quarta-feira, 23 de julho de 2014

[conto #060] O Caminho de Pedras

O CAMINHO DE PEDRAS

Eram os primeiros dias de outono, e já começava a esfriar. O chão da floresta aos poucos se transformava em um mar de folhas secas, e o vento do fim do dia soprava cada vez mais forte.
Sendo o mais velho dos sete irmãos, cabia a João ir com o pai para a floresta. Enquanto o pai caçava, o garoto cortava lenha. Nos dias mais quentes, iam também sua mãe e sua irmã Maria, a segunda mais velha e apenas um ano mais nova do que ele. As duas colhiam frutos, raízes e ervas; mas agora era frio, e pouco havia para ser colhido. Por isso, João e o pai iam sozinhos na maioria das vezes.
Naquela noite, João completava catorze anos.
Ele não se lembraria da data, não fosse por sua irmã. A menina se jogou em seus braços quando ele entrou, recebendo-o com beijos e carinhos.
— Feliz aniversário, João! Eu e mamãe fizemos um bolo pra você!
Fazia muito tempo que nenhum dos filhos ganhava um bolo no dia do aniversário, pois os tempos eram difíceis; por isso, a visão daquele bolo fez lágrimas brotarem nos olhos do garoto, mas ele depressa as enxugou. Já era um homem, afinal; não podia chorar na frente dos irmãos.
— Obrigado, Maria. Obrigado, mãe. Não era preciso.
— Claro que era, irmão. - disse Maria - Afinal, você agora é um adulto. Esse bolo não é apenas uma comemoração pelo seu aniversário, é também um agradecimento por você ter sempre cuidado de nossa família.
— Obrigado, minha irmã.
Após comer o bolo com os irmão e ajudar o pai a empilhar a lenha e preparar a caça, João foi se deitar. Aquele fora um dia muito cansativo, e teria que acordar antes do sol no dia seguinte, para adentrar novamente a floresta. Assim seria até que começasse a neve, quando então teriam que ficar em casa, sobrevivendo daquilo que haviam conseguido juntar. No último inverno, a mais nova de suas irmãs, recém-nascida, não resistira e morrera de fome e frio. Ele não deixaria que isso acontecesse novamente.
Ele se despiu e se deitou. Apesar do frio, ele tinha um grosso cobertor, capaz de aquece-lo até na mais fria das noites. Também era parte de seus privilégios como primogênito o fato de ter um quarto só para si, enquanto seus irmãos mais novos dividiam quartos e camas.
Pouco depois de as luzes da casa terem sido apagadas, ele ouviu a porta do seu quarto abrir. Virou-se na cama, e viu Maria entrar, carregando uma vela. A menina fechou a porta e aproximou-se de sua cama, pé ante pé, sem produzir ruído.
— O que houve, Maria? - ele disse, mas Maria colocou um dedo sobre os lábios dele, e ele se calou. Ela deixou a vela sobre a mesinha de cabeceira, e João insistiu - Está sentindo alguma coisa? Quer que chame mamãe?
Mas Maria apenas se ajoelhou ao lado da cama e disse:
— Feliz aniversário, João.
— Obrigado. - ele estava confuso - Mas você já me deu os parabéns.
— Mas ainda não lhe dei seu presente.
— Não desejo presentes, Maria. Tenho você e nossos irmãos, o que mais posso desejar?
— Por favor, João - ela sussurrava - se me ama, aceite o presente que lhe trago.
— Claro que a amo, e ficarei feliz em aceitar qualquer presente que me der.
— Jura por Deus que aceitará o que eu tenho para você?
— Juro.
Em silêncio, Maria se levantou. Afastou-se alguns passos, sem tirar os olhos de João. E então, lentamente, deixou a camisola escorregar por seu corpo, ficando nua diante dele. João se sentou na cama.
— Maria, o que...
Ela foi até ele e subiu na cama. A luz da vela parecia criar contornos irreais para o corpo dela, além de lhe dar uma palidez suave como a da lua. Ela colocou a mão dele sobre sua cintura, e ele pôde sentir seu calor, suave e convidativo como a primeira luz do sol depois das noites de inverno. A pele dela era macia como o mais macio dos tecidos que ele jamais tocara, e quando ela se aproximou, ele pôde sentir seu perfume, uma mistura de todos os cheiros doces da primavera.
— Não, Maria. - ele tentou afasta-la - Somos irmãos. Isso é pecado.
— Eu quero ser aquela que te tornará um homem, meu irmão. - ela se abraçou a ele - Você jurou por Deus que aceitaria o presente que eu tenho para você. Desonrar um juramento também é pecado, e quem há de decidir qual pecado é maior?
O perfume e o calor dela tornavam quase impossível formar pensamentos coerentes. João ainda tentou afasta-la mais uma vez, mas ela juntou seus lábios em um beijo casto, mas coberto de promessas. Antes mesmo de perceber o que fazia, ele a puxava para si em novos beijos e a deitava em sua cama, e perdia-se completamente nela.
No dia seguinte, ao acordar sozinho em sua cama, por um momento ele acreditaria que tudo não passara de um sonho profano. Mas então veria a mancha de sangue no lençol; o sangue do pecado de sua irmã, uma prova incontestável do que acontecera. E quando seu pai viesse bater à sua porta, ele ainda estaria chorando, enquanto murmurava inutilmente uma oração.

