é mais do que alimento para mim.
Para a surpresa dele, ela deu um breve riso.
-- Você, apesar de muito superior a nós, ainda é em parte humano. - ela tocou nele - Seu desejo por nós, o ciúme que sente quando a jovem que toma deseja a outro... Isso faz com que parte de você ainda seja humano. Isso o torna ainda mais belo.
Novamente ele sorriu, apenas com os olhos. Ela o abraçou, mesmo sem saber se ele permitiria.
-- Eu gosto de você. - ela disse - É uma pena que tive tão pouco tempo para te conhecer.
Ele permitiu o abraço, e a abraçou de volta.
-- Já anoiteceu. - ele disse - Vamos para a floresta.
-- Para que?
-- Quero te dar o direito de ver o céu pela última vez.
* * * * *
Ela estava na beira do penhasco, olhando o céu. Sentia o vento bater em seu rosto. Sentia o coração bater em seu peito. Sentia-se viva.
Atrás dela, o vampiro apenas a observava, em silêncio.
-- É lindo. - ela se voltou para ele - É a primeira vez que vejo a floresta fora da aldeia.
-- E ainda é muito pouco perto do que há no mundo.
-- Gostaria que me levasse para conhecer o mundo. - ela voltou a olhar o céu - Cada segundo vale a pena se sabemos que há tantas belezas desconhecidas.
Os dois ficaram algum tempo em silêncio; então ele disse:
-- Você é diferente das outras.
-- Diferente? De quem?
-- Das outras jovens que me foram oferecidas. Elas imploravam por sua vida, ou apenas aceitavam a morte. Mas você é diferente.
Ela não entendia exatamente o que ele queria dizer, mas percebeu que era algo bom, e sorriu. Foi até ele e o abraçou.
-- Eu quero que você me tome uma última vez. Quero ser sua aqui, no meio da floresta, sob a lua cheia.
Ele atendeu àquele pedido. A tomou para si, e quando ela estava entregue a seus braços, finalmente a mordeu. A luz da lua fazia o sangue que pingava no chão parecer mais escuro do que de fato era; ele a bebia devagar, saboreando cada gole. Ela estava em uma espécie de êxtase hipnótico, apenas parcialmente consciente.
De repente, o som distante, mas para ele alto e claro, de pessoas andando pela floresta. À sua procura. Ele soltou a garota e olhou na direção das árvores. Ela protestou, pediu para que ele continuasse, mas ele tocou seu pescoço e a fez parar de sangrar. Deixou-a deitada no chão, naquele estado semiadormecido, e adentrou na floresta.
Após algum tempo ela despertou. Sentia-se confusa, era difícil lembrar o que estava fazendo ali ou o que acontecera. Quando se levantou, lembrava-se de que fora mordida, mas não entendia o porquê de ainda estar viva e sozinha ali. Olhou ao redor, e parecia ver o lugar por onde o vampiro passara, o caminho que seguira - como se estivesse ligada a ele e pudesse senti-lo. Correu para a floresta, procurando por ele, e logo chegou a um local com uma cena assustadora: vários homens de sua aldeia estavam mortos no chão, parecendo completamente secos, sem sangue. O vampiro estava próximo a eles, com um dos jovens em seus braços, ainda bebendo seu sangue. Em meio aos corpos ela avistou o rapaz que a prometera em casamento, e correu até ele.
-- Não! - ela se ajoelhou e o tomou em seus braços - Não, não... Por quê... Por que fez isso, por quê...
O vampiro nada disse até ter terminado de beber o sangue do homem em seus braços; então olhou ao redor, como se verificasse se ainda havia algum resquício de sangue que tivesse deixado escapar, e só depois se voltou para a garota. Ela o olhava com ódio, com lágrimas em seus olhos.
-- Por que fez isso? Por que os matou? Você já tinha a mim!
Ele sorriu, um sorriso breve, quase demoníaco. Apesar do escuro, ela podia ver que ele se transformara - sua pele parecia viva, parecia haver sangue e calor em seu corpo, e ele parecia quase tão jovem quanto ela. Apenas seus olhos continuavam mostrando sua natureza não humana, animalesca.
