terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #009] [U2] As Terras do Norte - Magias e Traições


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 9
MAGIAS E TRAIÇÕES
“I can see through this expression
And you know I don't believe
I'm too old to be told
Exactly who are you?
Tonight, tomorrow's too late”
(U2 – Like a Song)

     Foi uma mulher que abriu a porta. Devia ter quase quarenta anos.
     -- Sim?
     -- Bom dia. - disse Glory – Eu estou procurando um homem chamado Derek.
     -- É meu marido. O que quer com ele?
     -- Tenho um recado para ele. É muito importante.
     -- Ele está no campo agora. Siga naquela direção, e irá encontrá-lo perto da plantação de batatas.
     Glory seguiu por onde fora indicado, e não demorou para encontrar o homem que procurava. Era um homem já velho, e parecia inofensivo. Ela se perguntou como Bono podia ter coragem de matar alguém totalmente indefeso a sangue-frio.
     -- Com licença. - ela disse, se aproximando.
     -- Pois não?
     -- O senhor é Derek?
     -- Sim.
     -- Eu... Eu tenho que te dizer uma coisa. - ela estava muito nervosa – O senhor corre perigo.
     -- O que?
     -- Não me pergunte como sei disso, mas há um homem na cidade que quer te matar. Ele contratou um mercenário para fazer isso, um homem muito perigoso. Chama-se Bono e é muito conhecido por aí pelas coisas que já fez. Eu não sei quem é o homem que o contratou, mas parece que o motivo é uma briga ou algo parecido.
     O homem ficou olhando para ela durante algum tempo.
     -- Eu acho que sei de quem se trata.
     -- O senhor tem que tomar muito cuidado. Daqui a seis dias, esse cavaleiro chamado Bono irá preparar uma emboscada e matará o senhor quando você estiver trabalhando no campo. Eu não sei exatamente a que horas isso vai ser, nem onde, mas o senhor deve fugir o quanto antes.
     -- Não posso fugir. Não tenho para onde ir. - ele pensou um pouco – Mas acho que sei o que fazer.
     -- Não pode lutar contra ele, ele é muito forte e muito perigoso. Sei que seus irmãos não estão nessas terras, não vão poder te ajudar. Por favor, senhor, fuja. Acredite em mim, ele vai matar você se não fugir.
     -- Não se preocupe. E muito obrigado pelo aviso. Como soube...
     -- Eu soube.
     -- Certo. Vou me proteger, não se preocupe. Que Deus te abençoe, filha.
* * * * *

     Naquele dia, Glory foi acordada muito cedo pelo barulho de algo caindo. Olhou em volta, assustada, e viu Bono abaixado, pegando uma vasilha que caíra no chão.
     -- Me desculpe. - ele disse, quando viu que ela acordara – Esbarrei nisso.
     -- O sol já nasceu?
     -- Ainda não. Deve nascer em pouco tempo. Estou saindo agora.
     -- Aonde você vai?
     -- Vou fazer meu serviço. - só então ela percebeu que ele estava carregando todas as suas armas – Devo voltar antes do almoço, se tudo der certo.
     Ela se sentou na cama, começando a ficar preocupada.
     -- E se algo der errado?
     -- Não vai dar nada errado, não se preocupe. O máximo que pode acontecer é eu me atrasar um pouco.
     -- E se... Se você não conseguir matar ele?
     -- Que bobagem, claro que vou conseguir. Não saio de lá sem ter terminado meu serviço. - ele foi até ela e beijou sua cabeça – Tenho um nome a zelar.
     -- Tome cuidado.
     -- Não se preocupe.
     Ele a beijou, e em seguida se foi. Glory começava a ficar com medo: mandara o homem fugir, mas e se ele não fugisse? Se resolvesse lutar contra Bono, ou preparasse alguma emboscada? E se acabasse falando que ela estivera lá e o avisara?
     E se ele matasse Bono?
     Agora, Glory já não queria que Bono fosse morto; queria apenas o impedir de matar alguém inocente. Mas disse a si mesma para não se preocupar com isso: Bono era o cavaleiro mais forte que ela já vira, e com certeza não seria um homem do campo que iria ferí-lo.