* * * * *

No fim daquela tarde, João foi para o quintal, guardar a lenha que colhera na floresta. Acabara de empilhar os primeiros troncos no depósito, quando virou-se e deu de cara com Maria, que o assistia a poucos passos de distância. Por um segundo ele teve vontade de se jogar nos braços dela e pedir perdão; mas tudo o que fez foi continuar guardando a lenha, como se sequer a tivesse visto.
— Como foi o dia, irmão? - Maria disse, da mesma forma que dizia todos os dias - Colheu muita lenha?
— Sim. - ele disse, sua voz fria como gelo.
— João? Por que não olha pra mim?
Ele não respondeu. Continuou a guardar a lenha no depósito, até que, ao se virar de costas para a irmã, se viu abraçado pelos mesmos braços delicados que o haviam enlaçado com tanta paixão na noite anterior.
— Se me odeia, irmão - ela disse, e ele podia sentir a dor em suas palavras - basta dizer-me, e irei embora. Irei para longe, e jamais terás notícias minhas novamente. Mas não pedirei seu perdão, pois tudo o que fiz ontem faria de novo hoje e quantos dias mais eu viver, porque te amo.
— Não pode me amar, Maria. - ele não olhava para ela - Sou seu irmão, e esse amor que você sente é pecado aos olhos de Deus.
— Você não me ama, João? Não me desejou ontem? Não passou o dia hoje desejando que tudo acontecesse de novo mais mil vezes? - ele não respondeu - Eu irei novamente ao seu quarto essa noite. Se me amas, deixe a porta aberta e me espere. Mas se não me ama, se seu amor por Deus é maior do que seu desejo por mim, então tranque a porta, e no próximo amanhecer já estarei longe daqui, levando comigo meu pecado mortal.
Com isso ela o soltou e correu de volta para a casa. João ficou ainda um longo tempo parado ali, deixando que o vento frio levasse embora suas lágrimas.
Naquela noite, ao entrar em seu quarto, ele trancou a porta.
Como em todas as noites, ele rezou, despiu-se e se deitou. Mas, apesar do cansaço que sentia, não dormiu. Ficou olhando para a porta, esperando por algo que ele não sabia exatamente o que era.
Talvez ela não viesse. Talvez tivesse se arrependido.
E mesmo que viesse, tudo o que encontraria seria uma porta fechada. E no dia seguinte, quando todos acordassem, encontrariam sua cama vazia, e ela já não estaria ali. Nunca mais a veriam. Ninguém, nunca mais, teria notícias dela.
Ele ouviu passos no corredor.
A pele dela, pálida como a luz da lua. Seus cabelos soltos, sobre os ombros nus. Seus seios, doces e pequenos.
Pela estreita fresta da porta, ele pôde ver a luz de uma vela.
Os lábios rosados, macios, doces. Sua cintura fina e delicada, sua pele macia e quente. O calor de seu corpo, no qual ele mergulhara, quente acolhedor, febril...
A maçaneta da porta foi virada, mas o trinco impediu que a porta abrisse. Após um segundo de hesitação, a maçaneta foi girada novamente - como se a pessoa não acreditasse que realmente estava trancada. Em seguida o silêncio, e então o som dos passos se afastando.
João pôs-se de pé com um salto e vestiu apenas a calça antes de abrir a porta. Ali, no corredor, olhando-o assustada, estava Maria. Lágrimas escorriam por seu rosto rosado.
Sem se importar com o barulho que podia estar fazendo, João foi até ela e a puxou para si. A vela caiu no chão, apagando-se e deixando tudo na mais completa escuridão. Ele carregou Maria para seu quarto, e antes mesmo de trancar a porta já a estava prendendo em um beijo desesperado.
A camisola de Maria era de um tecido pesado e grosso, e João sabia que um bom marido jamais deveria remover as vestes da esposa. Mas ela não era sua esposa, nem era ele um bom marido; de forma que arrancou as roupas de ambos, e foi em uma tempestade de pele junto a pele que ele a tomou para si.
Dessa vez, ao contrário da noite anterior, ele não se preocupou em se conter. Não houve, dessa vez, nenhum sinal de culpa ou timidez, e a única coisa que calou seus gritos foram os beijos dela; e no fim da noite, quando ela fez menção de se levantar, ele a impediu.
— Fique.
— Tenho que ir. - ela se sentou na cama - Você precisa dormir, pois em breve papai virá te chamar para ir com ele à floresta.
— Então prometa-me que virá novamente na próxima noite.
— Eu prometo.
Ela o beijou uma última vez, e se foi.

