terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #013] [U2] As Terras do Norte - Verdades


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 13
VERDADES
“I've been doing it wrong all of my life
This holy town has turned me over
A young man running when he didn't understand
That the wind from the Loch just get colder and colder
There was a badness that had its way
But love wasn't lost, love will have its day”
(U2 – North and South of the River)

     -- O que!? - disseram Artur, Glory, Hally e Dave, ao mesmo tempo. Bono deu um breve riso diante da perplexidade dos outros.
     -- Não posso acreditar em tal coisa. - disse Artur, olhando de Bono para o rei, e percebendo pela primeira vez a semelhança entre eles – Soube que seu filho morreu há anos atrás.
     -- Foi a notícia que eu mesmo dei, mas não era verdade. Ele desapareceu do palácio, mas eu sabia o motivo e sabia que ele estava vivo. Assim que chegaram as primeiras notícias sobre um cavaleiro chamado Bono, eu soube que era você, Paul. - ele olhava Bono com um misto de tristeza e reprovação – Mas nunca entendi como você se tornou quem é hoje.
     -- É minha natureza. - Bono falou, pela primeira vez se dirigindo ao rei – Mas isso deve vir do lado de minha mãe, assim como tudo de ruim que há em meu sangue.
     Hewson balançou a cabeça.
     -- Duvido muito que sua mãe ficaria orgulhosa por você ter se tornado um assassino.
     -- Mesmo? - ele riu – Não vou conseguir dormir por causa disso.
     -- Olhe para Glory, Paul. Olhe o que fez com ela. Está orgulhoso disso?
     -- Estou.
     A arrogância dele era agora ainda maior do que antes, se é que era possível. Hewson se afastou.
     -- Preciso conversar a sós com você, Artur.
     -- Imagino que sim. Guardas, levem os prisioneiros para as masmorras. Hally, acompanhe Glory até o quarto. Quanto aos outros, retirem-se. Terei uma audiência particular com Sua Majestade.
* * * * *

     -- Príncipe! - Glory se deixou cair sentada na cama – Meu Deus, Hally, ele é o príncipe!
     -- Eu não consigo acreditar nisso... - Hally estava tonta – Como pode? Por que um príncipe se tornaria um mercenário errante?
     -- Como posso saber? Definitivamente ele é louco! Deus do céu, eu passei esse tempo todo com o príncipe dos príncipes e não sabia! Eu estou carregando um filho dele!
     -- Então, o seu filho será o herdeiro do trono da Bretanha!
     -- Se for um menino, sim... Mesmo se for uma menina, será muito importante... Meu Deus. - ela pôs as mãos na cabeça – E eu contei pra ele meus sonhos mais idiotas sobre me casar com o príncipe dos príncipes... Como ele deve ter rido de mim! O príncipe encantado de quem eu falava era ele! E eu não sabia! E eu impressionada com as coisas que ele sabia, perguntando se os pais dele haviam trabalhado em algum palácio... Como fui burra! Ele não trabalhou em um palácio, ele nasceu em um! Ele é o homem mais poderoso da Bretanha! E eu andei o mundo todo ao lado dele!
     -- Como vai ser agora? Se o pai dele quiser fazer algo para reparar o mal que ele te fez?
     -- Tenho medo que essa reparação me cause ainda mais mal. Eu estou com medo, Hally, de repente é como se ele fosse alguém que eu nem conheço. Todo esse tempo não significa nada, porque eu estava com uma pessoa que não existia. Ele não é Bono, ele é Paul... Príncipe Paul Hewson, herdeiro do trono da Bretanha... Ele mesmo disse, quando eu perguntei como seria chamado o filho de rei supremo, ele respondeu na hora, “príncipe herdeiro da Bretanha”. É claro que ele sabia, ele é o príncipe herdeiro da Bretanha!
     -- Se a senhorita tiver sorte, talvez o pai dele faça vocês se casarem! E aí, você será a rainha de toda a Bretanha!
     -- Mas eu não quero! Esse era o meu sonho antes, mas agora a única coisa que eu quero é ficar com o Dave!
     -- Mas a senhorita mesma disse que amava os dois! Qual a diferença em se casar com um ou outro?
