CAPÍTULO 10
OS DIAS DO NOVO INVERNO
OS DIAS DO NOVO INVERNO
"Save my soul
Hold on to love
Hold on to love
Love won't let you go"
(U2 - Luminous Times (Hold on to love))
Hold on to love
Hold on to love
Love won't let you go"
(U2 - Luminous Times (Hold on to love))
Glory estava brincando com um filhote de raposa, enquanto colhia flores, distraidamente. Colheu uma quantidade suficiente, e com elas fez uma coroa de flores, que colocou sobre a cabeça, enfeitando os cabelos.
-- Como estou? - ela disse para a raposa, enquanto dava pulinhos e rodopiava, dançando – Acha que estou bonita? Quando eu era pequena às vezes fugia para o bosque com Hally e Dave, e nós fazíamos coroas de flores, e ele dizia que eu parecia uma fada. Acha que pareço uma fada?
Quando ela se virou, se deparou com Larry, que a observava de cima de um pequeno monte.
-- Ah... - ela ficou vermelha – Oi...
Ele passou vários segundos apenas a olhando, com uma expressão de curiosidade. Então disse:
-- Meu mestre mandou chamá-la. Ele vai fazer Bono despertar.
-- Sério? - ela correu até ele – Vamos, eu quero estar junto quando ele acordar.
Por um momento ainda ele ficou parado, a olhando; e então estendeu a mão para ela. Ela a segurou, e os dois foram correndo de volta para a casa. Quando lá chegaram, Adam estava no quarto de Bono, mexendo com uma colher em uma vasilha, de onde saía um vapor estranho. Glory disse:
-- Você vai fazê-lo acordar?
-- Sim. Ele já está pronto. Se isso não acordá-lo, então ele não acordará nunca mais.
Ele colocou o líquido dentro de um recipiente estranho, parecendo uma luminária, e o colocou em frente ao rosto de Bono, fazendo-o respirar o vapor.
A princípio, Bono não esboçou nenhuma reação, e Glory temeu o pior. Mas de repente ele deu uma respiração profunda e moveu o braço, levemente. Adam afastou o recipiente de seu rosto e tocou em seu peito. Disse:
-- Vai acordar agora.
Como se guiado por uma ordem, Bono abriu os olhos e respirou desesperadamente, como um afogado que volta à vida. Olhou em volta, parecendo assustado, e abriu a boca, mas nenhum som saiu. Adam o empurrou gentilmente pelo ombro, para que ele se mantivesse deitado, e disse:
-- Não se esforce. Ainda não está totalmente recuperado.
-- Onde... Estou...
Sua voz estava rouca e muito fraca, como se ele nunca houvesse falado antes.
-- Está na minha casa. Você chegou aqui praticamente morto, mas eu te salvei. Você estava dormindo desde então, para que seu corpo se recuperasse.
-- Quanto tempo...
-- Pouco mais de um mês. Você é um homem muito forte. E teve muita sorte também.
Bono parecia ainda estar confuso. Glory se aproximou e tocou sua mão. Ele olhou para ela por um tempo, mas então desviou o olhar, o que a deixou triste. Adam disse:
-- Nós vamos deixar vocês a sós. - ele e Larry se encaminharam para a porta – Ele não pode fazer nenhum esforço, nem ficar muito agitado.
-- Pode deixar.
Eles saíram, fechando a porta. Glory se sentou em um banco próximo à cama, e continuou segurando a mão de Bono, embora ele não olhasse para ela. Só depois de muito tempo ele disse, com a voz um pouco mais limpa:
-- Você me trouxe pra cá?
-- Sim.
-- Por quê?
-- Os médicos da cidade não iam poder te ajudar, você estava muito ferido. Eu encontrei o Larry, que é aquele menino loiro, o encontrei no meio da floresta, e ele me falou sobre o Adam, que é o feiticeiro. Ele me trouxe até aqui, e Adam curou você.
-- Não é isso que quero saber. - ele olhou para ela – Por que me salvou? Achei que desejasse a minha morte.
-- Eu também achei. Mas descobri que não desejo mais. E eu não tentei te matar quando contei para aquele camponês que você ia matá-lo, eu só... Só queria impedir que mais alguém morresse na minha frente sem que eu fizesse nada. Eu achei que ele fosse fugir, nunca podia imaginar que ele ia pedir ajuda aos irmãos. Eu fiquei com muito medo de que você se ferisse.
Ele nada disse. Apenas ficou olhando para ela, e então desviou o olhar novamente.
-- E você? - disse Glory – Por que me protegeu? Você queria me matar, devia ter deixado aqueles homens me atacarem. Estaria vingado.
-- Eu não queria te matar. Foi só um impulso, eu estava com raiva. Teria feito se você não tivesse fugido, mas acabaria me arrependendo depois. Fui atrás de você porque sabia que você iria se perder na floresta, e fiquei preocupado.
-- Mas por quê? Você mesmo disse que ninguém que te traísse sobreviveria. E, fossem qual fossem minhas intenções, eu te traí. Você devia querer me matar. Ou me odiar para sempre. Nunca imaginei que fosse arriscar sua vida por mim.
-- Minha vida não vale muita coisa.
-- Claro que vale! Você é muito importante!
-- Não, Glory. Você é importante. Minha vida não significa nada em comparação com a sua.
-- Você mesmo disse que eu não era mais uma princesa...
-- Não é pelo seu sangue nobre que você se tornou importante para mim.
-- Então é pelo que?
Bono deu de ombros.
-- Eu não sei.
* * * * *
Ainda demorou quase uma semana para que Bono pudesse sair da cama. Mesmo quando o fez, foi com a ajuda de Glory e Larry, e sob supervisão de Adam.
Naquele dia, eles estavam almoçando, todos juntos à mesa. Glory conversava com Larry e Adam, mas Bono se mantinha distante e calado, como vinha fazendo desde que acordara. Quando acabaram de comer, ele disse:
-- Clayton...
-- Sim?
-- Eu poderei lutar novamente?
-- Provavelmente não nos próximos meses. Mas em seis meses, no máximo, já estará completamente recuperado.
-- E serei tão bom quanto antes?
Dessa vez, Adam hesitou.
-- Não posso afirmar isso com certeza. Seus membros foram muito danificados. Talvez demore um pouco para recuperar a habilidade. Ou talvez nunca a recupere.
Bono balançou a cabeça. Adam continuou:
-- E você teve um ferimento no peito que pode ter prejudicado a respiração. Numa situação normal isso não seria notado, mas no meio de uma batalha pode fazer toda a diferença. Você poderá se cansar mais rápido do que seu oponente, ou não conseguir se mover tão depressa.
-- Mas pode ser que não tenha acontecido nada disso. - disse Glory, tentando confortá-lo – Não é? Ele pode voltar tão bom quanto antes.
-- Talvez. Mas a chance de que algo esteja errado existe e é alta. É bom se acostumar com a idéia de que você não será o mesmo de antes.
-- Ótimo. - ele disse, e desapareceu para dentro do quarto, fechando a porta.
-- Por que disse isso? - disse Glory, para Adam – Devia dar esperança a ele!
-- Não sou um padre, sou um mago. E ele sabe quais são suas condições. Eu disse a verdade a ele, e seria injusto se não fosse sincero.
Glory se levantou, inconformada, e foi para o quarto de Bono. Eles estavam ficando em quartos separados desde que haviam chego: Bono estava no quarto em que Adam cuidara dele, e Glory ficava no quarto de Larry. Larry, por sua vez, dormia no quarto de Adam.
Quando ela entrou, Bono estava parado junto à janela, olhando para fora. Ela foi até ele, dizendo:
-- Bono, não fique...
-- Saia daqui. - ele disse, sem se virar – Já me causou problemas demais.
Ela parou, surpresa.
-- Problemas? Eu salvei sua vida!
-- Seria melhor ter me deixado morrer. Olhe para mim. - ele se virou para ela – Mal posso me mover. Mesmo que me recupere, nunca mais poderei lutar como antes. A única coisa que fazia sentido na minha vida era a luta, e agora não tenho mais isso.
-- Existe a chance de que você se recupere totalmente! E mesmo que não seja como antes, ainda tem sua técnica, sua experiência! Você não era bom só porque era forte ou rápido, há muito mais! Ainda pode ser um grande guerreiro!
-- Grande talvez, mas não o melhor. Você não entende, nunca vai entender. O que me dava forças para enfrentar cada dia era, mais do que tudo, a paixão pelas batalhas, a certeza de que eu era invencível, o desejo de provar ao mundo que eu era o melhor. Se eu não for o melhor, não sou nada.
-- Eu também não sou nada sem ser uma princesa e sem o Dave, mas continuo viva mesmo assim! E o que você ama não é a luta, é o sangue! Você é um assassino, Bono, e te desespera pensar que pode existir alguém que você não consiga matar!
-- É uma forma de encarar as coisas.
-- Estou cansada disso. Eu quero te ajudar, mas você...
-- Já está na hora de dormirmos no mesmo quarto. - ele a interrompeu, de repente – Adam disse que eu devo continuar aqui ainda algumas semanas, porque não posso cavalgar ou fazer longas caminhadas, mas ontem nós conversamos e ele disse que o sexo não só está liberado, como será bom para mim.