* * * * *

Maria escondeu-se dentro de um dos armários, ouvindo. Todos os seus irmãos dormiam, mas seus pais conversavam na cozinha.
— Eu não quero acreditar, mulher. - dizia o pai - Mesmo você tendo me dito, e mesmo eu tendo visto com meus próprios olhos, não quero acreditar.
— Abra seus olhos, homem. - a mãe respondeu - Eu já estava desconfiada, isso deve estar acontecendo há meses. Maria pecou, pecou com o próprio irmão. O mal abateu-se sobre essa casa.
— Mas eles são irmãos! João é um rapaz tão bom, como pôde...
— O demônio o tentou e ele não resistiu. E Maria se ofereceu a ele como instrumento do diabo. Agora o pecado está sobre todos nós.
— E o que faremos? Entregaremos nossos próprios filhos para serem queimados na fogueira?
Após um instante de hesitação, a mãe disse:
— Seria o certo a se fazer, mas não posso. Por pecadores que sejam, são nossos filhos. Nossos dois filhos mais velhos. Mas eles não podem continuar nessa casa.
— O que faremos, então?
— Vamos leva-los conosco para a floresta, para tão longe que eles jamais achem o caminho de volta, e os abandonaremos lá. Se Deus perdoar o pecado deles, eles sobreviverão; caso contrário, morrerão. Será uma morte menos certa do que se os entregarmos para a igreja.
— Se você acha melhor assim, é assim que faremos. Amanhã os levarei comigo para a floresta, e os abandonarei lá. E que Deus tenha piedades deles.
Pouco depois, eles se retiraram para o quarto. Apenas depois que não havia mais som algum na casa, Maria saiu de seu esconderijo e seguiu para o quarto do irmão, onde João a esperava. Mas não disse nada sobre a conversa que ouvira, nem deixou que ele percebesse sua preocupação. Apenas o amou com uma paixão ainda maior do que a habitual, como se aquela fosse a última noite de ambos na Terra.
No dia seguinte, cedo pela manhã, os dois irmãos mais velhos saíram para a floresta, acompanhados dos pais. Os irmãos mais novos ficaram sozinhos na casa.
Eles andaram por horas, por caminhos que tanto João quanto Maria desconheciam, até chegar a uma clareira.
— Fiquem aqui e colham a lenha - disse a mãe deles - enquanto eu e seu pai vamos em busca de carne. Maria, se encontrar algo que possamos comer, colha e guarde ao abrigo de animais. Voltaremos no fim da tarde para buscar vocês.
Assim eles fizeram; mas as horas passavam e o sol descia, e seus pais não voltavam.
— Eles já deviam ter voltado. - disse João - Em breve anoitecerá, e faz cada vez mais frio. Será que aconteceu alguma coisa?
— Eles não voltarão.
— O que?
— Eles nos abandonaram aqui. Eu os ouvi planejando isso, ontem a noite.
— Mas por que eles fariam uma coisa dessas?