     -- Eu amo Bono, mas é com Dave que quero me casar. Além disso, eles não vão me casar com Bono. Vão me casar com o príncipe Paul, e esse é alguém que eu não conheço.
* * * * *

     Dave não conseguia deixar de olhar para Bono, que estava sentado em um canto da cela. Olhou tanto, e de tal forma, que o outro se irritou.
     -- O que foi!?
     -- Nada! – Dave se assustou, e olhou para o outro lado por alguns instantes, mas logo voltou a olhar para Bono – Então... Príncipe?
     -- E daí? Quer beijar minha mão?
     -- Não, obrigado. - ele ficou um tempo em silêncio – Por que não disse quem era antes?
     -- Porque eu torcia para ser executado antes que meu pai revelasse minha identidade.
     -- Por que...
     -- Não pense que vou começar a te contar qualquer coisa sobre mim.
     Um pouco envergonhado, Dave se calou. Mas, após alguns momentos, voltou a olhar para Bono, como se nunca o tivesse visto antes. Este se irritou de vez.
     -- Se quiser um autógrafo, posso lhe dar um, mas se quiser dormir comigo, vai ter que esperar um pouco. Eu não faço sexo a essa hora.
     -- Que pena.
     -- O que?
     -- Nada! - Dave se afastou – Você é o mesmo. Ser um príncipe não muda as coisas que fez.
     -- Que bom que sabe disso. Então, pare de me olhar como se quisesse sentar no meu colo.
     O outro virou o rosto, e nada disse.
* * * * *

     Eles estavam novamente na sala do trono. Bono, Dave e Glory, acompanhada por Hally. Dessa vez, não havia os súditos. Seria uma conversa particular com Artur e Hewson.
     Dave continuava com as correntes cheias de símbolos presas a seus braços e pernas, mas Bono estava solto, apenas escoltado por dois guardas – o que Glory achou imensamente injusto. Dave era totalmente inofensivo, ao contrário do outro. Ela sabia que, se Bono quisesse, poderia desarmar os guardas, matar todos ali e fugir sem deixar vestígios – e talvez levá-la com ele. O único capaz de detê-lo era David, mas Glory preferia morrer a vê-los lutar novamente.
     -- Eu e o rei Hewson conversamos muito – disse Artur – e chegamos a um acordo.
     -- Mas o sucesso desse acordo depende da resposta de Paul a uma proposta que lhe farei. - disse Hewson.
     -- Que proposta? - disse Bono, não parecendo muito interessado.
     -- Nós concordamos – continuou Hewson – em amenizar a pena contra os prisioneiros. Dave será condenado à prisão perpétua em regime escravo, ao invés de ser executado. Glory receberá de volta seu título de princesa, e será enviada para o convento nas Ilhas do Sul, onde terá seu filho. A criança será entregue ao pai, no caso você, Paul, e será criada em nosso reino. Glory viverá no convento para sempre. Você irá embora comigo para o nosso reino, onde retomará seu posto de príncipe e será preparado para me suceder.
     -- Essa é a proposta? - Bono deu uma gargalhada de desprezo – Enforquem-me. Eu jamais retornaria para aquele castelo, nem assumiria o título de príncipe, muito menos sob essas condições. Eu recuso, podem nos levar de volta para a cela.
     -- Sabe que, agora que sua identidade foi revelada, não pode ser castigado. Mas achei que se preocupasse com a mãe de seu filho, e talvez até com o rapaz que ela ama. Se você não aceitar, Evans será executado, e Glory será trancafiada após dar a luz. Quanto à criança, será eliminada de alguma forma. Você jamais a verá.
     -- Duvido muito que permita que algum mal aconteça a essa criança. O que você mais quer é um sucessor. Sei que vai dar um jeito de levá-lo para o palácio e prepará-lo para ser um príncipe. Quanto à Glory, acho que pra ela não fará nenhuma diferença ser presa em um convento ou em uma cela. E, quanto ao meu querido amigo Edge – ele olhou para Dave – ele já morreu uma vez, acho que não se importará em morrer de novo.
     Artur e Hewson trocaram um olhar.
