terça-feira, 17 de agosto de 2010

[conto #024] Nas Nuvens

NAS NUVENS

-- Por que o céu é azul?
Estávamos sentados no quintal, comendo pipoca. Quase não havia nuvens no céu.
-- Porque sim.
-- Por que sim?
-- Não sei.
A impressão que eu tinha era que ele simplesmente não queria gastar tempo para me responder.
-- Por que tem nuvens lá no céu?
-- Porque a água evapora e forma as nuvens.
-- Então, as nuvens são feitas de água?
-- Sim.
-- E como a água evapora?
-- O sol esquenta a água e ela vira vapor. O vapor sobe para o céu e vira a nuvem.
-- Mas por que ele não vira nuvem aqui embaixo?
-- Porque sim.

* * * * *

A água começava a se agitar, bolhinhas surgiam no fundo. O fogo calmo, quente. Até que o líquido fervia, quase uma explosão. E o vapor que subia, também muito quente.
-- É assim?
-- É. Só que mais devagar, porque o sol não esquenta tanto a água.
-- E porque o vapor não fica aqui embaixo e vira nuvem?
-- Porque o ar aqui é mais pesado do que o vapor. Então é como se o vapor fosse um isopor e o ar fosse a água. Se você mergulhar na piscina e for lá pro fundo e soltar um pedaço de isopor, o que vai acontecer com ele?
-- Ele sobe.
-- Então, com o vapor também é assim. Como ele é mais leve do que o ar, ele vai subindo, subindo, até chegar lá em cima no céu. Lá, o ar não é mais pesado do que ele, então ele não sobe mais, fica parado. Quando muitos vapores se encontram, você consegue ver eles melhor. É isso que a gente chama de nuvem.
-- Então, a nuvem é só um monte de vapor?
-- Isso. Você não consegue encostar na nuvem, porque ela é só vapor.
Ele explicava muito melhor do que o outro. Por isso eu gostava mais dele.
-- Por que o ar lá em cima não é mais pesado do que o vapor, e o daqui de baixo é? Não é o mesmo ar?
-- Não, é diferente.
-- Diferente como?
-- É porque... - ele pensou um pouco - A Terra é quase como se fosse uma bola, não é?
-- É.
-- Então, o ar fica dentro da Terra. Mas não tem ar suficiente pra encher a Terra toda, então tem lugares em que falta ar. Como ele é mais pesado, ele desce pro chão, então lá em cima fica com pouco ar. Quanto mais você sobe, menos ar tem.
-- Ah... E quanto mais ar, mais pesado ele fica?
-- É. Porque um monte de ar pesa mais do que um pouquinho de ar.
-- É verdade. - balancei a cabeça, satisfeita.
Fiquei olhando o vapor da água que fervia, pensando. De repente, uma grande luz surgiu na minha mente.
-- Ah!
-- O que?
-- Então é por isso que chove? Porque a nuvem é feita de água?
-- Isso.
-- Mas por que a água cai? - antes que ele respondesse, continuei - Já sei! É porque o ar aqui embaixo de repente fica pouquinho, e fica mais leve do que o vapor, aí ele não consegue segurar a nuvem e ela cai! Não é?
-- É - ele riu - é mais ou menos isso.
Eu estava muito empolgada. Ele desligou o fogo, e logo o vapor diminuiu, embora ainda subisse.
-- Você sabe ler?
-- Sei!
-- Então vem cá. - fomos para a sala e ele pegou um livro que estava no alto da estante - Toma. - ele me entregou o livro - Aí explica tudo sobre como as nuvens funcionam. Eu tenho um monte desses. Explica muita coisa.
Peguei o livro, me sentei no sofá e comecei a ler. Ele ficava quase sempre do meu lado, para quando eu quisesse perguntar alguma coisa. Como se soubesse o quanto aquilo seria importante para mim um dia. Ou como se soubesse que, por causa daquilo, ele seria uma das pessoas mais importantes para mim, pelo resto da minha vida.


SOBRE A HISTÓRIA

De uma forma bem sutil, esse conto foi inspirado na minha relação com meu avô paterno e para ele é dedicado. Desde que eu era muito pequena, sempre que ia à casa do meu avô, ele me dava para ler livros sobre ciência, ficava conversando comigo sobre matemática, história, geografia, política, religião e demais assuntos que tanto me fascinavam e (talvez graças a atenção dada por ele) ainda fascinam. Inteligentíssimo e mais paciente do que outros adultos costumavam ser comigo, essa pessoa que só esteve na escola até a quarta série do ensino fundamental fazia o possível para responder todas as minhas milhares de perguntas, e se hoje cheguei no nível acadêmico em que estou, ele foi um dos grandes responsáveis por isso.

sábado, 14 de agosto de 2010

[poesia #017] Ele

Poema feito por mim em 22/08/2006

ELE

Há pedaços de estrelas
por causa dele.
Há diamantes quebrados
por causa dele.
Há prata, há fogo
por causa dele.
Há manchas nos sonhos
por causa dele...

Por causa dele
há ouro, há vida
há roupas no quarto
há luzes vermelhas
há sangue, há paixão
há frio e calor
há lágrima e ódio
há medo da morte
Por causa dele há amor.

Há cacos de vidro
por causa dele.
Há horas corridas
por causa dele.
Há dias vazios
por causa dele.
Há suspiro e saudade
por causa dele...

Por causa dele
há brigas, há gritos
há fugas noturnas
há pedaços da lua
há risos mais claros
há luz na alvorada
há volta, há partida
há crianças chorando
Por causa dele há chegada.

Há mundo, há vida
por causa dele.
Há ciúmes, há inveja
por causa dele.
Há desejos secretos
por causa dele.
Há gritos contidos
por causa dele...

Por causa dele
há névoas nos carros
há nuvens, há raios
há o medo de casa
há sonho, há esperança
há pianos tocados
há presente, há futuro
há verdades não ditas
Por causa dele há passado.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

[poesia #016] Canção de Outono

Poema feito por mim em 28/04/2007

CANÇÃO DE OUTONO

Hoje estava frio
e eu só queria chegar em casa
encontrar a mesa posta
a lareira acesa
sentir o gosto do vinho
o doce do chocolate
E deitar ao lado do fogo
pra te ouvir contando histórias
sobre a neve das montanhas e os lagos de gelo
Contos de histórias frias
histórias frias e esquecidas
aquecida no veludo e no calor dos seus braços
assistir ao seu olhar, perdido em meio ao fogo
sabendo que em sua alma brilha a mais quente das chamas...

E quando a noite estiver alta
alto o fogo na lareira
eu fecharia os olhos
dormiria ouvindo a chuva
e você me cantaria uma canção
numa língua esquecida
E seu colo seria o mais aquecido dos ninhos...

terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [U2] As Terras do Norte - Lista de Capítulos

AS TERRAS DO NORTE

LISTA DE CAPÍTULOS

[fanfic #003] [capítulo #001] [U2] As Terras do Norte - Cartas


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 1
CARTAS
“ You wrote the letter
Said you were gonna
Get there someday
Gonna walk in the sun
And the wind and the rain
Never look back again”
(U2 – I Fall Down)

