sexta-feira, 19 de julho de 2013

[conto #046] Pequena Morte

PEQUENA MORTE

O balanço ia para a frente e para trás.
Lentamente.
Ela segurava as correntes enferrujadas.
Para a frente e para trás.
Lentamente.
A poça de sangue chegou aos seus pés, mas ela não pareceu perceber.
Lentamente.

* * * * *

O fogo já fora controlado. Em breve só restaria a fumaça e as cinzas.
De pé, do outro lado da rua, ela assistia enquanto os dois corpos queimados eram levados para a ambulância.
-- Eles já estão mortos, sabia?
Ela balançou a cabeça, sem olhar para quem falara.
-- Você não vai chorar?
Nenhuma reação. O homem colocou a mão na cabeça dela.
-- Você gostaria de ter eles de volta?
-- De que adianta querer?
-- E se eu disser que posso trazer eles para você - ele se abaixou para ficar da altura dela - você aceitaria?
Dessa vez, ela olhou para ele.
-- Você pode?
-- Posso. Para isso, você só precisa fazer três coisas.
-- Que coisas?
-- A primeira, é me dizer "eu quero que meus pais voltem à vida como se nada tivesse acontecido"...
-- Eu quero...
-- Espera, você tem que concordar com as outras condições primeiro. Você nunca mais vai poder ver eles, e eles não se lembrarão de você. Nem eles, nem ninguém. As pessoas que você conhecer a partir de hoje continuarão com as memórias, mas as pessoas que já te conheciam esquecerão todas as lembranças que têm de você, como se você nunca tivesse existido.
Isso fez ela hesitar. Do que adiantaria ter seus pais de volta se não pudesse vê-los? Mas, pensou depois, aquele pensamento era errado. Se eles estivessem vivos e bem, era isso o que importava. Mesmo que não se lembrassem dela. Mesmo que ninguém se lembrasse dela.
-- Eu aceito.
-- E a última condição é que você mate pessoas.
Por alguns segundos, ela ficou apenas olhando para ele.
-- Matar pessoas? Que pessoas?
-- Pessoas, pessoas. Qualquer pessoa, não importa quem seja. Você vai ter que matar um certo número de pessoas de tantos em tantos tempos.
-- Mas como eu posso matar alguém? Só se for uma criança menor do que eu.
-- Se quiser, tudo bem. Mas você vai ter ajuda, vai ganhar algumas... Habilidades especiais.
-- Tipo super poderes?
-- É, mais ou menos.
Ela ficou bastante tempo em silêncio. Ele esperou um pouco, mas como ela não esboçasse nenhuma reação, acabou perdendo a paciência.
-- E então? Aceita ter seus pais de volta em troca dessas condições? Ou é melhor eu ir embora agora?
Ainda por algum tempo ela ficou em silêncio, e então, olhando fixo para os escombros da casa, disse:
-- Eu quero que meus pais voltem à vida como se nada tivesse acontecido.
E assim foi feito.

* * * * *

Ao contrário do que pensaria qualquer pessoa que o visse caminhando às três da manhã pelas ruas desertas, ele não estava bêbado. Nem vinha de nenhum tipo de festa. Ele simplesmente saíra para caminhar, porque não conseguia dormir.
Há muito tempo não conseguia dormir.
Sabia o quanto era perigoso sair assim; mas tudo estava realmente deserto.
Nem mesmo os ladrões saem a essa hora da noite, ele pensou e riu sozinho.
Ao longe, parecia ouvir um som ritmado de coisas metálicas se arranhando.
Como uma bicicleta velha. Ou como um balanço.
Continuou andando, dessa vez mais atento. Quando o barulho ficou mais claro, ele percebeu que vinha da praça. Puxou o gorro do casaco, cobrindo a cabeça, para tentar se esconder nas sombras, e continuou andando bem lentamente. Ao chegar na praça, viu de onde vinha o som.
Havia um parquinho, com um balanço, e uma garotinha estava sentada ali, balançando lentamente.
Olhava para o nada. Pensativa.
Estava sozinha ali.
Aos seus pés, havia um homem morto.

* * * * *

-- Pedir o que?
-- Qualquer coisa, eu já disse. Pode pedir para respirar debaixo d'água, para voar, o que você quiser. Mas só quando estiver tentando matar alguém, e depois que você matar, só vai ter o que pediu até o próximo nascer do sol. Isso significa que se você matar a pessoa de manhã, sua dádiva vai durar quase vinte e quatro horas, mas se for de madrugada, pode durar poucos minutos.
Ela não entendera muito bem. Mas era só questão de tempo até pegar o jeito.

