quarta-feira, 24 de julho de 2013

[conto #049] Caçadores de Chuva

OBS: Este conto tem relação com o conto Pequena Morte, publicado anteriormente. Para mais informações, ler o "sobre a história" no final dessa postagem.


CAÇADORES DE CHUVA

Ela sempre gostara da praia. Antigamente, seus pais a levavam à praia todos os fins de semana em que havia sol. Ela queria ir mesmo naqueles em que chovia, para ficar vendo a chuva se misturando com as ondas do mar; mas seus pais nunca a levavam nesses dias. Antigamente, quando chovia, ela costumava ficar sentada na janela, olhando a chuva molhando as plantas no jardim, sentindo o cheiro de terra molhada, sentindo o frio. Até que sua mãe vinha até ela, a embrulhava em um cobertor, a pegava no colo e a levava para a varanda, onde se sentavam na rede e ficavam contando histórias sobre a chuva.
A história de chuva que ela mais gostava era uma que sua mãe lhe contava sempre, sobre as crianças caçadoras de chuva.
Antigamente.
Agora, fazia sol. Era fim de tarde, e ela estava sentada na areia, olhando o mar. As ondas estavam altas, por isso ela tinha medo de entrar sozinha; preferia ficar ali, na beira, apenas olhando e fazendo um castelinho de areia.
Aos poucos foi ficando tarde, as pessoas foram indo embora. O sol foi se pondo, a lua foi nascendo. A areia foi ficando menos quente. Até que escureceu.
Existe, no meio do mar, um lugar em que as crianças caçam a chuva. Essas crianças parecem crianças humanas, mas as crianças humanas são feitas de terra, e elas são feitas de água. Por isso, se uma criança humana encostar em uma criança caçadora de chuva, as duas vão se misturar e se desfazer.
Mesmo no escuro, ela continuou sentada na areia. Podia ver o mar por causa do brilho da lua - era quase lua cheia, e a noite estava clara. Estava tudo calmo e silencioso, até que um homem se aproximou. Ela sentia fome.
O homem a vira de longe, por causa da lua. Foi andando até ela, e se sentou ao seu lado. Perguntou o nome dela, o que ela estava fazendo ali, quem eram os seus pais. Ela permaneceu em silêncio. Ele disse que ela era bonita. Ela sequer olhou para ele.
As crianças caçadoras de chuva gostam de brincar com bolinhas de água, do mesmo jeito que as crianças humanas brincam com bolinhas de terra. Elas pegam a água do mar e fazem bolinhas, e ficam jogando as bolinhas umas nas outras. As vezes elas fazem bolas de água tão grandes quanto um navio.
O homem passou a mão nos cabelos dela, depois esfregou seu braço. Ela olhou para ele com um olhar frio. Ele disse que queria ver ela sorrindo. Ela voltou a olhar o mar. Ele não gostou disso, e a puxou pelo braço. Ela o empurrou, e ele lhe deu um tapa no rosto. Ela o arranhou, e ele a jogou na areia. Subiu em cima dela.
Mas embora as crianças cacem a chuva, elas tem que tomar muito cuidado para que o vento não as veja. Você sabe, sempre que chove, também venta. Mas o vento caça as crianças caçadoras de chuva.
Ele começou a falar coisas que ela não entendia direito, mas que sabia que ele não deveria dizer. Ela não tinha nenhum plano específico e nenhuma arma, então teria que improvisar. O que me serviria?, ela pensava enquanto tentava impedir que ele tirasse a roupa dela. E então uma ideia lhe ocorreu, e ela sorriu. Quero ser muito mais forte do que um adulto. Mas não funcionou, e ela, já experiente, imaginou que deveria ser mais específica. Quero ser dez vezes mais forte do que um homem adulto. Especificou o homem, porque aquela pessoa já lhe explicara a diferença de força entre homens e mulheres adultos. Dessa vez funcionou.
E o que o vento faz com as crianças?
Se o vento pega uma criança caçadora de chuva, ele transforma ela em vento também. E ela passa a perseguir outras crianças caçadoras de chuva.
Ela segurou os braços dele e os apertou, sentindo os ossos estalarem sob suas mãozinhas. O homem gritou. Ela o empurrou, fazendo-o sair de cima dela, e o jogou na areia. Ele tentou se levantar, mas ela pulou em cima dele. Ele conseguiu empurra-la - embora forte, ela ainda tinha a leveza de uma criança de sete anos - e estava prestes a sair correndo, quando ela o agarrou pelas pernas e ele caiu de novo. Então pulou em cima dele e lhe deu um soco que quase o fez desmaiar.
E o que as crianças caçadoras de chuva fazem com a chuva?
Transformam em outras crianças caçadoras de chuva, é claro.
Ela rasgou a camisa dele e empurrou os dedos contra seu peito. Sentiu a pele rompendo, os músculos sendo rasgados, o sangue esguichando em sua mão. O homem gritou e se contorceu, mas ela lhe deu outro soco. Empurrou com mais força, até que os dedos entraram completamente, afundando na carne. Tateou um pouco, e sentiu o coração pulsando, por baixo da grade de ossos. O segurou e puxou com toda a força, quebrando ossos e arrebentado a carne. O homem gritou como ela nunca ouvira ninguém gritar, se contorceu em convulsões, e em segundos estava morto.
Ela não sentia mais fome.
O coração ainda pulsava em sua mão, e o sangue esguichava em cima dela. Ela o analisou, curiosa: era completamente diferente do que imaginara. Não tinha o formato bonitinho de coração que ela estava acostumada a ver; na verdade, era um pedaço de carne feio, escuro, de formato estranho, e era muito maior do que ela achava que deveria ser. Ele parou de pulsar, e o resto do sangue escorreu.
Sem interesse, ela o jogou em cima do cadáver no chão, e se afastou, andando calmamente. Olhando a lua refletida no mar, imaginou o que fariam as crianças caçadoras de chuva quando não estava chovendo.
Aos seus pés, gotas vermelhas de sangue pintavam a areia branca.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto é uma continuação (ou melhor, faz parte da história, mas tanto faz ler antes ou depois) do conto Pequena Morte. Dá pra fazer umas coisas legais misturando mortes bizarras, criancinhas inocentes e cenários assustadores.
A história das crianças caçadoras de chuva, que está misturada ao conto, foi uma ideia que tive para um conto recentemente. Nunca escrevi o conto, porque percebi que era apenas a ideia para um "universo" e não tinha uma história de verdade, com objetivos ou começo-meio-fim. Enquanto escrevia este conto, resolvi aproveitar a ideia, porque é o tipo de história perfeita para ser contada para crianças pequenas, como uma "história eterna" (aquele tipo de história que você vai inventando conforme a criança vai interagindo, e que não chega a lugar nenhum).

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Essa é a semana de aniversário do blog, e em comemoração estou publicando um post por dia, de segunda a sexta. Estou tentando publicar só contos de alta qualidade (o que não é tão difícil já que sou um gênio hehehe), espero que gostem.

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