     Mas a manhã avançava, e Bono não voltara. Já deviam ter se passado cinco horas desde que ele saíra. Glory andava de um lado para o outro, nervosa. O que teria acontecido?
     A hora do almoço veio e passou, e Bono não voltara. Glory comera muito pouco; sentia-se terrivelmente enjoada. Algo tinha dado errado, muito errado. Ela não sabia o que, nem como, mas sabia que as coisas não estavam bem.
     Já era fim de tarde, e o sol já estava baixo no horizonte. Glory vestiu sua capa, decidida a ir atrás de Bono. Ou a fugir. Ele tinha sido morto, era a única explicação. Ela tinha que descobrir o que acontecera.
     Nesse momento, porém, a porta se abriu, lentamente. Glory deu um passo para trás, e viu Bono entrar no quarto quase como se fosse um sonho. Sua vontade era correr e se jogar nos braços dele, mas não o fez: Bono estava sem sua capa, a manga de sua camisa estava rasgada, sua perna sangrava, ele tinha vários ferimentos pelo corpo. E tinha um brilho assustador no olhar.
     -- Bono...? - ela disse, amedrontada – O que aconteceu?
     Ele olhou para ela, mas não disse nada. Foi até a mesa e deixou ali suas armas: as duas espadas, o arco, os dois punhais. Glory insistiu:
     -- Por que demorou tanto? Você... Conseguiu matar ele?
     Finalmente ele disse, sem olhar para ela:
     -- Consegui.
     -- Conseguiu? - ela sentiu uma sensação ruim no estômago. Então, seus esforços haviam sido em vão.
     -- Sim, consegui matar ele. E também a mulher dele, e o filho dele, e todos os cinco irmãos dele. - ele afinal olhou para ela – De alguma forma mágica, ele soube dos meus planos e preparou uma armadilha para mim. Os irmãos me encurralaram na floresta, eu fui pego desprevenido. Tive que lutar com todos, e depois ir até a casa dele, e como não podia deixar testemunhas, matei não só ele, como a família dele.
     Glory se sentia tão enjoada que parecia que ia passar mal. Bono pegou um dos punhais, que estava sujo de sangue, e o limpou com um pano úmido.
     -- Sabe – ele disse – quando os irmãos dele me pegaram, um deles disse uma coisa muito interessante. Ele disse algo como “então o que a menina disse era verdade”. Parece que uma certa garotinha alertou a eles que eu estava indo. - ele se aproximou dela – Foi você, Glory?
     -- Eu... Não...
     -- Foi você, sim. - ele falava com uma calma assustadora – Você quis me matar, Glory. Me fez confiar em você, me fez acreditar que... Me enganou – ele estava muito perto dela, e ela deu alguns passos para trás, até encostar na parede – e depois tentou me matar.
     -- Eu não queria te matar! Eu disse a ele pra fugir, não achei que ele fosse tentar lutar contra você! Sinto muito...
     -- Acha que vou acreditar em você? Depois dessa traição, acha que vou acreditar em qualquer coisa que diz? - ele a agarrou pelo braço e encostou o punhal em seu pescoço – Eu devia saber que tipo de mulher você era. Devia ter te abandonado na floresta, ou te vendido assim que tivesse a chance. Nunca devia ter te mantido tão perto de mim. Eu sempre estive sozinho, e as coisas sempre correram bem. Devia saber que ter alguém comigo só podia me trazer problemas.
     Ele deu um tapa no rosto dela. Glory começou a chorar, e ele segurou seu rosto, obrigando-a a olhar para ele.
     -- Deve ter me achado um idiota, não é? Eu achei que você fosse uma menininha frágil e indefesa. Nunca ia pensar que pudesse... - ele balançou a cabeça – Ah, Glory... Você devia saber o que acontece com quem me trai dessa forma... - ele encostou novamente o punhal no pescoço dela, dessa vez com mais força, machucando a pele – Devia saber que não chegaria viva ao dia seguinte...
     -- B-Bono... P-por favor...
     Houve uma batida na porta. Bono olhou para trás por um momento, e Glory se aproveitou disso e lhe deu um chute no estômago. Pego de surpresa, ele se afastou, e ela saiu correndo, gritando:
     -- Socorro!
     Ela abriu a porta e saiu correndo. Quem batera fora a dona da pensão, que olhou assustada.
