QUANDO TODOS SE FORAM
Suicídios sempre aconteceram. Quase todos os dias, talvez até mais do que uma vez por dia. Eram algo comum. E na minha cidade, talvez acontecessem com uma frequência um pouco maior do que o normal, mas enfim, essas coisas acontecem.
Foi por isso, talvez, que eu demorei tanto para perceber que havia algo errado.
Por algum motivo, jornais não costumam noticiar suicídios. Por isso, se você fica sabendo de três pessoas que se mataram na mesma semana, você já deveria pensar que algo está errado. Mas eu - e provavelmente todo mundo - pensei só que "essas coisas acontecem", e fui cuidar dos meus assuntos.
Mas na outra semana houve mais suicídios.
E na outra.
E na outra.
Eu cheguei a comentar com as pessoas lá em casa "todo mundo resolveu se matar agora?". Era só uma brincadeira. Era curioso, quase engraçado, aquela quantidade de gente que resolvia tirar a vida, aparentemente sem motivo, de uma hora para a outra.
Mas um dia eu cheguei do trabalho, e meu namorado estava estirado na calçada em uma poça de sangue. Nós morávamos no vigésimo sexto andar, e ele se atirara da janela.
Eu e ele havíamos nos conhecido durante um estágio durante o meu último ano na faculdade. Só começamos a namorar quase três anos depois. Não morávamos oficialmente juntos, mas eu morava sozinha e ele passava tanto tempo lá em casa, que era praticamente a mesma coisa. Eu gostava dele, ele gostava de mim e estávamos felizes. Muito felizes.
Ele não tinha nenhum motivo para se jogar da janela.
Foi naquele momento que eu percebi que havia alguma coisa muito errada. Alguma coisa estava acontecendo. Aquela pessoa nunca se mataria. Comecei a investigar sobre suicídios recentes, e acabei descobrindo que, nas últimas cinco semanas, vinham acontecendo no mínimo três suicídios por dia.
Aquilo não era normal.
As coisas ainda estavam um pouco longes do fim, mas minha vida acabou quando perdi meu namorado. Saber que algo estava acontecendo não era de muita ajuda, não havia muita coisa que eu pudesse fazer. Pensei no que aconteceria se aquilo tudo fosse um filme e eu fosse o herói: provavelmente, eu sairia desesperadamente atrás das autoridades, seria ignorada, tentaria alertar a todos, continuaria sendo ignorada, e no fim descobriria a solução para tudo e seria aclamada pelo povo como grande salvadora da humanidade. Claro que, no transcorrer da história, ainda encontraria um novo amor que me faria esquecer completamente a morte do meu namorado e me faria feliz de novo.
Mas aquilo não era um filme.
Eu não tinha nenhuma ideia de como salvar o mundo, nem mesmo sabia se queria que o mundo fosse salvo. E definitivamente, não havia homem no mundo que pudesse me fazer esquecer a dor de perder aquela pessoa.
Eu passei dias e dias dentro de casa, deitada, sem forças. Não chorava mais; minha tristeza já ultrapassara em muito o tempo das lágrimas. Só ficava ali, quieta, existindo.
Até que as coisas atingiram o ápice.
Um dia, acordei com um barulho alto na rua. Ainda era muito cedo, mas parecia haver uma multidão enlouquecida na minha rua. Abri a janela e me deparei com um cena inacreditável: dezenas, talvez até centenas de pessoas se jogavam das janelas dos prédio próximos. Me afastei de janela, em choque, e bem nessa hora alguém dos andares de cima se jogou, passando exatamente pela minha janela e indo explodir no chão lá embaixo.
No chão, além de uma quantidade de corpos digna de uma guerra, havia pessoas gritando, pessoas chorando, e pessoas se matando. Algumas se atiravam na frente de carros, algumas batiam a cabeça nos muros, outras cortavam os pulsos. Formas de se matar não faltavam, e ninguém parecia estar preocupado em ter uma morte sem dor. Qualquer coisa que pudessem fazer para se ferir mortalmente, eles faziam.
Fechei a janela e a cortina. Deitei na cama, cobri a cabeça para não escutar os gritos, e voltei a dormir.
* * * * *
Eu não sei exatamente quando acabou. Acordei e dormi de novo várias vezes, talvez por dias. Mas uma hora, percebi que não havia mais gritos. Me levantei e abri a janela: no chão, milhares de corpos. De resto, um silêncio e uma calma não-naturais pairavam sobre a cidade.