Dizer que ela ficara ofendida seria pouco; ela ficara furiosa.
-- Mande ele te arrumar uma ou duas meretrizes. Não vou dormir com um homem tão amargurado quanto você. Me fará mal.
Ele foi pego completamente de surpresa. Demorou alguns segundos para que dissesse alguma coisa.
-- Suas últimas atitudes deram a entender que você me queria.
-- E talvez te quisesse, se em algum momento desde que acordou você tivesse me agradecido ou me dirigido ao menos uma palavra gentil. Mas tudo o que fez foi se dirigir a mim como se eu fosse a responsável por todos os males do mundo.
Ela saiu do quarto, sem esperar resposta.
* * * * *
Ela estava deitada na cama, olhando pela janela para a lua lá em cima. A lua cheia, brilhante. Era angustiante ficar sozinha na lua cheia. Sua vontade era correr até o quarto de Bono, pedindo carinho, mas não faria isso de forma alguma.
Então, houve uma batida na porta. Antes que ela respondesse, a porta se abriu, e mesmo no escuro ela pôde reconhecer Larry.
-- Lawrence?
-- Desculpe, eu... Eu abri a porta porque pensei que pudesse estar dormindo, e não me ouviria bater...
-- Tudo bem, entre. Eu não estava dormindo.
Ele entrou e fechou a porta. Foi até ela e ficou parado próximo à cama.
-- Você está com sono?
-- Não. Nem um pouco. - ela se sentou na cama, dando espaço para Larry – Senta.
-- Não se importa?
-- Claro que não. E essa cama é sua.
Larry se sentou e ficou olhando para ela. Sempre tinha aquele jeito peculiar: ia até a pessoa, e então ficava boa parte do tempo calado, apenas a analisando; só depois de muito tempo dizia alguma coisa. Muitas vezes saía sem esperar resposta.
-- Eu pensei – ele disse – que essa noite você iria para o quarto de Bono.
-- Oh. - ela corou – Eu devia ir, ele me chamou, mas... Eu não quis.
-- Por quê?
-- Porque não quero... Me deitar com ele. Ele vem me tratando muito mal.
-- Acha que ele pode te machucar?
-- Não, nem pensei nisso... Talvez até acontecesse, mas não foi isso que... Eu só não conseguiria me entregar a ele desse jeito. E ele não é meu marido de verdade, não tenho obrigação nenhuma com ele. - ela assumiu um ar humilde – Mas se você quiser seu quarto de volta, eu posso...
-- Não! Não é nada disso. Eu não me importo de te ceder o meu quarto. Só perguntei porque realmente pensei que você iria para o quarto dele.
-- Sinto muito por estar ocupando seu quarto.
-- Não tem problema.
-- E o Adam? Ele não se importa de dividir o quarto com você?
-- Não.
-- E por que veio aqui? Não devia estar lá?
-- Adam está dormindo.
-- E daí?
-- Eu queria conversar.
-- Você? - ela riu – Quase não conversa...
-- Posso não falar muito – ele olhou para ela – mas gosto de te ouvir.
-- Mas quando nos conhecemos você reclamou por eu falar demais.
-- Eu não estava acostumado. Mas gosto de te ouvir.
-- Que bom. Tinha medo de que você pudesse me enfeitiçar de novo.
Ele sorriu, e era a primeira vez que ela o via demonstrar qualquer tipo de emoção.
-- Me desculpe por aquilo. Mas foi divertido.
-- Como fez aquilo? Foi impressionante!
-- Não, foi muito simples. Ridículo, na verdade. Posso fazer coisas muito melhores.
-- Como o que?
Por algum tempo ele ficou olhando para ela, com um sorriso nos olhos, sem responder. E então tocou no rosto dela – de uma forma que Glory considerou muito atrevida – e disse:
-- Acorde.
Antes que ela pudesse dizer “o que?”, uma espécie de tontura a invadiu, e ela fechou os olhos por breves dois segundos. Quando os abriu, estava de pé, do lado de fora da casa, e Larry estava apoiado em uma árvore, olhando para ela. A sensação era muito estranha, e Glory se sentiu um pouco enjoada. Olhou em volta, assustada, tentando entender o que acontecera.
-- O que!? Como!?
-- Que tal?
-- Como fez isso?
-- Exatamente da mesma forma que fiz da outra vez, no rio. Mas agora foi muito mais impressionante.
-- Foi, sim. Como funciona?
-- É segredo.
-- Por favor, me diz. - ela segurou a mão dele – Eu não conto pra ninguém.
-- É fácil. Chama-se hipnose.
-- Acho que já ouvi falar. Um mágico uma vez hipnotizou alguém para um show no castelo.
-- Mas existem dois tipos de hipnotismo. Um deles não é real, você fica consciente mas se sente induzido a fazer o que o hipnotizador manda. O hipnotismo real é o que fiz com você.
-- E o que acontece?
-- Eu te faço olhar diretamente nos meus olhos, de certa forma. Exige muita técnica. Você fica em um estado de dormência, como um sonâmbulo. E obedece todas as minhas ordens.
-- Então, você me mandou te seguir pra cá, e eu vim?
-- Isso. E você só acorda quando eu mando. Podia mandar você se jogar no rio ou... Ou mandar que se despisse. Você faria o que eu quisesse.
-- Nossa. - ela segurou o vestido, instintivamente – Parece perigoso.
-- E é, nas mãos erradas. Demorou muito para que Adam me ensinasse a técnica.
-- Ele não confiava em você?
-- E quem é que confia em uma criança?
-- É, está certo...
-- Vem cá. - ele a segurou pela mão – Vamos passear. A floresta é muito bonita em noites de lua cheia.
-- Não é perigoso?
-- Não se preocupe, eu te protejo. Confie em mim.
-- Bem, você me hipnotizou e não tentou se aproveitar de mim. Acho que posso confiar.
Os dois foram andando pela floresta. Estava bem claro, por causa da lua. Chegaram perto do rio, e Larry parou, dizendo:
-- Quer ver mágica?
-- Quero!
-- Muito bem. - ele estendeu as mãos abertas – Olhe para as minhas mãos.
-- O que tem elas?
-- Estão vazias, certo? - ele as fechou – Escolha uma.
-- Direita.
Ele estendeu a mão direita, ainda fechada, e disse:
-- Me dê sua mão.
Glory estendeu a mão, e ele encostou sua mão fechada sobre a dela. Então, a levantou um pouco e foi deixando cair, lentamente, uma pulseira de ouro.
-- Uau! - ela disse, encantada – Incrível!
-- Para você. - ele fez ela fechar a mão – Quero que a use amanhã.
-- Vou usar. Posso colocar agora.
-- Não. Guarde-a. Use amanhã.
-- Por quê?
-- Por que não poderei admirá-la no escuro.
Ela sorriu, guardando a pulseira.
-- Está bem.
Por muito tempo os dois ficaram andando pela floresta, enquanto Larry fazia mágicas para Glory. Ela estava impressionada; ele fazia belos truques, para encantar a menina.
-- Veja. - ele fechou a mão e, quando a abriu, uma pequena chama azul surgiu flutuando sobre ela.
-- Que lindo!
-- Toque.
-- Mas não queima?
-- Confie em mim. Toque.
Glory tocou na chama. Tinha um calor bom, mas não queimava. Então ele soprou, e ela se esvaiu em pequenos flocos luminosos, que foram flutuando como vaga-lumes até desaparecerem.
-- Incrível... - ela sorriu – Você tem muitos poderes.
-- Não, não. - ele parecia se divertir com o encanto dela – Isso que fiz são só truques, não são magia de verdade. Qualquer um que tenha alguma técnica pode fazer.
-- Sério? Eu poderia?
-- Claro. É difícil e exige treino, mas nada te impede. São só ilusões. Não são como o hipnotismo.
-- E você sabe fazer alguma mágica de verdade, além do hipnotismo?
-- Sei. Não coisas como desaparecer ou te fazer levitar, isso são truques. Mas posso controlar os animais, posso evocar determinadas coisas, como o vento e o fogo. Mas não farei, não tenho autorização.
-- Por quê?
-- Porque é muito perigoso e sou só um aprendiz. Até hoje só fiz essas magias guiado por meu mestre, e muitas vezes ele teve que intervir para que eu não me machucasse ou causasse danos a outros. Mas grandes magos como Adam podem fazer coisas impressionantes. Podem controlar as águas ou evocar espíritos, ou ir até o mundo dos mortos.
-- Ele pode falar com os mortos?
-- Pode.
-- Será que ele conseguiria falar com o Dave?
-- Provavelmente. Mas nem sonhe em pedir isso a ele. Tenho até medo da resposta.
-- Por quê?
-- Porque a magia não deve ser usada por motivos superficiais. - ele se sentou, e ela se sentou ao seu lado – As consequências podem ser fatais.
-- O padre do castelo dizia que a magia vinha do demônio, e que os feiticeiros e as bruxas usavam essas forças malignas para roubar a alma das pessoas.
