segunda-feira, 21 de julho de 2014

[conto #059] O Gato

O GATO

A princesa estava sentada na cadeira de balanço, assistindo ao nascer do sol. Fazia frio, e pequenas gotas de orvalho pingavam das pétalas das flores no jardim. O marquês aproximou-se dela e a beijou.
— Irei até os campos, minha princesa. - ele disse - Estarei de volta para o almoço.
— Sim, meu senhor. Cuidado na estrada.
Ele se foi, e ela ficou vendo sua carruagem se afastar na distância. Uma lágrima caiu por seu rosto.
— Ele acabou de partir, e você já chora?
Ela se voltou. O gato estava ali, com suas botas douradas, as mãos nos bolsos, apoiado na pilastra da varanda.
— Vá embora.
— Por que me manda embora? - ele se aproximou - Por quê, se tudo o que deseja é minha companhia?
A princesa escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. As flores choraram com ela.
— Se eu soubesse antes. - ela disse, entre soluços - Se soubesse, jamais teria me casado com ele. Se soubesse antes que era você, esse tempo todo...
— Que diferença faria? - ele se ajoelhou ao lado dela - Acha que se casaria comigo? Com um gato? Acha que seu pai aceitaria isso?
— Nós poderíamos ter fugido! - ela gritara - Fugiríamos para essas terras do mundo, se seu amor por mim fosse maior do que sua ambição!
Ele a segurou pelos cabelos de forma áspera, e a beijou. Ela tentou se soltar durante algum tempo, mas acabou por aceitar.
— Venha para a minha cama. - ele disse, ao solta-la - Eu a espero.
— Não irei! - ela se encolheu, protegendo-se - Não deixarei que um ser coberto por tão profunda maldade me toque!
O gato apenas riu, e entrou no castelo. A princesa ficou ali, chorando em silêncio.

* * * * *

O marquês não voltara para o almoço, nem para o jantar. Uma forte chuva caía lá fora. A princesa acabara de se deitar, quando a porta de seu quarto se abriu. Mesmo no escuro, ela sabia quem era.
— O que faz aqui? - ela disse, puxando os lençóis para se proteger.
— Meu amo não virá essa noite. - disse o gato - Abrigou-se na casa de um camponês, devido à chuva.
— Ele está bem?
— Sim.
— Que bom. Pode se retirar agora.
Ao invés de se retirar, ele foi até ela e a beijou, subindo na cama. Ela tentou afasta-lo, tentou lutar com ele, mas não teve forças para resistir; em poucos minutos, foi completamente dominada.
No dia seguinte, ela acordaria sozinha na enorme cama, os arranhões em seu corpo únicos indícios de seu crime.

* * * * *

Durante muitas noites, o marquês se ausentava. E sempre, nessas noites, a princesa encontrava abrigo nos braços do gato, que a envolvia com uma paixão e um ardor que seu marido jamais teria.
Com o passar do tempo, ela passou a evitar o marido. Já não correspondia aos seus beijos, e o recusava quando ele a procurava de noite. Ele finalmente parou de procura-la, quando percebeu que ela não o desejava mais; sentia-se triste, mas tinha outras mulheres para o consolar. Devia ser apenas um fase, ele pensou. Logo a princesa voltaria a ama-lo como antes.
Mas os meses se passaram, e a princesa não voltara a amar o marquês. A cada dia, mais amava o gato, seu doce e perigoso gato, que ia e vinha quando queria, que aparecia à noite para toma-la nos braços independente de sua permissão. Tão vivo, tão decidido. Tão diferente do marquês.
Até que, em uma noite de primavera, quando ele surgiu em seu quarto, ela o afastou.
— Não me toque sem ter escutado o que eu tenho a dizer, pois é algo importante. - ela disse - Eu estou grávida. Estou carregando um filho seu. Um ser que é meio humano, meio gato.
Ele riu de felicidade, e pulou para a janela, prestes a gritar a todos os gatos do mundo que teria um filho. Mas a princesa o segurou.
— Se o marquês descobrir, será o nosso fim. Teremos que fugir.
— Fugiremos. - ele a abraçou - Amanhã à noite, te levarei para as terras distantes desse mundo, onde poderemos nos amar livremente, e onde em paz teremos nosso filho.
Ela deixou que ele a beijasse, e se entregou mais uma vez aos braços dele.