— Porque eles sabem sobre nosso segredo.
E ela contou tudo o que tinha escutado na noite anterior. João ficou desesperado; o frio aumentava, e já estava escuro.
— E agora, o que faremos? Mesmo de dia, seria muito difícil encontrar o caminho pra casa. Agora à noite, é impossível. E não temos nenhuma chance de sobreviver sozinhos na floresta. Se não morrermos congelados, morreremos de fome.
— Calma. - ela foi até ele e o abraçou - Eu fiz um plano, ontem. Enquanto vinhamos pra cá, eu fui jogando aquelas pedras brancas do jardim pela estrada, marcando o caminho. Elas brilham à noite, irão nos ajudar a encontrar o caminho de volta pra casa.
Embora não tivesse muita esperança de que aquilo fosse funcionar, João seguiu Maria para a estrada por onde haviam chegado na clareira. Após alguns minutos procurando, ela encontrou o início do caminho de pedras, que brilhava sob a luz fraca das estrelas.
Eles seguiram a trilha de pedras. Andaram por horas e horas; o frio queimava a pele e fazia os ossos doerem, e Maria se abraçou a João, buscando um pouco de seu calor. Até que, quando já era quase meia-noite, eles avistaram as luzes da casa. Correram até lá e bateram na porta, desesperados. Quem abriu a porta foi o pai deles, parecendo aliviado por vê-los a salvo.
— Meus filhos! - ele abraçou os dois - Minhas crianças, vocês estão bem, graças a Deus...
— Como conseguiram voltar sozinhos? - disse a mãe, olhando para os dois com desconfiança.
— Foi Deus, mamãe. - disse Maria, aos prantos - Deus nos guiou, iluminou o caminho para que encontrássemos nossa casa.
— O que aconteceu? - disse João - Por que nos abandonaram na floresta?
Seus pais trocaram um olhar.
— Nós também nos perdemos. - disse a mãe deles - Conseguimos voltar para casa, mas não conseguimos encontrar a clareira onde havíamos deixado vocês.
— Me perdoem, meus filhos. - o pai deles os abraçou novamente - Eu nunca mais os deixarei assim. Nunca mais.
— Eu sei, papai. - Maria correspondeu ao abraço, com um suspiro triste - Eu sei.

* * * * *

— Isso deve acabar.
— O que? Por quê?
— Você viu o que aconteceu, Maria. Eles deixaram a gente para morrer na floresta. Mais um pouco, e poderiam ter entregado a gente para a Inquisição.
— Mas nós sobrevivemos e eles acreditam que Deus nos perdoou. Não há o que temer.
— As coisas não são tão simples. Mamãe não está tão convencida assim que fomos perdoados. Se nos virem juntos de novo...
— Não me deixe, João. - ela o abraçou - Por favor. Eu não poderia suportar ficar sem você.
Com um suspiro, João correspondeu ao abraço.
— Eu sei. Eu também não poderia viver sem você.
— Eu te amo.
— Eu também te amo.

