terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #012] [U2] As Terras do Norte - Castigos


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 12
CASTIGOS
“Lookin' for to save my, save my soul
Lookin' in the places where no flowers grow”
(U2 - MoFo)

     Bono e Edge estavam ajoelhados no chão, e tinham as mãos e os pés presos por grossas correntes de ferro. Glory também estava ajoelhada e presa, mas apenas pelas mãos, e por uma corrente mais fina. Um cavaleiro entrou na sala do trono e anunciou:
     -- Sua majestade, o Rei Domingues.
     Todos fizeram uma reverência quando o rei entrou, imponente. Ele sequer olhou para os prisioneiros; ao invés, seguiu até seu trono e se sentou. Pegou um pergaminho e o leu em voz alta:
     -- Está aberta a sessão de julgamento. Os prisioneiros estão sendo acusados de duelo em terras do reino, uso inapropriado de magia, bruxaria, uso de forças demoníacas, e de pôr em risco esse reino e seus habitantes. - ele baixou o pergaminho e olhou para os três – Vocês, digam seus nomes.
     -- The Edge. – disse Dave.
     -- Bono.
     Eles esperaram Glory dizer algo, mas ela continuou em silêncio. O rei ficou irritado com isso.
     -- Você, garota, não ouviu? Diga seu nome!
     -- Meu nome – ela ergueu a cabeça – É Princesa Glory Artur, filha do Rei Joshua Artur das Terras ao Noroeste da Bretanha.
     Houve um burburinho que percorreu todo o salão. Por alguns instantes, o rei ficou apenas olhando atentamente para Glory.
     -- Sim – ele balançou – sim, você se parece com a princesinha. Eu a conheci quando pequena.
     -- Me conheceu?
     -- Sim, e à sua mãe. Então, esses são os homens que seqüestraram a princesa. Guardas, soltem a menina e a levem para um dos quartos de hóspedes. Vou mandar um mensageiro até seu pai, e ele virá lhe buscar. Os dois prisioneiros ficarão nas masmorras e esperarão até a chegada do rei Joshua Artur. Poderia julgá-los pelas minhas leis, mas isso provavelmente seria uma ofensa ao meu velho amigo, uma vez que ele deve ter muito mais sede de vingança do que eu.
     -- Majestade – disse Glory – sei que esses dois cometeram crimes, mas eles não me seqüestraram. Queria pedir que eles não ficassem presos nas masmorras. Peço que lhes dê um quarto comum, como os de empregados, e que os mantenha sob vigilância, mas que eles não sejam maltratados nem tomados por criminosos.
     -- Não sei se posso atender ao seu pedido, princesa.
     -- Mas a princesa está certa. - disse uma voz atrás deles, e quando Glory se virou, viu uma mulher, que com certeza era nobre, indo até eles – Esses três estão envolvidos em algo ligado a um rei de outras terras, que tanto pode puní-los quanto recompensá-los. Se os tratar mal, poderá estar ofendendo ao rei Artur.
     Glory olhou curiosa para aquela mulher, que aparecia do nada e a defendia. O rei Domingues disse:
     -- Ora, duquesa Alison, sempre achei que os assuntos da corte não lhe interessassem.
     -- Mas nesse caso interessam, majestade. Trata-se de uma situação rara.
     -- Você está certa. Vou mandar os prisioneiros para quartos comuns, e a princesa para um quarto de hóspedes.
* * * * *

     Já anoitecera. Dave estava deitado em sua cama, olhando para o teto. O quarto era muito simples e a cama era dura, mas era melhor do que os lugares onde ele tinha dormido nos últimos dias, e infinitamente melhor do que as masmorras.
     De repente, ele ouviu um barulho de passos que se aproximavam pelo corredor. Foi até a porta, sem fazer barulho, e a abriu. Sabia que dos dois lados havia guardas, mas o corredor estava vazio. Então, ele percebeu que uma mulher, com um vestido escuro, se afastava. Ficou olhando, e viu quando ela bateu no quarto de Bono, do outro lado do corredor. Quando ela se virou para olhar para os lados, Edge reconheceu a mulher que os ajudara, Duquesa Alison ou algo parecido.
     Bono abriu a porta, e não pareceu surpreso quando a viu. Sem uma palavra, ela entrou, e ele fechou a porta. Edge ficou olhando por alguns segundos, e então fechou sua porta e correu para a janela. Olhou para cima, para a sacada do quarto de Glory.
     -- Glory! - ele chamou, sem gritar – Glory!
     Logo, Glory apareceu.
     -- Dave?
     -- Aqui embaixo! - ela o viu, e sorriu para ele – Como você está?
     -- Estou bem. E você?
     -- Melhor impossível. Escute, acabei de ver algo muito estranho.
     -- O que?
     -- Aquela mulher que nos ajudou, Duquesa Alison... Ela acabou de entrar no quarto do Bono.
     -- Que!? Como assim?
     -- Ela bateu, ele abriu a porta e ela entrou, como se estivessem combinados. Acho que já se conheciam.
     -- Mas que contato ele poderia ter com uma mulher da nobreza?
     -- Não tenho a menor idéia. Mas isso é muito estranho.
* * * * *