     -- Eu imaginei que essa seria a sua resposta, mas tive a esperança de que ao menos uma vez na vida pensasse de forma racional. - ele suspirou – Tenho outra proposta a lhe fazer.
     -- Ora, mais uma? A idade te deixou flexível, “papai”.
     -- Cale-se antes que eu mude de idéia. Escute bem, Paul, porque não vou repetir, e quero que pense bem antes de responder. A proposta que tenho a fazer é a seguinte: você voltará comigo, para reassumir seu posto...
     -- Achei que tivesse deixado bem claro que isso estava fora de questão.
     -- Cale-se, eu não terminei. Você voltará para o nosso reino e reassumirá publicamente o seu posto de príncipe. Glory também terá de volta seu título de princesa. E vocês se casarão antes do fim da primavera.
     Bono abriu a boca, mas não disse nada. Glory não podia acreditar no que estava ouvindo.
     -- Vocês se casarão em nosso reino, em uma cerimônia publica. Isso reparará o mal que fez a ela e os danos à honra do reino dos Artures. Oficialmente, ela engravidará na lua-de-mel e a criança nascerá antes da hora, mas graças a Deus será forte e saudável. E, como manda a tradição, uma vez que eu já tenho mais de cinco décadas, quando seu filho nascer, eu te entregarei meu posto e você será coroado Rei da Bretanha. Deverá governar todas essas terras, e para isso eu lhe ajudarei, e Glory será nossa Rainha. Quanto a David, será libertado, mas não será aceito nesse reino. Você terá o poder de decidir que destino será dado a ele, contanto que não seja a morte.
     Quando as últimas palavras foram ditas, um silêncio palpável inundou o salão. Glory olhou para Dave, mas ele não conseguia olhar para ela.
     -- E então? - disse Hewson – Você aceita o acordo?
     -- Você quer que eu me torne rei – disse Bono, lentamente – mesmo sabendo de tudo o que fiz? Acha que serei um bom rei?
     -- Eu lhe prepararei enquanto aguardamos o nascimento da criança. Você sabe melhor do que ninguém que tem um grande poder de liderança, e todas as outras qualidades para ser um grande rei.  Além disso, eu e seus conselheiros impediremos que faça besteiras, como começar uma guerra só por diversão. Mas sei que você não tem esses ímpetos de loucura, embora seja tão egocêntrico e megalomaníaco. O que você me diz?
     Ele ainda demorou um pouco para responder. Olhou para Glory, que parecia apavorada e mantinha a cabeça baixa. Olhou para os cabelos que caíam pelos ombros dela, para o vestido de seda, tão delicado, cobrindo o corpo que ele sabia ainda mais delicado. Olhou para seu ventre, e embora ainda não estivesse evidente, ele sabia que ali estava seu filho, o filho que ele ali colocara, sangue de seu sangue. Seu filho, com a mulher que ele amava.
     -- Sim. - ele olhou para Hewson – Eu aceito.
     Glory deixou escapar um soluço, e Hally segurou sua mão. Dave finalmente olhou para ela, com lágrimas nos olhos; eles se olharam por longos segundos, e ele disse “eu te amo”, em palavras mudas.
     -- Eu sabia que você tomaria a decisão correta. - disse Hewson.
     -- Então, está feito. - disse Artur – Como combinado, Paul não mais ficará nas masmorras. Ele será tratado como um hóspede, assim como Sua Majestade Hewson. Os criados o levarão até seu quarto. Dave ficará em um quarto para criados, escoltado por guardas, até que seja decidido sobre seu destino.
     E eles foram levados, cada um para um lado, por caminhos que não haviam escolhido.
* * * * *

     Bateram na porta do quarto. Glory não se moveu, então Hally foi atender; mas, assim que ouviu uma conhecida voz dizer “olá”, a princesa se voltou.
     -- Christian! - ela se levantou e ele correu até ela, segurando suas mãos – Oh, Christian, que saudades!
     Ela o abraçou. Christian estava chorando de alegria.
     -- Oh, senhorita, eu senti tanto a sua falta...
     -- Eu também senti sua falta, meu irmãozinho... - ela passou a mão nos cabelos dele – Como você cresceu...