     O barulho dos passos dos homens ecoou por todo o pátio. Ela estava sentada perto da árvore quando os ouviu. Levantou-se e correu para a beira do muro, tentando ver o que acontecia.
     -- Christian! - ela gritou para o jardineiro que, sabia, espiava tudo do outro lado – O que está acontecendo?
     -- Parece que trazem um prisioneiro! - o pequeno rapaz gritou em resposta – É, sim. Tem alguém amarrado ali!
     -- É um ladrão?
     -- Como posso saber?
     -- Vá lá e descubra!
     -- Sim, senhorita!
     Ela ouviu os passos dele se afastarem em direção aos guardas, e sorriu. Christian era seu amigo de infância, haviam crescido e brincado juntos, e ele gostava de agir como o servo pessoal dela. Mas, para ela, ele era seu irmão mais novo.
     Quando ela ouviu os passos se reaproximando do muro, subiu em um banco de madeira que arrastara até ali, e conseguiu ver o rosto pálido de Christian do outro lado. Os guardas já haviam ido.
     -- E então? - ela perguntou, ansiosa – É algum ladrão? Ou algum cavaleiro que tentou entrar nas nossas terras?
     Mas Christian demorou a responder. Ela estranhou que ele não estivesse tão empolgado quanto ela.
     -- Diz, Christian! Quem é o prisioneiro que eles trouxeram?
     -- Senhorita... É um dos nossos cavaleiros, acusado de traição.
     -- Um cavaleiro nosso? Traidor? Não acredito... Eu conheço todos os cavaleiros, nenhum iria trair o papai! É um engano, tenho certeza...
     -- É sir Evans.
     O rosto dela passou do não entendimento para a surpresa, o choque e então o desespero em questão de segundos. Ela tapou a boca com a mão, mas não pôde conter um grito.
     -- Não! Não, não pode ser...
     -- Eu o vi, eles o traziam preso... Disseram que ele cometeu uma alta traição... Glory. - ele também subiu em um banco e ficou frente a frente com ela – O seu pai deve ter descoberto.
     -- Não, não é possível... Meu Deus, Christian... - ela estava quase chorando – O que eu faço?
     -- Eu não sei... Mas não vá atrás deles, por favor, senhorita. Se fizer isso, vai dar a certeza a seu pai.
     -- Vou falar com papai! - ela pulou do banco, sem dar atenção ao que o jardineiro dizia – Vou falar com ele e reverter essa injustiça!
     -- Glory! Espera!
     Mas Glory já corria para longe. Atravessou o pátio do castelo em segundos, o vestido amarelo atrapalhando seus passos, de forma que ela teve que segurar a saia para conseguir correr mais depressa. Subiu as escadarias e chegou às portas do salão principal, onde seu pai recebia os visitantes. Elas estavam fechadas; algo importante devia estar acontecendo. Ela avançou sem hesitar, mas os dois guardiões impediram sua passagem.
     -- Ninguém pode entrar no salão, princesa. - disse um dos guardiões – Ordens de seu pai.
     -- Tenho um assunto importante para tratar com ele, e não posso esperar nem um segundo.
     -- Sinto muito. Ninguém pode entrar.
     Aquilo a enfureceu: quem aquele reles cavaleiro pensava que era para dizer onde ela podia ou não entrar?
     -- Vou entrar vocês querendo ou não. Ousem tocar em mim, e amanhã de manhã suas cabeças estarão espetadas no alto da muralha.
     Os dois se olharam. Ela avançou; um deles ainda ensaiou uma abordagem, mas acabou por deixá-la passar. Ela entrou no salão sem a menor cerimônia, interrompendo a audiência que seu pai estava tendo com outro homem, que ela nunca vira.
     -- E aí está minha doce e meiga filha. - disse Artur, pai de Glory, levantando-se – O que nosso visitante irá pensar de você, Glory, se age como se não tivesse os mínimos bons modos?
     Glory parou em frente a eles, sem responder, mas encarando firmemente o olhar do rei. O visitante também se levantara, e a garota deteve seu olhar sobre ele apenas um momento: devia ter trinta anos, e tinha a aparência de um homem muito rico. Artur lançou para ela um olhar indecifrável e disse:
     -- De qualquer forma, foi bom você ter aparecido. Glory, esse é o rei Macguiness, um dos senhores das terras do sul. Rei, essa é minha filha única, de quem lhe falei.
     -- Princesa Glory. – Macguiness se aproximou e beijou a mão dela, fazendo uma reverência – É uma honra conhecê-la. Eu e seu pai estivemos falando da senhorita na última hora.
     -- De mim? - ela sequer pensou em retribuir a mesura – Acho que homens como os senhores têm coisas mais importantes a tratar do que eu.
     -- A beleza sempre terá espaço na mente de um homem. Ainda mais em se tratando de um homem como eu.
     -- Macguiness é viúvo. - disse Artur – Sua senhora faleceu no último outono.
     -- Meus pêsames.
     -- Já superei a dor. - disse o homem, sem dar o menor sinal de ter sentido dor alguma – E creio que a senhorita saiba que um homem como eu não deve se prender ao luto.
     -- Imagino que não. - ela esperava que sua voz não demonstrasse sua extrema falta de interesse.
     -- Bem, acho que é melhor deixarmos de lado os rodeios e irmos direto ao assunto. - disse Artur – Glory, Macguiness veio aqui tratar de negócios, e entre eles está o interesse dele em ter sua mão em casamento.
     -- O quê!?
     -- Será uma honra para mim. - disse Macguiness – Meu reino precisa de uma senhora, alguém com quem eu possa ter filhos. Minha primeira esposa se foi antes de me dar herdeiros, e prefiro uma mulher jovem e saudável como a senhorita. Além disso, eu e o senhor seu pai temos negócios há muitos anos, e seria interessante unir nossas famílias.
     -- E o que o senhor meu pai tem a dizer sobre esse... Sobre isso?
     -- Acho ótimo! - Artur deu um quase sorriso – Não creio que haja no reino da Bretanha um melhor partido para alguém da sua classe. A filha de um rei deve se casar com um rei. - ele apertou a mão de Macguiness – Eu concedo a mão de minha filha ao senhor.
     -- E você não quer saber a minha opinião sobre isso?
     -- Seja ela qual for, está feito. - ele se sentou novamente, e foi seguido por Macguiness – Nós estávamos combinando a data do matrimônio.
     -- Concordamos que seja o mais breve possível. - disse o outro – O inverno chegará em poucos meses, e ainda precisamos noivar oficialmente. Quando a neve cair, será impossível transportar a princesa até o meu castelo.
     -- Podemos fazer o noivado na próxima semana. O casamento poderá ser feito em suas próprias terras, lorde. Acho que o fim de novembro é uma boa data.
     -- Sim, o ar está belo e ainda não faz tão frio. E temos três meses para preparar tudo.
     -- De jeito nenhum!
     A voz de Glory se erguera acima da dos dois homens e ecoara pelo salão. Artur lhe lançou um olhar mortal, mas ela continuou:
     -- Não vou me casar com um homem que sequer conheço e por quem não tenho nenhum tipo de sentimento amigável. Digam o que disserem, eu não me deitarei na mesma cama que esse senhor, nem que tenha que cortar meus pulsos e sangrar até a morte.
     Artur parecia que ia explodir, mas Macguiness riu.
     -- Magnífico! Artur, tenho a sensação de que sua filha será uma excelente esposa para mim. Nada poderia ser mais divertido do que domar uma garota rebelde.
     -- Não sou uma égua para ser domada! Agora, senhor meu pai, pare com essa conversa ridícula e dispense esse senhor, porque tenho um assunto sério a tratar.
     Artur se levantou, parecendo prestes a explodir.
     -- Glory...
     -- Vamos, vamos, Artur. - disse Macguiness – Não brigue com a menina, as garotas sempre acham que seus assuntos têm alguma importância. Eu preciso realmente partir, vou até a cidade cuidar de alguns pequenos negócios, e voltarei logo após o anoitecer.
     -- Minha casa é sua, Macguiness. Fique à vontade, coloquei vários criados à sua disposição e à de seus serviçais.
     Logo que Macguiness se retirou e as portas se fecharam, Artur voltou-se para Glory.
     -- Espero que esse seu comportamento vergonhoso e indigno de sua posição tenha alguma explicação minimamente aceitável, ou pode ter certeza de você será castigada como uma criada.
     -- Me bata depois, papai. Estou aqui para falar sobre uma questão de justiça.
     Ele se sentou novamente, parecendo estar prestando mais atenção ao que ela dizia.
     -- Fale.
     -- Eu estava no pátio ainda há pouco quando vi os guardas entrarem no castelo com um prisioneiro.
     -- Você deve ter coisas melhores a tratar que não os assuntos políticos, minha filha. Como estão suas aulas de bordado?
     -- Ótimas. - era mentira – Christian me disse...
     -- Eu já disse àquele maldito criado que pare de te importunar com as bobagens dele.
     -- Christian disse que o prisioneiro era sir Evans, papai. Disseram que ele havia cometido uma traição. Isso é verdade?
     -- Infelizmente sim, filha. Sir Evans traiu a mim e a esse reino e deve ser punido por isso.
     -- Eu não acredito nisso! Ele jamais trairia o senhor, nenhum cavaleiro trairia o senhor! O que acham que ele fez, roubou alguma coisa, ajudou algum criminoso a fugir, matou alguém? Eu sei que ele jamais faria nada disso, ele é um grande cavaleiro, um homem honrado!
     -- Claro que sim. Um homem muitíssimo honrado. - ele se dirigiu para um dos guardas que estava no canto da sala – Sir Nathan, poderia trazer as provas da traição de sir Evans?
     Sem nenhuma palavra, o cavaleiro atravessou a porta, e voltou instantes depois trazendo uma bandeja de prata, na qual havia vários pergaminhos. Artur pegou o primeiro, dizendo:
     -- Parte desses itens foram encontrados em um local, parte em outro, mas os guardas fizeram o favor de colocá-los em ordem. Infelizmente, nem todos puderam ser recuperados, mas o que temos aqui é suficiente. Vejamos: “Princesa Glory, senhorita mais pura e bela que já surgiu sobre a terra, e por quem todas as criaturas vivas se curvam em admiração perpétua” - Glory sentiu um tremor passar por seu corpo - “Princesa, por quem velo dias e noites a defender este reino. A senhorita está a me fazer perder qualquer juízo que algum dia eu possa ter tido. Sou só um homem, um reles serviçal de seu pai, que conquistou o título de 'sir' com o esforço de muitas batalhas. Mas talvez, para a senhorita, eu não seja mais do que a grama sob seus pés ou a água fria do lago onde se olha. Ontem estava eu a cavalgar, e, ao passar perto do lago, vi a senhorita ali, sentada, a olhar docemente para as águas calmas. Pobre de mim, maldito sou; pus meus olhos sobre o mais puro dos anjos, sustentei por vossa imagem os mais indignos sentimentos. Eu, um reles cavaleiro, estou preso nos braços do amor, que leva meu coração para junto da senhorita. E a senhorita me sorriu, com seus lábios, seus olhos, seu coração. Pobre de mim, princesa. Não sou mais do que um reles cavaleiro. Sei que traço meu destino escrevendo-lhe esta carta, mas o seu sorriso à beira daquele lago está a deixar-me louco. Por favor, princesa, se tens alguma consideração por este que não é nada senão teu escravo; por favor, não vá mais àquele lago. Uma princesa não deve ir sozinha àquelas terras; é por demais perigoso, mesmo à luz do dia. Não me faça pôr meus olhos novamente sobre seu rosto, dê uma chance para que eu possa escapar a esses vis sentimentos. Dedico-lhe os meus mais sinceros votos de alegria e felicidade. Sir David Evans”.
     Artur fechou o pergaminho e o colocou sobre a mesa ao seu lado.
     -- Bela carta, não? Pobre cavaleiro. Essas coisas acontecem, o escravo se encanta com as belezas de sua dona. - Glory continuou calada - Mas essa carta não diz muita coisa, não é mesmo? Apenas dá pena do pobre serviçal. Vejamos a próxima, é muito mais interessante. - ele pegou outro pergaminho e começou a ler - “Princesa Glory; a senhorita está a brincar com meu coração. Escrevi-lhe três cartas, com os mais desesperados pedidos de misericórdia, e a senhorita me ignorou por completo. Diverte-lhe o meu sofrimento? Diverte-se com meu amor? Porque a senhorita continua a ir ao lago todas as tardes, e não sai de lá até me encontrar. Pobre de mim, senhorita, ontem vossa senhoria ousou falar comigo. Um breve aceno, sua voz a chamar meu nome – foi como se todos os anjos arrancassem meu coração do peito e o levassem para perto do céu. Mas não me engano, sei que a senhorita trata bem a todos os cavaleiros; mas, se sabe de meu amor profano, então porque não me evita? Mas a senhorita me tenta. Ousei assistir quando a senhorita entrou no bosque, e a segui, com o mais nobre objetivo de te proteger; e vi, com olhos profanos, quando a senhorita despiu parte de seu vestido para andar por entre as árvores, julgando estar sozinha. Pobre de mim, maldito sou! Mas a senhorita me viu depois, e, ao invés de fugir de mim, chamou-me para junto de si. O que quer de mim? Eu fui, sou seu escravo, seu servo. E a senhorita tocou-me com suas mãos puras, a mim, um indigno, um cavaleiro, um criado. Nunca dama alguma havia tocado em mim como o fez a senhorita, e meu destino está selado para sempre. Estou apaixonado, senhorita, e a senhorita me diz que também o está. Não faça isso comigo. Se tudo o que quer é me ver sofrer, eu lhe imploro por Deus que não volte a me provocar desse jeito. Sou um servo fiel a seu pai, mas acima de tudo sou um homem, e um homem à beira da loucura. Tenho medo de mim mesmo, do mal que poderei lhe fazer se algo como o que aconteceu ontem voltar a acontecer. A senhorita não imagina o perigo que correu ali, sozinha comigo, naquele bosque. Foram todos os anjos do céu que tocaram meu coração e puseram meu espírito acima de minha carne, para que eu não cedesse aos impulsos que me vieram quando a senhorita me tocou. Mas não podemos contar sempre com a misericórdia divina; Deus está por demais ocupado. Por favor senhorita, não me provoque, não me tente. Se não me amas, não venha mais até mim. Com respeito e amor, sir Evans”.
     -- Não vejo nada demais nisso. - disse Glory – É uma carta como a outra. Não vejo onde está a traição.
     -- Ah, você não vê nada demais? E o que ir ao bosque sozinha com um cavaleiro e se despir na frente dele é? Por acaso agora você é uma cigana ou algo parecido?
     -- Não é nada disso! Eu não o vi quando entrei no bosque, costumo ir ali sempre! Faço escondido porque sei que é perigoso, e quando ele viu foi atrás pra me proteger. E eu não me despi, só tirei a parte de cima do vestido, porque fiquei com medo de que ele rasgasse nos espinhos. Quando eu vi que ele estava ali, já não adiantava, ele já tinha me visto, mas eu estava de roupa de baixo. Ele estava muito constrangido, e eu segurei na mão dele para dizer que estava tudo bem. Depois me vesti e ele me levou embora. Foi só isso.
     -- E o que me diz dessa parte? Ele disse que está apaixonado, e que você lhe disse que também está.
     Glory tentou pensar em uma resposta, mas nenhuma lhe veio à cabeça, e ela apenas gaguejou:
     -- Não... Não é isso...
     -- Bem, parece que aqui temos uma carta que explica muitas coisas. - Artur pegou outra carta – Como eu lhe disse, nem todas puderam ser recuperadas, e essa terceira parece estar muito distante da segunda, mas acho que ela resume muito bem o que deve ter sido conversado durante esse tempo. - ele abriu o pergaminho e começou a ler - “Querido Dave; sinto muita falta de você, e do tempo que passávamos juntos. Desde que se juntou ao grupo de cavaleiros de confiança de meu pai, nós quase não temos nos visto. Sei que é perigoso, para você e para mim; mas sinto tanto a sua falta. Mais uma viagem como essa e vou morrer de desespero. Recebi sua última carta, e fui às lágrimas com suas palavras de amor; saiba que correspondo a cada palavra que ali está, e não posso pôr em palavras os meus sentimentos. Que meu pai nunca desconfie de nosso amor, e que nunca encontre essas cartas; ele sequer sabe que sei escrever. Devo isso a Christian, meu querido irmãozinho. Sei que brigou com ele, Dave, sei que morre de ciúmes dele, mas esse sentimento é indigno e infundado. Meu amor é todo seu, só seu. Mal posso esperar para te encontrar novamente, para abraçar você. Por favor, meu amor, se ainda me ama, por favor vá até o lago, para que nos encontremos novamente. Vou estar lá no fim da tarde, esperando, e esperarei até que o sol se ponha. Sei que é um lugar perigoso, mas confio em você e no seu amor por mim. Se quer o meu bem, apareça antes que a luz se vá, para que eu possa te ver mais uma vez. Sua para sempre, Glory”.
     Dessa vez, Glory não tinha o que dizer, e nem tentou. Apenas baixou a cabeça, sem coragem de encarar o olhar impassível de seu pai. Artur, por sua vez, parecia quase triunfante. Pegou a última carta e disse:
     -- Essa foi a última que encontramos, embora talvez não seja a última trocada entre você e ele. Vamos ver o que diz? Vamos lá: “Minha querida Glory, minha doce e meiga amiga”. “Amiga”, é como ele te chama. “Amiga”. - ambos sabiam que amigo era um sinônimo gentil para namorado ou amante - “Depois dos últimos dias, sou o homem mais feliz sobre essa terra. Não posso pensar em coisa alguma senão seu rosto sob a luz do luar, do brilho do céu refletido em seus olhos puros. Nunca a floresta foi tão bela, nunca o céu da noite foi tão estrelado. Eu darei minha alma ao demônio para ter novamente uma noite como aquela. Não há mais o que possa dizer sobre aquilo. Foi a coisa mais bela que já me aconteceu, e me sinto quase digno de seu amor. Estou disposto a me sacrificar pela senhorita, de responder a qualquer crime que possa ter cometido. Eu te amo, querida, te amo com todas as forças que um homem pode amar uma mulher, com todo o fervor que um mortal pode amar a uma deusa. Amo-te, e te quero para mim. Venha novamente à floresta esta noite, estarei esperando por você; permita-me te amar mais uma vez, me permita sentir o seu amor por mim. Seu escravo eterno, Dave”.
     Houve um longo silêncio no salão quando a última palavra da carta foi lida. Glory ainda ficou um tempo olhando para baixo, mas então ergueu o rosto.
     -- Com essas provas – disse Artur – eu declaro sir Evans como alto traidor e o ordeno preso, para que seja julgado e condenado como deve ser.
     -- Não é nada disso. - disse Glory – Não aconteceu nada.
     -- Nega o que ele te disse? Nega que se encontrava com ele à noite, na floresta, como se fosse uma... Uma meretriz? Tem a coragem de negar o que está escrito aqui?
     -- Não, eu não nego. Eu me encontrei com ele sim, e depois dessa carta nós voltamos a nos encontrar mais mil vezes, e não só na floresta nem só à noite! Mas nós não fizemos nada de mais, papai, ele não me desonrou, sequer tocou em mim! Tudo o que fazíamos era ficar conversando, e eu permitia que ele me abraçasse, que me beijasse, mas isso era tudo!
     -- Acha que sou tolo? Acha que vou acreditar que esteve com um homem durante várias noites e não se deitou com ele? Eu não sou idiota, Glory! Você devia agradecer aos céus que um rei como Macguiness queira casar com você, e devia implorar a misericórdia divina, para que ele não te devolva se descobrir que você não é mais virgem!
     -- Eu sou virgem! Dave nunca me faltou ao respeito, ele é honrado demais para isso! E eu prefiro morrer a casar com o rei Macguiness!
     -- Cale-se, eu já ouvi demais! Você agora vai para o seu quarto, e vai ficar lá até o dia de ir para a casa de seu noivo. Em breve haverá o noivado, você irá se comportar como a princesa que é durante a celebração, e nos dias que se seguirem ficará em seu quarto, preparando-se para o casamento. E não quero mais ouvir o nome de sir Evans nessa casa.
     -- O que vai acontecer com ele?
     -- Ele perderá seu posto e seu título, e ficará preso até o julgamento, onde será condenado.
     -- E qual a condenação?
     -- Isso eu ainda decidirei. Mas a pena comum para crimes como o dele é a morte por decapitação.
     -- Não! Não, papai, você não pode fazer isso! Se ele morrer eu morrerei também, papai, por favor...
     -- Minha palavra está mantida. Sua dama de companhia irá com você para o seu quarto, e você não sairá de lá a não ser por ordens minhas. Um guarda cuidará para que você não desrespeite minhas ordens.
     Artur fez um sinal, e a dama entrou no salão, esperando por Glory. A princesa, por sua vez, olhou para seu pai e fez menção de dizer algo; mas acabou por se calar, e seguiu para seu quarto.