     -- O que está fazendo aqui? Não sabia que tinha ligações com os Domingues.
     -- Tenho já faz quase dois anos. Sou esposa do Duque Domingues, sobrinho do rei.
     -- Esposa? – Bono se deixou cair na cama – Você se casou?
     -- Devia ficar feliz por mim. Eu tive muita sorte. Nenhum homem aceitaria uma mulher desonrada, mesmo sendo uma duquesa.
     -- Oh, Ali... - ele se levantou e a abraçou – Meu Deus, como eu senti sua falta...
     -- Sentiu minha falta? Como pode dizer isso? - ela se afastou – Foi você quem foi embora, Paul, você que quis largar tudo e desaparecer! Você simplesmente me abandonou, depois de... Depois de tudo.
     -- Você sabe que não foi assim! Eu tinha um objetivo, eu fui obrigado a fugir para poder fazer o que era certo.
     -- E o que aconteceu com seus malditos objetivos? Olhe pra você hoje. Não passa de um bandido que se vangloria do seu poder de matar. Quando ouvi falar sobre o terrível Bono, o cavaleiro das trevas que era invencível, eu sabia que era você, mas não queria acreditar. Dizia pra mim mesma que você não era um assassino nem um mercenário, que você era... Bom. - apesar do tom duro com que ela falava, havia lágrimas em seus olhos – Mas eu me enganei, não é? Você não é mais o mesmo, desde que foi embora. O Paul que eu conheci não existe mais, está morto.
     -- Eu tive que mudar pra sobreviver. E hoje eu sou alguém, conquistei minha fama por meus próprios méritos, e não pelo nome da minha família.
     -- E você se orgulha dessa sua... “Fama”? De ser um assassino conhecido em todo o mundo?
     -- Não sou só um assassino, sou um guerreiro! Um guerreiro conhecido e respeitado por tudo e por todos. Tive experiências únicas, vi coisas que você nem acreditaria. E estava tão sozinho, Ali – ele voltou a abraçá-la – senti tanto sua falta. Eu nunca deixei de te amar, nunca.
     -- Não minta. Sei que a última coisa que esteve foi sozinho. Sua fama de conquistador de mulheres é tão grande quanto a fama de mercenário. Lembro que alguém se referiu a você certa vez como aquele que trazia a perdição para a honra de milhares de famílias na Bretanha.
     -- Só aventuras, querida, nada mais do que aventuras. Era você quem eu queria nos meus braços.
     -- Mas eu só não estava nos seus braços porque você me abandonou! Eu era sua noiva, Paul, nós íamos nos casar! Eu era sua prometida desde que nascemos! Eu me deitei com você! Aceitei me deitar com você, porque faltava tão pouco para o nosso casamento, achei que já não fizesse tanta diferença, e você sempre insistiu tanto! Mas quanto tempo depois você sumiu? Uma semana, duas? E nunca mais deu notícias!
     -- Você podia ter ido comigo, mas você não quis!
     -- É claro que não quis, acha que eu ia tomar parte nessa loucura? Largar minha família, o título de duquesa, a honra, o palácio, largar tudo para trás e viver com você de cidade em cidade, como dois ciganos? Eu não sou louca como você!
     -- Então, não reclame por eu ter te abandonado! Você sabe que eu não podia continuar no palácio, não depois do que eu descobri sobre a morte da minha mãe! Sabe que eu não ia tolerar o domínio de meu pai!
     -- Você não passa de um tolo arrogante e egoísta! Eu não sei como posso ter me apaixonado por você. Dou graças a Deus por ter encontrado um bom marido, que aceitou me desposar mesmo eu já tendo sido desonrada.
     -- Duvido que esse tal duque seja tão bom marido para você quanto eu poderia ter sido.
     -- Talvez não tanto quanto Paul poderia ter sido. Mas Paul está morto. Você, Bono, eu não quero.
     Ela se dirigiu para a porta, mas parou a meio caminho.
     -- Qual é a verdadeira história sobre a princesa Glory? Você a sequestrou, ou foi o outro rapaz?
     Bono contou, resumidamente, sobre ele, Dave e Glory.
     -- Então, o filho que ela espera é seu?
     -- Sim.
     -- Sabe que vai ser condenado à morte, não sabe?
     -- Sim. Mas Dave também será, e pelo menos saberei que ela não ficará com ele.
     -- Você acha que a ama, não é?
     -- Eu a amo. Tanto quanto amei você.
     -- Não, você não a ama. Você está apaixonado por ela, mas é um sentimento de posse, violento. Quem ama quer o bem da outra pessoa. Você é incapaz de amar de verdade.
     -- Você sabe que não é verdade. Sabe que eu te amei.
     -- Não. Paul me amou. Você, Bono, não ama ninguém, nem nunca será amado. Vai morrer sozinho, assim como viveu sozinho. Não vai sequer conhecer seu próprio filho.
     Alison saiu, fechando a porta atrás de si. Bono ficou parado, sozinho na escuridão.
* * * * *

     Passaram-se dois meses.
     Uma comitiva de cavaleiros do pai de Glory fora até o reino de Domingues, e haviam levado Glory, Bono e Edge para o castelo de Artur. Somente lá, Glory reencontrou seu pai, que já sabia de toda a história, contada pela própria Glory em uma carta que lhe escrevera.
     -- Papai... - ela disse, quando foi levada para diante do trono em que seu pai recebia os súditos.
     -- Olá, Glory. E você, Evans, há quanto tempo. - o tom dele não demonstrava nenhuma emoção – E este é o famoso cavaleiro Bono.
     Bono olhava para Artur com um ar arrogante e insolente.
     -- Vocês três – disse Artur – Serão julgados e condenados como criminosos comuns. Inclusive você, Glory.
     -- O que? - disseram Bono e Edge, surpresos, e então Edge – Vai tratar a princesa como uma criminosa comum?
     -- Ela não é mais princesa. Eu a deserdei no momento em que fugiu do palácio. Acha mesmo que eu iria recebê-la de volta, Glory? Desonrada, grávida? Pior ainda, se deitou com dois homens, como se fosse uma meretriz! Diz amar um enquanto espera o filho de outro!
     -- Ela foi obrigada a se deitar com Bono! - disse Dave – Se ele não tivesse me derrotado, nada disso teria acontecido, eu e Glory estaríamos casados!
     -- Cale-se, cavaleiro amaldiçoado. Não importam os motivos ou razões, importam os fatos. Glory não é mais princesa. E, como prisioneiros comuns – ele assinou o decreto – eu sentencio os três à morte por enforcamento.
     -- O que!? - dessa vez, foi Bono quem falou – Vai condená-la à morte? Não pode fazer isso!
     -- Cale-se! Sou o rei, e posso fazer o que quiser! Guardas, levem os três para as masmorras. Coloquem todos numa mesma cela. Não me importa o que vão fazer com ela nem se vão se matar. Agora, tirem-nos da minha frente.
* * * * *

     -- A culpa é sua!
     -- Não, é sua! Se não tivesse tentado tomá-la de volta, não estaríamos aqui agora!
     -- Se não a tivesse roubado de mim, nada disso teria acontecido!
     Os dois não tinham armas, então começaram uma luta corporal, de socos e chutes. Glory, sentada em um canto, pôs as mãos na cabeça.
     -- Parem com isso.
     -- Maldito!
     -- Desgraçado!
     -- Eu vou te matar!
     -- Não, eu é que vou te matar!
     -- Chega! - Glory gritou, se levantando – Calem a boca, os dois!
     Bono e Edge pararam e olharam para ela. Glory parecia furiosa.
     -- Eu juro que se abrirem a boca de novo ou voltarem a brigar eu é que vou bater nos dois! Vocês não entendem que nós três vamos morrer? Não importa de quem é a culpa, não importa mais nada! Nós três estamos presos aqui e estaremos mortos em uma semana, e vocês estão aí, brigando como dois idiotas!
     Um guarda bateu nas grades.
     -- Os prisioneiros não devem gritar! - ele disse.
     -- Vai pro inferno! - Glory gritou em resposta.
     O guarda fez menção de abrir a porta, mas outro falou algo com ele, e ele se afastou.
     -- Eu não consigo ficar perto dele. - disse Edge, olhando para Bono – Me dá náuseas.
     -- Vá para aquele canto, então! E você, Bono, fique quieto!
     -- Eu não suporto ficar preso em um lugar tão pequeno! Preciso andar para gastar energia!
     -- Quer gastar energia, estupre ele, então! - ela apontou para Edge – Mas pare um segundo!
     Bono e Edge se olharam por um segundo, e Edge deu um passo pra trás.
     -- Nem vem.
     -- Nem que você pedisse.
     Glory voltou a se sentar, com um suspiro. Aquilo seria difícil.
* * * * *