     E realmente ele crescera, mais até do que ela esperava. Estava quase um homem; se quisesse, em breve poderia se candidatar ao treinamento para cavaleiros. Mas ela achava que ele não o faria; era bom demais, incapaz de ferir alguém, muito menos de lutar em uma batalha.
     -- Eu trago um recado para a senhorita. - ele disse – O príncipe Paul, seu noivo, deseja vê-la em seu quarto, antes do anoitecer. Sua dama de companhia deve acompanhá-la, pois vocês não podem ficar sozinhos antes do casamento.
     Glory balançou a cabeça.
     -- Eu não vou vê-lo. Se ele quiser, que venha aqui.
     -- Mas senhorita, o noivo jamais deve entrar no quarto da noiva antes do casamento...
     -- Melhor ainda. Não o verei até o dia de nos casarmos.
     -- Princesa, ele é seu noivo. A senhorita devia estar feliz. Vai se casar com o homem mais importante de todos os reinos.
     -- Você sabe que não é isso o que eu quero, Christian. Sabe que eu amo o Dave.
     -- Sonhos não levam ninguém a nada, princesinha, eles só fazem você sofrer. É o que sir Richard e a senhorita Gillian vivem dizendo, e eles estão certos. Olha o que aconteceu quando a senhorita e sir Evans tentaram realizar seus sonhos.
     Ela baixou a cabeça. Hally tocou em seus ombros.
     -- Vá vê-lo, Glory. - ela disse – Não vai adiantar nada ficar fugindo dele. Em breve vocês estarão casados.
     -- Certo. Diga a ele que eu me arrumarei e irei vê-lo em breve.
     -- Sim, senhorita!
     Christian saiu correndo do quarto, feliz. Glory ficou algum tempo em silêncio, pensativa.
     -- Será que Christian gostaria de ir comigo para as terras do Norte? Eu posso levar alguns criados, se ele quiser vou pedir ao papai que me dê ele.
     -- Ele vai ficar muito feliz.
     -- Se quiser, posso levar você e seu marido também, Hally. Posso pedir para Bono aceitá-lo como cavaleiro.
     -- Oh, senhorita, está falando sério? Tornar Michaell cavaleiro imperial?
     -- Sim, e você seria minha dama de companhia. E, com sorte, posso conseguir um título para vocês.
     -- Ah, Glory, eu ficaria tão feliz! Vou falar com Michaell, sei que ele irá concordar! Ir para as terras do Norte, que sonho!
     -- Depois terei que falar com papai, porque sir Michaell é cavaleiro, mas acho que ele não irá se opor. Mas agora, vamos me arrumar, Hally. - ela se voltou para o grande espelho na parede oposta – Vou ver Bono, mas quero ir vê-lo como a princesa que sou. Quero que ele fique admirado, que me respeite.
     -- Ele vai ficar mais do que admirado, princesa. Você vai ficar digna de uma rainha! Vou chamar as criadas, nós vamos te deixar linda!
* * * * *

     Glory entrou no quarto de Bono, seguida por Hally, após ser anunciada por um criado. Estava linda como nunca, com um longo vestido verde que pertencera à sua mãe, e usando sua coroa – tanta falta sentira daquela coroa. Qualquer homem ficaria fascinado, e, quando Bono a viu, não foi diferente: ele ficou sem palavras.
     Mas ela também não sabia o que dizer.
     Bono estava completamente diferente. Não usava mais os trapos que fora obrigado a usar no cárcere. Também não usava as roupas negras de cavaleiro, nem sua capa, peça típica dos andarilhos. Agora, estava posto em vestes reais, roupas de príncipe, e em seus trajes as cores eram azuis – apenas o Grande Rei e a Suprema Família Real podiam usar essa cor, que era raríssima e muito difícil de conseguir. Era a primeira vez que Glory via roupas assim, na verdade, embora já tivesse ouvido falar, em histórias.
     Além das roupas, ele tinha o cabelo preso para trás, como convinha a um homem da nobreza. Sua postura sempre fora altiva, e Glory sempre interpretara isso como arrogância, mas agora via que era simples e real senso de superioridade: ele sabia quem era, embora ninguém mais o soubesse. Agora, isso se destacava em suas roupas reais. E ele também usava uma coroa – muito mais rica do que a de Glory, como devia ser.
