terça-feira, 1 de outubro de 2013

[conto #055] Os Grandes Prédios

OS GRANDES PRÉDIOS

Ela acordou com o calor. Jogou as cobertas para o lado e tentou voltar a dormir, mas era inútil. Ficou deitada, de olhos abertos, e quando olhou para o lado viu que o espelho estava derretendo.
Era a terceira vez que aquilo acontecia. Levantou-se, mas acabou pisando na poça prateada que escorria pelo piso. Podia ver seu reflexo nela.
-- Mãe! O espelho derreteu de novo!
Sua mãe apareceu na porta, penteando os cabelos.
-- Sai daí, eu vou mandar a Eduarda limpar essa bagunça.
-- Mas eu preciso de um espelho!
-- Depois eu compro outro. Ficar um dia sem espelho não vai te matar.
-- Mas como eu vou saber como está o tempo hoje?
-- Saia e olhe para o céu. Se arrume logo, eu preciso que você vá na casa da sua avó pra mim.
-- Na casa da vovó? - ela saiu do quarto, tomando cuidado para não pisar novamente na poça - Pra quê?
-- Ela disse que sobrou um monte de coisas do aniversário ontem, e disse pra você ir lá pegar porque ela não vai comer tudo.
-- Sobrou brigadeiro?
-- Sobrou.
-- Então eu vou!
Em instantes ela se arrumou e tomou café, e logo estava pronta para sair. Foi até a janela e olhou para o céu: o dia estava lindo, e o céu estava claro, em um belo tom de verde. Ela olhou para os prédios em volta, tentando decidir qual o melhor caminho.
-- Não ande pelos prédios muito altos. - disse sua mãe - E não fale com estranhos. E não passe pelos prédios em construção. E...
-- Eu sei, eu sei! - ela se virou para a mãe - Você sempre diz isso!
-- E sempre é bom repetir. Agora vai logo, sua vó está te esperando.
Ela subiu na janela, decidiu-se pelo prédio do outro lado da rua, e pulou. Morava no décimo andar, e o prédio que escolhera tinha nove andares, o que tornava o salto da janela mais fácil. Caiu de pé no terraço e olhou para trás; sua mãe a observava da janela. Acenou, e em seguida correu até a borda do prédio, pulando para o prédio ao lado.
Se fosse por baixo, andando, demoraria quase meia hora para chegar na casa da avó; pulando pelos prédios, não chegaria nem a vinte minutos. Mas no meio do caminho havia os prédios em construção, dos quais sua mãe sempre mandava desviar. Se passasse por eles, chegaria na casa da avó em no máximo quinze minutos, e teria uma vista maravilhosa da praia.
Os prédios em construção. Era um conjunto de cinquenta edifícios, cada um com quase duzentos andares, que começara a ser construído há vinte anos. Era um ótimo lugar para grandes aventuras, mas os adultos sempre diziam que era um lugar perigoso.
Obviamente, isso nunca impedira que ela ou qualquer outra criança passasse por ali. Como os prédios em volta tinham no máximo cinquenta andares e ela ainda era pequena, seria impossível pular direto para o topo; por isso, ela saltou o máximo que conseguia e pousou em uma janela de algum andar pouco acima da metade do prédio. Dali foi subindo, escalando pela parede, até o topo.
Ao chegar ao topo, ela parou e ficou olhando ao redor. Dali podia ver o mar, com suas águas verde-escuras, e as estranhas criaturas que mergulhavam em suas profundezas. Já tentara abraçar o mar, uma vez; mas era muito pesado e muito fundo, as águas acabaram transbordando de seus braços, e ela quase se afogara em si mesma.
-- Olá.
Ela deu um salto para trás, tão alto que foi parar a três prédios de distância. Quem falara fora um homem adulto, que surgira do nada e que ela nunca vira. Mas era um homem extremamente bonito, e ela se sentiu corar pelo susto que levara.
-- Oi. - ela disse - Quem é você?
-- Eu trabalho aqui na obra do prédio. Sou engenheiro. - ele pulou até o prédio em que ela estava - O que uma menina tão pequena faz aqui?
-- Estou indo visitar minha avó e peguei um atalho.
-- Quantos anos você tem?
-- Duzentos e trinta e quatro.
-- Ah, já é uma mocinha então. - ela sorriu, orgulhosa - Mas mesmo assim, é perigoso passar por aqui. É muito deserto. Eu vou te acompanhar até o fim da construção.
-- Tá bom.
Os dois foram pulando pelos prédios. Ela ficou admirando a forma como ele pulava, passando facilmente por trechos que ela tinha bastante dificuldade. Pensava se um dia conseguiria pular assim também.
-- Chegamos. - ele disse, quando os grandes prédios terminaram e ela viu diante dela apenas prédios que não tinham nem metade daquela altura - A casa da sua avó fica em que direção?
-- Pra lá. - ela apontou - Perto da fábrica de chocolate.
-- Perto da fábrica? Por acaso é uma casa grande e rosa?
-- Não, essa fica na rua ao lado. A casa da minha avó é uma pequena, pintada de azul, quase do lado da fábrica mesmo.
-- Ah sim, eu sei qual é.
A menina se despediu e pulou para o prédio em frente. O homem ficou parado, vendo ela se afastar.