Saí de casa. Na entrada do meu prédio, também havia muitos corpos. Eu passei por eles, tentando não reparar nos detalhes de suas mortes, e cheguei à rua. Era até difícil andar, e vez por outra pisava em um cadáver. Gritei por alguém, mas não houve resposta. Só silêncio. Ao longe, um cachorro latiu.
Fui andando até a praia. Muitos corpos na areia, a maioria trazido pelo mar. Na rua, muitos carros abandonados, outros tantos batidos, pessoas mortas dentro deles. Pensei em pegar um carro, mas seria impossível andar com a rua naquele estado. Continuei andando a pé, sozinha, seguida por um ou outro cachorro perdido.
* * * * *
Depois de muito tempo, cheguei na cidade vizinha. Eu não sei o que esperava encontrar; talvez tivesse a esperança de que ali as coisas fossem diferentes. Mas só havia cadáveres. O tempo todo eu fazia barulho, chamava por alguém, gritava; mas não havia ninguém vivo. Eu não quis entrar em alguma casa para procurar sobreviventes. Continuei andando até os limites da cidade, onde as pistas estavam menos obstruídas, e ali peguei um carro abandonado e segui sem rumo. Talvez, se chegasse ao Rio, as coisas estivessem diferentes. Se eu sobrevivera, alguém mais tinha que ter sobrevivido.
Mas foram oito horas de viagem inútil. Não havia ninguém vivo na cidade. E assim foi com todas as outras cidades. Pensei que pelo menos os bebês estivessem vivos, mas parece que todos os pais haviam matado os filhos antes de se suicidar.
É estranho, mas no início, eu não pensei muito no que tinha acontecido. Só queria saber se alguém além de mim havia sobrado, mas também não me preocupei muito com isso. Demorou quase uma semana para que eu começasse a pensar no por quê.
Por que todos haviam se matado? Seria um vírus? Um surto psicótico global?
E por que eu ainda estava viva?
Sem dúvida, naquela época, eu não sentia nenhuma vontade de me matar. Não depois de ver milhares de pessoas sofrendo mortes horríveis, não depois de ver milhares de corpos apodrecendo. Com o tempo, fui obrigada a me afastar das cidades; o cheiro da decomposição estava ficando insuportável. Fui me afastando cada vez mais, mas o vento trazia aquele cheiro intolerável, e logo todo tipo de animal foi atraído. Andar nas ruas se tornou perigoso. Primeiro eram apenas urubus, cachorros, gatos; depois começaram a aparecer animais maiores, até que fosse comum ver lobos, tigres (ou animais parecidos com tigres, nunca fui uma conhecedora da fauna) e cheguei a me deparar com um leão, magro e faminto, devorando um cavalo em uma cidadezinha de interior.
Depois de alguns meses, o melhor lugar para ficar era no meio do nada. Fazendas que já eram abandonadas antes da catástrofe, florestas, campos vastos e vazios. Esses lugares acabaram se tornando meu refúgio. Eu continuava andando e andando, procurando alguém.
Isso foi há quatro anos.
Hoje, eu estou no lugar que costumava ser o sul do México. Acabei ficando aqui mais do que o habitual, mas a verdade é que não tenho nenhuma vontade mais de seguir viagem. Não há mais nada em lugar nenhum do mundo. Não há ninguém. Só eu, sozinha.
Todas as pessoas do mundo se mataram. Eu fui a única que restou.
Chega um ponto em que a solidão se torna intolerável. Eu me lembro dos meus amigos. Do meu namorado. Dos lugares por onde andava. Mas as imagens sempre acabam sumindo, dando lugar a cadáveres. Milhares e milhares de cadáveres.
Se tornou insuportável.
Na verdade, pouco resta dos corpos hoje em dia. Nas cidades menores e nas vilas, consigo até mesmo andar pelas ruas sem ser intoxicada pelo cheiro. Os animais se tornam um problema cada vez maior, pois acabaram se tornando selvagens e estranham a presença de um humano. As cidades estão destruídas, já é possível ver prédios desabando. Ainda não é difícil encontrar comida, mas está se tornando perigoso entrar em lojas.
Mas o pior de tudo é a solidão. E o silêncio.
Silêncio quase absoluto, e sempre. Como uma noite que nunca acaba.