     -- Príncipe... - ela murmurou, encantada. Por alguns segundos, esqueceu completamente toda sua história com Bono, e agora ele era um personagem saído de alguma história antiga.
     -- Que bom que veio, Glory. - até o jeito de falar dele parecia diferente, mais calmo, suave – Eu preciso muito lhe falar.
     -- Sim, imagino. - ela voltou à realidade – Hally, você... Você não quer ir pegar um ar na sacada?
     -- Mas nós ficamos pegando ar o dia todo, princesinha...
     -- Hally. - ela lhe lançou um olhar significativo.
     -- Oh. Sim, claro. - ela foi em direção à sacada, mas parou – Mas... Senhorita...
     -- Não se preocupe, não tem problema.
     -- Está bem. Mas qualquer coisa – ela olhou para Bono, e então para Glory – grite.
     -- Pode deixar.
     Hally saiu, fechando as grandes portas que separavam a sacada do quarto. Glory se viu sozinha com Bono, e começou a se sentir um pouco insegura. Uma voz em sua cabeça não parava de repetir “você está no quarto do príncipe dos príncipes!”, mas ela mandou a voz se calar.
     -- O que você quer de mim?
     -- Antes de tudo – ele segurou a mão dela e a beijou – você está linda. Nunca a vi tão bonita, Glory. Você é a mulher mais bonita que Deus já pôs sobre a Terra.
     -- Obrigada. - ela estava vermelha – Você também está muito... Diferente.
     -- Por favor – ele olhava nos olhos dela – não fique intimidada por essas roupas ou pelo meu título, muito menos por essa ridícula coroa. Não estaria usando nada disso se não tivesse sido obrigado. Sou o mesmo Bono de antes, seja isso bom ou ruim.
     -- Você não é Bono. Você é Paul. Príncipe Paul Hewson.
     -- Não. Paul é só um nome, não é o que sou. Eu sou Bono, o guerreiro, o mercenário errante, o sedutor de mulheres indefesas e das nem tão indefesas assim. E, a partir de hoje – ele se ajoelhou – eu serei só seu. - ele encostou a mão de Glory em seu rosto e a beijou de novo – Sei que isso não é necessário, mas tenho que fazer para que sinta que é certo. Princesa Glory Artur, do reino dos Artures do Noroeste, Vossa Alteza aceita se casar comigo e se tornar a Grã-Rainha da Bretanha?
     Glory estava simplesmente fascinada. E se odiava por isso.
     -- O que importa minha resposta? Se eu disser “não”, não fará nenhuma diferença.
     -- Para mim, fará. Sua resposta vai decidir o destino do nosso casamento. Por favor, responda, e responda sinceramente. A senhorita me aceita como seu marido?
     Ela pensou um pouco; mas não havia, afinal, outra resposta possível.
     -- Sim.
     Ele sorriu e beijou a mão dela, pela terceira vez. O acordo estava selado.
     -- Que Deus nos ilumine e abençoe nossa união. - ele se levantou – Eu farei de tudo para que você seja feliz ao meu lado.
     -- O que vai fazer com Dave? - ela não conseguiu segurar a pergunta – O destino dele está nas suas mãos.
     Ao contrário do que ela imaginara, ele não se zangou.
     -- Não se preocupe com isso agora. Não poderia matá-lo mesmo que quisesse, e não pretendo fazer mal a ele. A última coisa que quero é que você me odeie de novo. Mas agora sente-se, minha querida. Eu tenho muita coisa para te contar.
     -- Tem, sim. - eles se sentaram na enorme cama que fora dada a Bono – Essa história toda parece loucura. E, ao mesmo tempo, tudo se encaixa perfeitamente.
     -- Imagino que esteja confusa. Mas vou lhe contar tudo, agora. Tudo sobre mim. Você será minha esposa muito em breve, é seu direito saber quem é seu marido.
     -- Sim, é.