     A porta de ferro se abriu com um estrondo. Bono estava dormindo, e se levantou com um pulo. Glory e Dave, que estavam abraçados, também se assustaram. Um dos guardas entrou na cela, e demorou um pouco para que Glory identificasse Dick.
     -- Irmão! - Dave se levantou e foi até ele – Como você está?
     -- Melhor do que vocês. - ele olhou para os três por um momento – Aconteceu um milagre. Talvez vocês não sejam executados.
     -- Está falando sério? - Glory também foi até ele – O que aconteceu? Meu pai reconsiderou?
     -- Seu pai nunca reconsideraria, mesmo que soubesse estar errado. Mas um mensageiro chegou ontem à noite ao castelo, e vocês não vão acreditar – ele próprio parecia não acreditar – era um mensageiro do rei Hewson.
     -- O que!? - disseram Bono e Glory, ao mesmo tempo, ambos surpresos, mas Dave não estava entendendo nada.
     -- Quem é esse rei?
     -- É o rei, Dave! - disse Glory – O rei de toda a Bretanha, o único homem acima de todos os outros reis, acima de meu pai! O Rei dos Reis!
     -- Mas por que ele mandou um mensageiro?
     -- Ele disse que precisará intervir no caso de vocês. - Dick continuou – Que se trata de uma situação excepcional, e que tem algum interesse particular nesse caso. Disse que, normalmente, por se tratar da execução de uma princesa, ele já interviria. E disse que tem especial interesse por ele estar envolvido.
     Ele apontara para Bono, que não parecia surpreso. Os outros, porém, estavam confusos.
     -- Ele quer intervir por causa do Bono? Por quê?
     -- Ninguém sabe.
     -- Você cometeu algum crime nas terras dele? - disse Dave – Talvez ele esteja querendo levá-lo para julgamento lá.
     -- Não. - Bono disse, simplesmente.
     -- Você sabe porquê ele tem interesse em você?
     -- Não tenho a menor idéia.
     Era mais do que óbvio, pelo tom e pela expressão de Bono, que ele estava mentindo. Mas Glory o conhecia suficientemente bem para saber que era inútil insistir; ele não queria falar, e não falaria.
     -- Quando que o rei chega? - disse Glory.
     -- Ele já está a caminho. Deve chegar em três semanas. Até lá, a sentença de vocês está suspensa.
* * * * *

     -- Conta, Bono. - disse Glory, pela milésima vez – Por que o Rei dos Reis está vindo especialmente por você?
     -- Já disse que não sei! E pare de insistir!
     -- Você cresceu nas terras dele, ele devia te conhecer! Você trabalhava no palácio?
     -- Não, Glory, eu não trabalhava no palácio. Agora, chega de perguntas! Não vou falar nada sobre isso, não insista!
     -- Eu só não entendo – disse Edge – como ele ficou sabendo dessa história. Meu irmão me disse que ele recebeu o aviso de um mensageiro. Mas quem mandou o mensageiro?
     -- Ali. - disse Bono, indiferente – Eu imaginei que ela faria isso. Não ia deixar eu ser enforcado dessa forma.
     -- Quem é Ali? – disse Glory.
     -- Está falando da Duquesa Alison, que encontramos no castelo do Rei Domingues? – disse Edge – Como você se dirige a ela de uma forma tão íntima?
     -- Você nem imagina o quão íntimo eu já me dirigi a ela. - ele riu, em um tom debochado.
     -- Eu a vi indo a seu quarto, um dia. - disse Edge – E pelo jeito, vocês já se conheciam há bastante tempo.
     -- Mais do que você poderia imaginar.
     -- Não posso entender como uma mulher fina como ela foi ser amante de um assassino como você. Fico pensando o que fez para seduzi-la.
     -- Quer aprender minhas técnicas? Esqueça, você não tem o charme natural necessário. Mas não, cavaleiro, eu não a seduzi nem usei nenhuma técnica especial. - ele deixou de sorrir, como se começasse a lembrar de coisas – Éramos muito jovens ainda. Eu não era quem sou hoje.
     -- Ela foi seu primeiro amor? - disse Glory, e Bono riu.
     -- É, querida, ela foi meu primeiro amor. Na verdade... - ele pensou um pouco, e por fim achou que não importava dizer aquilo – Na verdade, ela era minha prometida.
     -- O que?
     -- Quando ela nasceu, nossas famílias fizeram um acordo. Ela se casaria comigo. Nós crescemos juntos, e quando descobrimos que seriamos obrigados a nos casar, ficamos muito felizes. Gostávamos um do outro. Mas... As coisas não deram certo. Eu fui obrigado a fugir de lá dias antes do nosso casamento.
     -- Imagino – disse Dave – que a essa altura já tivesse convencido a duquesa a se deitar com você.
     -- Incrível como você me conhece tão bem. É, eu fiz a besteira de me deitar com ela. Não fiquei nem um pouco feliz quando ela não quis fugir comigo, mas não posso culpá-la. Felizmente, ela conseguiu outro bom casamento.
     -- Mas como os pais dela iam permitir que ela se casasse com um plebeu? Ou ela não era nobre?
     -- Ela era nobre, vem de uma família antiga, repleta de duques, condes e outras tolices como essas.
     -- E ia se casar com você?
     -- Ele era nobre. - disse Glory – Não é?
     Bono não respondeu. Mas Glory não desistia tão fácil.
     -- O jeito como você dançava, as coisas que você falava... Muitas coisas, eu sempre fiquei me perguntando como você sabia de tudo isso. A única explicação é você ser nobre.
     -- Eu não sou nobre.
     -- Mas...
     -- Eu não passo de um bastardo, se quer tanto saber. Um filho ilegítimo. Não importa quem meu pai era. Eu não sou nada. E meu passado não é da sua conta.
     O tom em que ele fizera aquela revelação fez Glory desistir de perguntar mais. Pelo menos, sabia mais uma coisa sobre Bono. A história dele, seu passado, parecia uma espécie de quebra-cabeças, e ela queria muito juntar todas as peças. Talvez, com a chegada do Rei Supremo, ela conseguisse.
* * * * *