     -- Senhora? Está tudo bem?
     -- Não! Ele quer me matar! Socorro!
     Bono já se recuperara, e correu para ela. Glory saiu correndo pelas escadas, até chegar à cantina, e Bono ia atrás dela. A mulher gritou para os homens lá embaixo:
     -- Segurem ele! Ele vai matar a menina!
     Os homens deixaram Glory passar e seguraram Bono, tentando impedí-lo. Glory deu graças a Deus por ele estar levando apenas seu punhal, ou haveria um massacre ali. Mas ela não estava disposta a ficar para ver o que aconteceria; correu para fora, pegou seu cavalo e saiu galopando a toda velocidade, para qualquer lugar bem longe dali.
* * * * *

     Já anoitecera, e ela cavalgava lentamente pela floresta escura, guiada somente por uma tocha. Não podia correr, e provavelmente não seria necessário: ela se embrenhara de tal forma na floresta, que com certeza Bono nunca a acharia. E, com certeza, ela nunca mais conseguiria sair dali. Estava completamente perdida.
     Ela viu um rio ali perto e resolveu parar para descansar. Desceu do cavalo e acendeu uma fogueira. Sentia muita fome, mas não tinha nada para comer. Esperou o fogo aumentar, e então saiu a andar ao redor, procurando algo para comer. Encontrou algumas frutas, não o suficiente para lhe deixar satisfeita, mas pelo menos seu estômago pararia de doer. Ela comeu, lavou-se superficialmente, bebeu água, e deitou-se para dormir ao lado da fogueira.
     Parecia ter se passado muitas horas; Glory não saberia dizer. Mas ainda estava escuro quando ela acordou, embora já houvesse um leve sinal de amanhecer. Ela olhou em volta, confusa, e se deparou com uma cena aterradora: Ao seu redor, estava um grupo de homens, cerca de dez, todos armados com espadas. Ela se sentou, assustada, e um deles disse:
     -- Quietinha, querida. Você não vai a lugar nenhum.
     -- Quem são vocês? O que querem? - ela olhou de um para outro – Eu não tenho nada, nem dinheiro, nem comida. Me deixem em paz.
     -- Você tem algo sim, senhorita. - disse outro, se aproximando – Algo que nós estamos precisando muito.
     Glory se perguntou como eles a haviam achado. Quando estava com Bono, nunca encontravam ninguém. Talvez tivesse sido por causa da fogueira, ela pensou. Era a única explicação.
     -- Me deixem em paz. - ela disse, sabendo que seria inútil pedir isso.
     -- Não se preocupe. - eles se aproximaram mais, e um deles foi para cima dela – Vamos ser rápidos.
     -- Tenho certeza de que vão.
     Eles se viraram para ver quem falara. Glory quase deu um grito, e não sabia se era de alegria ou de pânico: Bono estava ali, de pé, segurando sua espada.
     -- Quem é você?
     -- Sou o marido dela. - ele se aproximou – Deixem-na em paz.
     -- Se manda, cara. Devia ter cuidado melhor da sua...
     Antes que o homem terminasse, Bono avançou para eles. Glory fechou os olhos e baixou a cabeça, com medo. Apenas ouviu o som de metal contra metal, os gritos, o barulho de um corpo caindo no chão, em seguida outro e outro. Então, Bono gritou:
     -- Corra, Glory! - ela abriu os olhos, surpresa – Fuja, saia daqui! Depressa!
     Ela se levantou e procurou seu cavalo, mas ele já não estava lá. Não entendia porquê Bono a mandara fugir. Então, ao olhar a luta de fora, entendeu: ele estava em nítida desvantagem. Estava muito debilitado pela luta anterior, tinha muitos ferimentos, e estava cansado. Derrubara três deles, mas um já estava se levantando, e os outros eram em número muito maior. Um deles o atingiu no braço, e ele deu um grito.
     -- Vai, Glory! - ele disse, ao atravessar com a espada um dos homens, que tinha se virado para Glory – Agora!
     Glory saiu correndo pela floresta. Correu com todas as forças, quase sem perceber as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Bono tinha tentado matá-la, e agora salvara sua vida. Mais do que isso, ele dera sua própria vida para salvar a dela. Ele iria morrer. Não havia a menor chance de sobrevivência.