     -- Pois bem. - ele pensou um pouco, tentando se decidir por onde começar – Meu nome verdadeiro é Paul Hewson. Eu nasci há vinte e sete anos, nas terras do Norte, no reino dos Hewson, senhores supremos da Bretanha. Mas eu não nasci no palácio. Nasci em uma casa simples, na vila dos camponeses, em uma noite chuvosa de primavera. Quando minha mãe me deu à luz, havia apenas ela e meu irmão na casa. Mais ninguém.
     -- Como assim? Sua mãe não era a rainha?
     -- Não. A rainha, esposa de meu pai, sequer sabia da minha existência. Minha mãe era uma camponesa, por quem meu pai se encantara. Ele a engravidou um mês depois que o primeiro marido dela morreu. A rainha, sua esposa, não podia ter filhos. A camponesa, porém, lhe deu um filho. Um filho homem, o herdeiro que ele não só queria, como devia ter. Então, alguns dias depois, ele mesmo contou à rainha, e ela decidiu que adotaria a criança. No caso, eu. E ela criou o menino como seu filho, e ele cresceu sem saber sua verdadeira origem. Para ele, sua mãe de sangue não passava de sua ama-de-leite, e a rainha, sim, era sua mãe. E ele cresceu no palácio, cercado por tudo o que cerca um príncipe. Você conhece essas coisas.
     -- Sim, conheço. Mas então, você não é filho legítimo... Por isso que disse uma vez que não era nada, que era só um filho bastardo.
     -- É o que eu teria sido, se a rainha não me assumisse como seu filho legítimo. Eu cresci como um príncipe, o Príncipe Herdeiro da Bretanha. Tinha o mundo aos meus pés. E isso, é claro, tornava a minha personalidade, que já era difícil, simplesmente insuportável. Você me acha arrogante hoje porque não me conheceu naquela época. Mesmo criança eu era cruel, humilhava os criados, torturava os prisioneiros. Meu irmão de sangue, Norman, havia se tornado cavaleiro, e meu pai o elegera meu mestre de espada. Foi com ele que aprendi a lutar, ele era um grande guerreiro, mas logo eu o superei. Embora no início eu parecesse não ter grandes dons, assim que percebi o que podia fazer com uma espada eu me dediquei ao máximo a isso. Era no que eu era realmente bom, na verdade a única coisa em que eu era realmente bom. Aos doze anos eu já era um cavaleiro, já batalhava ao lado de meu pai e de meu irmão de sangue. Lembro da primeira pessoa que matei, da sensação ao mesmo tempo apavorante e excitante. Eu não tinha dúvidas de que tinha nascido para a guerra. Mas ao invés de se orgulhar de mim, meu pai sempre me tratava como se faltasse algo, como se eu estivesse decepcionando ele.
     -- Mas e a sua mãe de verdade? Você nunca mais viu ela?
     -- A via todo dia, ela era empregada do palácio e tinha sido minha ama de leite. Também era amante do meu pai, mas disso eu não sabia, muito menos a rainha. Meu pai jurava que o meu nascimento tinha sido o tipo de acidente que jamais aconteceria de novo. Realmente não aconteceu, mas imagino que tenha sido por pura sorte. Enfim, eu cresci como um príncipe normal até os treze anos. Um dia, eu estava andando a cavalo com meu irmão e mentor. Eu ainda não sabia que tínhamos algum laço de sangue. Então, um criado passou na nossa frente, e eu, como era meu costume, comecei a tratá-lo da pior maneira possível. O ofendi, bati nele com o chicote, e ria às gargalhadas a cada vez que ele implorava para que eu parasse. Nessa hora chegou a filha dele e pediu para que eu parasse, e eu disse que pararia de maltratar o homem, mas a obriguei a ir comigo até a floresta, a mandei se despir e se deitar. Nessa hora Norman interveio, nós começamos a discutir, aquilo virou uma luta corporal. A menina e o homem fugiram, e eu e meu irmão continuamos lutando, até que peguei minha espada e com certeza o teria matado, mas na hora ele disse “vai matar seu próprio irmão?”, e me contou tudo ali, aos gritos, jogando na minha cara quem eu era de verdade, dizendo que eu não era superior a nenhum dos criados que eu tanto humilhava. Eu não acreditei, saí correndo, fiquei desesperado. Contei tudo a meu pai, pedindo para que ele prendesse meu irmão por ter me dito aquelas mentiras, mas meu pai acabou confessando que não eram mentiras, eram a verdade. Minha verdadeira mãe era a empregada e ama-de-leite do palácio, o cavaleiro e meu mentor de espada era meu próprio irmão.