* * * * *

Quando o dia amanheceu, o marquês seguiu para o salão do palácio, cuidar de seus afazeres. Mas antes que chegasse lá, foi abordado pelo gato.
— Bom dia, meu amo. - o gato se ajoelhou diante dele - Vim lhe trazer notícias.
— Diga, meu fiel gato.
— Sua amada princesa está grávida. - ele se levantou, com um sorriso nos lábios - Parabéns.
O marquês ficou longos segundos parado, olhando para o gato.
— Impossível. - ele disse por fim - Há meses não a procuro.
— Oh. - o gato aparentou surpresa - Mas então...
— Vou vê-la. - o marquês virou-se em direção aos quartos - Vou esclarecer isso.
— Não é necessário, meu amo. - disse o gato - Se o filho que ela espera não é seu, então deve ser meu.
O marquês parou como se tivesse batido em um muro, e se virou novamente para o gato.
— O que!?
— Só pode ser isso, não? - o tom dele era tranquilo - Se você não a procura há meses, e se eu tenho frequentado a cama dela com regularidade há quase dois anos, então o filho que ela espera só pode ser meu. Eu não senti o cheiro de mais ninguém nela.
— Como... Como... - ele se aproximou ameaçadoramente dela - O que está dizendo? Como ousa... Me trair dentro do meu próprio palácio?
— Seu palácio? Ora, por favor, "marquês". - ele riu - Você não seria nada sem mim. Fui eu quem conquistou esse castelo, essas terras, e a princesa. Você não é nada. Eu lhe entreguei a princesa pronta para se apaixonar por você, e nem isso você conseguiu. Até mesmo um filho eu tive que fazer por você.
Com raiva, o marquês pegou sua espada e avançou para o gato. Mas nunca em sua vida lutara; com um único golpe, o gato o desarmou.
— Foi divertido brincar com você, meu amo. - disse o gato - Mas agora tudo isso será meu, como sempre deveria ter sido. As terras,  o castelo e a princesa. Será tudo meu.
E antes que o marquês pudesse responder, o gato baixou a espada, cortando-lhe a cabeça.

* * * * *

A princesa estava no alto da torre, olhando os jardins onde acontecia o funeral. Tocou a barriga, enquanto uma lágrima caía por seu rosto. O gato se aproximou em silêncio e a abraçou.
— Como pôde? - ela disse - Como pôde matá-lo?
— Foi necessário.
— Não, isso não era necessário! Apesar de tudo, ele era um homem bom, era...
— Mas esse mundo não deve ser governado por homens bons, minha princesa. - ele tocou o rosto dela - Esse mundo pertence a quem está disposto a fazer o que for preciso.
Ele a beijou. Apesar das lágrimas, ela aceitou o beijo, e se abraçou a ele.
— Se você quiser - ele disse - está livre pra partir.
— Não. - ela apoiou a cabeça no peito dele - Eu te amo, e ficarei com você para sempre.
Lá embaixo, o padre terminou de rezar, e o corpo foi sepultado, sem que ninguém chorasse por ele.


SOBRE A HISTÓRIA

Eu sempre ficava revoltada quando lia a história do gato de botas. Se você ainda é inocente e nunca percebeu, aqui vai a razão: o gato engana, manipula, ameaça, comete assassinatos, e no final é tido como herói e vive feliz para sempre. Mais bizarro ainda, pelo menos pra mim, era o fato de mesmo com todo o seu poder de manipulação, ele se contentar em ser apenas um servo, deixando seu dono ficar com todos os méritos. Essa história é a minha versão de como os planos malignos do gato de botas realmente se concluíram.

* * * * *

Essa é a semana de aniversário de seis anos do blog! Em comemoração, estou publicando um texto por dia, todos os dias, de segunda a sexta. Esse é o primeiro dos cinco.

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