-- Isso é uma grande bobagem. Os cristãos são muito tolos.
-- Você não é cristão?
-- Claro que não. Eu e meu mestre somos pagãos, assim como todos os que conhecem e usam a magia.
-- E em que deus vocês acreditam?
-- Temos vários deuses. Os principais são Gaia e Gamus. A mulher e o homem, a deusa e o deus. Nós temos diversos rituais para celebrá-los, e o principal é o Hierogamos, que acontece na noite de lua cheia.
-- Hoje é lua cheia.
-- É sim. O ritual deve estar perto do auge.
-- Onde ele acontece?
-- Em vários lugares. O mais próximo fica a mais ou menos seis horas de cavalgada. As pessoas das aldeias próximas vêm à floresta para fazê-lo, porque a Igreja não permite.
-- E como é esse ritual?
-- Ele celebra a união de Gaia e Gamos, a fertilidade. Agradecemos pela fertilidade das terras e dos seres vivos.
-- Mas como ele é? É como na igreja?
-- Não. - ele sorriu – É muito melhor.
-- Me conta.
-- Primeiro, dias antes, escolhe-se o casal que representará o Deus e a Deusa. Todas as pessoas receberão os deuses, mas esses dois serão... Serão como oferendas aos deuses.
-- Vocês matam eles?
-- Não, nada disso. Não há morte nesses rituais, nós celebramos a vida. Bem, no dia do ritual, as pessoas se preparam. O povo em geral faz uma espécie de festa, pintam-se, vestem roupas rituais. O Deus e a Deusa também, mas é um ritual fechado e mais demorado. Geralmente os dois são virgens, mas há exceções. Na verdade, não faz muita diferença ser virgem ou não, se a pessoa estiver no estado de espírito certo, só que ele é mais facilmente atingido se nunca houver tido contato sexual.
-- É como um casamento?
-- De certa forma. A cerimônia acontece ao anoitecer. Acende-se uma grande fogueira, e as pessoas fazem danças ao redor dela, guiadas pelas feiticeiras e feiticeiros. Há palavras rituais que são recitadas, poções que são bebidas, uma série de coisas. Quando a lua se torna cheia, passa-se ao passo seguinte do ritual.
-- E qual é?
-- Sexo.
-- O que!?
-- A pessoa entra em uma espécie de transe. As mulheres recebem o espírito da Deusa, e os homens, do Deus. Então, o masculino e o feminino se encontram, para celebrar a fertilidade. As mulheres que estão prontas saem grávidas dos rituais. É muito bonito.
-- Bonito!? Essas pessoas... Elas fazem essas... Coisas... A céu aberto, umas na frente das outras?
-- Sim, mas estão em transe, elas mal reparam nos outros. É engraçado pra quem vê de fora, parecem sonâmbulos ou hipnotizados.
-- E eles não são casados?
-- Não. Muitas vezes você não sabe quem é a mulher com quem você se deitou, ou quem é o verdadeiro pai do seu filho, mas isso não importa. Dizemos que são filhos do Deus.
-- Que horror...
-- Mas, se você amar alguém, você pode escolher que ele seja o Deus para você. Não é proibido. E se duas pessoas se deitam durante o ritual e se gostam, muitas vezes elas se casam.
-- Ainda acho estranho demais.
-- Vocês, cristãos, se chocam, mas deviam estar acostumados. Foi num ritual como esse que nasceu o seu Messias.
-- O que? Está louco? Jesus era filho de Deus!
-- Todas as crianças nascidas nesses rituais são chamadas “filhas de Deus”. E era um ritual comum na época em que viveu Jesus. Muitas mulheres casadas que se deitavam com outros homens eram poupadas da morte por seus maridos ao dizerem que estavam carregando o filho de um Deus. É um ritual milenar. E é muito sábio.
-- Sábio... Não acho certo você se deitar com alguém que não ama.
-- Quantas pessoas você conhece que se casaram por amor?
-- Nenhuma, mas...
-- O que fazemos não é tão diferente do que vocês fazem. Pelo menos nos deitamos com alguém como uma forma de celebrar a vida, e não para aumentar nossa riqueza.
Ela não soube como argumentar. Ficou algum tempo pensando sobre as coisas que Larry lhe dissera, e então disse:
-- Você já participou de muitos rituais assim?
-- Não, eu nunca participei. Ainda não tenho autorização. Para as pessoas comuns não existem muitas exigências, mas para os magos é preciso passar por determinadas coisas que eu ainda não passei.
-- Você nunca esteve com uma mulher?
-- Não. Mas já assisti ao ritual. Meu mestre já me levou muitas vezes, para eu aprender os ritos.
-- Adam participa?
-- Sim. Ele não tem ido nos últimos três meses, porque está se preparando para uma determinada magia em grupo com outros cinco feiticeiros, e para isso ele deve estar em abstinência sexual por no mínimo seis meses.
-- Eu poderia participar?
-- Achei que tivesse achado horrível.
-- E achei. Não estou dizendo que quero, só quero saber se posso.
-- Bem, poderia. Mas precisaria passar por pelo menos um mês de preparação. Não conseguiria receber o espírito de Gaia se não tivesse ao menos um conhecimento básico dos passos e do significado do ritual.
-- Hum...
Ele se deitou no chão, com os braços cruzados sob a cabeça, e ficou olhando para cima.
-- Eu não gosto muito das noites de lua cheia. - ele disse – Não dá pra ver bem as estrelas.
-- Mas quem vai querer ver estrelas – disse Glory, se deitando ao lado dele para olhar o céu – com uma lua tão linda no céu?
Larry olhou para ela, e ficou um tempo em silêncio.
-- Se for considerar apenas a beleza – ele tocou levemente no rosto dela – eu preferiria olhar você do que olhar a lua.
Ela olhou para ele, surpresa. Ele continuou tocando seu rosto, de forma muito suave.
-- O que está fazendo? - a voz dela era só um sussurro, como se temesse que alguém a escutasse.
-- Nada. - ele também sussurrava.
-- Está me enfeitiçando?
-- Você se sente enfeitiçada?
Confusa, e sem saber o que fazer, Glory se levantou. Larry se levantou também, e ela começou a se afastar.
-- O que houve? - ele disse, indo atrás dela.
-- Eu não sei.
-- Eu fiz algo de errado?
-- Não sei.
De repente, ela começou a se sentir tonta, mas não era como nas vezes em que Larry a hipnotizara: agora, parecia que ia desmaiar. Parou, colocando a mão sobre a cabeça, e então tudo ficou escuro.
-- Princesa! - Larry a segurou, e Glory caiu em seus braços, sem forças mas consciente – Senhorita...
O modo como ele falara era parecido com o jeito de Dave de se dirigir a ela, e Glory ficou ainda mais confusa. Ele a deitou no chão, ainda a segurando.
-- Me sinto tonta... - ela disse, fracamente – Tão fraca...
-- O sangue está correndo muito devagar por seu corpo. - ele tocou em seu rosto – Você está tão pálida. Vou lhe dar algo para se sentir melhor.
Ele tirou do bolso um frasco minúsculo, e pingou algumas gotas nos lábios de Glory. Tinha um gosto salgado, e ela começou a se sentir melhor, seu corpo de repente ficando mais quente. Mas não tentou sair dos braços de Larry.
-- Você está melhor?
-- Estou. Obrigada.
Ficaram os dois se olhando ainda daquele jeito, ela inerte nos braços dele, ele a segurando como se segurasse uma taça de cristal. E então ela tocou a mão dele.
-- Você é tão bonito... - ela segurou a mão dele – Fica tão bonito com a luz da lua...
Houve ainda alguns segundos de contemplação; e então ele se inclinou para ela e a beijou, em um beijo que foi completamente aceito.
* * * * *
Ao amanhecer, Bono parecia um pouco menos amargurado. Sentou-se para lanchar com os outros, coisa que não vinha fazendo, e até mesmo conversou com eles. Mas ainda não estava bem, muito menos feliz.
Quando acabaram o café, Adam mandou Larry ir à floresta, cortar lenha e caçar.
-- Está cada vez mais frio. - ele disse – Nos próximos dias pode começar a nevar. É bom termos uma reserva boa de lenha e de comida. Traga o máximo que puder.
-- Sim, senhor. - ele se voltou para Glory – Glory, vem comigo?
-- Vou sim! - ela colocou sua capa, pois fazia muito frio.
Os dois saíram pela floresta. Adam ficou sozinho na casa, com Bono.
-- Ele é pequeno – disse Bono – não acho que aguente carregar muita coisa.
-- Ele dará um jeito. Sempre tenta fazer o que mando da melhor forma possível. E não estou tão interessado na lenha. O mandei para a floresta porque queria conversar a sós com você. E sabia que se ele fosse, chamaria Glory para ir com ele.
-- Duas crianças brincando na floresta. - ele balançou a cabeça – O que você quer conversar comigo?
-- Sabe – ele preparava alguma espécie de poção enquanto falava – quando Glory me disse que você era Bono, eu quase não acreditei. Conhecia a sua fama, já ouvira história incríveis sobre você. Entendo o quanto deve ser terrível a idéia de diminuir seu desempenho por causa dos seus ferimentos.