* * * * *

O inverno avançava, impiedoso.
Embora não faltasse comida, o frio intenso era torturante. As crianças mais novas, muito pequenas, sofriam mais do que os adultos. Até que o mais novo ficou doente, à beira da morte.
— Deus está nos punindo, marido! - dessa vez, era João quem ouvia a conversa de seus pais - Eu sei que aqueles dois continuam no pecado! Ganharam uma segunda chance, e reincidiram! Deus vai nos levar um por um se continuarmos permitindo que isso ocorra!
— Eu não os abandonarei novamente na floresta!
— Então os entregarei para a Inquisição!
— Não! Não permitirei isso!
Nesse momento, João saiu de seu esconderijo e interveio.
— Pai. Mãe.
— João!? - os dois se voltaram para ele, sobressaltados - O que está fazendo aqui? - disse seu pai - Não devia estar dormindo?
— Me perdoem. Eu ouvi tudo o que disseram. Sei que planejam abandonar eu e Maria na floresta.
— Meu filho, eu nunca...
— Não, pai. O que a mamãe disse é verdade. Eu e Maria pecamos antes, e continuamos a pecar. Se foi nosso pecado que trouxe a doença para meu irmão, então nós devemos deixar essa casa. Eu não irei me opôr.
— Meu filho... - disse a mãe dele - Por quê, meu filho, por que você e Maria cederam a essa tentação tão terrível?
— Sinto muito, mãe. Eu amo Maria, e prefiro morrer do que ficar sem ela. Por isso, deixaremos essa casa ao amanhecer. Tudo o que peço é que nos deem um pouco de pão, para que tenhamos a mínima chance de sobrevivência. Prometo que vocês nunca mais ouvirão falar de nós e de nossa desgraça.
O pai dele começou a chorar; uma lágrima caiu pelo rosto da mãe, mas ela depressa a enxugou.
— Está certo. Amanhã, lhes entregarei uma cesta com um pouco de pão, e nada mais. Vão para longe, e que Deus tenha piedade de vocês.

* * * * *

— Por quê, João? Por quê?
Maria chorava, encolhida de encontro ao irmão. Faltava poucas horas para o amanhecer. A primeira noite deles na floresta, e eles já estavam quase sem comida. Ambos tremiam de frio.
— Mamãe estava certa, Maria. Nós estávamos trazendo o pecado e a ira de Deus para nossa casa. Eu não podia permitir que nossos irmãos sofressem por nossa culpa.
— Nós vamos morrer.
— Se essa for a vontade de Deus, então que seja. - ele a apertou com mais força contra si - Eu prometo que não te deixarei. Estarei ao seu lado até o último instante.
— Estou com medo.
— Eu também.
Com o nascer do sol, o frio se dissipou um pouco. Eles se levantaram e seguiram andando pela floresta. Onde estavam, já não havia estradas ou trilhas, e era impossível saber para onde estavam indo. Ao menos não estava nevando, mas não havia uma única fruta nos arbustos, nem um animal que pudessem caçar.
Após horas de caminhada, quando o sol se aproximava novamente do horizonte, João avistou algo que parecia uma estrada, ladeada por pequenas pedras coloridas. Os dois passaram a segui-la, e estranhamente, quanto mais andavam por ela menos frio parecia fazer. Até que a terra se tornou menos seca e pequenas flores começaram a brotar; eles ouviram o som de animais, e um sol mais forte começou a brilhar, como se fosse primavera.
— O que é isso? - disse Maria, olhando encantada ao redor - O que está acontecendo?
— Eu não sei. - João também estava maravilhado - Será que morremos? Talvez tenhamos morrido, e estejamos chegando no Paraíso.
