terça-feira, 3 de agosto de 2010

[fanfic #003] [capítulo #016] [U2] As Terras do Norte - Feitiços e Maldições


AS TERRAS DO NORTE

CAPÍTULO 16
FEITIÇOS E MALDIÇÕES
“You know he went astray
He used to stay awake
To drive the dreams he had away
He wanted to believe
In the hands of love”
(U2 - Exit)

     Ainda faltavam algumas horas para a meia noite, mas todos já estavam no quarto de Christian. O garoto estava deitado, semi-consciente, e a cada minuto que passava parecia sentir mais dor. Glory estava sentada ao lado dele, segurando sua mão, enquanto Adam e mais duas curandeiras faziam todo o possível para aliviar a dor dele, junto de Larry e alguns criados. Bono apenas observava, afastado. Dave chegou bem depois dos outros, e entrou em silêncio no quarto, indo para junto de Bono.
     -- Como ele está?
     -- Péssimo. - disse Bono – Poucas vezes vi alguém agonizar por tanto tempo.
     -- É cruel o que fizeram com ele. Eu me lembro da Rainha, mãe de Glory, e ela sempre me pareceu tão gentil. Não acredito que tenha feito isso.
     -- Mas fez. As mulheres podem ser terríveis quando estão com raiva. Mas talvez depois ela tenha se arrependido, quando já era muito tarde. - ele se apoiou na janela, tomando o cuidado de não ficar no meio do caminho, para não atrapalhar os outros – Fez o seu sacrifício?
     -- Sim. Escolhi um daqueles homens que foi preso por matar as crianças com magia negra.
     -- Ótima escolha. Certos criminosos deixam até a mim chocados.
     -- Duvido que nunca tenha matado uma criança.
     -- Já, mas sempre da forma mais rápida possível. Claro que já violentei uma ou outra, mas isso não conta. Nem se compara com o que eles faziam lá. Cortar o pescoço e usar magia para deixar as crianças acordadas até a morte, mesmo que levasse horas... Eu jamais faria isso.
     Nessa hora, o sino tocou, anunciando onze e meia. Christian deu um grito de uma forma muito pior do que vinha gritando até então.
     -- Christian! - Glory o abraçou – Calma, irmãozinho, calma...
     -- Ele não pode te ouvir, Glory. - disse Adam, tentando inutilmente fazer com que Christian bebesse uma poção – Já não há nada que possamos fazer. O melhor é não tocar nele.
     -- Eu não vou deixar ele! Vou ficar aqui, com ele! Christian...
     -- Mestre – disse Larry, que tinha lágrimas nos olhos, e parecia em pânico – não podemos matá-lo de uma vez?
     -- Não. Lembra-se de como o ferimento no braço dele cicatrizou rápido? Ele tem uma magia de proteção. Nada pode matá-lo, apenas a maldição. Ele deve sofrer até a morte.
     Até Dave estava se sentindo enjoado. Christian gritava e se debatia como um animal agonizante, e começou a tentar rasgar as próprias roupas. Suas unhas faziam arranhões fundos em sua pele, que sangravam mas logo cicatrizavam magicamente.
     -- Glory, afaste-se dele. - disse Larry, tentando fazer Glory soltar Christian – Não sabemos o que pode acontecer quando der meia-noite. Ele pode machucar você.
     -- Eu não vou deixar ele! Vou ficar com ele!
     -- Tire ela dali. - disse Adam, para Bono – Ela pode se machucar de verdade.
     -- Glory, venha. - Bono a segurou firmemente, a puxando para longe de Christian – Não há nada que você possa fazer.
     -- Não! Me solta! - ela tentava se livrar de Bono, debatendo-se – Eu quero ficar junto dele! Christian! Christian!
     -- É agora. - disse Adam, olhando para a lua cheia no céu – Está acabado.
     Naquele exato instante o sino tocou, anunciando a meia noite; um vento forte invadiu o quarto, fazendo todos sentirem arrepios. Christian deu um grito que foi ouvido até de fora do castelo, quase se ergueu da cama, e por fim seu corpo caiu de volta sobre os lençóis manchados de sangue, inerte e sem respiração.
     -- Não... - Glory tapou o rosto com as mãos – Christian...
     Larry levara a mão à barriga, sentindo-se muito enjoado. Adam foi até a cama de Christian e tocou no rosto do rapaz, em seguida verificando seu pulso.
     -- Está morto.
     -- Limpem-no e o deixem pronto para o sepultamento. - disse Bono – Podemos fazer isso pela manhã. Ele será enterrado no cemitério do castelo.
     Glory chorava sem parar, abraçada a Dave, que nada podia fazer para consolá-la. Então, uma das criadas que fora limpar o sangue da cama e das roupas de Christian gritou, fazendo todos olharem para ela. Antes que alguém perguntasse o que acontecera, eles viram: Christian estava de olhos abertos, e respirando.
     -- Christian! - Glory gritou, indo correndo até ele, mas Adam a segurou, impedindo-a.
     -- Espere. Pode ser perigoso.