-- Fazia tempo que eu não tinha um banquete como esse. - ele se aproximou dela - Não me olhe com esse ódio no olhar. Essas pessoas invadiram a floresta a minha procura. Descumpriram o trato. A punição para isso é a morte. Espero que os outros aprendam.
-- Eles apenas queriam me salvar! - ela se levantou - Ele me amava, fez isso por mim!
-- Não confunda o amor com a estupidez. Nada do que fizessem poderia lhe salvar, e eles sabiam disso. Essas crianças foram tolas, e isso lhes custou a vida.
Com raiva, ela se jogou sobre ele e começou a lhe bater. Sabia que seria inútil, mas não importava. Queria poder mata-lo, despedaça-lo com suas próprias mãos.
-- Não há nada que o mate? - ela gritava - Nada que mate um monstro como você? Como Deus pôde permitir o surgimento de criatura tão maldita?
Sem demonstrar irritação ou impaciência, ele a segurou e a jogou no chão.
-- Há coisas que me matam. Jamais disse que não havia. Mas nada que esteja ao alcance de vocês.
Subitamente, ela se levantou e saiu correndo pela floresta. Não queria fugir, queria apenas ficar o mais longe possível dele. Não permitiria mais que ele provasse uma única gota de sangue dela. Ela chegou novamente ao penhasco em que estava antes e, com um último olhar breve para a lua, se jogou.
Ela tentou manter os olhos abertos, enquanto caía e caía, eternamente. Podia ver o chão escuro se aproximar com uma velocidade assustadora. Mas muito antes do impacto, foi envolta por trevas e frio, e de repente estava de volta à beira do penhasco, sob a lua.
-- Tento entender - disse o vampiro - o que faz uma pessoa escolher a morte lenta e dolorosa provocada por uma queda como essa, ao invés da morte rápida e prazerosa que eu lhe ofereço.
-- Não tenho medo, nem da dor nem da morte. - ela se levantou e o encarou - Ao contrário de você, que deve temer tanto a morte que escolheu para si uma vida imortal! Se hoje voltasse a ser humano, tenho certeza de que morreria pelo simples terror da morte! Você se diz superior a nós, mas apenas aqueles que aguardam o fim estão realmente vivos!
Sem palavras ou reações, ele a segurou, deitou-a no chão e a mordeu novamente. Ela se debateu, obrigando a si mesma a não cair naquele torpor hipnótico; mas a sensação dele bebendo seu sangue era prazerosa demais para ser suportada por alguém consciente, e ela desmaiou.
* * * * *
Ela abriu os olhos. Estava claro, mas era um tipo de claridade que ela nunca vira. Como se houvesse luz no escuro. Como se as sombras brilhassem.
Sentia-se estranha. Seu corpo era estranho. Sua própria mente, seus pensamentos - tudo estranho, tudo diferente. Levantou-se, percebendo que estava deitada na mesma cama que o vampiro a deitara antes. Estava de volta à caverna.
Quando seus pés tocaram o chão, a sensação que teve era a de que estava tocando o solo pela primeira vez. O chão parecia mais real, a terra parecia mais terra, as pedras eram mais sólidas do que normalmente seriam. O ar ao seu redor era mais vivo, mais existente - como se anteriormente as coisas tivessem a consistência de um sonho, e só agora ela estivesse realmente desperta.
Ela se levantou, ouvindo o som da própria respiração, dos seus pés tocando o chão, do ar se movendo ao seu redor e correndo pelos corredores até a entrada da caverna, para então se misturar ao vento que soprava na floresta - um vento aquecido pelo sol, pois era dia. Ela ouvia tudo, sentia tudo. Cambaleou, assustada, e percebeu que andar era quase flutuar, que ela era leve, que seus pés não deixavam pegadas. Podia sentir cada som da floresta, cada ser vivo, cada folha de árvore, cada pulsar de coração; estava prestes a gritar, em pânico, quando sentiu algo surgir atrás de si, e se viu envolvida por braços fortes, quentes, reconfortantes.
-- Não tenha medo. - o vampiro disse, suavemente, e sua voz, mesmo fria, tinha um calor suave.
-- O que está havendo? - ela ainda estava muito assustada - Eu morri? Isso é a morte?
-- Não. Você está viva. Nunca esteve tão viva quanto agora. - ele a virou para si - Pode sentir?