     -- Dave? - ela falou, num sussurro, para que Bono não acordasse.
     -- Sim?
     -- Você está dormindo?
     -- Não.
     -- Você acha que vamos conseguir sair daqui?
     -- Espero que sim.
     -- E se nós não conseguirmos?
     -- Então, vamos ser enforcados.
     -- Você não pode usar seus poderes para nos tirar daqui?
     -- Não tenho poderes. O que faço é usar as forças demoníacas ao meu favor. Mas elas não seriam muito úteis nesse caso. Eu teria que fazer um massacre aqui, e com certeza não conseguiria controlar as forças do mal. Poderia acontecer uma desgraça, e nesse caso, você provavelmente desejaria ter morrido.
     -- Então, se o rei supremo não nos soltar, nós vamos morrer?
     -- Infelizmente sim.
     -- E dói?
     -- Morrer? - ele deu um breve riso, e agradeceu por estar escuro, e Glory não poder ver suas lágrimas – Depende. Talvez doa um pouco. Mas depois passa, você não sente mais nada. Nem dor, nem frio, nem nada.
     -- Depois que a gente morrer, você promete que vai continuar comigo? Não vai me deixar sozinha?
     -- Prometo, querida. - ele a abraçou com força – Prometo.
* * * * *

     Dave estava dormindo. Glory estava sentada em um canto, riscando o chão de pedra, e Bono estava apoiado na parede, olhando o vazio. Ela não olhava para ele, então não percebeu quando ele se aproximou e se sentou ao seu lado; só quando ele tocou em seu ombro ela percebeu sua presença.
     -- Bono! Que susto!
     -- Me desculpe.
     -- O que você quer?
     -- Nada. - ele tocou nos cabelos dela – Só queria ficar perto de você.
     Ela se afastou um pouco.
     -- Pára de encostar em mim.
     -- Não posso. Você está tão bonita, Glory. Mesmo nesse lugar, você brilha como uma princesa.
     Ele segurou o rosto dela e se aproximou, tentando beijá-la, mas Glory o empurrou.
     -- Pára!
     -- Eu não vou te machucar.
     -- Me solta!
     Quando estava prestes a beijá-la, Bono sentiu duas mãos o agarrarem, e ele foi jogado do outro lado da cela. Dave avançou para ele e lhe deu um soco.
     -- Toque mais um dedo nela e eu te mato!
     -- Que diferença vai fazer pra você, The Edge? Eu já toquei muito mais do que um dedo nela!
     -- Cale a boca!
     -- Você gostou de se deitar com ela? Devia agradecer a mim. Eu a ensinei bem, não acha?
     -- Cale-se!
     Eles começaram a lutar no chão, de tal forma que Glory achou que fossem se matar.
     -- Parem! - ela gritou, assustada – Parem com isso!
     Os guardas ouviram o barulho, e correram até a cela. Quatro guardas entraram e separaram Bono e Edge, os arrastando para fora.
     -- Vocês estão abusando da sorte! - disse um dos cavaleiros – Vão ser castigados, os dois!
     Quando os guardas levaram os dois para fora da cela – era preciso dois guardas para segurar cada um, e mesmo assim era difícil – Glory correu até a porta, gritando:
     -- Esperem! Esperem, o que vão fazer? Não os machuquem!
     -- E você, senhorita Glory – disse um dos cavaleiros – não será castigada porque todos nós a respeitamos, apesar do que diz seu pai, mas não nos provoque demais! Depois que vir o que vamos fazer com esses dois, garanto que vai fazer de tudo para nunca ser castigada!
* * * * *

     O primeiro a voltar foi Bono. Chegou arrastado pelos guardas, e foi atirado dentro da cela. Fecharam a porta, e ele ficou caído ali, sem se mover. Glory se aproximou, e pôde ver que ele estava bastante machucado. Mas os ferimentos não pareciam proporcionais ao seu estado de semi-consciência.
     -- Bono?
     -- Não... - ele murmurou, fracamente – Chega...
     -- Sou eu, Glory... O que aconteceu? Você não está tão machucado assim...
     -- Os piores... Ferimentos... São os que não deixam marcas...
     Ela molhou o rosto dele com a pouca água que tinham, e o ajudou a ir até o canto da cela, onde costumava dormir. Ficou ao lado dele, até que ele adormecesse.
     Depois, chegou Dave. Veio ainda pior do que Bono: mais machucado, com marcas em sangue no peito descoberto – os homens usavam apenas uma calça de tecido grosseiro, para que não pudessem esconder armas – e desmaiado. Glory ficou cuidando dele, e lhe cantando músicas; tomou o cuidado de não fazer nenhuma oração, pois seria o mesmo que lhe dar uma surra. Ele não era mais um homem de Deus, e palavras divinas poderiam matá-lo.
* * * * *

     -- Glory...
     -- Sim?
     -- Bono está dormindo.
     -- Eu sei.
     Ele tentou beijá-la, mas Glory se afastou.
     -- O que está fazendo?
     -- Eu preciso de você.
     -- Como você pode pensar nisso numa situação como essa?
     -- É a única coisa boa que ainda podemos fazer.
     -- Não. Não mesmo. Muito menos com Bono a dois passos de distância.
     -- A lua cheia está se aproximando. Eu sinto.
     -- E o que tem isso?
     -- Você sabe o que tem. Nas últimas vezes, estávamos no palácio, e você foi ao meu quarto e pudemos ficar lá, sozinhos. Mas aqui não temos muita escolha. Teremos que fazer, com Bono vendo ou não.
     -- Está louco se acha que vou...
     -- Você prefere me ver morrendo?
     -- Claro que não!
     -- Então, vai ter que fazer.
     -- Depois nós pensamos nisso.
* * * * *