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lista de capítulos

[fanfic #003] [capítulo #015] [U2] As Terras do Norte - Novas Vidas


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 15
NOVAS VIDAS
“God I need your help tonight”
(U2 – Miracle Drug)

     Glory caminhava pelo jardim interno do palácio, acompanhada pelas damas de companhia. Hally não podia acompanhá-la, pois acabara de dar à luz e precisava de repouso. Fora um parto muito difícil, que se estendera por um dia inteiro, e chegara a tal ponto que sir Michaell, que estava de guarda, fora tirado de seu posto e chamado às pressas, para o caso de Hally não resistir. Mas, felizmente, tudo correra bem, e bastariam mais algumas semanas de descanso para que ela estivesse recuperada.
     Por outro lado, assistir àquele parto deixara Glory quase em pânico. Hally era maior do que ela, e fora tão difícil. E sir Michaell era do tamanho de Bono... Se a criança fosse muito grande, Glory podia não conseguir. E ela tinha muito medo de pensar nisso.
     Ela ouviu um cavalo se aproximar, e quando olhou, viu que era Dave, que vinha montado em seu lindo cavalo branco e usando os uniformes reais. Ele parou perto dela e desmontou, em seguida fazendo uma reverência.
     -- Boa tarde, Majestade.
     -- Boa tarde, sir Evans. - ela disse, sorrindo.
     -- A senhora me dá a honra da sua companhia?
     -- Será um prazer.
     As damas ficaram por ali, cortejando os cavaleiros, e Dave saiu andando com Glory pelo jardim.
     -- Como vai a senhora?
     -- Muito bem. Melhor do que eu esperava, apesar do tamanho da minha barriga.
     Glory já estava no sétimo mês de gravidez – embora, oficialmente, estivesse no quarto.
     -- A senhora continua linda.
     -- E o senhor continua gentil como sempre, sir Evans. Mais um pouco, e será condecorado por gentileza.
     Apesar de no início ter achado aquela situação toda quase insuportável, agora Glory já estava completamente adaptada. Podia se encontrar com Dave em uma noite, e se dirigir a ele daquela forma completamente inocente na manhã seguinte, à vista de todos. E percebera que não era nada mau ser a princesa das princesas.
     -- Vossa Alteza inspira gentileza em quem quer que a veja. - ele disse – E tenho certeza de que qualquer cavaleiro lhe dirá o mesmo.
     -- E o que faz o senhor aqui a essa hora, cavaleiro? Não devia estar a serviço?
     -- Sua Majestade, seu marido, mandou-me tomar conta da senhora, e é isso o que farei.
     -- E onde está meu marido, que não vejo há dias?
     -- Ele partiu com mais alguns cavaleiros para alguma terra distante. Disse que traria um presente para a senhora.
     -- Ele é mesmo muito gentil.
     -- Sim, ele é.
* * * * *

     Bono retornou depois de alguns dias. Glory sabia de sua chegada, pois fora anunciada por um mensageiro, e por isso o aguardava nos portões do castelo. Assim que Bono desceu do cavalo, ela foi até ele.
     -- Bono, que bom que voltou...
     -- Olá, minha querida. - ele a beijou de leve – Vamos entrar, preciso falar com você.
     Eles foram para dentro do castelo, até o quarto real. Apesar de oficialmente aquele ser o quarto dos dois, na prática era o quarto de Glory, e Bono só dormia ali quando queria passar a noite com ela; nas outras noites, ele dormia no quarto ao lado, que tinha uma porta direta para o quarto dela, e era nessas noites que geralmente Dave ia vê-la. Era comum que marido e mulher tivessem quartos separados.
     -- Como foi a viagem? - ela disse, ajudando ele a tirar a capa.
     -- Foi ótima. Consegui o que tinha ido buscar. E lhe trouxe presentes.
     -- Oba! Que presentes?
     -- Um deles vai chegar ainda hoje. O outro eu trouxe comigo. - ele tirou, do bolso da camisa, um embrulho, e de dentro dele tirou um colar maravilhosamente trabalhado – Espero que goste.
     -- Oh... - ela pegou o colar, maravilhada – Que lindo...
     -- Mandei um ourives das Terras do Sul fazer. É um ótimo trabalho. À altura de uma grande princesa.
     -- Ah, Bono... - ela colocou o colar e se olhou no espelho – É tão bonito... Obrigada...
     Ela se virou para ele e o beijou. No início, logo após o casamento, ela se recusava a tocá-lo e até mesmo o tratava com frieza; mas ele vinha sendo sempre tão gentil e atencioso, tão compreensivo, que a raiva que ela sentia inicialmente foi desaparecendo, e passou a ser fácil vê-lo como um marido.
     -- Que bom que você gostou. - ele a abraçou – E acho que vai gostar ainda mais do outro presente.
     -- O que é?
     -- É surpresa, você vai ver quando chegar. Vem cá, me deixa beijar você. - ele a beijou – Senti tanto a sua falta.
     -- Duvido muito que tenha passado esses dias todos sozinho...
     -- Isso não importa. Eu queria você, e você não estava lá.
     -- Eu não gosto quando você viaja assim. Fica fora por tanto tempo.
     -- É minha obrigação como príncipe e futuro rei. Tenho tarefas, compromissos, meu pai está me preparando para sucedê-lo em breve. Não é nada fácil. - ele a beijou novamente, como se para compensar o tempo que passara fora – E deixei The Edge aqui para que não se sentisse sozinha.
     -- Ele ficou comigo, e eu o amo tanto... Fico muito feliz quando ele está comigo. Mas... Também sinto a sua falta.
     -- Não precisa mais se preocupar com isso agora. - ele pôs a mão na barriga dela – O nascimento está se aproximando. Não vou mais me ausentar do reino, pois quero estar aqui quando acontecer. E se ele quiser nascer antes da hora, ou se der algum problema durante o parto, eu quero estar com você.
     -- Obrigada. - ela o abraçou – Eu fiquei tão assustada com o nascimento do filho da Hally. Foi tão difícil, ela sofreu tanto.
     -- Partos são sempre difíceis. Mas vai dar tudo certo no seu, eu tenho certeza. Você é uma menina forte.
     -- Mas Hally é mais velha, e eu sou tão pequena...
     -- Não pense nisso, querida, não fique preocupada. Eu vou estar com você, Edge vai estar com você. Vai dar tudo certo.
     -- Espero que sim.
     Ele a beijou novamente, e então disse que queria repousar. Glory o deixou descansando, e quando ia procurar Dave, encontrou com Christian, que a procurava.
     -- Princesinha! - ele fez uma reverência e beijou a mão dela – Eu estava procurando a senhora!
     -- Christian, não me chame de senhora! - ela fingiu estar brava – Fico me sentindo uma velha!
     -- Mas a senhora não é velha, princesinha! Só tem quinze anos!
     -- Então, me chame só de “você” ou de “Glory”, ou de “princesa”. Só os criados e cavaleiros me chamam de “senhora”.
     -- Mas eu sou um criado...
     -- Ah, Christian, você sabe que é mais que um criado! - ela o abraçou e lhe deu um beijo no rosto, que o fez ficar vermelho – Mas o que você queria falar comigo?
     -- Eu queria que você pedisse ao príncipe que não me mandasse de novo ir servir aos cavaleiros, por favor. Eles me tratam muito mal.
     -- Te tratam mal? O que eles fazem? Batem em você?
     -- Não, mas... O príncipe vai saber do que se trata. Eu acho que ele me manda para lá de propósito. Mas por favor, Glory, eu não quero mais ficar tanto tempo no alojamento com eles. Tenho medo.
     -- Ah, mas o Dave não vai deixar ninguém fazer mal pra você.
     -- Mas nem sempre sir Evans está lá. Por favor, Glory. Peça a ele.
     -- Ora, claro que peço... Mas se você não quer ficar lá, então está liberado desde já. Pode ficar onde quiser. Vou conversar com Bono e pedir a ele que lhe mande para os jardins.
     -- Obrigado.
     Glory estava achando Christian muito estranho. Desde que ela se casara ele parecia diferente, mais sério do que de costume. Mas continuava a tratá-la da mesma forma, e Glory não acreditava que o que ele sentia fosse ciúmes. Depois iria conversar com Bono e Dave sobre aquilo, e pedir para que eles descobrissem se estava acontecendo alguma coisa.
* * * * *