-- Estou tentando não pensar nisso. Vou esperar até ter me recuperado, e tentar voltar a ser tão bom quanto antes.
-- É uma ótima forma de melhorar. Mas eu fiquei muito surpreso, de verdade. Digo, quando vi você. Nunca poderia pensar que você fosse o maior e mais perigoso guerreiro que já surgiu na Bretanha.
-- Por quê? Esperava alguém mais alto?
-- Esperava alguém mais alto, mais baixo, qualquer um. - ele olhou intensamente para Bono – Mas não você.
-- Por que, não eu? Você nem me conhece.
-- Sim, “Bono”. – ele sorriu, voltando a mexer na mistura de ervas que estava preparando – Eu te conheço.
-- O que? Como? De onde? Eu não me lembro de você.
-- Imaginei que não se lembraria. Nós dois mudamos muito. Mas eu te reconheci logo, assim que comecei a cuidar de você. Apesar de seu rosto ter mudado muito, e seu corpo também. Está melhor agora.
-- Ei, sai. - ele olhou para Adam, desconfiado – Acho que você está me confundindo.
-- Não, não estou. - ele riu, parecendo estar achando aquilo divertido – Nos conhecemos quando você tinha sete anos.
-- O que!?
-- Você era um garotinho terrível. Mas tinha uma grande futuro pela frente. Fico pensando o que o trouxe para essa vida de lutas e assassinatos.
-- Isso é impossível, não tem como você ter me conhecido. Está me confundindo com outro.
-- Você é incrivelmente parecido com seu pai, eu não me enganaria. Me diga, Paul – ele se virou para Bono – o que faz um nobre abandonar seu reino e se tornar um mercenário?
-- Do que está falando? Eu não me chamo Paul e muito menos sou nobre.
-- Mesmo que eu não tivesse te reconhecido, saberia que é nobre. Você tem postura de cavaleiro, fala de uma forma que nenhum camponês ou pessoa da cidade, ou mesmo um cavaleiro comum, falaria. Tem um vocabulário invejável, sabe escrever, conhece as ciências, a matemática e a história, e ontem mesmo você deixou escapar uma frase em latim. Latim. Só reis e padres têm tanto estudo.
-- Eu... - ele hesitou, tentando encontrar alguma explicação, mas por fim disse apenas – Como me conheceu? Não me lembro de você.
-- Nem poderia. Nos vimos brevemente. Como eu disse, te reconheci principalmente pela semelhança com seu pai. Eu estava de passagem por aquelas terras, e estava sendo perseguido pela Igreja, como sempre. Seu pai me ofereceu abrigo, em troca de que eu lhe preparasse algumas poções ligeiramente perigosas, não sei para quais propósitos. Fiquei hospedado cinco dias no castelo. Só vi você de longe, ou passando correndo por mim. Mesmo sendo pequeno, era tão arrogante e autoconfiante quanto qualquer nobre adulto. E, pelo que pude ver, isso também não mudou.
-- Não tenho culpa se sou o melhor no que faço, e tenho orgulho disso. Minha autoconfiança não tem nada a ver com minhas origens ou com meu sangue.
-- Imagino que não. Mas por que se tornou quem é hoje? O que ouvi foi que Paul tinha morrido. O que de fato aconteceu?
-- Não pense que vou começar a lhe contar a história da minha vida apenas porque me salvou. Sou muito grato a você, mas essa gratidão não chega tão longe.
-- Glory sabe quem você é?
-- Não, nem meu verdadeiro nome. E quero que continue assim.
-- Bem, se é a sua vontade, não será por mim que ela saberá.
Sem parecer se importar por Bono não ter contado seus segredos, Adam voltou a preparar sua poção. Bono ficou um tempo pensando em silêncio, e então disse:
-- Por que você vive escondido na floresta?
-- Já viu o tratamento que a igreja dá aos magos?
-- Sim, mas... Por que aqui? Podia ter ido para as Terras do Norte. Lá o poder da igreja ainda não é tão forte.
-- Nenhum motivo fantástico. Há alguns anos atrás amei uma mulher que morava nessa região, em uma cidade a um dia de cavalgada daqui. Não somos mais amantes, mas quis continuar próximo a ela.
-- As mulheres sempre acabam dominando as nossas vidas.
-- São as criaturas mais poderosas que já surgiram sobre a Terra.
-- E imagino que não sinta falta das cidades.
-- Às vezes sinto.
-- Mesmo? Não vejo por quê. Não parece ser do tipo que gosta de pessoas.
-- Não se engane. E, de qualquer forma, eu sinto falta das mulheres da cidade.
-- Por quê? Tem o seu aprendiz.
Adam se virou bruscamente para ele.
-- Insinue algo assim novamente – o tom dele era ameaçador – e não acordará amanhã.
-- Ops, desculpe. - Bono levantou as mãos, em um gesto de paz, mas mantinha o tom malicioso e ligeiramente arrogante – Mas não é difícil imaginar o tipo de “ensinamento” que dá a ele. É muito útil para um homem como você ter um garoto para...
Antes que ele pudesse concluir sua frase, sentiu algo lhe travar a garganta, o sufocando. Adam apoiou as mãos na mesa, olhando-o friamente.
-- Eu poderia te matar antes que você entendesse o que está acontecendo. - ele disse para Bono, que se deixara cair de joelhos, as mãos na garganta, tentando desesperadamente respirar – Faça um único comentário maldoso sobre minha relação com meu aprendiz, e eu te mato. O que quer que aconteça entre nós não é dá sua conta, e não ouse falar sobre isso novamente.
Ele bateu na mesa, e Bono sentiu sua garganta se destravar, permitindo que respirasse novamente. Ficou um tempo ajoelhado, tentando se recuperar, e Adam voltou calmamente para seu trabalho, como se nada tivesse acontecido. Quando se recuperou, Bono levantou e ficou olhando para ele, com raiva. Em seguida foi voltando para o seu quarto, mas Adam falou:
-- Devia cuidar melhor de Glory.
Bono parou.
-- Eu cuido muito bem dela.
-- Quando digo “cuidar bem”, quero dizer dar carinho a ela, e não mantê-la segura e alimentada. Ela é uma garota, não um cachorro.
-- Fazendo uso de suas palavras, o que quer que aconteça entre nós não é da sua conta. Não se meta na minha relação com ela.
-- Não vou me meter – ele olhou para Bono – mas não venha me culpar quando descobrir que ela está dormindo com meu aprendiz.
-- O que!?
* * * * *
Larry já havia cortado uma pilha enorme de lenha, e agora andava pela floresta, com Glory.
-- Você não devia estar caçando?
-- E estou. Se aparecer algum animal, eu o capturo. Mas não precisamos ter pressa. Duvido que vá começar a nevar ainda hoje.
Ela sorriu e estendeu o braço, onde brilhava a pulseira que ele lhe dera.
-- Eu a coloquei hoje de manhã.
-- Ficou linda. - ele segurou a mão dela e tocou a pulseira – Ainda mais linda do que já é.
Ele deixou os dedos correrem pelo braço dela, e Glory ficou vermelha. Ele se aproximou, e quando tentou beijá-la, ela se esquivou e correu até uma árvore ali perto.
-- Você não me pega! - ela disse, rindo, e então correu de novo. Larry demorou alguns instantes, a observando correr, e então foi atrás, também correndo.
* * * * *
Glory não estava usando seus vestidos de princesa; usava apenas um vestido comum, como as mulheres dos campos, o que de início a deixara um pouco envergonhada, mas logo se mostrara muito mais útil para viver na floresta. Ela podia correr melhor, e se mover de forma muito mais leve.
Mesmo assim, não demorou muito para que Larry a alcançasse. E ela não estava realmente decidida a fugir. Ele a imprensou contra uma árvore, e ela sorriu. Os dois estavam ofegantes, e ele também sorriu, mas só com os olhos, e de uma forma maliciosa.
Dessa vez, Glory não fugiu quando ele a beijou. Ele a prendia contra a árvore e segurava suas mãos, mas sabia que ela não tentaria resistir. E ela gostava de sentir a força dele.
-- Não... - ela murmurou, sorrindo, quando ele tentou beijá-la mais uma vez – Pára...
Larry sabia, instintivamente, que aquele “não” não era um “não” de verdade. Por isso a beijou de novo, e continuou a beijando quando ela tentou empurrá-lo – sem usar nenhuma força.
-- Fica comigo. - ele disse, segurando-a pela cintura, seus rostos se tocando – Deixe Bono ir, e fique aqui comigo.
-- Seu mestre não vai permitir.
-- Tenho certeza que vai. Ele gosta de você. E sei que já estou pronto para... - ele respirou fundo, sentindo o perfume dela – Para ser um homem.
-- Você casaria comigo?
-- Sim.
-- E me levaria para o ritual da lua cheia?
-- Sim. Só você seria minha Deusa. - ele a beijou de novo – Só você.
-- Mas eu já me deitei com dois homens.
-- Isso não me importa.
-- Bono tentaria te matar se soubesse.
-- Eu lutaria com ele e o mataria.