     Afinal, a lua cheia chegou.
     Glory percebera o estado de agitação de David, mas demorou um pouco para descobrir o porquê. As masmorras ficavam muitos metros sob o solo, e não havia janelas, nem nenhuma comunicação com a superfície; era impossível saber em que época estavam, ou mesmo se era dia ou noite. Mas Dave não precisava ver a lua cheia para senti-la, queimando em toda sua pele, fazendo arder seu corpo. Precisava de sangue, de paixão; precisava saciar os instintos primitivos que lhe eram despertados, e acalmar os demônios que vinham buscar sua alma.
     -- Tem certeza de que é lua cheia? - disse Glory, com um resto de esperança, embora já tivesse feito as contas e concluído que realmente estava na época.
     -- Absoluta. - Dave estava muito agitado, e seus olhos brilhavam como os de um animal selvagem – Eu sinto.
     -- Mas... O que faremos?
     -- Quando Bono dormir...
     -- Mas...
     -- Ele nem vai perceber, não se preocupe.
     -- Eu... Não consigo...
     -- Confie em mim. Vai ser tão rápido que você nem vai perceber.
     Mas as horas passavam, e Bono não dormira. Ficava andando de um lado para o outro na cela, parecendo indiferente ao casal no canto, que conversava aos sussurros. Inicialmente, aquilo era apenas um pouco irritante, mas com o passar do tempo se tornou intolerável. Dave sentia a pele em fogo, parecia que estava queimando vivo. Já devia ter anoitecido, a lua começava a subir no céu; logo, se tornaria insuportável.
     -- Bono – ele disse, tentando não alterar a voz – você está andando de um lado para o outro há horas. Por que não deita e dorme um pouco?
     -- Não estou com sono.
     -- Mas não está cansado de andar assim?
     -- Nem um pouco. - ele deu um breve sorriso maldoso – Acho que posso continuar andando de um lado para o outro até amanhã.
     Dave perdeu de vez a paciência; antes que Glory pudesse segurá-lo, ele se levantou e foi até Bono, o agarrando pela camisa e o imprensando contra a parede.
     -- O que pensa que está fazendo?
     -- Eu? - Bono parecia estar se divertindo – Nada, cavaleiro. Estou apenas gastando as energias acumuladas. Aliás, você devia fazer o mesmo. Parece tão tenso.
     -- Impressão sua. - ele empurrou Bono com mais força contra a parede.
     -- Sabe, é uma pena que daqui não possamos ver o céu. - ele sorria – Deve estar uma linda noite de lua cheia.
     O tom debochado de Bono fez Dave perder de vez a paciência, e lhe dar um soco. Bono cambaleou, mas não deixou de sorrir.
     -- O que pretende fazer, Edge? Me bater até que eu desmaie, para depois se deitar com Glory? Não acho que isso a deixará muito disposta.
     -- Eu posso matar você. Meu sacrifício pode ser feito com sangue.
     -- Se pudesse me matar, já teria feito. Sabe que não consegue, mal se aguenta em pé. Nós dois estamos no limite das nossas forças. Se lutarmos, vamos morrer os dois.
     Era verdade: depois de quase um mês de maus-tratos e de péssima alimentação, além da exposição ao frio e à umidade, tanto Bono quanto Edge estavam muito debilitados. Glory estava um pouco melhor, porque não fora torturada e suas roupas eram mais fechadas, mas mesmo assim estava com a saúde frágil.
     Frustrado, porque sabia que não podia lutar contra Bono, Dave voltou a se sentar junto a Glory. Torcia para que o outro se cansasse e acabasse adormecendo, mas isso não aconteceu; as horas se passavam, e Bono parecia não sentir nenhum cansaço ou sono. Até que chegou o momento que Dave temia. A necessidade de se saciar se tornou insuportável, muito maior do que qualquer controle que ele tivesse. Sem dizer nada, foi para cima de Glory e a beijou, o que fez a menina tentar fugir, assustada.
     -- Pare! Dave, o que está fazendo?
     -- Esqueça que ele está olhando, o ignore! Eu preciso disso, Glory, não posso esperar nem mais um minuto!
     -- Não! Me solte! Está me assustando!
     Mas Dave já não falava, apenas emitia murmúrios animalescos, enquanto tentava arrancar a roupa de Glory. Ela olhou para Bono; se ele ao menos virasse o rosto, fingisse não estar ali... Mas Bono, pelo contrário, olhava fixamente para os dois, e sorria, parecendo estar se divertindo imensamente.
     -- Ei, não se importem comigo. - ele disse – Prometo que não vou olhar.
     -- Bono...
     -- Qual o problema, Glory? Eu já estive tantas vezes aí, em cima de você. Ah, Edge, beije ela no pescoço, ela adora.
     Glory sentiu que ia começar a chorar. Dave olhou para Bono, e tanto este quanto a garota acharam que ele ia mandá-lo se calar ou algo parecido; mas ao invés disso ele deu um grito, algo demoníaco, que Glory nunca ouvira. Ela viu, cada vez mais assustada, que os olhos de Dave estavam vermelhos, vemelho-sangue, brilhantes, assustadores. Ele parecia possuído. Até Bono estava assustado; levantou-se e se afastou o máximo que podia.
     -- É melhor fazer logo, Glory. - ele disse, e não sorria mais, nem tinha o tom arrogante de segundos antes – Esqueça que estou aqui e faça de uma vez.
     -- Eu não quero! - ela tentava sair de baixo de Dave – Dave, você está me assustando! Pare!
     -- Este não é Dave, Glory! Faça o que ele quer antes que...
     Antes que Bono terminasse a frase, Dave deu outro grito, esse mais assustador que o primeiro; os guardas tentaram abrir a porta, para ver o que estava acontecendo, mas ela se incendiou, se transformado em um portal de chamas. Mesmo do outro lado da cela, Bono sentia o calor mortal.
     -- Ah! - Glory gritou quando Dave a agarrou pelo pescoço e começou a sufocá-la – Dave... Não...
     Bono correu até ele e tentou tirá-lo de cima de Glory, mas Dave o atirou contra a parede, com uma força sobre-humana. Glory gritou:
     -- Não! - ela chorava – Meu Deus...
     -- Deus? - Dave riu, e sua voz estava cavernosa, irreconhecível, como se saísse das profundezas da terra – O seu Deus nada significa. Eu sirvo a outro Mestre.
     -- Então faça o que quer que seja, mas acabe logo com isso! Eu não vou mais lutar, mas por favor, não me machuque, nem machuque o Bono!
     -- Bono? - ele riu – Que nome tolo você usa agora, Paul... Tão inadequado a quem você realmente é...
     -- Como sabe meu nome? - perguntou Bono, assustado.
     -- Sua alma está destinada a meu Mestre, Paul, e ele sabe tudo sobre você. Ele tem poderes com os quais você nem sonharia. E, se ele quiser – ele encostou um dedo na barriga de Glory – você jamais terá herdeiros.
     Aparentemente ele não fizera nada; mas Glory deu um grito de dor, e Bono percebeu o que ele ia fazer.
     -- Não machuque ela! - ele avançou para Dave – Não machuque meu filho!
     Mas ele foi atirado contra a parede, por uma força invisível que começou a sufocá-lo. Glory chorava de dor, e gritava, e Dave começou a mover o dedo lentamente pela barriga de Glory, para baixo, como se estivesse seguindo algo que descia, ou que estivesse prestes a sair de seu corpo...
     De repente Glory ouviu a voz de Bono, em uma língua desconhecida, murmurando com dificuldade algo que parecia uma oração. O efeito foi imediato: Dave se voltou para Bono, deixando de tocar Glory e fazendo a dor parar.
     -- Pare com isso! - ele gritou, com aquela voz que não era a dele, mas Bono continuou rezando naquela língua estranha - Pare!
     Dave parecia sentir uma dor horrível a cada palavra de Bono; estava prestes a atacá-lo, mas Glory o agarrou e o jogou no chão – não foi difícil, pois ele não esperava e estava enfraquecido pela oração.
     -- Não pare de falar, Bono! - ela disse, com lágrimas nos olhos – E feche os olhos.
     Bono continuou dizendo a oração, em palavras quase gritadas, e fechou os olhos. Por alguns instantes não saberia dizer o que estava acontecendo, mas então ouviu Dave grunhir como se estivesse sentindo dor ou um prazer intenso, e não quis abrir os olhos para descobrir qual das duas opções era a correta. Continuou rezando alto, tentando não ouvir nada, mas foi impossível ignorar o grito que o outro deu, instantes depois, como se sua alma estivesse sendo arrancada do corpo – ou, talvez, sendo colocada de volta. Bono ainda continuou rezando por algum tempo, até que suas palavras foram diminuindo de força e intensidade, e ele abriu os olhos, calando-se.
     Dave estava caído no chão, desmaiado, e tão pálido que parecia morto. Glory também estava caída, praticamente despida, o vestido rasgado de forma brutal. Ele próprio não conseguia ficar de pé, e foi se arrastando até a garota. A princípio achou que ela estivesse desmaiada, mas ao chegar perto, percebeu que ela chorava, mas quase inconsciente.
     -- Está tudo bem. - ele a abraçou e a colocou em seu colo – Acabou. Está tudo bem agora.
     Ela parecia não o ver, ele sequer sabia se o ouvia. Afastou o vestido, descobrindo suas pernas. Havia sangue escorrendo por entre elas, junto dos restos do prazer de Dave.
     -- Oh, meu Deus – ele a abraçou com força contra si, e pôs a mão em sua barriga – por tudo o que há de sagrado, proteja meu filho. Proteja essa menina, e a criança dentro dela.
     Nessa hora os guardas adentraram a cela. O fogo sumira, assim como todas as manifestações satânicas evocadas por Dave.
     -- Meu santo Deus. - disse um dos guardas, e todos, involuntariamente, fizeram o sinal da cruz.
     Só então Bono olhou ao redor, e entendeu o motivo daquele medo: nas paredes e no chão, gravados a fogo, havia símbolos demoníacos e escritas em hebraico, pequenas orações de adoração ao demônio. Era assustador.
     Dick também entrara na cela, e olhava assustado para as paredes, e para seu irmão, caído inerte no chão.
     -- Então – ele disse – ele vendeu mesmo a alma...
     -- Ela precisa de ajuda. - disse Bono – Por favor. Meu filho. Por favor.
     -- Chamem o médico! - Dick ordenou – E arrumem outra cela para eles. Mandem o padre vir exorcizar esse lugar. E... E tragam crucifixos, ou qualquer coisa que possa deter um demônio.
     Os guardas assentiram, e levaram os três para fora dali.
* * * * *