* * * * *

Ela percebeu que havia alguém ali, e levantou o rosto. No escuro, seus olhos brilharam como os de um gato. Ela podia ver o homem claramente; ele estava parado na calçada, parecendo completamente perdido.
O homem, por sua vez, olhava espantado para a criança com olhos de gato. Em um primeiro momento, pensara que estava sonhando; em seguida, percebera que era tudo real, e estava prestes a ir até a menina e ligar para a polícia, quando ela olhou para ele com aqueles... Aqueles olhos, e ele soube que aquilo não era uma criança normal.
Um demônio.
A criança se levantou do balanço, parecendo não se importar em pisar na poça de sangue. O homem deu um passo para trás e começou a se afastar. Ela pegou a grande foice que estava ao seu lado no chão, e começou a andar em direção a ele. Não era bom que a vissem. E ela ainda estava com fome.
O homem viu espantado aquela menina tão pequena levantar do chão algo com quase o dobro do tamanho dela, que parecia inacreditavelmente com uma foice. O brilho refletido naquilo indicava que era feito de metal, e parecia muito pesado, embora ela manipulasse com facilidade. O que quer que fosse, parecia perigoso, e o cadáver no chão era um alerta mais do que suficiente de que ele devia sair dali o mais depressa possível.
Ele saiu correndo.
No mesmo instante, a garota correu atrás dele. Mas as pernas dele eram muito maiores, ela jamais conseguiria alcança-lo daquela forma.
Quero correr como um adulto.
Na mesma hora as pernas dela se tornarem muito mais rápidas, e ela passou a correr com o triplo da sua velocidade anterior. Mas logo percebeu que pedira a dádiva errada; ela deveria correr mais do que um adulto para alcançá-lo. Além disso, por alguma razão, a velocidade dele ainda era maior - ela ainda era nova demais para saber sobre a diferença entre as capacidades físicas de um homem e de uma mulher.
Aquilo era ruim; ela não podia pedir uma dádiva que se sobrepusesse ou anulasse outra. Teria que arrumar uma outra forma de alcança-lo. Ele já estava quase dez metros à frente.
E então uma incrível inspiração lhe ocorreu.
Quero poder pular como um gafanhoto.
"Gafanhoto" fora o primeiro animal com um bom pulo que lhe ocorrera, e ela esperava que fosse o suficiente. Pegou impulso e pulou; atingiu quase dez metros de altura, e foi cair bem à frente do homem. Ela não esperara alcançar uma altura daquelas, e o susto a deixou um pouco tonta e com vontade de chorar; mas o grito que o homem deu a trouxe de volta ao que precisava fazer. Deu um pulo na direção dele e o derrubou no chão; com um movimento rápido da foice, cortou fora sua cabeça.
A cabeça saiu rolando pela ladeira; o corpo se contorceu em espasmos duas vezes, e então ficou inerte. Uma quantidade imensa de sangue jorrou do buraco no pescoço, formando um rio vermelho-escuro que desceu a rua. Ela sentiu a fome finalmente ir embora, ao ponto de a deixar mais do que satisfeita.
Inesperadamente, aquela pessoa surgiu ao seu lado.
-- Uau, essa foi demais! - ele disse - Você leva mesmo jeito para a coisa. Fiz muito bem em te escolher.
Ela apenas olhou para ele, sem dizer nada. Ele passou a mão na cabeça dela.
-- O que vai fazer agora?
-- Dormir.
-- Que coisa mais sem graça. - ele deu de ombros - Se bem que você é pequena mesmo, crianças dessa idade só dormem. Quer uma carona?
-- Sim.
E eles desapareceram.

* * * * *

Ela estava de novo em seu quarto.
O quarto em que ficava desde que aquilo começara. Onde vivia sozinha, e onde aquela pessoa a visitava.
Com muito cuidado, limpou a foice e a guardou no armário. Em seguida tomou três banhos - um para tirar o sangue, outro para tirar o que restara do sangue, outro para tirar a sensação do sangue - jogou as roupas no lixo, e afinal se deitou. Aquela visão noturna começava a incomoda-la, mas logo os primeiros raios de sol surgiram lá fora, e as dádivas desapareceram. Ela voltara a ser uma menina normal.
Contente e satisfeita consigo mesma, ela fechou os olhos e dormiu. Com um sorriso no rosto.

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