-- Ele é mais forte do que você.
-- Mas eu poderia derrotá-lo com magia.
-- E se seu mestre achasse que você ainda não está pronto? Se te proibisse de tocar em mim?
-- Você ficaria vivendo comigo mesmo assim, e esperaríamos até eu estar pronto.
-- E se ele dissesse que não podemos ficar juntos?
-- Então eu fugiria com você.
Glory o beijou. Eles ficaram nisso por muito tempo, até que Larry se afastou e a puxou pela mão, e os dois saíram andando pela floresta.
* * * * *
Sentada sobre um tronco de árvore caído, Glory observava Larry. O garoto estava de pé sobre um dos galhos mais altos de uma árvore – de um jeito que ela consideraria impossível – e segurava seu arco em posição, pronto para atirar em algo que ela não conseguia ver, e que parecia estar do outro lado do rio.
Antes do que ela esperava, a flecha saiu voando em disparada, atingindo algo. Ouviu-se o som de um corpo caindo no chão e um guincho de dor, e mais nada. Larry desceu depressa da árvore, com uma habilidade impressionante, e Glory se levantou, curiosa para ver o que ele capturara. Ele atravessou o rio, passando por cima de um tronco que ligava as duas margens, e sumiu em meio às árvores. Pouco depois voltou, arrastando um enorme cervo morto.
-- Nossa! – Glory batia palmas – Incrível, Larry!
-- Obrigado. – ele levou o cervo para o outro lado do rio e o colocou junto às outras caças: dois coelhos, três patos, duas aves de penugem muito clara e um esquilo – Acho que já temos o suficiente. Se guardarmos mais do que isso, irá estragar.
-- Como vamos levar tudo isso?
-- Vamos levar aos poucos. Você se importa de ficar aqui tomando conta enquanto eu levo o cervo?
-- Não, tudo bem.
-- Fique atenta para nenhum bicho vir mexer neles. Às vezes os pássaros vêm bicar os restos, ou algum gato mais atrevido tenta roubar um pedaço.
-- Pode deixar, se algum animal aparecer, eu jogo pedras nele.
-- Não precisa machucá-los, basta ameaçar se aproximar, e eles fogem. Eu já volto.
Ele se foi, levando a caça. Glory ficou andando ao redor, colhendo flores, mas sem deixar de vigiar os outros animais capturados.
Algum tempo depois, ela ouviu o som de alguém se aproximando, e se virou, esperando ver Larry. Mas não era o garoto, e sim Bono, quem vinha até ela.
-- Bono? O que faz aqui?
-- Estou andando um pouco. Adam disse que seria bom caminhar pela floresta, para ajudar meus músculos a se restabelecerem. E você, o que faz aqui?
-- Estou vigiando a caça, Larry foi levar um cervo que ele abateu e já volta para pegar o resto.
-- Hum. – ele se aproximou dela – Pegaram bastante coisa. Ele é um bom caçador.
-- É sim. E faz coisas incríveis também. Sabe fazer magias e ilusões, e conhece muitas coisas.
-- É mesmo? – ele se sentou em um tronco próximo a ela – E que coisas ele conhece?
-- Nossa, muitas... Ele me conta coisas sobre as pessoas que ele conheceu, os lugares onde ele passou... Outros costumes, outras crenças...
-- Ele fala sobre os rituais deles?
-- Fala, ele me contou sobre o ritual de inicialização dos magos, sobre como as mulheres se tornam bruxas, sobre o ritual da lua cheia...
-- O hierogamos?
-- É... Você conhece?
-- Sim. Já participei muitas vezes.
-- Sério? Mas cristãos são proibidos de participar!
-- Eu não sou muito amigo de cristãos. Sou católico por pura comodidade, mas me atraio pelas crenças da terra.
-- E como é o ritual? O Larry me explicou, mas ele nunca participou de um.
-- Imagino que não, ele é muito novo ainda. Mas é um ritual muito bonito. Você sai de lá renovado, com uma energia incrível. Eu fui o Deus principal na primeira vez em que participei.
-- Mas eu achei que eles preferiam os virgens para ser o Deus principal.
-- E eu era virgem, tinha treze anos. Digo, não tão virgem quanto Larry, mas as exigências para pessoas comuns são menores do que para os magos.
-- E quem foi a... A Deusa?
-- Foi uma bruxa, uma linda feiticeira de dezesseis anos.
-- E por que te escolheram como Deus?
-- Porque eu era uma pessoa importante para eles. Eles tinham esperança de que eu os ajudasse. E realmente ajudei, embora não tanto quanto teria gostado.
-- Mas com treze anos você era importante? Por quê?
-- É uma longa história. Envolve uma parte do meu passado que quase ninguém conhece.
-- E que parte é essa?
-- Eu queria muito poder te contar. Mas tenho medo de que seja um erro. Eu só posso contar isso para alguém em quem eu confie plenamente.
-- E você não confia em mim.
-- Como poderia? Você me traiu mais de uma vez. Me enganou várias vezes. E agora se recusa a agir como uma boa esposa, recusa-se a se deitar comigo, justo quando estou precisando tanto de cuidados. Sei que fui rude com você nos últimos dias, e peço desculpas por isso. Mas você tem que entender o que se passa comigo.
-- Mas eu não entendo! Eu salvei sua vida, tive uma sorte incrível por ter encontrado o Larry no meio da floresta, eles tiveram um trabalho enorme pra te curar... E você age como se eu tivesse feito alguma coisa ruim! Como eu posso entender?
-- Eu sei que é estranho, e é injusto – ele não olhava diretamente para Glory, e sim para as flores que ela carregava – mas eu culpava você por eu ter sobrevivido.
-- O que? Como assim? Você não queria ter sobrevivido?
-- Não. Quando entrei naquela luta, para te salvar daqueles homens... Eu estava me matando. Estava entregando minha vida pela sua. Naquela hora, eu queria morrer. Eu sempre amei a vida, mas às vezes me sinto tão cansado... E depois do que você fez, de ter me traído... Eu achava que você tinha tentado me matar. E isso me fez desejar realmente morrer.
-- Por quê?
-- Eu não sei, Glory. É difícil pra mim falar sobre sentimentos. Em todas as vezes que fiz isso, eu só me decepcionei. E de que adianta me declarar pra você, se sei que meus sentimentos não serão correspondidos?
Glory se sentou ao lado dele.
-- Você gosta de mim?
-- Faria alguma diferença?
-- Eu não sei.
-- Não quero fazer isso. Não quero me machucar mais.
-- Eu não quis matar você, eu já te disse isso.
-- Eu sei disso, mas naquele dia eu não sabia. De qualquer forma, quando acordei, depois que soube de tudo o que havia acontecido... Eu sentia que havia algo de errado comigo. Com meu corpo. Sabia que talvez nunca me recuperasse totalmente. E pra mim, se não puder ser tão bom quanto antes, era melhor ter morrido.
-- Não seja tolo. A morte nunca é a melhor escolha.
-- Não era o que você pensava quando Dave morreu.
Ela não encontrou nada para dizer. Pensando por aquele lado, não era difícil entender o que Bono estava sentindo, nem porque ele vinha agindo daquela forma.
-- Eu prometo que a partir de agora vou tentar tratar você melhor – ele disse – e vou tentar pensar de forma positiva. Ainda não sei se vou me recuperar ou não, mas não é uma sentença de morte. Mas eu precisava da sua ajuda.
-- Da minha ajuda? O que posso fazer?
-- Eu estava conversando com Adam, e ele me disse algo que... Bem, eu já sabia, porque já tinha feito isso antes. Mas nem tinha passado pela minha cabeça, e mesmo depois que ele falou, eu hesitei, porque sabia qual seria a sua resposta e não queria te pressionar. E pedi a ele para não tocar nesse assunto com você.
-- Que assunto?
-- Existe um jeito de me recuperar completamente. Mas eu preciso de você pra isso.
-- Diga, eu faço qualquer...
-- Não diga isso. - ele pôs a mão sobre os lábios dela – Nunca. Aliás, foi muito irresponsável ter prometido “qualquer coisa” ao Adam para me salvar, caso você não tivesse dinheiro.
-- Eu estava desesperada...
-- Do mesmo jeito que estava quando prometeu o mesmo para que eu salvasse Evans, e você sabe o que aconteceu. Foi muita sorte nós termos dinheiro suficiente para pagar o que devíamos. Você nem sabia quanto ele cobraria.
-- Desculpe. Vou tentar pensar antes de dizer alguma coisa.
-- É bom que pense. Eu não vou poder te proteger sempre.
-- Mas diga, o que eu tenho que fazer pra te ajudar?
-- Bem... Vou tentar te explicar, mas é um pouco difícil de entender. De acordo com as religiões da terra, todos os seres humanos possuem uma energia dentro de si. Essa energia é o que nos mantém vivos, e reflete o estado do corpo e da alma. Ela faz a ligação entre carne e espírito. Através dela, o corpo pode curar o espírito, e o espírito pode curar o corpo.
-- Interessante...