     Glory estava fazendo companhia para Hally e brincando com o bebê recém-nascido – um lindo menininho com olhos muito azuis – quando Christian entrou no quarto, dizendo:
     -- Com licença, princesinha, senhora Hally.
     -- O que foi, Christian?
     -- Sua Majestade, o príncipe, pediu para chamá-la. Disse que seu presente chegou e a aguarda no salão real.
     Empolgada, Glory foi imediatamente para o salão real. Chegando na entrada, encontrou Bono, que a aguardava.
     -- Querida – ele a pegou pela mão e a levou para dentro – seu presente acaba de chegar. Espero que goste.
     Quando Glory entrou no salão, quase deu um grito. Ali estavam Adam e Larry.
     -- Larry! Adam! - ela correu para eles e os abraçou – Eu não acredito!
     -- É uma honra, princesa. - disse Adam, sorrindo.
     -- Larry... - ela tocou no rosto do menino, e ele segurou a mão dela – Eu senti saudades...
     -- Eu também senti muito a sua falta, Glory. - ele disse, com lágrimas nos olhos, e os dois se abraçaram.
     -- Como vocês chegaram aqui?
     -- Bono nos trouxe. - disse Adam – Ou melhor, Sua Majestade Paul Hewson.
     -- Eu achei que você gostaria de vê-los de novo. - disse Bono – Não foi difícil encontrá-los.
     -- Quando Bono perguntou se gostaríamos de vir às Terras do Norte te visitar, aceitamos imediatamente. - disse Larry, segurando as mãos dela – Ele nos contou tudo. Fiquei muito feliz por saber que agora está tudo bem.
     -- Está sim! - ela disse, radiante – E estou tão feliz por vocês estarem aqui!
     -- Adam vai acompanhar você no final da gravidez, Glory. - disse Bono – E também durante o parto. Sei que temos nossa parteira e que ela é muito boa, mas conheço os poderes dele e acho que será mais seguro se ele estiver por perto.
     -- Vai ser sim! Se você estiver por perto, Adam, tenho certeza de que meu bebê vai nascer muito bem, e que nada de ruim vai acontecer!
     -- Farei o possível. - disse Adam.
     -- Mas venham, eu quero mostrar o castelo pra vocês! E vocês têm que conhecer o Dave!
     -- Eu já o chamei. - disse Bono – Ele deve estar...
     Nesse momento, Dave adentrou o salão.
     -- Mandaram me chamar?
     -- Sim! - disse Glory – Dave, eu quero te apresentar duas pessoas de quem eu te falei muito! - ela o puxou pela mão até onde estavam Adam e Larry – Esse é o feiticeiro Adam Clayton, o mais poderoso que existe! E esse é Lawrence, mas pode chamar ele de Larry! Um dia ele vai ser um grande feiticeiro também!
     -- Oh, então são vocês. - ele cumprimentou os dois – É um prazer. Glory fala muito de vocês.
     -- Ela também nos falava muito de você. - disse Adam – É quase como se já o conhecesse.
     -- É – disse Larry – mas achávamos que estava morto.
     -- Eu estive por um tempo, mas vim fazer uma visita e acabei ficando.
     -- Glory – disse Bono – por que não mostra o castelo para Larry enquanto o jantar não é servido?
     -- Mostro sim! - ela pegou Larry pela mão – Vem também, Adam!
     -- Depois eu irei. - disse Adam – De qualquer forma, já conheço o castelo.
     -- Já!?
     -- Sim. Na verdade, eu sabia quem Bono era desde que o encontrei pela primeira vez.
     -- Não acredito! E eu não sabia de nada! Depois você vai ver, Adam, vou colocar pimenta na sua comida! Mas vem, Larry, eu vou te mostrar o castelo!
     Ela saiu correndo, arrastando Larry atrás de si.
* * * * *

     Glory e Larry já haviam percorrido todo o castelo, e agora, depois do jantar, andavam sozinhos pelos jardins, admirando as estrelas. Bono, Dave e Adam haviam ficado no salão real, conversando coisas sérias pelas quais Glory não tinha o menor interesse.
     -- Bono nos contou tudo, Glory. - disse Larry, após um momento em que eles ficaram em silêncio, olhando a lua minguante – Sobre o pacto que vocês três fizeram. Sobre você, ele e sir Evans.
     Ela parou de andar e olhou para ele.
     -- O que ele contou?
     -- Tudo. Disse que permite que sir Evans vá ao seu quarto durante várias noites, quando ele não está.
     -- Oh... - ela não sabia o que dizer – E-eu... Eu não acredito que ele contou isso...
     -- Está tudo bem. - ele segurou a mão dela – Eu entendo o que você sente. E sei que Adam também entende.
     -- Eu não queria isso, Larry, eu juro... Mas... Se não fosse assim, Dave... Eu nunca mais poderia ter ele comigo...
     -- Eu sei. - ele tocou no rosto dela – Você o ama muito.
     -- Sim.
     -- Mas também ama o Bono, não é?
     -- ... Sim.
     -- Para nós, que não somos cristãos, isso não é algo ruim. É bonito uma pessoa amar mais do que só uma. E não é errado ficar com mais de uma também.
     -- Você não acha que o que eu faço é errado?
     -- Não.
     -- E você, Larry? Você amou mais alguém, depois que eu fui embora?
     -- Não. Nem por um momento outra mulher ocupou a minha mente.
     -- E você já participou do ritual da lua cheia?
     -- Ainda não. Mas Adam disse que o tempo se aproxima. Eu já manipulo forças mais poderosas do que as que manipulava naquela época, e já tenho autorização para realizar sozinho feitiços que antes não podia realizar nem acompanhado. Eu cresci muito, me dediquei muito à magia. Ele disse que eu já estou pronto, só estamos esperando um momento certo.
     Um cavaleiro passou por eles, montado em seu cavalo, e disse:
     -- Alteza, o príncipe pediu para que não se demore. Está ventando muito aqui fora.
     -- Sim, já vou entrar. Me dê só mais um minuto.
     -- Sim, senhora. Com sua licença.
     O cavaleiro se retirou. Glory voltou a olhar para Larry.
     -- Quando você acha que vai acontecer?
     -- O meu ritual? - ele pensou um pouco – Não sei. Talvez ainda esse ano.
     -- E você sabe quem será a sua Deusa?
     -- Não. Um nunca sabe quem será o outro. Só nos conheceremos durante o ritual.
     -- Mas você não pode escolher?
     -- A princípio, não. Mas se por acaso eu conhecer a pessoa ou acabar sabendo quem é ela antes do ritual, não há problema. Eles só não permitem que os desejos pessoais ou da carne interfiram nos objetivos espirituais.
     -- Entendo. - o vento soprava cada vez mais forte – Vamos entrar.
     Eles foram para dentro do castelo. Quando estavam no corredor, indo para o salão real, Larry de repente parou e segurou Glory. Antes que ela pudesse perguntar o que acontecera, ele a puxou para si e a beijou. Não o fez de forma brusca ou violenta, pelo contrário; foi o mais delicado possível, para que ela não se assustasse nem se ofendesse. A princípio Glory ficou parada, pensando se devia ou não aceitar aquilo; mas então as lembranças do tempo que passara na floresta com o rapaz vieram à sua mente, e ela o abraçou e aceitou o beijo. Sentira mais falta dele do que imaginara.
     -- Sinto muito. - ele disse, quando a soltou – Me perdoe.
     -- Tudo bem. Eu permiti.
     -- Eu te amo tanto, Glory. - ele a abraçou – Tanto. Nem acreditei quando Bono disse que nos traria para cá. Eu tinha medo de nunca mais te ver.
     -- Eu achei que não te amava mais, porque eu tinha Dave e tinha Bono... Mas eu te amo muito, Larry. - ela tinha lágrimas nos olhos – Você é tão bom pra mim.
     -- Agora podemos ficar juntos sempre.
     -- Eu já não sei o que pensar sobre mim mesma. Não sei mais se o que faço é certo ou errado.
     -- Acredite – ele olhou nos olhos dela – os deuses se alegram a cada vez que duas pessoas que se amam ficam juntas. E se você ama mais de uma pessoa, é certo que divida esse amor entre todos.
     -- Acha que seus deuses vão me proteger?
     -- Tenho certeza. - ele a beijou de novo – Certeza.
* * * * *

     Glory não encontrou Bono no quarto real, e nem no quarto anexo. Intrigada, pois passara pelo salão real e pela sala de jantar e não encontrara ninguém, ela saiu e foi andando pelo corredor, carregando consigo um castiçal para iluminar o caminho. Quando se aproximou do quarto de Dave pôde ouvir vozes lá dentro, e uma parecia ser a de Bono. Ela encostou o ouvido na porta, mas só conseguia entender palavras soltas, que não faziam sentido. Então bateu na porta e tentou abrí-la, mas estava trancada. Imediatamente as vozes silenciaram, e a porta foi aberta por Dave, que a princípio parecia irritado pela interrupção, mas que logo se acalmou ao ver que era Glory quem batia.
     -- Glory, o que faz aqui?
     -- O Bono não estava no quarto, eu vim procurar ele... O que está fazendo aqui?
     Bono estava de pé, em frente à janela, que estava aberta. Tanto ele quanto Dave estavam em vestes de dormir.
     -- Estávamos jogando. - disse Dave.
     -- Desafiei Edge para uma partida de xadrez – havia um tabuleiro, que parecia estar sendo usado, sobre uma mesa – e acabamos nos empolgando e perdendo a hora.
     -- Vocês estavam jogando xadrez de pé?
     -- O que?
     -- O tempo que você demorou pra abrir a porta foi muito pouco, não dava pra ter levantado da cadeira e vindo abrir, só se tivesse vindo correndo. E eu não ouvi a cadeira se mexendo. E o Bono está na janela, ele não ia levantar só porque alguém chegou, era pra ele estar sentado.
     Os dois se olharam.
     -- Sim, estávamos jogando em pé. - Bono parecia irritado – Você sabe que não gosto de ficar parado. Pode ir se deitar, Glory, eu só vou terminar a partida e vou me juntar a você.
     -- Você vai dormir no meu quarto hoje?
     -- Sim. Mas se chegar e você já estiver dormindo, não vou te incomodar. Agora vá, querida, você deve estar com sono.
     -- Não estou. Eu não posso ficar vendo vocês jogarem?
     -- Não, Glory – disse Dave – tira a nossa concentração. Vai lá, não é bom você ficar andando sozinha pelos corredores a essa hora.
     -- Tá bom...
     Ela saiu, e ouviu a porta ser fechada e trancada atrás de si. Não entendia porquê eles haviam trancado a porta. Foi indo para o quarto, mas então voltou e tentou ouvir o que eles conversavam. Definitivamente, eles não estavam jogando xadrez; pareciam estar discutindo, ou tendo uma conversa um pouco tensa. Mas ela não conseguia entender as palavras, que vinham abafadas pelas portas grossas de madeira, e acabou desistindo. Foi para o seu quarto, agoniada pela curiosidade.
* * * * *

     Quando Bono se deitou, Glory virou para ele. Ele mexeu nos cabelos dela e a beijou, mas ela o afastou.
     -- Espera.
     -- Vem cá.
     -- Não...
     -- Você me esperou. Você quer também.
     -- Espera. - ela realmente queria, mas primeiro tinha algo a perguntar – O que você e o Dave estavam fazendo?
     -- Eu já te disse. Estávamos jogando xadrez.
     -- Eu não sou tão tola quanto você pensa, Bono. Vocês não estavam jogando. Pareciam estar discutindo.
     -- Estávamos só conversando enquanto jogávamos. E não era nada demais, assuntos do reino.
     -- Que assuntos?
     -- Nada que te interesse, Glory. Se quer tanto saber, eu pedi ao Edge que acompanhe um grupo de soldados para uma das cidades do sul, onde está havendo uma série de assassinatos de crianças. O povo está muito assustado, dizem que se trata de um grupo de feiticeiros que usam magia negra. Vou mandar uma equipe para proteger meus súditos e capturar os criminosos, e, devido à possibilidade de estar sendo usado algum tipo de força demoníaca, achei que seria adequado mandar Edge.
     -- E quanto tempo ele vai ficar fora?
     -- Duas semanas. Ele não queria porque é muito tempo, e ele não gosta de se afastar de você. Mas lembrei a ele que, da mesma forma que eu confio nele para cuidar de você quando estou fora, ele deve confiar em mim para fazer o mesmo.
     -- Mas essa missão não é perigosa?
     -- Claro que é, assim como qualquer outra. O seu amado é um cavaleiro, querida, um sir, e ele deve fazer jus ao título que tem. Tanto eu quanto ele estamos em posições de risco, você tem que estar preparada para... Para uma situação desagradável.
     -- Nunca vou estar. - ela se abraçou a ele – Nunca quero perder vocês.
     -- Vou fazer de tudo para que isso nunca aconteça. - ele beijou os cabelos dela – Jamais permitirei que fique sozinha.
     -- Bono...
     Eles se beijaram, mas logo Glory o afastou novamente.
     -- Tem outra coisa que queria te perguntar.
     -- O que?
     -- Por que trouxe Larry e Adam para cá?
     -- Eu já disse. Confio em Adam, conheço os poderes dele, e quero que ele esteja presente na fase final da sua gravidez. Fiquei muito preocupado depois do nascimento do filho de Hally. Não quero que passe por algo parecido.
     -- E trouxe ele mesmo sabendo que eu e Larry nos gostávamos?
     -- Eu não vejo Larry como uma ameaça ao nosso casamento. É só um garoto.
     -- Não é só um garoto. Eu e ele temos a mesma idade.
     -- E você é uma linda garotinha. Eu não deixei de te ver como uma criança só porque nos casamos.
     -- Se me visse como criança, eu não estaria grávida.
     -- Por que não? Lindas crianças atraem muitos adultos.
     -- Não vou entrar nessas suas conversas loucas. - ela suspirou – Quero falar sobre Larry.
     -- Falar o que sobre ele?
     -- Ele ainda não participou do ritual da lua cheia, mas disse que o tempo está se aproximando.
     -- Eu sei. Conversei com Adam sobre isso.
     -- Conversou o que sobre isso?
     -- Escute, não se preocupe com Larry agora, está bem? Não por enquanto. Você vai ter esse filho, vai ficar algum tempo em repouso. Depois nós decidimos o que fazer com Larry.
     -- Como assim, o que fazer?
     -- Decidiremos se ele é ou não uma tentação para você. Agora chega de conversa. - ele a puxou para si – Princesa Glory, seu marido, Príncipe Paul Hewson, solicita seus serviços de esposa.
     -- Não quero obedecer meu marido. - ela disse, evitando o beijo de Bono – Não gosto dele. Essa noite, eu quero trair ele com um aventureiro errante chamado Bono.
     -- Hum... - ele sorriu – Sou seu humilde servo, e farei tudo o que a senhora quiser, minha princesa. - ele beijou a mão dela – E seu marido jamais ficará sabendo.
     Satisfeita, Glory permitiu que Bono a beijasse, e fizesse tudo o que queria.
* * * * *