     O sol já aparecera completamente quando ela parou de correr. Sentou-se junto a uma árvore, meio escondida, e começou a chorar. Bono estava morto, e por culpa sua. Ela o enganara, o traíra, o fizera se ferir, e mesmo assim ele dera sua vida para salvar a dela.
     E por quê?
     Fosse qual fosse o motivo, ela decidiu que não poderia fugir para sempre. Se aqueles homens não a atacassem, outros acabariam fazendo isso. Ela era só uma garotinha, e agora estava sozinha no mundo. Não podia permitir isso. Não podia deixar que Bono morresse.
     Talvez ainda houvesse tempo, ela pensou. Afinal, Bono era muito forte. Talvez chegasse lá a tempo. Repetindo isso sem parar, ela correu de volta para o local da batalha, embora não soubesse exatamente o que faria para ajudar.
     Antes mesmo de chegar, ela já via sinais do que acontecera: as águas do rio estavam tingidas de vermelho, havia sangue manchando as margens. Quando chegou ao local da batalha, Glory parou, horrorizada. Todos os homens estavam caídos, mortos, alguns de forma terrivelmente brutal. Bono não estava ali. Ela saiu andando em meio aos corpos, chamando o nome dele, e, pouco à frente, o viu. Ele estava caído no chão, e havia um rastro de sangue que levava até ele.
     -- Bono! - ela correu até ele e se ajoelhou, segurando-o – Bono, fala comigo...
     Ele abriu os olhos e a olhou. Respirava com muita dificuldade, e estava muito ferido. Tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu. Glory o abraçou, murmurando:
     -- Eu não vou deixar você morrer, ouviu? Não vou. - ela chorava – Aquilo que eu fiz, antes... Eu não queria te matar, eu juro. Eu só não queria que você machucasse alguém de novo, mas deu tudo errado... Sinto muito...
     Bono segurou a mão dela, tentando lhe passar alguma mensagem, mas então fechou os olhos e se deixou ficar inerte nos braços de Glory, inconsciente.
     -- Não! - ela pôs a mão sobre o peito dele, e ficou aliviada ao sentir o pulsar de seu coração – Bono...
     Ela não poderia fazer nada ali; sua única chance era encontrar ajuda. Mas não tinha um cavalo, e mesmo que tivesse, não conseguiria levar Bono consigo. Por isso, o deitou no chão, com cuidado, e disse:
     -- Eu vou buscar ajuda. Prometo que volto, está ouvindo? - ela beijou seu rosto – Eu juro que vou voltar. Não vou deixar você morrer, não vou.
     Com essas palavras, Glory saiu correndo pela floresta, tentando reencontrar o caminho para a cidade.
* * * * *

     Ela já corria a mais de uma hora, e não chegara a lugar nenhum. Não tinha nem idéia de onde estava, ou para que lado ficava a cidade. A floresta ficava cada vez mais fechada e sombria. Pra piorar, perdera o rio de vista, e já não sabia como voltar para onde estava Bono. Estava completamente perdida.
     Seu vestido já estava todo rasgado, por causa dos galhos e espinhos, e ao passar próxima a uma árvore, ela tropeçou em um galho e caiu, com um grito. Tentou se levantar, mas suas mãos sangravam e suas pernas tremiam. Já era tarde demais, Bono não resistiria tanto tempo. E ela não tinha a menor idéia de como sair dali. Ficaria presa na floresta para sempre, sozinha. Ela se encolheu contra uma árvore e começou a chorar.
     De repente, ela ouviu um barulho, e olhou para a frente. Ali, a poucos passos de distância, estava a imagem mais surreal que ela já vira: um garoto loiro, provavelmente da sua idade, vestindo roupas simples e carregando um arco. Parecia um anjo, com seus cabelos dourados e seu rosto muito bonito. A aparição olhava para ela, parecendo espantado.
     -- O que faz aqui? - ele disse.
     -- Por favor – Glory se arrastou até ele e segurou suas mãos, desesperada – por favor, me ajude! Há um homem ferido, ele vai morrer, você tem que me ajudar! Eu me perdi, tentava chegar até a cidade, você tem que me ajudar, ele vai morrer...
     O garoto ficava cada vez mais espantado.