No fim da estrada, havia uma grande clareira, e ali o sol brilhava forte e as árvores estavam carregadas de flores e frutos. No meio dela havia uma casa de pedra, com as paredes cobertas por plantas e flores decorando as janelas. De onde eles estavam, podiam sentir um cheiro delicioso de bolo e pão.
Os dois se aproximaram, João com cautela, Maria com certo desespero. Tentavam espiar pela janela, para saber quem morava na casa, quando a porta se abriu e uma mulher apareceu.
A mulher devia ter por volta dos trinta anos, e era muito bonita. Olhou para os dois com curiosidade, e então sorriu.
— Ora essa, o que duas crianças fazem sozinhas nessa parte da floresta? Vocês se perderam?
— Não - disse Maria - nossos pais nos abandonaram, porque não tínhamos comida e íamos morrer de fome. A senhora pode nos dar um pouco de comida?
— Claro. Quais são seus nomes?
— Meu nome é Maria, e meu irmão se chama João. - ela olhou para João, e viu que ele olhava fixamente para a mulher - João? O que foi?
— ... Nada. - ele disse, parecendo um pouco perdido.
— Meu nome é Morgana. - a mulher disse - Entrem. Vocês parecem tão fracos, precisam se alimentar e se aquecer. Passem essa noite aqui.
Eles entraram na casa. Ali era aquecido e acolhedor, e havia doces e pães sobre a mesa.
— Comam à vontade. - Morgana disse - Não façam cerimônia.
— Você vive sozinha? - disse João, enquanto Maria já se sentara e começava a comer.
— Sim.
— Então por que fez tanta comida?
— Porque estava esperando vocês.
— Você sabia que a gente vinha?
— Talvez soubesse. - ela sorriu - Mas vamos deixar as perguntas para quando vocês já estiverem alimentados. Vamos, coma.
João acabou juntando-se a Maria, e os dois comeram mais do que já tinham comido durante a vida inteira. Depois tomaram um banho quente, e Morgana lhes deu roupas novas para vestir. Maria estava tão cansada e satisfeita que assim que saiu do banho, foi para o quarto que Morgana lhe dera e dormiu imediatamente; mas João queria saber mais sobre aquela mulher estranha que morava sozinha no meio da floresta.
— Eu agradeço por tudo o que fez por nós. - ele disse - Mas quem é você, e por que vive aqui sozinha?
— Sou apenas uma mulher solitária - ela preparava um chá - que encontrou abrigo no coração da floresta.
— E por que somente aqui é primavera, enquanto no resto da floresta é inverno?
— Porque é sempre primavera em meu coração.
— Você é uma bruxa?
— Sim. - ela sorriu - Quer chá?
Ele aceitou, um pouco confuso pela forma como ela respondera.
— Mas se você é uma bruxa - ele disse, enquanto bebia o chá - então você é má?
— Sim. - ela sorria para ele - Sou tão má quanto um garoto que se deita com a própria irmã.
João quase engasgou, e ficou muito vermelho.
— Como você...
— Eu sabia quem vocês eram mesmo antes de chegarem aqui. Como disse, estava esperando vocês. Mas não se preocupe, eu não os julgarei. Entendo o amor de vocês, e não culpo sua irmã por se apaixonar por um rapaz tão bonito.
Ele tentou disfarçar seu embaraço bebendo mais chá.
— Você nunca se casou? - ele perguntou.
— Não. Tive muitos amantes, mas abandonei todos quando fugi para a floresta.
— E por que fugiu?
— Porque a igreja me perseguia, e eu seria queimada viva. Assim como vocês.
Eles ficaram algum tempo em silêncio.
— Eu não sei o que fazer. - João disse, pensativo - Temo por mim, e por minha irmã.
— Vocês podem viver aqui comigo. Vivo sozinha, como disse. Vocês teriam minha proteção, e em troca poderiam trabalhar para mim.
— Não sei se posso aceitar. Nem sei se Maria irá aceitar.
— Converse com ela, amanhã. Mas saiba que serão muito bem vindos.