     Artur olhava para a filha, enquanto as criadas ajeitavam os travesseiros e as cobertas. O médico falava sem parar.
     -- ... realmente incrível, nunca tinha visto nada assim. Se o padre não estivesse aqui, teria havido uma desgraça. Foi muita sorte termos...
     -- Você já disse isso mil vezes. - ele se virou para o homem, irritado – Ela vai ficar bem?
     -- Sim, sim, com os cuidados que eu recomendei, vai ficar muito bem... Mas não posso garantir nada sobre a criança.
     -- Ela vai perder o bebê?
     -- Talvez. Não conheço a magia negra que foi usada, mas o bebê já pode estar morto. Não posso fazer nada.
     O médico se foi. Artur ficou ainda algum tempo ao lado da filha, até que Hally chegou.
     -- Como está a senhorita Glory?
     -- Talvez se recupere. - ele disse – Mas há poucas esperanças para a criança dentro dela.
     Hally olhou para Glory, triste, e passou instintivamente a mão em sua própria barriga, que já estava grande – seu filho em breve nasceria.
     -- Quando ela acordar, o senhor vai mandá-la de volta para as masmorras?
     -- Eu não sei. Vou pensar.
     -- Não a deixe junto daqueles dois, senhor. Por favor. - ela se sentou ao lado de Glory e segurou sua mão – Eles vão matá-la.
     Artur desviou o olhar, e ficou algum tempo olhando para as grandes janelas que davam para o jardim sul do palácio.
     -- Fique aqui ao lado dela. - ele ordenou – E chame se acontecer alguma coisa.
     -- Sim, majestade.
* * * * *

     Nenhum machucado, nenhum arranhão ou queimadura, nenhum vestígio de quaisquer maus-tratos havia sobre o corpo de Dave. Ele estava intacto, forte e saudável, como se tivesse acabado de chegar às masmorras. Mas sua alma estava em cacos.
     -- Você teve alguma notícia dela?
     -- Não.
     Bono se mantinha distante, do outro lado da cela, e não lhe dirigia a palavra; apenas respondia suas perguntas com monossílabos.
     -- Eu não me lembro de nada. Foi Dick quem me contou o que aconteceu.
     O outro nada disse.
     -- Eu não queria machucá-la. Jamais quis machucá-la. Nas últimas duas vezes, correu tudo bem. Mas agora ela demorou demais, a lua deve ter começado a descer, e eu não pude fazer nada para impedir.
     -- Está dizendo que a culpa é dela por ter ficado com vergonha de se deitar com você na minha frente?
     -- Não! - ele pôs a mão sobre o rosto – Não é nada disso.
     Ele estava preso por grossas correntes, nos braços, nas pernas e no pescoço, que não lhe impediam os movimentos, mas que estavam cobertas por símbolos cristãos, o que lhe impedia de evocar qualquer manifestação demoníaca.
     -- É engraçado. - disse Bono – Você voltou para protegê-la de mim, e acabou que eu a protegi de você.
     Dave não respondeu. Nem tinha o que responder.
     A porta se abriu, e Dick entrou. Os dois prisioneiros apenas olharam para ele, sem se levantar.
     -- Como ela está? - disse Dave.
     -- Parece que está bem. O médico acha que, se for bem cuidada, em alguns dias estará melhor. - ele olhou para Bono – Mas ele não pode fazer nada pelo bebê.
     -- Ela... Ela perdeu a criança? - disse Bono.
     -- Ainda não. Mas o médico não sabia dizer nem se o bebê ainda estava vivo. Disse que nunca tinha visto nada parecido. Os próximos dias vão dizer como ele está, mas o esperado é que ela aborte.
     Bono apenas balançou a cabeça, concordando. Dick saiu da cela, a trancando novamente. Dave permaneceu de cabeça baixa, sentindo-se cada vez pior; até que ouviu Bono chorando, e o olhou. O outro estava de cabeça baixa, com as mãos tapando o rosto, e soluçava.
     -- Bono...
     -- Não me olhe.
     -- Eu sinto muito. Nunca quis que Glory perdesse esse filho, mesmo ele não sendo meu. Pensei até em abandoná-lo, mas matar ele, nunca.
     -- Isso não faz diferença pra você, não é? Pode ter quantos filhos quiser.
     -- Filhos amaldiçoados.
     -- Mas filhos seus.
     -- Você também pode ter outros filhos.
     -- Não. - ele estava desolado – Nem sei como consegui engravidar Glory.
     -- Por quê?
     -- Eu não sei. Há muitos anos, uma feiticeira me disse que eu jamais teria filhos, que havia algo em mim que não permitia que minha semente vingasse. Eu não acreditei, nunca me importei com religiões e misticismos, mas com o tempo... Eu tive milhares de mulheres, e os anos se passaram, e jamais consegui fazer um filho em qualquer uma delas.
     -- Talvez alguma tenha engravidado, e você não soube.
     -- Não. Elas saberiam onde me encontrar, teriam vindo atrás de mim. Além disso, várias vezes eu ficava algum tempo com uma mulher, tentando fazê-la engravidar, já fiquei meses assim, às vezes com mais de uma ao mesmo tempo, tentando gerar um herdeiro... E nada. Nenhum fruto, nem mesmo a ameaça de uma criança que pudesse ter sido perdida. Eu achei que tivesse sementes ruins, como acontece às vezes, que fosse estéril. E agora, quando finalmente consigo, quando Glory engravida... Meu filho é arrancado de mim...
     Ele parou de falar, sem forças. Ficaram os dois em silêncio, na cela escura.
     -- Sinto muito. - veio a voz de Dave, humilde.
     -- Se sairmos daqui – disse Bono, com uma voz que parecia um suspiro – quero que me prometa que vai cuidar bem de Glory. Que nunca mais vai machucá-la.
     -- Eu prometeria qualquer coisa que fosse para o bem de Glory. Mas não vamos sair daqui. Nunca. Vamos ser executados. Com alguma sorte, o rei vai desistir de executar Glory e vai mandá-la para um convento, mas nós dois não temos nenhuma chance.
     -- Não, cavaleiro. Não seremos executados. O rei supremo deve ter algo a me propor. E eu provavelmente vou aceitar, desde que ele não me peça para voltar para aquele maldito lugar.
     -- Você está escondendo algo, não é? Por que o rei supremo se preocupa com você a ponto de vir até aqui lhe fazer uma proposta para lhe tirar da cadeia?
     -- Você vai descobrir quando ele chegar. Se eu te contasse, você não acreditaria.
* * * * *