-- Quando uma pessoa está doente, ou fraca, ou com o corpo danificado de alguma forma... O que é o meu caso... Essa energia sente. Os magos podem ver isso. De acordo com Adam, é uma espécie de luz colorida, ou uma névoa luminosa, que fica dentro e ao redor da pessoa, e tem uma aparência muito específica. É muito claro quando ela está danificada. Ele disse que, no meu caso, ela está parecendo uma nuvem prestes a se desfazer. Se o corpo se curar, ela também se cura. Mas pode acontecer o contrário, também. É possível curar essa energia, e dessa forma o corpo será curado.
-- E como se cura a energia?
-- Só existe um jeito. Os homens e as mulheres têm energias opostas, e elas se atraem. Se complementam. Como o dia e a noite, ou a água e o fogo. Quando duas energias saudáveis e opostas se encontram, elas se completam, e há uma troca de energia incrível. É o que acontece durante o ritual do hierogamos. Uma alma fortalece a outra, e você se torna muito mais forte, fisicamente e mentalmente. Quando um dos dois está com essa energia fraca, a outra doa uma parte de si mesma, curando-o. Se for feito da forma correta, a pessoa é curada de forma praticamente instantânea. Eu fui salvo duas vezes da morte dessa forma. Mas também pode ser feito o contrário. Existem formas de se quebrar a energia de alguém dessa forma. Pode matar a pessoa imediatamente.
-- Nossa... Mas... Eu não entendi direito... Eu posso curar a sua energia com a minha, e assim o seu corpo também será curado? É isso?
-- Sim.
-- E como? O que eu tenho que fazer pra passar minha energia pra você?
-- Você sabe o que tem que fazer.
-- Me... Me deitar com você?
-- Isso. Foi por isso que anteontem pedi para que você fosse para o meu quarto. Mas é óbvio que você não ia aceitar, eu fiz de forma totalmente errada. Meu estado de espírito não permite que eu seja muito romântico. Mas eu também não quis insistir, porque se não for feito de forma completa pode piorar as coisas, e não quis te contar isso, para que você não se sentisse pressionada.
-- E por que está me contando isso agora?
-- Pra que você não ache que só estou querendo me aproveitar de você quando peço para que se deite comigo. Eu preciso disso. Mas você não deve fazer sem realmente querer, ou pode acabar me matando. Eu já estou muito fraco, não vou aguentar se algo der errado.
Bono pegou uma das flores que Glory trazia nas mãos, e ficou olhando para ela. Glory, por sua vez, olhava para algum lugar distante. Queria muito ajudar Bono. E, se fosse só para se deitar com ele, não faria muita diferença, já que ela já fizera aquilo por motivos bem menos nobres. Mas agora havia Larry. E ela gostava dele, e fizera promessas a ele. Não podia traí-lo.
-- Eu não posso. - ela disse, afinal – Eu queria muito te ajudar, Bono, mas não posso.
-- Eu não entendo. - ele olhou para ela – Você não sente nada por mim? Absolutamente nada? Nós tivemos dias maravilhosos, e mesmo que sua única intenção fosse conquistar minha confiança para atender aos seus propósitos, eu senti algo a mais de você. Senti você se entregando a mim, senti algum sentimento. Não sei se era só um carinho ou algo a mais, mas tenho certeza de que havia alguma coisa.
-- Talvez houvesse. Eu não sei, ainda me sinto muito confusa. Existe um lado seu que eu odeio, e outro lado que eu... Que eu gosto muito. Mas é difícil dizer exatamente o que eu sinto.
-- Mas existe algo em mim que você gosta, não é? E se é assim, por que você não pode se deitar comigo ao menos mais uma vez?
-- Porque... Eu não posso.
-- É por causa do Larry?
-- O que? Não... Claro que não...
-- Olhe para mim, Glory. Olhe nos meus olhos. - ele segurou o rosto dela e olhou dentro dos seus olhos, e Glory teve a impressão de que ele iria hipnotizá-la – Você passa o dia inteiro na floresta com ele. E tenho a impressão de que ele foi te fazer uma “visita” ontem à noite. Você e ele estão... Está acontecendo algo entre vocês dois?
-- Não! Claro que não! Ele só foi perguntar se eu estava bem, ontem... E nós ficamos brincando na floresta, e ele me conta coisas, mas nunca me faltou ao respeito.
-- Não seria “faltar ao respeito” se você permitisse.
-- Eu não permitiria.
-- Você sabe o que aconteceria se acontecesse alguma coisa entre vocês, não sabe? Sabe que eu o mataria.
-- Eu sei.
-- Você não faria ele correr esse risco, não é? Não teria algo com Larry, sabendo que isso seria uma sentença de morte para ele.
-- Não. - ela baixou a cabeça – Claro que não.
-- Você é minha esposa. Lembre-se disso. Nunca se esqueça.
-- Não sou sua esposa. Não somos casados.
-- Isso não faz diferença. Você é minha por direito. Além disso, estou pensando em me casar com você assim que sairmos daqui.
-- Que? Casar?
-- Acho que seria o melhor pra você, não haveria o risco de ser presa por viver ilegalmente com um homem. - ele se levantou – Vou dar a você o direito de escolher. Nós podemos nos casar, ou, caso não queira continuar comigo, eu poderei lhe vender.
-- O que!?
-- Eu arrumaria um bom marido pra você, um homem rico, de nome. Tenho certeza de que muitos gostariam de te comprar.
-- Eu não sou sua propriedade!
-- Sim, você é. E estou falando isso porque seria o melhor para você. Enfim, a escolha é sua.
-- Não vou permitir que você me venda.
-- Ótimo. Procuraremos o padre assim que eu estiver em condições de partir. Não teremos uma festa na igreja, mas ao menos nossa situação estará legalizada. - ele passou a mão nos cabelos dela – Vou voltar para a casa, me sinto cansado. Não fique andando sozinha pela floresta. Pode ser perigoso.
Ele se foi, e Glory permaneceu sentada sobre o tronco, tentando não começar a chorar.
* * * * *
-- Ele não pode fazer isso! É cruel, eu não vou permitir!
-- Sim, é cruel, mas sim, ele pode fazer isso. E você não pode impedí-lo.
-- Não é justo! - Larry se sentou na cama, inconformado – Não é justo.
-- Eu te disse para não se envolver com ela. Foi uma estupidez.
-- Por que disse a ele sobre eu e ela?
-- Porque seria muito pior quando ele descobrisse por conta própria. E eu já tinha te proibido de se envolver com ela. Você desobedeceu minha ordem.
-- Por que você não quer que eu me case com ela? Sei que gosta dela, e ela seria a garota perfeita para mim.
-- Você ainda não está pronto para viver com uma mulher.
-- Eu não precisava me deitar com ela agora. Podíamos ficar vivendo aqui, até que eu...
-- Seria uma tentação muito grande pra você. Além disso, é tarde demais. Já era tarde desde que você a conheceu. Ela nunca será sua.
-- Por quê?
-- Você saberá em breve. Muito em breve. - ele foi até a janela, e ficou olhando para fora – Uma nevasca se aproxima. Prepare a lareira para essa noite, e verifique se não há nenhuma abertura no depósito de lenha. Não vamos querer que aconteça o mesmo que naquela vez.
-- Sim, mestre. - ele se levantou, sem esconder sua raiva – Tudo como o senhor quiser.
-- Lawrence – ele se virou para o garoto – eu sei o que estou fazendo. Logo você entenderá meus atos, então não me julgue antes de saber o porquê de eu estar fazendo isso.
O rapaz ia dizer algo, mas acabou saindo em silêncio.
* * * * *
Glory estava deitada na cama, olhando o céu. Dessa vez, estava tudo escuro e nublado, e não se via nem a lua, nem as estrelas. Dessa vez, o chão lá fora estava branco com a neve. Dessa vez, ela se sentia imensamente infeliz.
Sem aviso ou batidas, a porta se abriu. Ela se sentou, esperando ver Larry, mas não foi o garoto que entrou. Foi Bono.
Ele entrou, fechou a porta e foi até a cama de Glory. Sentou-se ao lado dela e lhe estendeu uma xícara, dizendo apenas:
-- Beba.
-- O que é isso?
-- Um chá. É gostoso. Vai fazer você se sentir bem.
Um pouco surpresa por Bono ter ido até o quarto dela apenas para levar um chá, Glory bebeu. Era muito gostoso, ela nunca bebera nada parecido; e, conforme bebia, ela começou a sentir algo estranho e bom, um calor que vinha de algum lugar desconhecido.
-- Posso ficar aqui com você? - disse Bono, quando ela terminou de beber o chá – Me sinto tão sozinho.
-- Eu não vou dormir com você.
-- Eu sei. Só quero ficar perto de você.
-- Tá bom.
Ela não estava disposta a discutir: sentia-se tão bem... Bono tirou os sapatos e se deitou ao lado dela, na pequena cama.
-- Posso tirar a camisa?
-- Mas está frio...
-- Eu não sinto frio.
-- Você nunca pergunta se pode ou não tirar a roupa.
-- Mas estou perguntando agora. Não quero que se ofenda, nem que brigue comigo.
-- Está bem. Pode.
Ele tirou a camisa e abraçou Glory, fazendo com que ela se apoiasse em seu peito.