     -- Onde ele está?
     -- Eu não sei chegar lá, me perdi... Era perto do rio, e havia um carvalho muito grande, e cresciam morangos ao redor...
     Sem mais palavras, o garoto a pegou pela mão e fez um sinal para que ela o seguisse. Eles foram até um cavalo que estava parado junto a uma árvore, sem nenhuma corda o amarrando. Ele subiu, e estendeu a mão para Glory, ajudando-a a subir também. E os dois saíram cavalgando o mais rápido possível pela floresta.
* * * * *

     Glory estava impressionada: o garoto fora direto para o local que ela indicara, sem hesitar, como se soubesse exatamente a localização de cada rio e cada planta na floresta. Ao chegarem lá, ele parou o cavalo, e olhou ao redor.
     -- O que aconteceu aqui?
     -- Esses homens nos atacaram, mas Bono os matou... - ela desceu do cavalo – Mas ele estava muito cansado, estava ferido...
     Ela correu até Bono, que estava exatamente na mesma posição em que ela o deixara. Ajoelhou-se junto a ele e tocou seu rosto, o chamando:
     -- Bono! Bono! Eu encontrei ajuda, vai ficar tudo bem... - ela chorava – Bono...
     O garoto se ajoelhou junto a ela e tocou no pescoço de Bono. Disse:
     -- Ainda está vivo, mas não vai resistir. É tarde demais.
     -- Não! Por favor, nos leve até a cidade, o médico...
     -- Os médicos da cidade não poderão fazer nada por ele.
     -- Eu tenho que tentar! Não posso deixar ele aqui! Ele é meu marido!
     -- Sinto muito.
    Glory abraçou Bono e voltou a chorar, o acolhendo em seu peito. O garoto ficou olhando para ela, pensativo, e por fim disse:
     -- Talvez haja um jeito.
     -- Qual? Diga, por favor, eu faço qualquer coisa...
     -- Há um feiticeiro que vive na floresta, e ele cura pessoas. Mas é longe, mais longe do que o lugar onde você estava. Talvez ele não consiga esperar tanto, ou talvez a cavalgada o mate.
     -- Ele vai morrer de qualquer forma se ficar aqui. Tenho que tentar.
     -- Mas esse feiticeiro vive escondido na floresta. As pessoas na cidade não gostam de sua magia, e a Igreja é muito dura com os magos. Só a levo lá se você jurar que não vai denunciá-lo.
     -- Eu nunca denunciaria o homem que tentou salvar a vida do Bono.
     -- E vai permitir que ele use seus métodos para salvá-lo? É contra as leis da Igreja usar magia.
     -- Eu venderia minha alma para salvar o Bono. Esse feiticeiro pode fazer qualquer tipo de mágica para salvá-lo.
     -- Certo. Levarei vocês até ele. Mas preciso da sua ajuda para colocar seu marido no cavalo. Ele é pesado demais para mim.
* * * * *

     O peso excessivo, além da dificuldade para segurar um homem desmaiado em um cavalo, não permitia que eles avançassem muito rápido. Demorou quase uma hora para que chegassem ao destino: uma cabana construída em meio às árvores, próxima a um riacho, no coração da floresta. O menino loiro desceu do cavalo, e ajudou Glory a fazer o mesmo, em seguida colocando Bono no chão.
     -- Me espere aqui. - ele disse, se afastando em direção à casa – Eu já volto.
     Ele entrou na casa. Glory ficou abaixada junto a Bono, sem tirar a mão de seu peito, sentindo as batidas cada vez mais fracas de seu coração.
     Depois de alguns minutos, o garoto reapareceu, seguido por um homem mais velho com roupas estranhas. Glory se levantou quando ele se aproximou, e ele a analisou atentamente.
     -- O senhor é o feiticeiro? - disse Glory, com um tom ansioso na voz.
     -- Talvez seja. O que quer de mim?
     -- Salve o meu marido, por favor. Ele está muito ferido, não vai resistir por muito tempo.
     -- Vamos ver isso. - ele se abaixou e tocou no pescoço de Bono, em seguida em seu rosto, abriu seus olhos, analisou seu pulso – Está praticamente morto.
     -- Tente salvá-lo, senhor, ao menos tente, por favor...