* * * * *

A mulher estava sentada no sofá, vendo televisão e comendo um pedaço do bolo de aniversário, quando tocaram a campainha. Ela se levantou, perguntando-se quem seria - sabia que não era a neta, pois ela entraria pela janela - e foi abrir a porta. Deparou-se com um homem alto e muito bonito, olhando para ela com um sorriso.
-- Pois não? - ela disse.
-- Eu vim comer alguns doces - ele a empurrou para dentro da casa - vovó.

* * * * *

A menina pousou suavemente na janela da sala da avó, mas não havia ninguém na sala. Entrou na casa, chamando pela avó, até ouvir a voz dela, vinda do quarto:
-- Venha aqui, meu amor, estou aqui dentro.
-- Você não está vendo aquele seu programa, vó? - ela foi até o quarto - A mamãe disse que...
Mas ao chegar ao quarto, não era a avó que estava lá. Era o homem que ela encontrara na construção.
-- Você!
-- Olá, minha netinha.
-- Você está usando a boca da vovó! O que fez com ela? Onde está o resto dela?
-- Não se preocupe com isso, meu anjo. - ele tirou a boca da avó e colocou a sua própria - Você vai descobrir agora o que eu fiz com ela.
-- Não - veio uma voz da janela - ela não vai.
Os dois olharam para a janela. Um policial estava ali, carregando uma espada. Assim que o viu, o homem saiu correndo, empurrando a menina e indo em direção à porta. O policial foi atrás, e os dois sumiram porta a fora.
Assustada, a menina ainda ficou algum tempo encolhida em um canto; mas então se lembrou da avó, e saiu pela casa a procurando. Ao abrir um armário, os pedaços da avó caíram pelo chão.
-- Vovó! Ele te desmontou!
Ela entrou em desespero: nunca vira ninguém desmontado antes, nem sabia como se montava. Mas nessa hora o policial voltou, trazendo a espada manchada de sangue.
-- Calma. - ele pegou um pano e limpou a espada, em seguida a guardando - Não foi uma desmontagem complexa. Ele só desacoplou as partes principais. Eu consigo monta-la de novo.
Com cuidado, o policial recolheu todas as partes e as levou para a mesa da copa. A menina ficou assistindo o delicado trabalho de remontagem, até que sua avó estava inteira novamente. Ele então deu corda no coração, e ela abriu os olhos, como se estivesse acordando de um sono profundo.
-- O que...
-- Um criminoso invadiu a casa da senhora e a desmontou. - disse o policial - Imagino que queria sua neta, mas eu cheguei bem na hora. Já me livrei dele.
-- Muito obrigada. - a mulher se sentou - Eu nunca tinha visto aquele homem.
-- Eu já. - disse a menina, e contou como o conhecera.
-- Sua mãe está certa quando diz que não deve passar por aqueles prédios. - disse o policial - Você viu o que aconteceu, e podia ter sido muito pior. Nunca mais a desobedeça.
-- Sim senhor.
No fim daquela manhã, quando a menina voltou para casa com uma cesta lotada de doces da festa de aniversário do dia anterior, o policial a acompanhou até em casa. Tornou-se amigo da família depois disso, e pouco menos de cem anos depois, ele e a menina acabaram se casando. E foram morar nos grandes prédios, que haviam acabado de ser inaugurados, e de onde podiam ver sempre o mar verde, com suas estranhas criaturas.

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