     Glory bebia uma caneca de leite quente, enquanto Hally falava sem parar, andando de um lado para o outro e se abanando com o leque, apesar de estar frio.
     -- ... e depois que a senhorita Catarinn se casou com sir Mikays, a família dela se mudou para o palácio, e o rei, seu pai, deu a eles o título de Duques de Miloard, mas eu achei isso muito injusto, porque aquela lá não tem jeito pra duquesa, não mesmo, mas o sir, esse sim é um lorde, um grande cavaleiro, ele e meu Michaell estão em campanha já faz duas semanas, junto de uma tropa de uns cem cavaleiros, que o seu pai mandou para verificar as fronteiras do norte. Aliás, achei isso muito cruel, porque do jeito que aquele lugar é longe e do jeito que deve ter coisas para resolver lá, é capaz de Michaell perder o nascimento do nosso bebê, e ele disse que ficaria muito triste, nosso primeiro filho, claro que depois vão vir outros, mamãe teve nove mas três não vingaram, espero que todos os meus vinguem, e Michaell já disse que se depender da disposição dele vamos ter uns dez ou mais... Mas eu não devia estar falando isso, oh, Glory, desculpe, você está quase perdendo seu bebê e eu aqui me lamentando porque o meu vai nascer sem que o pai esteja presente...
     -- Tudo bem.
     -- Mas talvez seja até melhor, sabe, Glory, porque assim ninguém vai saber que você engravidou sem estar casada, que horror, não quero nem pensar no que diriam. Ainda mais daquele homem horrível, aquele monstro, que coisa horrível, matar sir Evans e roubar você, ele devia ser torturado até a morte, não sei como seu pai só mandou enforcá-lo, ele já deu castigos bem piores... E agora o rei supremo vem aí, provavelmente por sua causa, mas dizem que é por causa desse tal Bono também, mas não entendo por que o Rei de todas as terras do mundo iria se preocupar com um reles mercenário, que é isso o que o Bono é, um bandido, assassino...
     -- Ele deve ter os motivos dele.
     -- Imagino que sim, mas não posso imaginar quais sejam, espero que ele prenda o Bono e leve para as terras do Norte, dizem que lá as punições são mais severas do que em qualquer outro lugar. Deviam castrá-lo, é isso o que deviam fazer, cortá-lo e deixá-lo sangrando até a morte.
     -- Também não. Não quero mal a ele.
     -- Você é muito boazinha, Glory, sempre foi, acha que todo mundo tem um lado bom.
     -- Antes você também achava.
     -- Ah, mas eu era moça ainda, era ingênua. Depois que me casei, fiquei sabendo dos males do mundo. Tem tanta coisa ruim e feia por aí. Você devia saber, andou pelo mundo, viu tudo de ruim que existe nos caminhos.
     Mas, quando se lembrava dos caminhos, Glory não via coisas ruins. Via as florestas do outono, cobertas por folhas secas, via os animais passando ou fugindo dela. Via as grandes árvores, as alamedas, os lagos cristalinos, as fontes de água pura. Via as cidades que, apesar de sujas e feias, tinham vida, tinham crianças correndo e pessoas trabalhando. Via os vales cobertos de neve, os cavalos correndo soltos, o vento fresco em seu rosto, as montanhas, a sensação de que quase podia voar. Via Bono, correndo em seu cavalo, lutando, os olhos brilhando de paixão, as gotas de orvalho da manhã molhando seus cabelos, enquanto ele despertava lentamente. Via David, Edge, com sua capa marrom e sua espada mágica, emanando força, olhando para ela com amor nos olhos. Via as estrelas, via o céu nos olhos de Bono e as florestas nos olhos de David. E ela sabia, agora, que não havia nada mais belo do que poder correr livre pelo mundo, não importando o que acontecesse.
     -- Hally...
     -- Sim, senhorita?
     -- Você não se sente presa aqui?
     -- Presa? Onde?
     -- Aqui, no palácio. Sem poder ir para aonde quiser.
     -- Ora, princesa, e para aonde eu iria querer ir?
     Não adiantava. Hally jamais entenderia. Mesmo Glory, se não tivesse passado por aquilo tudo, não entenderia.
     -- Eu não quero que eles se machuquem.
     -- Quem?
     -- David e Bono. Não quero que sejam executados, nem punidos. Nenhum dos dois. Eu amo eles. Os dois. Os amo mais do que tudo, e não posso viver sem eles.
     -- Princesa! Que absurdo é esse? Como pode amar dois homens ao mesmo tempo?
     -- Eu não sei. Mas eu os amo, Hally. Não posso viver sem eles.
     -- Que seu pai jamais ouça a senhorita dizer tal coisa. Já foi uma sorte ele ter revogado sua sentença. Torça para que ele seja bom e te arrume um marido compreensivo.
     -- Claro. Ele é muito bom. - ela suspirou e se deitou – Muito bom.
* * * * *