     -- Deve ter sido chocante pra você descobrir isso.
     -- Foi. Vou te poupar dos detalhes sobre a minha crise existencial e meus ímpetos suicidas. Eu acabei desenvolvendo uma ligação muito forte com minha verdadeira mãe, muito maior do que a que eu tinha com a rainha, que afinal me criara. Mas ninguém, além de meu pai, sabia que eu tinha consciência da verdade. Eu passei a conviver com minha verdadeira família, às escondidas, e isso aos poucos foi me tornando muito mais compreensivo e humilde. Como eu já disse, em comparação ao que era antes, hoje sou uma pessoa infinitamente gentil e bondosa. E a vida com minha mãe foi uma coisa maravilhosa. Embora tenha durado pouco tempo, ela me fez saber e viver coisas que eu nunca poderia ter vivido de outra forma.
     -- Só que aí ela morreu, né? Eu lembro de quando você me contou.
     -- É. Um dia, quando eu tinha catorze anos, estava fazendo muito frio e a lenha na casa dela havia acabado. Meu irmão estava em batalha, a serviço do rei. Eu tinha ido visitá-la, e fomos juntos ao bosque buscar mais lenha. Nisso, apareceu um grupo de homens, eram uns quinze, e disseram que nós devíamos entregar tudo o que tínhamos. Eu estava sem minha espada, estava levando apenas o machado e uma adaga. Naquela época, apesar de ser já um grande guerreiro, eu ainda não tinha chego ao nível em que estou hoje. Comecei a lutar, mas eles eram muitos, eu estava em desvantagem. E eles não estavam interessados em mim, eles queriam minha mãe. Eu tentei defendê-la, mas um deles a atingiu com uma flecha envenenada, eu não pude fazer nada para impedir. Depois eles fugiram. Minha mãe morreu ali, nos meus braços.
     Bono estava muito abalado por aquela lembrança. Glory tocou em seu braço, solidária. Sabia o que era perder a mãe.
     -- E você não conseguiu pegar os homens que mataram sua mãe?
     -- Aí é que vem a pior parte. - Bono deu um sorriso triste – Eu contei a meu pai o que tinha acontecido, disse que mandaria cavaleiros atrás deles, que os perseguiria até o inferno. Meu pai ficou visivelmente abalado, mas se recusou a me ajudar e não permitiu que eu vingasse minha mãe.
     -- Por quê?
     -- No começo eu não sabia, mas depois eu descobri. Aquilo que aconteceu não foi um assalto, a morte da minha mãe não foi um acidente. A rainha tinha descoberto que eu sabia sobre minha verdadeira origem, e também soubera que minha mãe e meu pai ainda eram amantes. Ela mandou aqueles homens matarem minha mãe, armou uma emboscada para ela. Escolheu o dia em que meu irmão não estaria, sabia que eu sozinho não daria conta de lutar com tantos guerreiros e defender minha mãe.
     -- Que horror... Mas como você descobriu isso?