* * * * *

Após muito conversarem e refletirem, os dois irmãos aceitaram ficar morando com Morgana. Afinal, viajar pela floresta durante o inverno significaria a morte; e mesmo que conseguissem chegar à cidade, não tinham nada, nem ninguém. Viveriam como mendigos, e se a igreja descobrisse que eram irmãos e amantes, seriam condenados à morte.
Ali, com Morgana, era sempre primavera. Sempre tinham comida, e o sol sempre brilhava. Maria a ajudava a cozinhar e a cuidar das plantas; João buscava água no poço, cortava lenha e alimentava os animais da floresta que iam até ali em busca de calor e comida.
Um dia, quando fazia pouco mais de um mês que eles estavam morando ali, João acordou no meio da noite. Maria estava deitada ao seu lado, dormindo profundamente; agora, eles compartilhavam o mesmo quarto e a mesma cama. Sentindo-se sem sono, ele se levantou e foi em direção à sala, sem levar nenhuma luz consigo.
Quando passava pelo corredor, a luz de uma vela surgiu ao seu lado, e ele se voltou para a porta do quarto de Morgana, de onde a claridade vinha. Ela estava ali, usando uma camisola leve e absurdamente indecente, como ele nunca vira mulher nenhuma usar. Carregava uma pequena vela, e o olhava com curiosidade.
— João? O que faz aqui? Não está se sentindo bem?
Ele podia ver o suave contorno de seus seios sob o tecido fino, e seu olhar se prendeu ali por um tempo. Os cabelos dela estava solto, caindo em ondas douradas sobre os ombros.
— Não sei. - ele disse afinal - Acho que tem alguma coisa errada comigo.
Ela sorriu. Estendeu a mão para ele, dizendo:
— Venha aqui.
Como se hipnotizado, ele segurou a mão dela e deixou que ela o conduzisse para o quarto. Ela fechou a porta e deixou a vela sobre a mesa.
— Não há nada errado com você. - ela se aproximou e tocou o rosto dele - É apenas um menino. Um jovem rapaz, em busca de alguém que acalme seu coração.
— Eu tenho Maria.
— Mas ela não é suficiente para você, não é? - ela tocou no peito dele - Seu corpo pede mais, assim como seu coração.
Ele tocou o rosto dela, afastando seus cabelos, e a beijou. Os beijos dela eram tão diferentes dos de Maria. Mais experientes, mais selvagens. Seus lábios escondiam segredos e promessas. Ela deixou a camisola escorregar por seu corpo e cair ao chão, expondo-se para ele, oferecendo-lhe um mundo desconhecido. Um mundo no qual ele se perdeu completamente durante toda a noite.
Após aquela noite, não havia outra coisa em que ele pensasse que não fosse Morgana. Mesmo quando Maria o procurava, era o corpo da outra que ele desejava, os beijos dela que buscava; e quando a irmã dormia, ele se levantava e ia para o quarto da outra, onde poderia realmente se saciar, se satisfazer com plenitude.
Ainda amava Maria; a amava tanto quanto antes, talvez até mais. Mas apenas ela não era o suficiente para ele, principalmente agora que provara do sabor de outra mulher. No início, dissera para si mesmo que estava apenas curioso por conhecer outra mulher, mas essa desculpa logo se mostrara vazia e tola. Estava apaixonado, e sabia disso. Estava completamente apaixonado por Morgana.
A temia o que aconteceria caso Maria descobrisse.
Nos primeiros dias daquele novo amor secreto - pois que agora sentia-se com Morgana da mesma forma que se sentira com Maria na casa de seus pais - sua irmã de nada desconfiou. Mas conforme as semanas passavam, ficava mais difícil esconder suas ausências durante a noite, ou mesmo sair do quarto sem que ela percebesse. Mais difícil também era esconder seus olhares de desejo para aquela mulher tão misteriosa e bela, a qual ele por vezes se pegava olhando longamente.
E afinal, Maria descobriu.
João nunca saberia como ou quando, exatamente, ela descobrira. Mas um dia, enquanto ele a ajudava no jardim, ela disse:
— Devemos partir.
— O que?
— O inverno já acabou, já começou a primavera. Será mais fácil sobreviver na floresta nessa época.
— Mas por quê? E pra onde pretende ir? Iremos morrer de fome na cidade.
— Que seja! - ela se voltou para ele, com lágrimas nos olhos - Melhor morrer de fome ao seu lado, do que te perder completamente para aquela bruxa!
— Do que está falando?
— Estou falando de todas as noites que você passou na cama dela, e de como lhe entregou seu coração! Ela já o tem quase por completo. - ela apontou a pequena pá que usava para cavar a terra - Mas eu te matarei e morrerei contigo, antes de te ver deixar de me amar!
— Não seja tola, Maria! - ele a abraçou - Eu te amo mais do que tudo. Nada vai fazer eu deixa de te amar, nunca. Sinto muito se te fiz sofrer.
— Vamos embora, João. - ela se agarrava a ele com desespero - Por favor, vamos embora. Aquela mulher é má. Ela representará nosso fim. - ele hesitou, e ela olhou em seus olhos - Se eu pedir para que você a deixe e vá embora comigo, você fará isso por mim?
Ele queria responder que sim, que faria tudo por ela; mas os olhos verdes e as curvas de Morgana dançavam diante dele, sedutores, irresistíveis.
— Por favor, minha irmã. - ele a abraçou contra si - Me dê apenas mais um tempo. Meu coração se desvencilhará dela, e então eu serei novamente só seu.
Maria se afastou dele, chorando.
— Eu já o perdi. Você não pode decidir entre eu e ela.
— Maria...
Mas ela correu para a casa, não querendo ouvir suas palavras.