Pensando em tudo, até que eu aguentei por muito tempo. Devia ter percebido que era inútil resistir. Já estava muito claro, desde o início, que ninguém mais sobrevivera. Eu nunca descobrirei o que houve. Também nunca descobrirei porquê eu fui a única a sobreviver. Mas se descobrisse, de que adiantaria? Não há mais ninguém no mundo. Nunca mais haverá. Sou a última; se continuar insistindo, vejo que uma hora posso me ver numa situação em que esteja ferida ou impossibilitada de me mover, e sofrerei uma morte lenta, dolorosa e solitária.
Eu não quero isso.
Devia saber, desde o início, que não adianta lutar contra uma coisa tão grande. Talvez por isso todas as pessoas tenham se matado; porque elas perceberam que todos nós caminhamos para uma solidão total. Era inevitável. Só eu, tola que sou, insisti por tanto tempo.
Não mais.
Sozinha, hoje, darei meus últimos passos; e pela última vez sozinha, farei o que devo fazer. Se houver algo depois, me encontrarei com todos aqueles que foram antes e me deixaram para trás; se não houver, abandonarei uma existência triste e solitária para entrar em um vazio eterno.
Um dia, acordei com um barulho alto na rua. Ainda era muito cedo, mas parecia haver uma multidão enlouquecida na minha rua. Abri a janela e me deparei com um cena inacreditável: dezenas, talvez até centenas de pessoas se jogavam das janelas dos prédio próximos. Me afastei de janela, em choque, e bem nessa hora alguém dos andares de cima se jogou, passando exatamente pela minha janela e indo explodir no chão lá embaixo.
No chão, além de uma quantidade de corpos digna de uma guerra, havia pessoas gritando, pessoas chorando, e pessoas se matando. Algumas se atiravam na frente de carros, algumas batiam a cabeça nos muros, outras cortavam os pulsos. Formas de se matar não faltavam, e ninguém parecia estar preocupado em ter uma morte sem dor. Qualquer coisa que pudessem fazer para se ferir mortalmente, eles faziam.
Fechei a janela e a cortina. Deitei na cama, cobri a cabeça para não escutar os gritos, e voltei a dormir.
* * * * *
Eu não sei exatamente quando acabou. Acordei e dormi de novo várias vezes, talvez por dias. Mas uma hora, percebi que não havia mais gritos. Me levantei e abri a janela: no chão, milhares de corpos. De resto, um silêncio e uma calma não-naturais pairavam sobre a cidade.
Saí de casa. Na entrada do meu prédio, também havia muitos corpos. Eu passei por eles, tentando não reparar nos detalhes de suas mortes, e cheguei à rua. Era até difícil andar, e vez por outra pisava em um cadáver. Gritei por alguém, mas não houve resposta. Só silêncio. Ao longe, um cachorro latiu.
Fui andando até a praia. Muitos corpos na areia, a maioria trazido pelo mar. Na rua, muitos carros abandonados, outros tantos batidos, pessoas mortas dentro deles. Pensei em pegar um carro, mas seria impossível andar com a rua naquele estado. Continuei andando a pé, sozinha, seguida por um ou outro cachorro perdido.
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Depois de muito tempo, cheguei na cidade vizinha. Eu não sei o que esperava encontrar; talvez tivesse a esperança de que ali as coisas fossem diferentes. Mas só havia cadáveres. O tempo todo eu fazia barulho, chamava por alguém, gritava; mas não havia ninguém vivo. Eu não quis entrar em alguma casa para procurar sobreviventes. Continuei andando até os limites da cidade, onde as pistas estavam menos obstruídas, e ali peguei um carro abandonado e segui sem rumo. Talvez, se chegasse ao Rio, as coisas estivessem diferentes. Se eu sobrevivera, alguém mais tinha que ter sobrevivido.
Mas foram oito horas de viagem inútil. Não havia ninguém vivo na cidade. E assim foi com todas as outras cidades. Pensei que pelo menos os bebês estivessem vivos, mas parece que todos os pais haviam matado os filhos antes de se suicidar.
É estranho, mas no início, eu não pensei muito no que tinha acontecido. Só queria saber se alguém além de mim havia sobrado, mas também não me preocupei muito com isso. Demorou quase uma semana para que eu começasse a pensar no por quê.
Por que todos haviam se matado? Seria um vírus? Um surto psicótico global?
E por que eu ainda estava viva?