     Christian estava em um dos jardins internos do palácio, podando uma bela árvore. Estava tão distraído que não ouviu Bono se aproximando, até que este falasse.
     -- Belo trabalho.
     O garoto levou um susto e quase despencou da escada em que estava. Desceu depressa, se recompondo, e fez uma reverência para Bono.
     -- Obrigado, Majestade.
     -- Você é mesmo um ótimo jardineiro, Christian. - Bono olhou para o jardim, que fora todo cuidado por Christian – Mas achei que o tivesse mandado servir aos cavaleiros.
     Ele ficou vermelho.
     -- Princesa Glory permitiu que eu viesse para os jardins.
     -- Sim, ela me disse. Você é muito corajoso para um criado. A maioria jamais teria coragem de se dirigir diretamente à princesa, muito menos fazer um pedido como esse.
     -- Eu e Glory sempre fomos muito próximos, Alteza.
     -- Estou sabendo. Por que quis vir para os jardins?
     -- Eu gosto de jardins. E acho que é onde eu trabalho melhor.
     -- Mas Glory me disse que você reclamou dos cavaleiros. Disse que eles machucavam você, ou algo parecido.
     -- Eles não me machucavam, só... Me assustavam. Eu tinha medo deles.
     -- Por quê?
     -- Porque eles me assustavam.
     -- Christian, não fique dando voltas, ou eu vou me irritar com você. O que aconteceu no alojamento dos cavaleiros para que você quisesse sair de lá?
     Christian mantinha a cabeça baixa, em sinal de respeito, e estava vermelho só por falar com Bono.
     -- Majestade, eu respeito muito os cavaleiros e os admiro muito, mas isso não quer dizer que vou aceitar qualquer coisa que eles queiram que eu faça. Vossa alteza sabe do que estou falando.
     -- Eles tentaram machucar você, Christian?
     -- Sim.
     -- E conseguiram?
     -- Não. Eu não deixei.
     -- Eu achei que você deixaria. Achei que fosse gostar de servir dessa forma aos cavaleiros.
     Pela primeira vez Christian ergueu os olhos e encarou Bono. Estava obviamente ofendido.
     -- O que pensa que eu sou!?
     -- Bem, vejo que me enganei. - Bono mantinha o tom frio, apesar de sua surpresa pela indignação de Christian – Sinto muito. Quer que me ajoelhe e que implore seu perdão?
     Novamente Christian baixou a olhar, voltando a ser o mesmo de sempre.
     -- P-perdoe-me, Majestade. Eu não quis ofendê-lo.
     -- Esqueça. - Bono o analisava agora com ainda mais interesse – Quem é seu pai?
     Novamente Christian ergueu os olhos para ele, mas de uma forma diferente: levantou o rosto bem devagar, e o olhou como se estivesse tentando com muita dificuldade entender o que ele dissera.
     -- Meu o que?
     -- Seu pai. Não sei nada de sua família, e imagino que você tenha ou teve pais.
     -- Ah, sim... Claro, tive... Minha... Minha mãe era empregada no palácio. Ela morreu quando eu nasci.
     -- E seu pai?
     -- Minha mãe não era casada.
     -- Hum... Fala isso com mais naturalidade do que as pessoas normalmente falam. Não se envergonha por ter nascido sem pai?
     -- Foi o destino que Deus escolheu para mim, e tenho que aceitá-lo.
     -- Você não sabe quem é seu pai?
     -- Como poderia? A única que sabia era minha mãe, e eu não a conheci.
     -- Eu soube que você foi amamentado pela mesma ama que amamentou Glory.
     -- Sim. O rei a mandou cuidar de mim. Fui criado dentro do palácio.
     -- Isso é muito incomum, sabe? Imagino que muitas outras crianças bastardas tenham nascido dentro daquele palácio, e o rei não acolheu nenhuma outra. Você é o único criado que cresceu no palácio, pelo que sei.
     -- Sim, sou.
     -- E por que o rei Artur o criou dessa forma? O que você tinha de especial para ele?
     -- Eu não sei, Majestade. Por que não pergunta para ele?
     -- Não acho que ele vá me responder. - Bono pegou uma rosa e ficou olhando para ela – Você nunca ouviu nenhum comentário sobre quem poderia ser seu pai?
     -- Não, Alteza, as pessoas não faziam esses comentários perto de mim.
     -- E comentavam quando você não estava?
     -- Talvez comentassem.
     -- E você não tem idéia do que elas falavam?
     -- Eu não me interesso por intrigas.
     -- Mas você não tem nenhuma curiosidade sobre quem é seu pai?
     -- Não.
     -- E se ele fosse um homem importante? Se fosse, digamos, rico? Não lhe interessaria saber? Você poderia ser o único herdeiro dele.
     -- Eu não me importo com heranças.
     -- Não, você não se importa. - Bono estava ficando irritado com aquele rapaz tão sem ambições – A única coisa que te importa são as flores, não é?
     -- As flores e Glory são o que tenho de mais importante.
     -- Hum... E o que te faz pensar que você “tem” Glory, de alguma forma? Você não passa de um criado, ela é uma princesa e futura rainha. Ela é sua dona, não o contrário.
     -- Claro, Alteza, eu sei disso. Mas fomos criados juntos e ela é muito importante para mim. Eu daria minha vida pela dela.
     -- Sim, eu sei. Isso é muito bom para um criado. - Bono fez uma pausa, e Christian o olhava com a mais inocente e pura das expressões – Você tem quantos anos?
     -- Treze.
     -- Quando completar catorze, poderá se alistar para cavaleiro. Você tem porte para isso.
     -- Eu, cavaleiro? Nunca, Majestade. - ele riu de forma humilde – Cavaleiros são fortes e corajosos e matam seus inimigos, e eu não sou nada disso e jamais machucaria alguém.
     -- Não, você não faria. Não mataria nem uma formiga que estivesse comendo suas plantas. - ele suspirou – Você nasceu para ser um criado.
     -- Foi o destino que Deus me deu e eu o aceitei.
     -- Sim, você o aceitou. Está certo, Christian. Fique aqui, com suas plantas. Eu não vou mais te perturbar.
     -- Obrigado, majestade.
* * * * *

     Mesmo com seus oito meses de gravidez, Glory não parava. Andava por todo o castelo, acompanhada por Adam ou Larry, ou pelas damas de companhia; ia tomar chá e conversar com Hally; via Dave e os cavaleiros treinando no campo; ia aos jardins brincar com Christian; ia andar de barco no lago; e fazia todas as coisas que uma mulher grávida jamais faria, e que deixavam Bono e Dave completamente loucos de preocupação.
     -- Você quer o que!? - disse Larry, incrédulo.
     -- Andar a cavalo, Larry, o que é que tem? Faz tanto tempo que não passeio pela floresta...
     -- Glory, você está grávida de oito meses! Não deve cavalgar, é perigoso!
     -- Só é perigoso se eu correr, e eu vou andar devagarzinho. Você vem comigo ou não?
     -- Mas é claro que não! Não vou permitir que faça essa loucura! Se Bono e Edge ficarem sabendo, eles vão te trancar em seu quarto e a deixarão lá até que tenha seu filho.
     -- Mas Bono e Edge não estão aqui e nem vão ficar sabendo disso! E, se você não quer ir, eu vou sozinha.
     Ela começou a se afastar, mas ele a segurou.
     -- Glory, pela última vez, você não vai. Não vou permitir.
     -- Caso não se lembre – ela se irritara – eu sou a princesa e não preciso da autorização de ninguém. Se tentar me impedir, vai dormir nas masmorras essa noite.
     Ele a soltou, resignado, e ela saiu, decidida. Foi para as cocheiras e pegou um cavalo branco, que era um de seus preferidos. E saiu com ele lentamente em direção à floresta, sem que ninguém a visse.
     Mal ela entrara na floresta, pela pequena trilha usada pelos camponeses para buscar lenha e caçar, e ouviu um galopar indo em sua direção, vindo do castelo. Quando se voltou, viu que era Christian, que vinha montado em um cavalo marrom.
     -- Princesinha! - ele parou ao lado dela, ofegante – Larry disse que você tinha vindo para a floresta andar a cavalo, e eu fiquei preocupado e vim atrás de você...
     -- Ah, Christian, nem adianta tentar me mandar voltar, porque faz semanas que eu não saio do castelo e...
     -- Não, não, eu sei, princesinha. Só vim pra te fazer companhia. Não é bom que você fique andando sozinha pela floresta. Eu vim te proteger.
     -- Oh, Christian, você é tão gentil... Obrigada. Vamos passear, então.
     Os dois seguiram andando lentamente pela floresta. O outono estava no fim, e fazia cada vez mais frio; mas a floresta estava linda como nunca. Esquilos passavam diante deles, e passarinhos vinham pousar nas mãos de Glory.
     -- Eu acho a floresta tão linda... - ela suspirou – Me traz lembranças tão bonitas...
     Christian sorriu; mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, eles ouviram um rosnado, e se viraram para trás. Um lobo enorme estava diante deles, prestes a atacar.
     -- C-Christian... - Glory murmurou, em pânico.
     -- Glory... - ele se aproximou e segurou a mão dela – Não demonstre medo, senão ele vai te atacar.
     -- Mas eu estou com medo...
     O lobo uivou e deu um pulo para frente, na direção de Glory, e ela gritou. O cavalo se assustou e relinchou, erguendo violentamente as patas da frente para se defender, e fazendo com que Glory fosse atirada no chão.
     -- Glory! - Christian gritou, pulando de seu cavalo e indo correndo para Glory, mas nesse momento o lobo atacou seu cavalo e o rapaz quase foi atropelado pelos dois, que lutavam.
     -- Christian... - Glory chorava, com a mão na barriga, e tentava se levantar – Foge...
     Ela se levantou, e o lobo avançou para cima dela. Ela deu um grito, mas Christian gritou um “não” tão alto que abafou a voz dela e ecoou por toda a floresta. Glory caiu quando viu o lobo se jogar sobre ela, mas quando abriu os olhos de novo, viu que Christian se jogara sobre ele e os dois haviam caído no chão.
     -- Não! - ela gritou – Christian!
     Mas o lobo não estava interessado em Christian: ele queria Glory. Deu uma mordida no braço do rapaz e tentou correr para ela, mas Christian pulou sobre ele, agarrou sua cabeça e, antes que o animal pudesse lhe morder, o rapaz jogou todo o seu peso sobre ele, virando sua cabeça e fazendo-o quebrar o pescoço.
     O lobo caiu morto, e Christian caiu para o outro lado, ensanguentado e ofegante. Glory se arrastou até ele, desesperada.
     -- Christian! Christian! Irmãozinho! - ela o abraçou – Fala comigo!
     -- Glory... - ele tentou se levantar – V-você está bem?
     -- Sim... Mas você, Christian, seu braço...
     A mordida no braço de Christian fizera um ferimento profundo, do ombro até a metade do braço, e ele sangrava muito. Glory foi tentar ajudá-lo, mas nesse momento sentiu uma dor muito forte na barriga, e levou a mão ao ventre.
     -- Ai!
     -- Glory?
     -- Minha... Ai! Minha barriga... Ahhh!
     Ela gritara; a dor era quase insuportável. Sentiu as pernas ficarem molhadas, molhando também o vestido.
     -- Eu acho que vai nascer... - ela murmurou, de joelhos no chão.
     -- M-mas está cedo! Glory! Temos que voltar para o castelo, o senhor Clayton precisa cuidar de você!
     -- Não posso... - ela chorava – Não consigo andar... Christian...
     -- Você tem que andar, princesinha, tem que ser forte! Não pode ter o seu bebê no meio da floresta!
     -- Dói demais... Ai... Eu vou morrer...
     -- Não, não vai! - ele conseguiu se levantar e, com menos esforço do que imaginara, a pegou no colo, tentando ignorar a sensação de que seu braço estava sendo arrancado – Eu vou te levar.
     -- Mas você está machucado...
     -- Não, não estou. Eu estou ótimo, Glory. Nunca estive tão bem.
     E ele a carregou para o palácio, andando o mais rápido que sua situação permitia.