     -- Farei o possível. - ele se virou para o garoto loiro – Larry, prepare a cama para ele.
     O garoto correu para dentro da casa. O feiticeiro pegou Bono e o levantou sem muita dificuldade.
     -- Venha comigo. - ele disse para Glory, que o seguiu para dentro da casa.
     A casa era definitivamente estranha, cheia de panelas e caldeirões e utensílios estranhos, mas Glory mal reparou nisso. Seguiu o feiticeiro até um quarto pequeno com uma pequena cama, onde ele depositou o corpo quase sem vida de Bono.
     -- Você pode salvá-lo?
     -- Talvez. Mas vai ser difícil. - ele se virou para ela – E não será de graça.
     -- Eu posso pagar. Não tenho dinheiro comigo, mas posso ir até a cidade e pegar minhas coisas. Tenho ouro.
     -- E como saberei se está dizendo a verdade?
     -- Se eu não lhe pagar, poderá fazer o que quiser comigo.
     Ele olhou dentro dos olhos dela, de tal forma que ela teve certeza de que estava lendo sua mente.
     -- Depois Larry irá com você até a cidade buscar o pagamento. - ela olhou para o menino loiro, que entrava no quarto carregando uma bacia e outros utensílios – Espere do lado de fora, ou vai me atrapalhar. Preciso de espaço aqui.
     Obediente, Glory saiu da casa e se sentou no chão, ao lado de uma árvore. Ficou rezando mentalmente para que os anjos iluminassem aquele homem e lhe dessem poder para curar Bono. Porque ela tinha certeza de que ele só sobreviveria se acontecesse um milagre.
     Muito tempo se passou, horas e horas. Glory já não tinha mais lágrimas para chorar, e olhava em volta, curiosa. Havia dois cavalos andando soltos próximo à casa, e um deles era o cavalo do menino loiro – Larry, se ela ouvira bem. A casa não era bem uma casa; provavelmente, fora o próprio feiticeiro que a construíra sozinho.
     Então, finalmente, Larry apareceu. Parecia exausto, e sua camisa estava manchada de sangue e de outros líquidos estranhos.
     -- E então? - ela disse, se levantando – Como ele está?
     -- Não está sangrando mais. Nós limpamos e fechamos os ferimentos. Demos uma poção para ele, para combater qualquer infecção, e outra para repor o sangue. Tudo o que podemos fazer por enquanto é esperar e ver como ele vai reagir.
     -- Eu posso ver ele?
     -- Pode.
     Ela o seguiu para dentro de casa, até o quarto onde Bono estava. Ele não estava mais tão pálido, e respirava lentamente. Eles haviam tirado sua camisa, e havia várias ataduras protegendo os ferimentos. Glory tocou no rosto dele, com os olhos cheios de lágrimas.
     -- Será que ele vai sobreviver?
     -- Não sei.
     -- Obrigada. - ela se virou para o garoto – Muito obrigada por ter nos ajudado.
     -- Eu não fiz nada demais.
     Nesse momento o feiticeiro apareceu, trazendo um tipo de recipiente de metal, de onde saía uma fumaça. Larry tocou no braço de Glory e fez um sinal para que ela se afastasse. Ela abriu caminho, e o feiticeiro se aproximou de Bono e ficou murmurando algo enquanto fazia o vapor passar pelo corpo de Bono.
     -- O que ele está fazendo? - Glory sussurrou.
     -- Isso é para que ele não acorde. - Larry sussurrou em resposta – Se ele acordar ou se mexer, vai morrer. Isso vai deixá-lo inconsciente e paralisado, mas vai mantê-lo vivo por enquanto.
     O feiticeiro terminou o ritual, e então saiu, fazendo um gesto para que o seguissem. Glory e Larry foram atrás, e Larry fechou a porta do quarto.
     -- Sente-se. - o feiticeiro disse para Glory, e a garota se sentou em um banco de madeira junto à mesa – Qual é o seu nome?
     -- Glory.
     -- Eu sou Adam Clayton, e esse é meu aprendiz, Lawrence. - ele indicou o garoto loiro, que limpava e guardava os utensílios que eles haviam utilizado – Qual o nome do seu marido?
     -- Bono.
     Ele deu um breve riso.