Sem dúvida, naquela época, eu não sentia nenhuma vontade de me matar. Não depois de ver milhares de pessoas sofrendo mortes horríveis, não depois de ver milhares de corpos apodrecendo. Com o tempo, fui obrigada a me afastar das cidades; o cheiro da decomposição estava ficando insuportável. Fui me afastando cada vez mais, mas o vento trazia aquele cheiro intolerável, e logo todo tipo de animal foi atraído. Andar nas ruas se tornou perigoso. Primeiro eram apenas urubus, cachorros, gatos; depois começaram a aparecer animais maiores, até que fosse comum ver lobos, tigres (ou animais parecidos com tigres, nunca fui uma conhecedora da fauna) e cheguei a me deparar com um leão, magro e faminto, devorando um cavalo em uma cidadezinha de interior.
Depois de alguns meses, o melhor lugar para ficar era no meio do nada. Fazendas que já eram abandonadas antes da catástrofe, florestas, campos vastos e vazios. Esses lugares acabaram se tornando meu refúgio. Eu continuava andando e andando, procurando alguém.
Isso foi há quatro anos.
Hoje, eu estou no lugar que costumava ser o sul do México. Acabei ficando aqui mais do que o habitual, mas a verdade é que não tenho nenhuma vontade mais de seguir viagem. Não há mais nada em lugar nenhum do mundo. Não há ninguém. Só eu, sozinha.
Todas as pessoas do mundo se mataram. Eu fui a única que restou.
Chega um ponto em que a solidão se torna intolerável. Eu me lembro dos meus amigos. Do meu namorado. Dos lugares por onde andava. Mas as imagens sempre acabam sumindo, dando lugar a cadáveres. Milhares e milhares de cadáveres.
Se tornou insuportável.
Na verdade, pouco resta dos corpos hoje em dia. Nas cidades menores e nas vilas, consigo até mesmo andar pelas ruas sem ser intoxicada pelo cheiro. Os animais se tornam um problema cada vez maior, pois acabaram se tornando selvagens e estranham a presença de um humano. As cidades estão destruídas, já é possível ver prédios desabando. Ainda não é difícil encontrar comida, mas está se tornando perigoso entrar em lojas.
Mas o pior de tudo é a solidão. E o silêncio.
Silêncio quase absoluto, e sempre. Como uma noite que nunca acaba.
Pensando em tudo, até que eu aguentei por muito tempo. Devia ter percebido que era inútil resistir. Já estava muito claro, desde o início, que ninguém mais sobrevivera. Eu nunca descobrirei o que houve. Também nunca descobrirei porquê eu fui a única a sobreviver. Mas se descobrisse, de que adiantaria? Não há mais ninguém no mundo. Nunca mais haverá. Sou a última; se continuar insistindo, vejo que uma hora posso me ver numa situação em que esteja ferida ou impossibilitada de me mover, e sofrerei uma morte lenta, dolorosa e solitária.
Eu não quero isso.
Devia saber, desde o início, que não adianta lutar contra uma coisa tão grande. Talvez por isso todas as pessoas tenham se matado; porque elas perceberam que todos nós caminhamos para uma solidão total. Era inevitável. Só eu, tola que sou, insisti por tanto tempo.
Não mais.
Sozinha, hoje, darei meus últimos passos; e pela última vez sozinha, farei o que devo fazer. Se houver algo depois, me encontrarei com todos aqueles que foram antes e me deixaram para trás; se não houver, abandonarei uma existência triste e solitária para entrar em um vazio eterno.
SOBRE A HISTÓRIA
Quem me deu a ideia para essa história foi a Le, minha irmã. A ideia dela foi "suicídio", mas esse tema de "mundo vazio" é algo em que penso com frequência, e já escrevi outros contos com o mesmo tema.
* * * * *
Essa é a semana do aniversário de cinco anos do blog, e por isso estou publicando um conto por dia, de segunda até sexta. Além disso, esse é o conto de número 50, o que também é uma marca muito importante \o/
Obrigada a todos que leem, leram ou lerão as coisas que escrevo, espero que gostem =)
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Essa é a semana do aniversário de cinco anos do blog, e por isso estou publicando um conto por dia, de segunda até sexta. Além disso, esse é o conto de número 50, o que também é uma marca muito importante \o/
Obrigada a todos que leem, leram ou lerão as coisas que escrevo, espero que gostem =)
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