* * * * *

     Dave estava em nítida vantagem, atacando Bono de tal forma que o outro não tinha nenhuma chance de revidar; porém, no meio de uma defesa, Bono deu um golpe completamente inesperado e acertou o cabo da outra espada, a arrancando das mãos de Dave. Antes mesmo que Dave entendesse o que acontecera, a espada de Bono estava apontada para seu peito.
     -- Acho que venci. - disse Bono, com um sorriso.
     -- Parece que sim. - Dave suspirou e balançou a cabeça – Está bem, eu me rendo. Você venceu.
     -- Muito bem. - Bono baixou a espada – Você é um jovem inteligente.
     Ele guardou a espada e apertou a mão de Dave, que sorriu. Nessa hora, um dos criados do palácio veio correndo a cavalo em direção a eles.
     -- Majestade! Majestade Hewson!
     -- O que foi? - disse Bono.
     -- Sua esposa, Alteza! - o homem estava ofegante – Princesa Glory está em trabalho de parto!
     -- O que!? - disseram Bono e Dave, e então Dave – Mas está muito cedo!
     -- Ela estava passeando a cavalo na floresta com Christian, parece que foram atacados por algum animal e ela caiu do cavalo e começou a passar mal! Christian a levou até o castelo e agora ela está aos cuidados do mago e da parteira!
     Antes mesmo que o homem tivesse terminado de falar, Bono já subira em seu cavalo, seguido por Dave, e os dois partiram correndo em direção ao castelo. Quando lá chegaram, foram correndo para o quarto real, mas ao chegarem na porta foram barrados pela parteira.
     -- Vocês não podem entrar. Ela está dando à luz.
     De dentro do quarto, vinham os gritos de dor de Glory.
     -- Eu tenho que entrar! - disse Bono – Ela precisa de mim!
     -- Majestade, por favor! - ela teve que empurrá-lo para poder fechar a porta – Vai ser pior se entrar! Eu e Adam estamos cuidando dela, e temos todos os ajudantes que precisamos, e a última coisa que ela precisa é de um marido em pânico a vendo daquele jeito!
     Bono acabou aceitando ficar do lado de fora, mas estava longe de ficar calmo.
     -- Como ela está?
     -- Mal. Tenho que voltar para dentro. Vou mandar um dos ajudantes vir conversar com vocês.
     Ela sumiu para dentro do quarto. Dave também estava em pânico: os gritos de Glory eram ouvidos por todo o palácio.
     -- Mas como foi que isso aconteceu? - Dave disse, desesperado – Como você a deixou andar a cavalo sozinha na floresta?
     -- Eu não a deixei! Se soubesse desse absurdo, a teria trancado no quarto e a deixado lá até o final da gravidez!
     Larry saiu de dentro do quarto. Estava com o rosto molhado de suor, e com a frente da camisa suja de sangue. E parecia completamente em pânico.
     -- Larry! - os dois quase pularam em cima dele – Como ela está?
     -- Está mal, Adam me mandou sair de lá porque eu estava muito nervoso... - ele estava tremendo, e parecia prestes a chorar.
     -- Mas está mal como? - disse Bono – Esse sangue na sua roupa...
     -- É dela. - ele balançou a cabeça e respirou fundo – Ela resolveu sair a cavalo e quis que eu fosse junto. Eu tentei impedi-la, me recusei a ir, achei que ela não iria sozinha, mas ela foi. Então eu avisei Christian e pedi que ele tentasse trazê-la de volta, ou que pelo menos tomasse conta dela. Ele foi, e... E ficou andando com ela pela floresta... Os dois foram atacados por algum animal, acho que foi um lobo... Glory caiu do cavalo...
     -- Você devia ter mandado alguém me avisar! E Christian devia ter trazido ela de volta, e não ficado passeando com ela! Onde ele está? Vou deixá-lo de castigo nas masmorras por semanas!
     -- Não, você não vai. - Larry tinha lágrimas nos olhos – Ele foi atacado pelo lobo, ou fosse o que fosse aquilo. Já mandaram caçadores à floresta, tentar capturar o animal. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu. Christian veio até a altura do poço carregando Glory nos braços, e tinha um ferimento horrível no braço direito, e no caminho ele deve ter perdido quase metade do sangue, porque há um rio de sangue da floresta até onde o encontraram. Dois cavaleiros os trouxeram, ele desmaiou durante o caminho, e foi levado para o quarto dele e um dos seus médicos está com ele, mas nem sei se ainda está vivo. Adam queria ajudá-lo, mas então Glory entrou em trabalho de parto, e ele teve que ir atendê-la.
     -- E como Glory está?
     -- Está mal, ainda não era a hora... A criança não consegue sair, está sendo muito difícil. Parece que a posição está errada, Adam está tentando invertê-la, e a parteira está tentando ajudá-lo, mas está muito difícil...
     Outro grito de Glory. Os três estavam à beira do pânico.
     -- Quantos partos Adam já fez? - disse Dave.
     -- Muitos. - disse Larry – A maioria deu certo. Eu já o auxiliei em pelo menos dez partos.
     -- Você disse “a maioria”. - disse David – Quer dizer que alguns não deram certo.
     -- Claro, estamos falando de pessoas, e sempre pode dar algo errado. Mas ele é muito experiente, e tem muitos poderes, eu confio nele. Se os deuses nos ajudarem, vai dar tudo certo. - mas os gritos que vinham do quarto indicavam que as coisas não estavam correndo bem – Não quero ficar aqui, vou para o quarto de Christian tentar ajudá-lo.
     -- Eu não saio daqui sem ver Glory e meu filho. - disse Bono.
     -- Eu também não. - disse Dave.
     Eles ficaram esperando por muito tempo. Larry saiu e voltou, depois de bastante tempo, e eles ainda não tinham nenhuma notícia de Glory, além dos gritos.
     -- Como está Christian? - disse Dave.
     -- Só sobreviveu por puro milagre. - disse Larry, que tinha ainda mais sangue na roupa – Seu braço quase foi arrancado. Encontraram o animal, é um lobo enorme, maior do que um homem. O pescoço está quebrado, mas não sabemos exatamente o que aconteceu, se foi Christian quem fez isso.
     -- Não deve ter sido. - disse Dave – Ele não tem força para isso. E pode ter muitas qualidades, mas coragem não é uma delas.
     -- Ele vai ficar bem? - disse Bono – E o braço machucado?
     -- Tentei costurá-lo, mas não sei se vai ficar como antes. Se a ferida não infeccionar e se o lobo não estivesse contaminado com nenhuma doença, ele não vai perder o braço, mas provavelmente nunca mais vai funcionar normalmente. E essa é a melhor das hipóteses. Temos que torcer para dar tudo certo e o corpo dele reagir bem.
     -- Acha que ele tem alguma chance? Ele não é um rapaz muito forte.
     -- É, sim. Eu o examinei, ele tem porte e força, e é muito saudável. Será uma pena se tiver que amputar o braço.
     -- Esperem. - disse Bono.
     -- O que?
     -- Escutem.
     -- Escutar o que?
     -- Isso. Está tudo quieto. Glory parou de gritar.
     Realmente, agora tudo estava no mais absoluto silêncio. Os três ficaram olhando para a porta do quarto, esperando ansiosos, e depois de vários minutos ela se abriu e Adam saiu. Estava exausto, sujo e com um ar muito sério.
     -- Glory? - Bono falou num sussurro, temendo a provável resposta.
     -- Está viva. - ele disse – Mas desmaiou, e está muito fraca. Nunca vi alguém perder tanto sangue durante um parto.
     -- Ela vai ficar bem? - disse Dave.
     -- Eu não sei.
     Larry tinha lágrimas nos olhos, e Bono desviou o olhar. Glory era forte, ela tinha que ser, tinha que resistir... Seus pensamentos foram interrompidos por Adam:
     -- Você não quer ver a criança?
     Bono praticamente se esquecera do bebê.
     -- Sim! Sim, como ele está? Está bem? É saudável?
     -- Sim, está bem, e sim, é saudável. Mas não é “ele”. É uma menina.
     -- Menina... - ele tentou não parecer decepcionado. Queria tanto um herdeiro.
     -- Entre. - ele entrou e os outros dois foram atrás, mas Adam os impediu – Só o pai.
     -- Mas nós queremos ver Glory! - disse Dave.
     -- Irão vê-la, depois. Quanto menos gente estiver no quarto, melhor para ela.
     Adam fechou a porta. Bono foi primeiro até a cama onde Glory estava. Ela fora limpa e coberta com um lençol. Estava muito pálida, e parecia ter passado por uma guerra.
     -- Glory... - ele se ajoelhou e segurou a mão dela – Querida...
     Ele beijou a mão dela e a encostou em seu rosto, a molhando com suas lágrimas. O povo dizia que o toque de um rei podia curar as pessoas, e naquele momento ele desejou ardentemente que aquilo fosse verdade.
     A parteira se aproximou dele, trazendo nos braços o bebê, e Bono se levantou. As criadas também haviam limpado a criança, e a coberto com panos limpos. Bono a pegou no colo e afastou os panos que cobriam seu rosto: era uma garotinha muito branca, que não parava de chorar e de se mexer, e que mantinha os olhos sempre fechados. Bono tocou o rosto dela, e ela tentou segurar seu dedo.
     -- É linda. - disse Bono – Perfeita.
     -- Ela é muito forte. - disse a parteira – Muitos bebês não teriam sobrevivido a um parto tão longo.
     -- Forte... Claro, ela é uma princesa, a princesa de toda a Bretanha. - ele olhou para Glory – Glory ficará feliz por ter dado tudo certo.
     -- Temos que levá-la daqui a pouco para a ama-de-leite.
     -- Não, não a levem enquanto Glory não acordar. Quero que ela veja o bebê antes que ele seja amamentado.
     -- Sim, senhor.
     Glory só acordou depois de algumas horas. O bebê chorava, com fome, e uma criada o embalava, tentando acalmá-lo.
     -- Hum... - Glory olhou em volta, confusa – Bono... Dave...
     -- Glory! - Bono ficara o tempo todo no quarto, ao lado dela – Como você está?
     -- Estou bem... Só... Tão fraca...
     -- Está tudo bem agora, querida. O parto foi difícil, mas você foi muito forte, e a nossa filha nasceu forte e muito saudável.
     -- É uma menina?
     -- Sim, uma linda princesinha... - ele se voltou para a criada – Traga ela aqui.
     Obedientemente, a criada levou o bebê até eles. Bono o pegou no colo e o ofereceu para Glory, que o pegou com insegurança.
     -- É tão pequena...
     -- Ela nasceu antes do tempo, mas Adam disse que já estava praticamente pronta, agora só tem que criar peso.
     -- Por que ela está chorando?
     -- Ela está com fome. - disse a parteira – Só estávamos esperando que você a visse para levá-la para a ama-de-leite.
     -- Não. - Glory segurou a bebê contra si – Eu quero amamentar ela.
     -- O que!? - disseram os outros, e então Bono – Mas querida... Você é uma rainha. Não precisa fazer isso, é um trabalho para criadas.
     -- Eu quero amamentar ela.
     -- Deixe, Bono. - disse Adam – Fará bem para ela. A ajudará a se recuperar.
     -- Tem certeza? Não vai deixá-la fraca?
     -- Claro que não, pelo contrário. E a tornará mais próxima da criança.
     -- Se é assim... Tudo bem, Glory. Você pode amamentar ela. Quer fazer isso agora?
     -- Quero.
     -- Vamos deixá-los a sós. - disse Adam – Glory, nem pense em levantar dessa cama, ainda está muito fraca. Depois de dar leite para a criança, me chamem. Vou mandar prepararem algo para você comer, e depois quero te examinar.
     -- Está bem.
     -- Edge e Larry estão ali fora. - disse Bono – Quer vê-los?
     -- Peça para o Dave entrar. - ela disse, para Adam – E diga ao Larry que assim que terminar de amamentar o bebê, eu o chamarei.
     -- Certo. - Adam disse, e saiu.
     Orientada pela parteira sobre como aquilo funcionava, Glory começou a amamentar o bebê, enquanto Bono ficava ao lado dela, passando a mão por seus cabelos e verificando se estava tudo bem tanto com Glory quanto com a criança.
     Dave entrou no quarto e se juntou a eles, ficando do outro lado da cama, ao lado de Glory e de frente para Bono.
     -- O que aconteceu? - ela disse, enquanto o bebê mamava verozmente – Eu não consigo me lembrar direito, me sinto tão confusa.
     -- Depois de tudo o que você passou, nem esperaria que se sentisse de outra forma. - disse Bono – Você fez uma grande loucura. Saiu para andar a cavalo sozinha pela floresta. Foi extremamente irresponsável, Glory.
     -- É mesmo, eu me lembro. - ela começava a recordar – E Christian veio atrás de mim, ele disse que ia me proteger... E um... Lobo... Christian! - o bebê se assustou e começou a chorar – Onde está Christian? O que aconteceu com ele?
     -- Se acalme, Glory! - Bono teve que segurá-la, pois ela estava muito agitada, prestes a pular da cama – Vai machucar o bebê! Christian está vivo, e deve estar aos cuidados de Adam nesse momento.
     -- Larry já tinha feito os primeiros cuidados nele. - disse Dave – Ele está muito machucado, teve um ferimento muito sério no braço e pode até perdê-lo, mas está vivo e é isso o que importa.
     -- Christian... Pobrezinho...
     -- Nós queremos saber o que aconteceu naquela floresta, Glory. - disse Bono – Como vocês conseguiram fugir? Quem matou o lobo?
     -- Christian, ele foi incrível... O lobo veio pra cima de mim, mas Christian pulou em cima dele e o segurou, e o lobo mordeu ele, e eu não sei como, mas Christian conseguiu matá-lo! E ele estava sangrando tanto, eu achei que ele fosse morrer... Mas ele me pegou no colo, eu nunca imaginei que ele fosse conseguir me carregar, muito menos com o braço machucado... Mas ele conseguiu, e me trouxe pra cá.
     -- Christian matou o lobo sozinho? - disse Dave – Impossível, Glory. Ele não tem força pra isso, nem coragem. Talvez até criasse coragem, porque você estava em perigo, mas não tinha como criar força. Já é demais ele ter te carregado até o palácio, não acredito que ele tenha conseguido matar um lobo daquele tamanho com as próprias mãos.
     -- Mas ele conseguiu, Dave! Eu estava lá, eu vi! Foi incrível!
     -- Pense bem, Glory. - disse Bono – Tente se lembrar de tudo. Não apareceu ninguém que os ajudou? Ou algum outro animal?
     -- Não, não. Foi Christian, eu me lembro perfeitamente. Ele matou o lobo e me salvou.
     -- Se foi isso mesmo, ele vai ser recompensado. Mas quero conversar com ele primeiro.