-- Me desculpe.
-- Hum?
-- Me desculpe pelo jeito que falei hoje de manhã. Minha intenção era fazer as pazes com você, e só consegui que ficasse com raiva de mim.
-- Tudo bem. Eu não estou mais com raiva.
-- Eu tenho muito medo de te perder, entende? E o único modo que conheço de ter o que quero é pela força. Mas sei que deve haver outros meios de te manter comigo.
-- Sendo gentil e me tratando bem seria um começo.
-- Eu sei. Vou fazer todo o possível. Eu...
Uma batida na porta o interrompeu. Glory sentiu sua estranha calma se dissolver; só podia ser Larry, e ela não queria que ele visse Bono ali, e não queria que Bono visse o garoto. Mas era tarde demais: Bono se levantou e foi até a porta, abrindo-a, e se deparando com Larry diante dela.
-- Sim? - ele disse, calmamente.
Larry dera um pulo para trás quando vira Bono, e agora tentava organizar os pensamentos.
-- O... O que você está fazendo aqui?
Bono olhou para ele como se estivesse surpreso, e então deu um breve riso.
-- Bem, estou no quarto com minha esposa. Acho que mais explicações não são necessárias.
Parecia que Larry ia falar mais, mas ele se calou. Sentia que ia começar a chorar a qualquer momento.
-- Certo.
-- Você queria alguma coisa?
-- Só... Só vim ver se ela estava bem.
-- Não se preocupe, estou cuidando dela. Se precisar de você, eu o chamo.
Larry apenas balançou a cabeça e se afastou, voltando para o quarto de Adam. Bono fechou a porta e voltou para a cama, onde Glory o esperava, novamente com um olhar triste.
-- Por que fez isso? Ele vai achar que nós estávamos...
-- Não importa o que ele pensa. E você é minha esposa, podíamos muito bem estar fazendo qualquer coisa. Não é da conta dele.
-- Não sou sua esposa de verdade.
-- Mas em breve será. Por que está tão preocupada com ele?
Glory baixou a cabeça. Não podia deixar Bono ainda mais desconfiado.
-- Não estou preocupada com ele. Só fico sem jeito por ele pensar...
Ela parou. De repente, a sensação de bem-estar que ela sentira ao tomar o chá voltou, mas mil vezes mais intensa, e acompanhada de uma onda de calor.
-- Glory? - ele tocou no rosto dela, preocupado – Você está bem?
-- Me sinto... Estranha... - o coração dela estava disparado – Bono...
-- O que você sente?
-- Eu não sei... Eu nunca...
Um pouco assustada, ela segurou a mão dele, e isso fez as sensações aumentarem ainda mais. Confusa, ela olhou para Bono; e nunca, em sua vida, ele parecera tão bonito e tão atraente. Antes que pudesse pensar no que estava fazendo, ela o agarrou e o beijou, desesperadamente.
-- O que está havendo? - ela disse, assustada, quando o soltou, mas logo voltou a beijá-lo – Bono...
-- Não tenha medo. - ele a fez subir em seu colo – Entregue-se.
-- Eu não entendo...
-- Não precisa entender. Apenas sinta.
Ele a beijou, e ela não tentou mais fugir.
* * * * *
-- Pela última vez: pare de chorar.
-- Me deixa.
-- Larry – Adam se ergueu na cama e acendeu a vela – eu não consigo dormir com você chorando desse jeito. Pare com isso.
-- Vou lá para fora, então!
-- Não seja tolo, iria congelar.
-- É melhor morrer de frio do que continuar vivendo!
-- Esqueça essa garota. Eu lhe avisei que ela nunca seria sua.
-- Ela disse que gostava de mim... Disse que ficaria comigo... Mas está lá, com ele...
-- Ele é marido dela.
-- Não, ele não é! Ele matou o homem que ela amava e a obrigou a viver com ele, e agora vai obrigá-la a se casar com ele, e tenho certeza de que a obrigou a aceitá-lo essa noite! Eu devia ir lá e...
-- E vê-lo na cama com a mulher que você ama?
Larry desabou àquelas palavras. Afundou a cabeça no travesseiro e chorou com ainda mais força.
-- Vão aparecer outras mulheres para você. Mulheres que serão só suas.
-- A única mulher que eu quero é a Glory.
-- Você ainda é muito novo, e é a primeira vez que se apaixona. Não pense que será a última.
-- Eu nunca amarei ninguém do jeito que a amo.
-- Talvez ame até mais.
-- Eu posso matá-lo. Posso fazer um feitiço e...
-- Faça isso, e eu cuidarei de castigá-lo pessoalmente. Não criei você para que se rendesse à magia negra.
-- Você nunca fez uma tolice por amor?
-- Muitas, e em todas me arrependi amargamente. Não vou deixar que cometa os mesmo erros que eu.
-- Eu a amo, Adam. A amo tanto.
-- Eu sei. - ele tocou os cabelos de Larry – Mas vai aprender a lidar com isso. Vai aprender que os sentimentos não podem guiar a nossa vida.
-- Não me toque assim.
-- Por quê?
-- Você viu o jeito que Bono olha para nós? Como se...
-- Bono é um narcisista arrogante que enxerga manchas negras até na mais branca das flores. Não se importe tanto com o que ele pensa.
-- E se ele disser algo para a Glory?
-- Ele não vai dizer. Eu já o avisei das consequências.
-- Ele não parece ser do tipo que se importa com as consequências.
-- Mas dessa vez é diferente. Não se preocupe, ele não vai falar nenhuma tolice para a sua amada. Embora eu ache que não vá fazer muita diferença. Ela não vai ficar com você de qualquer forma.
-- Eu sei. Mas não quero que ela pense mal de mim.
* * * * *
Glory estava olhando para a parede, sem expressão. Não pensava em nada. Não sentia nada. Sequer sabia se estava viva.
Nem mesmo quando Bono a abraçou ela se mexeu. Somente quando ele disse “bom dia” e beijou seus cabelos ela deu algum sinal de vida, dizendo:
-- O que aconteceu ontem?
-- Hum... - ele beijava o pescoço dela – Será que eu nasci de novo? Ou Deus apareceu aqui e conversou comigo?
-- O que você fez comigo?
Ele riu suavemente.
-- Você quer uma descrição detalhada ou um resumo?
-- Não estou falando disso. O que era aquele chá?
-- Oh, aquilo... Nada demais. Apenas algo para que você se sentisse bem. - ele a abraçou – Vem cá...
Glory se virou para ele, séria.
-- Você me enfeitiçou.
-- Não. Você me enfeitiçou. - ele roubou um beijo dela – Eu te amo.
Ela ficou olhando para ele, como se não tivesse entendido a última frase.
-- O... O que disse?
-- Eu te amo. Estou completamente apaixonado por você. Te daria mais mil poções do amor para ter outra noite como essa. Quero passar o resto da minha vida com você.
-- Foi isso o que me deu? Uma poção do amor?
-- Sim. Mas a poção do amor não faz nenhum mal, pelo contrário. Apenas faz com que você se sinta feliz, e queira partilhar essa felicidade com alguém.
-- Você não tinha esse direito.
-- Talvez não tivesse. Mas as pessoas fazem qualquer coisa por amor.
Por um momento, Glory pensou em dizer “eu não te amo”; mas no final desistiu. Não faria diferença, tudo o que ela conseguiria era estragar a alegria de Bono. E ele estava tão feliz, tão gentil – tão diferente de como estava antes. E, afinal, ela tinha que concordar com tudo o que ele dissera sobre aquela noite. Ela sentira a mesma coisa.
Bono se levantou antes dela. Apesar do frio e da neve que não parava de cair, sentia-se incrivelmente bem. Encontrou Adam sentado diante da lareira, e Larry preparando algo no forno.
-- Bom dia. - ele disse, sentando-se e começando a comer – Hum, isso está delicioso.
-- Foi Larry quem fez, ele é bom nessas coisas. - disse Adam, estendido no sofá – Como está sua esposa?
-- Muito bem. A deixei descansando mais um pouco. Ela se cansou muito ontem à noite.
Larry não se virou, mas começou a bater a mistura com mais força. Adam disse:
-- Ela não está com frio? Os quartos não são muito aquecidos, infelizmente.
-- Não, ela está bem. Não se preocupe.
Quando ele terminava de comer, Glory apareceu. Precisara reunir toda a sua coragem para aparecer diante de Larry. Mas o garoto não se virou para ela, nem retribuiu o seu “bom dia”.
-- Sente-se, querida. - disse Bono, pegando-a pela mão e a fazendo se sentar em um banco ao seu lado – Prove isso, está delicioso. Vou preparar leite quente para você.
-- Obrigada.
Ela comeu, e se deixou ser mimada por Bono. Naquele frio, era bom receber carinho. Mas queria muito falar a sós com Larry, e lhe agoniava saber que não poderia sair com ele para a floresta, por causa da neve.
Depois do almoço, Bono foi dormir um pouco. Glory aproveitou para ir até o depósito de lenha, que era uma casinha do lado de fora da casa. Era lá que Larry ficara o dia inteiro.