* * * * *

Naquela manhã, quando João acordou, os pássaros não cantavam. Ele olhou pela janela: chovia lá fora, e embora não fizesse frio, o ar estava pesado. As plantas ao redor da casa estava murchas, e não haviam flores.
Confuso e preocupado, ele se levantou. Maria não estava ao seu lado. Ele saiu do quarto, em busca dela, e ao chegar na sala deparou-se com Morgana caída no chão, morta, em meio a uma poça de sangue.
— Não! - ele gritou, e se ajoelhou ao lado dela, a segurando contra si - Não, não, não...
Ao levantar o rosto, avistou Maria, parada na porta da frente, olhando para ele com olhos frios. Carregava uma adaga comprida, cuja lâmina estava manchada de sangue. Seu vestido também tinha uma grande mancha vermelha.
— Maria! - ele gritou - O que você fez? O que você fez, Maria?
— Você não pôde se livrar do feitiço dela sozinho, então eu o salvei. - ela disse, e sua voz estava tão fria quanto seus olhos - Você é meu novamente.
João se levantou e foi até ela. Maria deixou cair a adaga e estendeu os braços para ele; mas ao invés de abraça-la, ele lhe deu um tapa no rosto. Em seguida saiu da casa, para a chuva torrencial que caía, e seguiu o caminho de pedras, afastando-se da casa quase correndo.
— João! - Maria gritou, mas a chuva abafava o som de sua voz - João!
Ele não se deteve; continuou a se afastar, sem olhar para trás, sem querer ver a irmã nunca mais. Ouviu ela correr para ele, ouviu o som de seus passos se aproximando na terra molhada, ouviu ela gritar seu nome; mas não se voltou nem por um momento.
Até sentir a lâmina atravessar sua carne e se enterrar profundamente dentro dele.
Ele tentou gritar, mas o ar sumiu de seus pulmões, e uma onda de sangue surgiu em sua boca. A lâmina foi puxada para fora de seu corpo, e ele se virou a tempo de ver Maria golpear novamente, dessa vez rasgando seu peito. Ele caiu, e ela continuava a gritar seu nome a cada golpe, a cada vez que a lâmina descia e rasgava a carne. Ele tentou chamar o nome dela, mas se engasgava com a água e a lama e seu próprio sangue; e ela continuou a gritar seu nome mesmo quando ele já não podia ouvir.
— Você é meu, irmão. - disse Maria, quando parou de golpeá-lo - Vamos ficar juntos para sempre. Eu te amo mais do que tudo no mundo.
Ela se deitou ao lado dele e cortou os próprios pulsos, em cortes longos e verticais, que subiam das mãos até a metade dos braços, abrindo completa e irremediavelmente as artérias. Seu sangue jorrou em pulsos, e ela se abraçou ao irmão, mergulhando para sempre com ele naquele chão, manchando eternamente o caminho de pedras.

SOBRE A HISTÓRIA

Eu tinha planejado um final completamente diferente, não tenho a menor ideia de como a história acabou desse jeito.
Esse conto é baseado (obviamente) na história de João e Maria, e uma das fontes de inspiração para ele foi um filme pornô que assisti quando era adolescente (não pergunte). Ele acabou lembrando um pouco o conto Neve, por causa da questão do incesto, pela inversão dos papéis de vilão e mocinho e por ser baseado em um conto de fadas. Só no final da história eu pensei que podia ter posto o papel de sedutor maligno no João ao invés da Maria, o que faria a história ser completamente diferente. Talvez eu experimente escrever essa ideia algum dia.

* * * * *

Hoje é o aniversário de seis anos do blog, e para comemorar, essa semana estou publicando um post por dia, todos os dias. Muito obrigada a todos que me leem, seus psicopatas pervertidos lindos. Eu escreveria mesmo que ninguém lesse esse blog, mas me dá muito mais vontade de escrever quando eu vejo que o número de visitas superou minha expectativa =)

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