* * * * *

     Bono esperou que Adam e Larry saíssem do quarto, acompanhados dos ajudantes, para então entrar. Queria conversar a sós com Christian, longe principalmente dos criados, que sempre ficavam atentos às conversas dos nobres.
     Quando ele entrou, Christian estava deitado na cama, de olhos fechados. Havia sido limpo superficialmente, mas ainda havia um pouco de sangue em seu braço e pescoço. Estava com ataduras até a altura do cotovelo no braço direito. Bono se aproximou, e o garoto abriu os olhos.
     -- Majestade...?
     -- Olá, Christian. Vim ver como você está.
     -- Bem... - a voz do garoto estava muito fraca – Sinto muito... Não posso fazer uma reverência para o senhor...
     -- Tudo bem. - ele se sentou em uma cadeira, ao lado da cama de Christian – Adam te falou sobre Glory?
     -- Sim... Parabéns... - ele fechou os olhos de novo – Pela criança...
     -- Obrigado. - ele passou a mão pelos cabelos de Christian – Adam me disse que te deu algo para te fortalecer, mas que você ainda devia se sentir fraco por algum tempo. Perdeu muito sangue.
     -- Vossa Alteza não deve tocar em mim. - ele continuou de olhos fechados – Sou apenas um criado.
     -- O que aconteceu na floresta, Christian?
     -- Sinto muito, Alteza, devia ter trago Glory, mas ela não quis ouvir... E eu queria que ela ficasse feliz...
     -- Quem matou o lobo?
     -- Eu.
     -- Os caçadores trouxeram o lobo. Ele é maior do que eu, Christian.
     Christian abriu os olhos.
     -- O senhor não é muito alto.
     Bono não pôde deixar de sorrir.
     -- Não, não sou. Acho que você é maior do que eu. Mas mesmo assim, o animal era muito grande. Como conseguiu matá-lo? Você tinha alguma arma?
     -- Não, eu... Eu não me lembro muito bem... Foi tão de repente. Glory caiu do cavalo, eu desci para ajudá-la, mas o lobo foi pra cima dela... Eu acho que pulei sobre ele, mas ele me mordeu e escapou e foi pra cima dela de novo, e eu consegui me jogar sobre ele, e quebrei o pescoço dele.
     -- E como conseguiu fazer isso? Estrangulou ele?
     -- Não, eu... - ele pensou um pouco, tentando se lembrar – Eu segurei a cabeça dele e virei, e me joguei sobre o pescoço dele. Acho que foi isso.
     -- É um grande golpe. - Bono mesmo já usara aquele golpe, não só em lobos, e sabia que era muito difícil, pois precisava de muita força e rapidez – Onde o aprendeu?
     -- Em lugar nenhum, eu só... Fiz.
     -- Fez. - Bono se levantou – Você sabe lutar, Christian?
     -- Não, senhor.
     -- Nunca usou uma espada?
     -- Não, senhor.
     -- Seu pai nunca lhe ensinou?
     -- Eu não tenho pai, senhor. Já lhe disse isso.
     -- É mesmo. Eu me esqueci. - ele ficou um tempo parado, diante da janela – Você salvou a vida da princesa. Por isso, será recompensado.
     -- Eu não me importo com recompensas.
     -- Mas ganhará a sua de qualquer forma. Me diga o que deseja, Christian, e eu lhe darei.
     -- Eu não tenho desejos. Sou só um escravo.
     -- Não mais. - ele se virou para Christian – A partir de agora, você deixa de ser um criado. Está livre, Christian. Livre para partir, se quiser.
     -- Eu não quero ser livre, senhor, nem partir. Por favor, não faça isso comigo. Estará me castigando ao invés de me recompensar.
     -- Pode continuar a trabalhar no castelo, mas não mais como um criado. Será um empregado, como o cozinheiro ou o mestre da cavalaria.
     -- Poderei continuar nos jardins?
     -- Sim, se o desejar.
     -- É o meu desejo.
     -- Mas essa não é uma recompensa à altura de seus atos, pequeno herói. - Bono se apoiou na parede – Me diga logo o que quer. Não pense que vou ficar em dívida com você.
     -- Eu não quero nada, Alteza. Nem você nem Glory estão em dívida comigo.
     -- Estou, sim. Você já está em idade de se casar, não acha? Poderei lhe conseguir um bom casamento. Pode escolher a garota mais bonita, ou a mais rica, ou a que quiser. Mesmo que ela não queira, eu a obrigarei a se casar com você.
     -- Não quero me casar, senhor. Não me sinto pronto para isso.
     -- Falando assim, parece uma mulher. - ele suspirou – Pode não querer casar, mas imagino que gostaria de desfrutar dos prazeres do casamento. Você já viu as damas do palácio?
     -- Claro que sim, senhor.
     -- Pode escolher a que quiser. Até mais de uma, se quiser. Me diga quais quer, e assim que estiver bem, elas irão lhe fazer companhia durante as noites.
     -- Alteza, o senhor é muito generoso, mas... Não posso aceitar isso.
     -- Por favor, Christian! Por que não pode? Não gosta de mulheres?
     -- O senhor me ofende dizendo algo assim. Claro que gosto de mulheres. Mas eu já sou de uma pessoa.
     -- Ora ora... Está apaixonado, Christian? Por acaso tem alguma amiga?
     -- Não, senhor, não tenho amiga. Apenas pertenço a uma pessoa, e dela é meu corpo e minha alma, assim como meu destino.
     Por alguns segundos, Bono ficou analisando Christian, em silêncio. O garoto voltara a fechar os olhos.
     -- Christian – ele disse, afinal – a pessoa a quem você se refere é Glory?
     -- Isso não importa, senhor.
     -- Importa, pois ela é minha esposa. Se estiver apaixonado por ela, é bom que...
     -- Ela merecia um marido melhor do que o senhor.
     -- O que?
     -- O senhor não a merece. Ela devia estar casada com um homem bom. O senhor é cruel e é um assassino.
     -- O que está dizendo? Perdeu seu juízo? - ele se aproximou da cama, e Christian reabriu os olhos – Minha gratidão a você não lhe dá o direito de me insultar. Posso mandar te enforcarem por isso.
     -- Me perdoe, senhor. Deve ser o cansaço. Ele me faz dizer as coisas que eu penso mas que normalmente nunca diria.
     -- Para um jardineiro fraco e covarde, você está se saindo mais atrevido do que seria prudente. Fico curioso para saber o que você realmente pensa de mim.
     -- Eu acho melhor eu não dizer, Alteza.
     -- O que deu em você, Christian? Tem sorte de eu estar de bom humor. Considere que sua recompensa é não ser enforcado.
     Ele foi em direção à porta, mas então Christian disse:
     -- Me perdoe, Alteza. Eu não queria ter dito isso.
     -- E voltamos ao Christian de antigamente.
     -- Eu acho que vou morrer.
     -- Adam disse que você está se recuperando bem. Só está muito fraco.
     -- Mas eu não vou me fortalecer, por mais que ele faça magias. Poderia chamá-lo, por favor? Eu gostaria de contar a ele um segredo.
     -- Que segredo?
     -- Algo que pode me salvar. Talvez ele saiba uma forma.
     -- Christian, do que diabos está falando?
     -- De nada, Majestade. Por favor, chame o mago Clayton.
     Bono saiu do quarto, irritado e intrigado pelo comportamento absurdo de Christian. Encontrou Adam no corredor, sozinho, parecendo muito preocupado.
     -- O que está fazendo aqui? Não foi ver Glory?
     -- Já a vi e já a mediquei. Ela está muito bem. - ele se levantou – Christian precisa mais de mim do que ela.
     -- Escute... Ele está muito estranho. Muito estranho, por um momento, era quase como se fosse outra pessoa.
     Adam apenas ouviu, enquanto Bono lhe contava tudo o que acontecera no quarto, e as coisas estranhas que Christian fizera. Depois, ficou ainda algum tempo em silêncio, parecendo ainda mais preocupado.
     -- Você o irritou de alguma forma.
     -- Já o irritei milhares de vezes e ele nunca deixou de agir como um cachorrinho manso. Deu alguma coisa para ele?
     -- Nada que o fizesse ficar assim. Mas eu sei o porque disso, e sei também o segredo que ele quer me contar.
     -- E qual é?
    -- Acho melhor eu ir vê-lo.
     Sem se importar com a evidente irritação de Bono, Adam lhe deu as costas e foi em direção ao quarto. Bono disse:
     -- Adam, eu sou o príncipe, quase o rei, e exijo saber o que esse jardineirozinho está me escondendo!
     O outro parou e olhou para Bono. Então balançou a cabeça e sorriu.
     -- Se você soubesse... Se você ao menos suspeitasse quem Christian realmente é, ou as coisas que ele vem suportando, você o trataria com mais respeito. Com muito mais respeito.
     Ele entrou no quarto, deixando atrás de si um Bono atônito.
* * * * *