-- Larry? - ela disse, entrando.
-- Você não deve ficar a sós comigo. - ele disse, sem se voltar para ela, mexendo em uma pilha de lenha – Seu marido não vai gostar.
-- Larry, eu sinto muito... Ontem à noite, eu...
-- Por favor, não me faça lembrar de ontem a noite.
-- Ele me deu uma poção do amor.
Larry se virou para ela.
-- O que?
-- Foi o que ele me disse que era, hoje. Uma poção do amor. Ele apareceu no meu quarto com algo para eu beber, disse que era um chá, que me faria sentir bem. Depois que eu tomei, perdi completamente o controle. Parecia que eu estava possuída.
-- Eu sei como isso funciona. - ele parecia aturdido – Uma poção do amor... Ele está realmente usando todas as armas.
-- Como ele conseguiu isso?
-- Meu mestre deve ter dado pra ele.
-- O Adam? Por quê?
-- Ele não quer que a gente fique junto.
-- Por quê?
-- Eu não sei.
Os dois ficaram um tempo em silêncio. Glory se aproximou dele e disse:
-- Você ainda quer casar comigo?
-- Claro que quero.
-- Não muda nada. Eu ainda posso deixar ele ir embora, e ficar aqui com você.
-- Acha que ele vai permitir?
-- Não importa. Eu posso enfrentar ele.
-- Mas e até lá? Eu não vou aguentar te ver de novo nos braços dele. Você não imagina o quanto eu sofri ontem à noite.
-- Vou tomar cuidado para que isso não volte a acontecer. E ele deve ir embora logo. Ele queria se deitar comigo para se curar, e eu acho que funcionou.
-- Você vai mesmo ficar comigo?
-- Vou.
-- Então me beija.
Ela o beijou, e eles ficaram muito tempo ali, perdidos nos braços um do outro.
* * * * *
Quando Glory e Larry entraram na casa, Bono estava tendo uma animada conversa com Adam, mas os dois pararam de falar quando os viram entrar.
-- Onde você estava? - disse Bono.
-- Estava com Larry no depósito. Fui ver ele cortar a lenha, e depois ele ficou fazendo mágicas pra mim.
-- Eu estava ensinando alguns truques para ela. - disse o garoto, com um tom indiferente.
-- Você não devia sair com essa neve toda lá fora. - ele foi até ela e começou a tirar a neve de suas roupas – Olha só, está gelada. Você não devia ter deixado ela exposta ao frio, garoto.
-- Estávamos no depósito, lá é seco e protegido. Eu não a deixaria ficar em nenhum lugar úmido ou gelado.
-- Larry não é minha ama-seca, Bono, ele não tem que tomar conta de mim.
-- Venham comer alguma coisa. - disse Adam – Tem chá de erva-doce e bolo.
-- Hum, estou com fome... - ela se sentou na mesa, e Bono começou a preparar um lanche para ela – O que vocês estavam conversando?
-- Nada demais, querida. - disse Bono – Coma, você precisa beber algo quente para se aquecer.
Glory pegou a xícara, mas começou a se sentir tonta, e a colocou de volta na mesa. Murmurou:
-- Me sinto estranha...
-- O que você sente?
-- Eu não...
Antes de terminar de falar, Glory escorregou do banco e quase caiu no chão. Bono correu e a segurou, e ela desmaiou em seus braços.
-- Glory! Glory! - ele olhou para Adam, que correra para ajudar, junto de Larry – O que ela tem?
-- Calma, foi só um desmaio. Coloque-a na cama.
Ele a levou até a cama e a deitou. Larry se mantinha próximo, também preocupado, e disse:
-- Ela já tinha desmaiado antes, umas duas vezes.
-- Pode ser fraqueza. - disse Adam – Ou sensibilidade ao frio. Larry, prepare uma mistura para aquecê-la, e algo que a acorde.
Larry correu para a cozinha. Bono permaneceu ao lado de Glory, segurando sua mão, enquanto Adam verificava seu pulso e sua respiração.
-- Ela está doente?
-- É uma possibilidade.
-- Será algo grave?
-- Não creio.
-- Será por causa do frio?
-- Talvez, mas acho que não. Ela já tinha desmaiado antes, e não estava tão frio.
Logo Larry voltou com as poções que Adam pedira. Ele primeiro fez Glory beber a que a aqueceria, e depois, quando ela já estava quente, lhe deu a que a acordaria. Após alguns instantes, ela se mexeu e abriu os olhos, parecendo confusa.
-- O... O que... Onde...
-- Está tudo bem. - disse Adam – Você desmaiou, mas já está bem.
-- Estou enjoada...
-- Morda isso. - ele lhe entregou uma plantinha – Vai tirar seu enjôo.
Ela mordeu a planta, e aos poucos seu enjôo passou.
-- Eu estou doente?
-- Talvez. - ele se virou para Bono – Preciso examiná-la.
-- Examine-a.
-- Não com vocês aqui. Preciso ficar sozinho com ela. Ela vai ter que se despir, e será melhor se não tiver muita gente.
-- Se despir? De jeito nenhum! Não vou deixar você vê-la nua!
-- Por favor, Bono, acha que nunca fiz isso antes? Nesse momento eu sou um médico, e para descobrir o que ela tem precisarei fazer um exame. Não vai demorar, e duvido muito que ela deixaria eu me aproveitar dela sem fazer um escândalo.
Bono ainda hesitou; mas Glory parecia tão abatida que ele acabou concordando.
-- Está bem. Faça o exame. Mas não demore muito.
Ele e Larry saíram do quarto, deixando Adam sozinho com Glory. Após algum tempo, Adam saiu do quarto, dizendo:
-- Pode entrar.
-- E então? - Bono foi para junto de Glory, que estava sentada na cama – Descobriu o que ela tem?
-- Descobri.
-- E o que é? - disse Glory – É grave?
Adam ficou algum tempo olhando para eles, e então olhou brevemente para Larry. Por fim, suspirou e disse:
-- Acho que essa é a hora em que lhes dou os parabéns.
-- Parabéns?
-- Ela está grávida.
-- O que? - disse a menina, sem conseguir acreditar no que ouvira.
-- Grávida? - Bono se levantou de um salto – Você tem certeza?
-- Absoluta. E Glory devia ter desconfiado. Você não sangra há pelo menos um mês.
-- Eu... Eu estava preocupada com outras coisas, nem percebi...
-- Oh, Deus, grávida! - ele se sentou novamente ao lado de Glory e a abraçou, transbordando felicidade – Vamos ter um filho, Glory! Você vai me dar um filho! Obrigado, Deus...
Mas Glory estava longe de se sentir feliz; pelo contrário, sua vontade era chorar. Olhou para Larry, mas o garoto desviou o olhar e saiu do quarto. Adam disse:
-- Vou deixar vocês a sós. Acho que têm muito a conversar.
Ele saiu. Bono segurou o rosto de Glory e a beijou.
-- Glory, estou tão feliz... Você não imagina o quanto eu queria um filho. Assim que eu sair daqui nós vamos nos casar, e eu vou dedicar todo o meu tempo para cuidar de você e dessa criança. Vamos viajar para o reino do Norte, quero que ele nasça naquelas terras... E prometo que vou dar a vocês tudo de melhor, eu juro... Nós vamos ser uma família de verdade, e seremos felizes.
-- Claro. - ela sorriu levemente, tentando disfarçar sua tristeza – Seremos felizes.
* * * * *
-- Era isso? - disse Larry, quando sentiu Adam se aproximar – Era por isso que não queria que eu me envolvesse com ela?
-- Sim.
-- Quando você soube?
-- Logo que ela chegou. Há uma aura menor ao redor da aura dela, que a fica seguindo como uma sombra.
-- A alma do bebê.
-- Sim. Está tomando conta do corpo que será dela.
-- Por quê? - as lágrimas congelavam ao sair de seus olhos – Por que eu me apaixonei por ela? Desde o início ela era proibida para mim. Por que eu tive que me apaixonar?
-- Nós não escolhemos essas coisas.
-- Mas por que os deuses a trouxeram para cá? Por que eu a encontrei na floresta e a trouxe para cá?
-- Para que salvássemos Bono, para que Glory não ficasse sozinha no mundo, tendo que cuidar de um bebê. E talvez eles quisessem que você se apaixonasse por ela. Os deuses têm motivos que nós desconhecemos.
-- Eu não estou pronto para isso. - ele olhou para cima, para o céu branco – Parece que vou rasgar ao meio de tanta dor.
-- Você vai aprender a lidar com isso. Agora entre, vai congelar aqui fora.
-- Já estou congelado. Meu coração está coberto por gelo.
-- Não seja dramático, não combina com você. - ele abraçou Larry pelos ombros – Vamos, vamos entrar. Vou preparar um leite quente pra você.
Larry olhou para Adam.
-- Mestre...
-- Sim?
-- Será que um dia alguém vai me amar de novo?
-- Claro que vai. - Adam sorriu – Você é um garoto muito especial. Você irá se apaixonar, seu amor será correspondido, e vocês serão felizes juntos.
-- O senhor vai continuar comigo até lá?
-- Claro que sim.
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