     -- Bono... Sim, já ouvi falar. É um cavaleiro lendário, não é? Um mercenário. Meu aprendiz disse que viu os corpos dos dez homens que ele matou na beira do rio.
     -- Sim, mas ele já tinha tido outra luta difícil ontem, ele lutou contra cinco homens muito fortes, e depois passou o dia cavalgando pela floresta atrás de mim... Quando eles nos atacaram, ele já estava muito cansado e estava ferido, não tinha a menor chance...
     -- E mesmo assim derrotou todos eles. É digno da fama que carrega. - ele se sentou à mesa, próximo a Glory – Larry, traga biscoitos e chá para a senhora. Você deve estar com fome.
     -- Um pouco. - ela corou – Muito obrigada por nos ajudar. Se quiser, vou agora mesmo à cidade buscar o seu pagamento.
     -- Não há pressa, você está cansada. Amanhã cedo, Larry a levará até lá. - o garoto colocou diante de Glory um pote de biscoitos e uma xícara de chá – Dinheiro não é muito usado aqui, de qualquer forma, mas é sempre bom guardar um pouco. O que vocês estavam fazendo na floresta?
     -- Eu... - ela ficou vermelha – Eu estava fugindo dele.
     -- Fugindo do seu próprio marido? Ficou com medo da noite de núpcias?
     -- Claro que não. E já somos casados há algum tempo.
     -- Então, por que estava fugindo?
     -- Eu cometi um erro. E ele tentou... Ele ia me matar.
     -- Não é o que parece. Ele ia morrer para que você pudesse fugir daqueles homens.
     -- Eu não sei por que ele fez isso. Ele ia mesmo me matar, e se eu não tivesse fugido, ele teria conseguido. Eu me escondi na floresta, mas me perdi, e no meio da noite esses homens me atacaram. Nessa hora o Bono chegou. Ele podia ter me deixado lá, ia ser uma ótima vingança, porque por causa do meu erro ele quase tinha morrido aquele dia. Mas mesmo assim ele quis me proteger. - ela suspirou – Eu não entendo.
     -- E provavelmente ele também não entende. É difícil compreender o coração de um homem.
     Glory comeu, pensativa. Quando terminou, uma sensação estranha e angustiante se espalhou por seu corpo, e ela começou a chorar. Adam tocou em sua mão, compreensivamente.
     -- A senhora parece muito jovem.
     -- Tenho catorze anos. - ela murmurou, entre soluços.
     -- E seu marido deve ser bem mais velho, não? Vinte e quatro, vinte e cinco anos?
     -- Vinte e sete.
     -- Deve estar sendo difícil pra você. Não parecem casados há muito tempo, demora um pouco para uma garota tão jovem se acostumar com as obrigações do casamento. E um homem como Bono deve exigir muito de você.
     -- Exige, sim. - e, de repente, as palavras começaram a sair de sua boca – Ele não é meu marido de verdade. Eu fugi para me casar com um cavaleiro, mas Bono matou o homem que eu amava e me obrigou a ir embora com ele.
     Ela parou. Não entendia porque tinha dito aquilo. Não devia contar seus segredos para um completo estranho. Mas Adam não parecia surpreso com aquela súbita revelação.
     -- Conte.
     E, sem que soubesse como, ela começou a contar. Contou tudo, desde sua vida no palácio, passando pela morte de sua mãe e pelo seu amor por Dave, até a prisão dele e como as coisas haviam chegado até ali. Quando terminou, ficou um tempo parada, olhando atônita para Adam.
     -- Como fez isso? - ela disse – Você me enfeitiçou?
     -- Só fiz com que colocasse seus demônios para fora. Sinto muito pelo que houve com você, princesa.
     -- Não sou mais princesa. Não sou ninguém.
     -- Claro que é. Uma princesa é sempre uma princesa. E entendo sua angústia. Um lado de sua mente deseja matar o homem que matou seu amado, e a outra parte deseja salvar a vida do homem que se demonstrou tão gentil e carinhoso com você.
     -- Eu não sei o que fazer, senhor Clayton... Estou tão confusa...
     -- Me chame de Adam. E você não tem que saber o que fazer sempre. Apenas fique aqui, e espere. Quando ele acordar, você poderá tomar uma decisão sobre que rumo seguir.