     Os três foram levados até a sala do trono. Edge e Bono vinham escoltados por guardas e com os pés e mãos presos por grossas correntes. Glory não estava presa, e vinha acompanhada apenas por Hally, que voltara ao posto de dama de companhia, mas não estava nem um pouco satisfeita: queria ter ido ver a chegada do grande Rei, junto dos outros nobres. Seu maior sonho era conhecê-lo, e isso aconteceria justo naquelas condições. E seu pai lhe tirara o título de princesa, o que, em outra situação, não lhe faria a menor diferença, mas agora era desesperador.
     Mas ela vinha tendo sorte. Não perdera seu bebê, e as dores no ventre haviam passado, o que, segundo a parteira, era bom sinal. Quem sabe o Rei dos Reis obrigasse seu pai a lhe perdoar e a devolver seu título? Quem sabe permitisse que ela se casasse com David, e não deixasse que Bono fosse executado?
     E por que, afinal, ele fazia tanta questão de ver Bono?
     As cornetas soaram e as portas se abriram. Artur estava sentado em seu trono, e se levantou. Um cavaleiro anunciou:
     -- Sua majestade, Rei Hewson.
     Finalmente, o rei supremo apareceu. Glory estava impressionada; era verdade que parecia um deus. Ou talvez assim ela pensasse apenas por saber quem ele era. E ele veio caminhando, e conforme adentrava o palácio as pessoas se curvavam para ele, numa respeitosa reverência. Artur também se curvou, e foi muito estranho para Glory ver seu pai se subordinar a alguém, uma vez que, até então, ele tinha sido o senhor de todos ali.
     -- Sua majestade. - disse Artur – É uma honra receber vossa senhoria.
     -- É uma honra ser recebido pelo rei das terras do noroeste. - o rei retribuiu a reverência – Não nos conhecemos, mas conheci seu pai, e ele era um homem bom e justo. Ouvi dizer que é como ele.
     -- Tenho dado o melhor de mim para essa terra e esse povo, alteza.
     O rei Hewson voltou-se para os prisioneiros. Glory e Hally fizeram uma reverência, e logo Dave também se curvou, respeitosamente, mas Bono permaneceu como estava, olhando o rei com visível desprezo e sua típica arrogância.
     -- Você, prisioneiro! - disse Artur – Ajoelhe-se!
     Bono o olhou e deu um breve riso seco, ignorando completamente a ordem para se ajoelhar. O rei Hewson o olhou por algum tempo, e então disse:
     -- Não se importe, Artur. - ele se dirigiu aos outros – Levantem-se.
     Glory voltou à postura de antes, assim como os outros súditos. Tentava não ficar vermelha nem tremer, apesar de o rei estar bem diante dela.
     -- Então, você é a princesa que perdeu seu posto. - Glory baixou a cabeça, com olhinhos tristes – Que linda menina. Eu não teria coragem de te condenar, se fosse minha filha.
     Ela deu um breve sorriso. O rei se voltou para Dave.
     -- E você é o cavaleiro que voltou da morte por amor. Que bela história. Deve ser um homem muito corajoso, e muito apaixonado.
     David balançou a cabeça, dizendo que sim. O rei então voltou sua atenção para Bono.
     -- E você – ele o analisava intensamente – Bono, é como lhe chamam, certo? Bono. O mercenário procurado por crimes em praticamente todos os reinos da Bretanha.
     Bono encarava o rei. Não parecia mais estar zombando de algo; agora, estava muito sério, e seu olhar parecia mais de desafio do que de desprezo ou arrogância.
     -- Então – continuou o rei, dessa vez se dirigindo a Artur – este homem ajudou um prisioneiro seu a fugir. Este crime seria insignificante, visto que ele foi contratado pela princesa, e o fugitivo em questão iria se casar com ela. Mas, muito pior do que isso, ele matou o homem que antes salvara, roubou a princesa obrigando-a a viver com ele, fazendo-a se passar por sua esposa, e por fim a engravidou. Isso, claro, sem contar os milhares de outros crimes cometidos pelo caminho, antes e durante o caso em questão. São esses os fatos?
     -- Sim. - disse Artur – E, visto isso, eu o condenei à morte por enforcamento. Também dei a mesma pena a David, por traição e pelo sequestro da princesa, uma vez que ele fugiu com ela. E tinha dado a Glory, por traição e desonra, mas revoguei a sentença e decidi que vou resolver o caso dela pessoalmente, como pai.
     -- Mas ela perdeu o título de princesa.
     -- Sim. Um reino não pode ter uma princesa desonrada, muito menos grávida de um plebeu.
     -- Não considerou a possibilidade de fazê-la se casar com Evans e fazê-lo assumir o filho?
     -- Minha filha, casada com um cavaleiro? Jamais. E todos no reino sabiam que ele havia sido condenado por pôr os olhos sobre ela. Seria uma desonra ainda maior.
     -- Não posso tirar sua razão. É uma situação muito delicada. Por isso vim. E, principalmente, por causa desse indivíduo. - ele olhava para Bono – Não fico feliz em dizer isso, Artur, mas não posso permitir que ele seja executado.
     -- Imagino que ele deva ter cometido crimes em suas terras, majestade, assim como cometeu em todos os reinos existentes, e sei que as leis lhe dão o direito soberano de condenar os criminosos, mas peço que reconsidere e o deixe ser punido pelas leis deste reino, visto que os crimes aqui cometidos foram muito mais graves do que os cometidos em qualquer outro lugar.
     -- Sim, eu sei disso. Mas não é pelo meu direito soberano que não posso permitir que seja executado. Na verdade, ele não cometeu nenhum crime nas minhas terras. O que estou dizendo é que ele simplesmente não pode ser condenado, e não posso dizer que acho isso justo. Mas são as leis.
     -- Que leis? - disse Glory, que estava achando aquele mistério todo insuportável e não conseguiu ficar quieta – Por que ele não pode ser condenado?
     -- Glory – disse Artur – não deve se dirigir ao rei dessa forma.
     -- Desculpe.
     -- Tudo bem. - disse o rei Hewson – Não seja tão duro, Artur, ela é só uma menina. O que preciso dizer é que esse homem – ele se voltou para Bono – esse criminoso, esse mercenário, esse... Assassino... Está protegido pela lei da imunidade real. - ele parecia profundamente infeliz – Esse bastardo é meu filho.

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