-- Eu sinto... Tudo. - ela começava a entender o que acontecera - Eu sou... Um vampiro?
-- Sim.
-- Por quê? Por que não me matou?
-- Porque apenas uma pessoa que não teme a morte pode se tornar imortal.
-- Eu... Eu não quero... Ser imortal...
-- Não a obrigarei a isso. Entenda, você não é invulnerável. Apenas não envelhecerá, não adoecerá, e seu corpo irá se recuperar da maioria dos ferimentos. Mas não de todos, e por isso ainda poderá ser morta. E a luz do sol a queimará até que só restem cinzas. Se quiser dar fim a sua vida, basta permitir que a luz do sol toque sua pele.
A vontade dela era falar, gritar, que aquilo não era o bastante, que ela queria ser humana, queria morrer humana; mas uma sede de séculos travou sua garganta, uma sede que também era fome, e ela caiu de joelhos no chão, com as mãos no pescoço, em agonia.
-- O que... É isso...
-- É a sede. A verdadeira sede. - ele se ajoelhou também - Não tenha medo. Não lute contra isso. Apenas aceite. Tome aquilo que deseja.
Ao olhar para ele, em meio às névoas daquela sede devastadora, ela podia ouvir as batidas do seu coração, e o sangue fluindo com força por cada veia, cada artéria em seu corpo; era quase como se o visse sob a pele. E de repente, ela estava abraçada a ele, mordendo seu pescoço, e beber aquele sangue era como provar o mais puro dos vinhos, o mel mais doce, que saciava seu corpo e acalmava seu coração.
* * * * *
As pessoas se acostumam.
Só havia se passado dois dias, mas já era toda uma vida. Tornar-se um vampiro não fora uma transformação; fora uma ressurreição. Aquela era sua única vida agora.
Eles não estavam mais nus. Ele vestia novamente as roupas pretas que cobriam todo o seu corpo; ela vestia um longo vestido negro, belo como nunca vira igual, e que a tornava ainda mais branca. Branca como um vampiro, ela pensou ao ver seu reflexo no espelho.
-- Para aonde iremos?
-- Para longe. - ele lhe estendeu a mão - Para lugares em que haja sangue suficiente para nós. Para que você veja tudo o que exista no mundo, tudo o que eu já vi e que um dia verei.
-- Veremos outros como nós?
-- Eventualmente. Mas nós nunca andamos juntos, somos seres solitários. Você também, daqui a alguns séculos, sentirá a necessidade da solidão, e então nos separaremos.
-- Já saberei de tudo o que você sabe quando esse momento chegar?
-- Você nunca saberá de tudo o que sei, pois dez mil anos nos separam; mas saberá muito mais do que qualquer humano sonhará em saber.
Ela segurou sua mão, e sorriu. Os dois caminharam pela floresta, até uma clareira banhada pelo luar. E ali desapareceram.
SOBRE A HISTÓRIA
Eu havia assistido ao filme Underworld: Evolution, havia gostado bastante, e estava cheia de pensamentos sobre vampiros e coisas góticas. Nesse mesmo dia, comecei a ler o livro Coisas Frágeis, de Neil Gaiman, e ao ler a introdução do livro me veio uma vontade louca de escrever um conto (alguns autores tem esse poder de nos contaminar com o desejo de escrever). Misturou-se a essa vontade os meus sentimentos noturnos e meus pensamentos sobre vampiros, e a história nasceu por si mesma - me veio na cabeça a imagem da aldeia no meio da floresta, dominada por um vampiro, um cenário possivelmente copiado do filme A Vila. O único trabalho que tive foi dar a forma final à história (Como será a personagem principal? Como será descrito o vampiro? Ela morre ou vira vampiro?), o que por sinal fiz bem rápido, mas todo o enredo - a história da aldeia, o sacrifício das virgens, o vampiro que domina a floresta - surgiu por mágica na minha cabeça.
Com essa história eu também consegui uma coisa inédita, que foi escrever um conto mais longo do que costumo fazer (foram 10 páginas no word) sem me perder ou deixar coisas "costuradas" na história. O tema não é muito original (na verdade, nada nesse conto é minimamente original), mas eu amo histórias de vampiro desde que me lembro, e tinha muita vontade de escrever algo assim.
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