     -- É realmente impressionante, Glory. - disse Hally – Pra quem perdeu a quantidade de sangue que me disseram que você perdeu, e sofreu do jeito que você sofreu, é um milagre que você tenha se recuperado tão rápido!
     Hally dissera aquilo enquanto as duas caminhavam pelo pátio, cada uma carregando o respectivo filho. O menino de Hally havia sido batizado e se chamava Peter, e a menina de Glory seria batizada em breve, e se chamaria Grace.
     -- Sim – ela não parecia nem um pouco feliz – é um milagre.
     -- O que foi? Você parece tão triste.
     -- Estou.
     -- Por quê?
     -- Por Christian.
     -- Ah, pobrezinho... Eu também estou tão triste! Muito estranho o que está acontecendo com ele, não é?
     Apesar de terem se passado duas semanas desde que havia sido atacado pelo lobo, e de sua recuperação estar sendo muito boa, Christian ficava cada vez mais fraco. Passava praticamente o dia todo dormindo, e não conseguia mais nem se sentar na cama.
     -- É sim. - Glory suspirou – Muito estranho.
     -- E o mago Clayton disse que não pode fazer nada para ajudar, que está além dos poderes dele... Meu Michaell disse que ouviu conversas entre algumas pessoas do palácio, e entre os próprios cavaleiros, dizendo que Christian foi enfeitiçado!
     -- É mesmo?
     -- É! Eu achei estranho, porque, afinal, quem enfeitiçaria o Christian? Ele é adorável e é bom com todos, e, perdoe-me, mas ele é completamente inútil, e feitiços são difíceis, para que alguém se daria ao trabalho de fazer um feitiço contra ele?
     -- Não sei...
     Nesse momento, Dave foi até as duas, vestido em seus trajes de cavaleiro.
     -- Com licença, Alteza, senhora Hally. - ele fez uma reverência – Princesa Glory, o Príncipe Paul e o mago Clayton solicitam sua presença com urgência no quarto de Christian.
     Sem nem perguntar o que havia acontecido, Glory foi correndo, entregando antes seu bebê para Hally. Chegou ao quarto de Christian, acompanhada por Dave, e lá encontrou Bono, Adam, Larry, e uma mulher desconhecida, todos ao redor da cama de Christian, que estava de olhos abertos mas parecia quase adormecido.
     -- O que houve? - ela disse.
     -- Entre, Glory. - disse Bono – Dave, entre também e feche a porta.
     Dave obedeceu. Glory foi até o lado da cama de Christian e passou a mão pelos cabelos dele.
     -- Como você está, Christian?
     -- Estou bem – ele murmurou – princesinha Glory.
     -- Glory – disse Adam – Você sabe quem é essa pessoa?
     Ele indicara a mulher desconhecida. Glory balançou a cabeça.
     -- Não.
     -- Essa – disse Dave – é Suzan, sua ama de leite. Sua e de Christian.
     -- Ah... E o que ela está fazendo aqui?
     -- Nós fomos buscá-la. - disse Bono – A pedido de Adam. Ela morava em uma cidade de um reino próximo ao reino de seu pai.
     -- E por que foram buscá-la?
     -- Porque Christian vai morrer. - disse Adam – Ele morrerá essa noite.
     -- Não! - Glory segurou a mão de Christian – Não, ele não vai morrer!
     -- Glory – Larry tocou no ombro dela – você tem que ser forte.
     -- Não! Ele não pode morrer, Larry, não pode! Você disse que ele estava bem, Adam, que ele ia se recuperar bem!
     -- Ele se recuperou – disse Adam – mas não pôde recuperar suas forças, e morrerá. Não é desejo dele continuar vivo.
     -- Glory – disse Christian – tem que ser assim.
     -- Não, Christian, não... - ela o abraçou, chorando – Eu te amo, você não pode morrer...
     -- Eu também te amo, princesinha.
     Bono suspirou, impaciente. Estava obviamente incomodado com aquela cena quase romântica entre os dois, mas Dave colocou uma mão em seu ombro, e lhe lançou um olhar dizendo que suportasse.
     -- Muito bem, depois das juras de amor – disse Bono – vocês devem ouvir o que essa mulher tem a dizer.
     Suzan ficara o tempo todo em silêncio, parecendo amedrontada e triste. Glory olhou para ela, sem deixar de abraçar Christian.
     -- O que você vai dizer?
     -- Fale. - Bono ordenou, e a mulher começou a falar.
     -- Eu não trabalhava no palácio na época em que você nasceu, princesa Glory. - disse Suzan – Mas estavam precisando de uma ama de leite, então seu pai foi até a cidade em que eu vivia e me pediu para amamentá-la. Disse que não havia boas amas nas terras dele. Então eu fui ao palácio, e ainda estava lá quando Christian nasceu.
     Glory e Christian se olharam, e pareciam ter compartilhado algum pensamento. A mulher continuou.
     -- Eu fiquei muito amiga da sua mãe, Christian. Quando a conheci, ela era criada do palácio, mas depois ela me contou que nem sempre havia sido assim. Antes, ela era uma camponesa, e o rei só a levou para o palácio depois de alguns anos. Ela se tornou arrumadeira. - ela fez uma pausa, parecendo procurar a melhor forma de dizer aquilo – E depois ela me contou que era amante do rei.
     Dave parecia muito surpreso, e Bono balançou a cabeça, sorrindo com satisfação. Adam e Larry apenas ouviam, em silêncio.
     -- Um dia – ela continuou – sua mãe descobriu que estava grávida. Ela ficou desesperada, porque não era casada, e uma mulher solteira e grávida podia ser presa e condenada à morte. Mas, quando o rei soube, ao invés de castigá-la, ele a acolheu e permitiu que ela continuasse no palácio. Ela teve a criança, você, Christian. E depois, ela me contou que você era... Que você era filho do rei Artur. - ela balançou a cabeça – Você e Glory são irmãos.
     Tanto Glory quanto Christian não demonstraram nenhuma reação. Dave, pelo contrário, parecia chocado. Bono disse:
     -- Então os boatos são verdadeiros. Vocês dois – ele se voltou para Glory e Christian – não vão chorar, se abraçar ou qualquer coisa assim? Vocês são irmãos, está confirmado. Embora eu já desconfiasse disso desde que conheci o Christian. Vamos, o que sentem?
     Os dois se olharam durante algum tempo. Então Glory balançou a cabeça, parecendo muito cansada, e disse:
     -- Nós já sabíamos disso.
     Dessa vez, os outros é que ficaram olhando para eles, em silêncio.
     -- Como assim, já sabiam? - disse Bono.
     -- Nós sabíamos. Há muito tempo.
     -- Como? Como souberam?
     -- Nós ainda éramos crianças. - ela olhava com carinho para Christian, que sorriu para ela – Éramos tão próximos. E papai percebeu, e ficou com medo que a gente acabasse se apaixonando. Então ele contou para a gente que éramos irmãozinhos.
     -- Mas então vocês sabiam? - disse Dave – Por que nunca disseram? Vocês sabiam que as pessoas comentavam, por que nunca disseram nada?
     -- Porque era segredo.
     -- Christian – disse Bono, muito irritado – eu te perguntei várias vezes se você sabia quem era seu pai, e em todas você me negou veementemente.
     -- Era segredo.
     -- Segredo. Segredo. - ele andava pelo quarto – Posso mandar que você seja castigado por isso.
     -- Mas não terá tempo para isso, Majestade. - disse Adam – Porque ele estará morto à meia-noite. Suzan, conte a eles. Acho que isso vocês não sabem.
     -- Quando você nasceu, Christian – disse a mulher – sua mãe morreu. Foi um parto muito difícil, e o rei ficou triste quando ela se foi, mas feliz por saber que tinha um filho homem. Só que a rainha descobriu, e não gostou disso, não gostou nem um pouco. O rei queria que você fosse criado como um príncipe, mas a rainha não permitiu. Ela disse que você deveria ser expulso do palácio, mas o rei disse que você seria criado junto a ele, mesmo que fosse como um criado. Então ela te ameaçou de morte, mas ele avisou que, se algo de ruim acontecesse com você, ela seria castigada. Então, como não podia te matar nem te expulsar do palácio... - ela parecia ainda mais triste – Ela te enfeitiçou.
     -- Enfeitiçou? - dessa vez Glory parecia surpresa – Como? Minha mãe nunca faria isso.
     -- Infelizmente fez, princesa. Ela pagou a uma bruxa para que fizesse, e essa bruxa jogou uma maldição sobre o menino.
     -- E que maldição é essa? - disse Bono.
     -- Isso ninguém sabe. A única coisa que sei é que a magia não poderia funcionar enquanto ele fosse criança, pois as crianças são protegidas. O feitiço só fará efeito na noite da primeira lua cheia depois que ele fizer catorze anos.
     -- E essa é a noite de hoje. - disse Adam – Christian já sabia disso, ele me contou que era amaldiçoado, para que eu pudesse ajudá-lo. Infelizmente, não pude quebrar o feitiço, e creio que ninguém pode. Mas você não me disse como soube, Christian.
     -- O rei me contou. - ele disse, e teve que fazer uma pausa, pois falar era cada vez mais difícil – Ele me contou antes de virmos para cá.
     -- Por isso você estava triste... - Glory passou a mão pelo rosto dele – Mas então, o que vai acontecer hoje à noite?
     -- Não sabemos. - disse Adam – Posso sentir a maldição, mas não posso ver sua forma. Poderia ser qualquer coisa, poderia até ser a mesma de Edge, mas o mais provável é que seja a morte.
     -- Eu estou feliz, princesinha. - Christian segurou a mão de Glory – Seria muito pior se fosse condenado ao mesmo que sir Evans. Eu... Não quero... Machucar ninguém...
     Ele adormeceu. Glory se desesperou, mas Larry colocou a mão em seu ombro.
     -- Ele não vai ainda. Não se preocupe.
     -- Eu vou ficar acordada a noite toda. - ela chorava – Vou ficar com ele até o final.
     Eles saíram do quarto, e Glory não parava de chorar. Dave foi até ela, quando só estavam eles e Bono, e disse:
     -- Hoje é lua cheia, Glory. Não pode ficar aqui a noite toda, eu preciso de você.
     -- Mate alguém! - ela gritou – Vá até o calabouço e escolha o pior dos prisioneiros e o mate, mas nem pense em vir até mim esta noite!
     Ela saiu correndo para o quarto. Dave ficou olhando ela se afastar, surpreso. Bono foi até ele.
     -- Não a culpe. É o irmão dela.
     -- Sim. Claro.
     -- Quando isso passar... - ele colocou a mão sobre o ombro de Dave – Quando eu for coroado rei, vou querer que cumpra o combinado.
     -- Você tinha que me lembrar disso em um momento como esse?
     -- Só estou comentando. Não quero que se esqueça, nem que ache que o que está acontecendo vai me fazer mudar de idéia.
     -- E se Glory não aceitar?
     -- Ela aceitará. Nem que eu tenha que dar uma poção a ela.
     -- E você realmente terá coragem de fazer isso? - ele se virou para Bono – Como cavaleiro, claro que já ouvi falar de coisas assim, mas isso é... Isso é absurdo até para o mais inescrupuloso dos homens. E você permitiu que eu fosse amante de Glory em troca disso. Qual o motivo? Eu não consigo entender.
     -- Você não entenderia mesmo que eu te explicasse, sir Evans. - ele sorriu – Como eu já te disse, há coisas em mim que nem mesmo Deus conhece.
     -- Mas meu Mestre conhece. E sua alma já é dele, e espero que se prepare para isso.
     -- Jamais estarei preparado, mas não adianta me preocupar com isso. O que posso fazer é aproveitar ao máximo a vida aqui, uma vez que já estou condenado. E espero que me ajude com isso, cavaleiro. - ele deu um tapinha no braço de Dave – Poderá até ser condecorado por isso. Poderei lhe dar o título de conde, o que acha?
     -- Está brincando.
     -- Claro que não. Você é um grande cavaleiro. Mas depois pensamos nisso. Agora, tenho que cuidar para que Glory sofra o menos possível quando Christian se for.
     E ele saiu, deixando Dave sozinho com seus pensamentos.