     -- Mas eu não tenho outra opção a não ser ficar com ele, e me submeter a ele. Se ficar sozinha, o que vai ser de mim?
     -- Quem sabe surja uma chance de as coisas melhorarem pra você? Mas já disse para não se preocupar com isso. Fique aqui até ele melhorar. Depois você toma uma decisão.
* * * * *

     Larry estava na beira do riacho, agachado, olhando atentamente para a água. Glory se aproximou, curiosa.
     -- O que está fazendo?
     -- Pescando.
     -- Mas não tem vara, nem lança...
     Sem explicações, Larry fechou a mão direita e a mergulhou na água. A abriu lentamente, movendo os lábios sem emitir som, em um ritual silencioso. Uma névoa esverdeada saiu de sua mão, espalhando-se lentamente pela água antes transparente. Quando ele tirou a mão, trazia nela um enorme peixe, que aceitava ser pego sem se debater. Ele o colocou na cesta que trazia ao lado, sem se importar com o olhar de surpresa de Glory.
     -- Como fez isso!?
     -- Mesmo que eu te explicasse, você não entenderia.
     -- Você também é um feiticeiro?
     -- Sou só um aprendiz.
     -- Que incrível. - ela olhou para o peixe na cesta, e só agora ele começava a se debater, já fraco pela falta de ar – Onde você mora?
     -- Aqui, com meu mestre.
     -- E seus pais?
     -- Meus pais morreram.
     -- Sinto muito... Você vive aqui há quanto tempo?
     -- Anos. - ele se sentou na beira do rio, olhando a outra margem – Muitos anos.
     -- Porque vivem em um lugar tão escondido?
     -- As pessoas das cidades não aceitam bem nossa magia.
     -- Você parece ser muito jovem.
     -- Tenho a sua idade.
     -- E com quantos anos se tornou discípulo de Adam?
     -- Sete.
     -- Você já era órfão?
     -- Sim.
     -- E não é ruim viver aqui? Digo, não sente falta das pessoas?
     -- Não me importo com as pessoas.
     -- Mas e se vocês precisarem comprar algo?
     -- Vou à cidade só para comprar louças, ou grandes quantidades de ferro, ouro e prata pura. Precisamos para produzir os utensílios que utilizamos aqui, e uma ou outra espada que nós mesmos forjamos.
     -- Então, vocês também sabem fazer espadas?
     -- Não é a nossa especialidade, mas elas cortam.
     -- E você sabe muitas magias?
     Ele olhou para ela, com seus olhos azuis claríssimos, e parecia um pouco aborrecido.
     -- Você fala demais.
     Ela foi pega de surpresa, e não soube o que dizer. Ele encostou um dedo na testa dela e disse:
     -- Durma.
     Por um segundo, a vista dela ficou embaçada. Ela balançou a cabeça, confusa, e quando olhou de novo, Larry havia desaparecido.
* * * * *

     Adam riu quando ela lhe contou o que Larry havia feito.
     -- Não se importe com ele, não está acostumado a lidar com garotas. Acho que nenhuma mulher se aproximou dele do jeito que você fez.
     -- Não justifica ele ter me enfeitiçado e desaparecido!
     -- Garotas falam muito. E ele fala pouco mesmo para um homem. Você o assusta.
     -- Assusto como?
     -- Se aproximando dele. Ele é um rapaz muito reservado.
     -- Ele disse que vive com você desde os sete anos, e que os pais morreram.
     -- É verdade.
     -- Como eles morreram?
     -- Se continuar sendo tão curiosa, ele vai acabar te sufocando com um travesseiro no meio da noite. Não faça tantas perguntas sobre a vida das outras pessoas.
     -- Mas você quis saber sobre a minha vida inteira, eu tenho o direito de saber algo sobre vocês.
     -- Tudo o que precisa saber sobre mim é que não sou bem vindo nas cidades e que conheço a magia. E tudo o que precisa saber sobre o Larry é que ele é meu aprendiz.
     -- Não gosto muito dele.
     -- Devia gostar. Ele é que te trouxe até aqui. Se não fosse por ele, Bono estaria morto e você estaria sozinha na floresta.
     -- Onde ele está agora?
     -- Por aí. Até o anoitecer ele aparece.

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