     -- Eu investiguei, consegui capturar um dos homens, ele confessou tudo. Eu fiquei chocado quando descobri. Embora nunca tivéssemos tido uma relação ótima, a rainha era oficialmente minha mãe, e eu a tinha visto assim desde que nasci. Minha mãe de criação matara minha mãe biológica, e isso me deixou completamente louco, era demais para a cabeça de um adolescente. Eu tinha dezesseis anos nessa época e estava às vésperas de me casar com a duquesa Alison, minha querida Ali, minha doce, meiga garotinha... - novamente, aquelas lembranças pareciam o abalar profundamente – Faltavam apenas algumas semanas para o nosso casamento, estávamos tão apaixonados, e em meus ímpetos adolescentes eu consegui convencê-la a fazer o que só devia fazer depois do nosso casamento. Bastariam mais alguns dias, mas eu não conseguia mais esperar... E ela, pobrezinha, confiava plenamente em mim, afinal eu era seu noivo, seu amor de infância. Dois dias depois de termos consumado nosso amor, eu descobri a verdade sobre a morte de minha mãe. Passei dias atormentado, até decidir o que fazer. Eu tinha que matá-la, tinha que matar a rainha. E foi o que fiz, usando um método que nunca foi meu. Eu envenenei sua bebida. Ela não desconfiou de nada, e na manhã seguinte foi encontrada sem vida em seu quarto. Aquilo me destroçou, pois agora minhas duas mães estavam mortas, e uma delas havia sido morta por mim... E então descobri que meu pai afinal sabia desde o início. Ele soubera que a rainha estava planejando matar minha mãe, e não fez nada para impedir, nem nada para castigá-la depois do que aconteceu. E por quê? - ele balançou a cabeça – Porque achava que aquele contato com camponeses não faria bem a um príncipe, e talvez a eliminação de minha mãe pudesse me tornar um herdeiro melhor. Quando eu soube disso eu tentei matá-lo, lutei com ele. E ele me disse que só tinha feito o melhor para mim, porque eu tinha muitos defeitos e com certeza todos eles vinham do meu sangue plebeu, do lado de minha mãe. Aquilo foi a gota d'água para mim. Ao invés de matá-lo, eu decidi abandonar aquele reino para sempre, me tornar o guerreiro mais forte que já existiu, e voltar um dia para destruir tudo o que meu pai havia construído. Comuniquei minha decisão à Ali e disse que nós dois fugiríamos juntos, mas ela se recusou. Disse que era loucura abandonar a vida no castelo para sair vagando pelo mundo. Nós dois discutimos, e eu deixei aquele reino com a alma totalmente despedaçada. Tinha perdido minha mãe verdadeira, minha mãe de criação, tinha rompido com meu pai, e nunca mais veria minha noiva nem meu irmão.
     -- Que triste... Mas eu acho que também fugiria se descobrisse as coisas que você descobriu.
     -- Qualquer um se revoltaria naquela situação. Enfim, minha vida de lá para cá tem sido isso que você já conhece. Me tornei realmente o melhor guerreiro. Mas agora estou sendo obrigado a voltar para o reino de meu pai e me tornar príncipe.
     -- Mas não era esse seu objetivo? Voltar para destruir tudo o que seu pai tinha construído?
     -- Era, mas não é mais. - ele se levantou, foi até o grande espelho que havia em uma das paredes do quarto, ficou se olhando longamente – Agora está tudo mudado. Eu vou ter um filho, uma esposa. E quero que vocês vivam a vida que merecem, como a rainha e o príncipe de todas as terras do mundo conhecido.
     -- E não vai se vingar do seu pai?
     -- Vou me vingar de outra forma. - ele se voltou novamente para ela – Vou ser o rei de seu reino, e vou consertar todos os erros que ele cometeu. Não vou deixar que meu filho cresça como eu cresci. Já derramei sangue demais no mundo, e quero agora fazer algo de bom.
     Ela se aproximou dele.
     -- O que vai fazer comigo?
     -- Nós vamos nos casar, como deve ser, e você vai morar comigo no meu castelo.
     -- E nosso bebê?
     -- Vai crescer como um príncipe deve crescer, mas não como eu cresci.
     -- E David?
     Ele não respondeu dessa vez. Voltou a se olhar no espelho, e Glory insistiu:
     -- Você sabe que eu não quero casar com você, e só estou fazendo isso porque não tenho outra escolha. Sabe que amo David.
     -- Eu sei. Mas espero que possamos nos dar bem em nosso casamento. Afinal, como marido, eu terei meus direitos, e pela lei posso usar a força para ter você como deve ser.
     -- Não acho que vá fazer muita diferença. Estou acostumada a isso. Você sempre usava a força para ter o que queria.
     -- Não estou dizendo que vou fazer isso, só estou dizendo que posso. Eu te amo, Glory, não quero machucar você nem te fazer nenhum mal.
     -- Você não respondeu o que será feito de David.
     -- Eu ainda não me decidi. Mas não farei mal a ele.
     -- Promete?
     -- Sim.

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