     -- Perigoso? É o Christian! Ele não morreu!
     -- Ele morreu. Alguma coisa está errada.
     Nesse momento, Christian se sentou na cama. Os criados ao redor haviam se afastado, assustados.
     -- Quem é você? - disse Adam, aproximando-se com cautela.
     -- Eu? Eu sou eu. - ele balançou a cabeça, parecendo confuso – Christian.
     -- Por que você está aqui?
     -- Aqui? Eu... Eu não sei.
     -- Você não sente mais dor?
     -- Dor? Dor... Não. Eu sinto... Fome.
     -- Mas o que aconteceu? - disse Bono, mas Adam fez um sinal para que ele se calasse.
     -- Você sente fome?
     -- Sim. - Christian cruzou os braços contra a barriga – Muita.
     -- E o que você quer comer?
     -- Eu não sei.
     -- Está com fome de algo que nunca provou?
     -- Não sei.
     Ele parecia realmente confuso. Glory disse:
     -- Adam, o que está acontecendo?
     -- A maldição não era para matá-lo.
     -- Era para o que, então?
     -- Não faço a menor idéia.
     Christian olhou para todos ali, e seus olhos se encheram de lágrimas. Estava cada vez mais confuso, e apertou mais a barriga. Sentia tanta fome.
     -- Glory... - ele estendeu a mão para Glory, e Glory quis ir até ele, mas Adam não deixou.
     -- Não, Glory. Ainda não sabemos o que aconteceu. Pode ser perigoso.
     -- Perigoso por quê? É o Christian!
     -- Ele pode te machucar sem querer. Vamos descobrir o que houve, primeiro. - ele se dirigiu a uma das criadas – Traga o jantar para ele. Vamos ver o que ele vai querer comer.
     Os criados foram, e voltaram logo depois. Mas nenhum parecia muito disposto a se aproximar de Christian, uma vez que por alguns minutos ele estivera morto.
     -- Que bobagem, alguém tem que fazer isso. - disse Adam, impaciente – Larry, vá você. Dê comida a ele.
     Também impaciente por aquele medo dos criados, Larry pegou a bandeja que um deles trazia e levou até Christian. O garoto olhou para a bandeja, como se visse comida pela primeira vez e não soubesse exatamente o que fazer com aquilo.
     -- Você não está com fome? - disse Larry – Coma.
     -- Sim, estou com fome... - Christian também não estava entendendo muito bem, e pegou o garfo – É só que...
     -- O que houve, Christian? - disse Adam, se aproximando – Não é isso o que quer comer?
     -- Não sei. - ele começou a comer, bem lentamente – Está bom... Mas...
     -- Mas falta alguma coisa. Tente descobrir o que é.
     Mas Christian sabia tanto quanto os outros. Olhou para Larry, que estava ao seu lado, e de repente sentiu algo, um cheiro muito bom, irresistível. Antes que pudesse pensar no que estava fazendo, ele puxara Larry pelo braço, com uma força sobre-humana, e o jogara na cama. Subiu nele e ia morder seu pescoço, mas Bono, Dave e Adam o arrancaram de cima do rapaz.
     -- Christian! - Glory gritou – O que está fazendo?
     Christian olhou de Larry para Glory, confuso.
     -- E-eu não sei... - D-desculpe...
     -- Ele te mordeu? - disse Adam, para Larry, fazendo o garoto se levantar e verificando se seu pescoço estava intacto.
     -- N-não, eu acho... - Larry estava muito pálido – O que foi isso?
     Só quando teve certeza de que Larry estava bem Adam se voltou para Christian. O garoto recuou, mas Bono e Dave o seguraram.
     -- Abra a boca. - Adam ordenou.
     -- O-o que?
     -- Abra a boca ou o queimaremos vivo agora mesmo. Ande!
     Christian abriu a boca. Adam analisou seus dentes, e depois examinou seus olhos.
     -- O que ele virou? - disse Dave – Um comedor de carne humana ou algo assim?
     -- Não. - Adam o soltou – Ele é um vampiro.
     -- Vampiro!? - disse Christian, olhando de um para o outro – Mas eu não posso ser um vampiro, não fui mordido por um!
     -- Como acha que surgiram os primeiros vampiros? A pessoa é amaldiçoada, morder é apenas uma forma de reprodução. Toda maldição tem uma forma de reprodução. Ao contrário de The Edge, você não poderá ter filhos. Sua forma de reprodução é através da mordida.
     -- E o que acontece agora? - disse Glory, que já não queria tanto assim chegar perto de Christian.
     -- Eu não tenho certeza. Larry, você estudou isso a menos tempo do que eu. O que acontece?
     -- Vampiros. - ele buscou na memória o que tinha lido sobre o assunto – Uma pessoa pode virar vampiro ao ser mordida ou amaldiçoada. Deve fazer um sacrifício toda noite de lua cheia, ou morre. Sua alma só é do demônio caso tenha feito um pacto, caso contrário, é julgada como um ser humano. O sacrifício é... Eu não lembro... Ah, sim, ele deve beber todo o sangue de uma pessoa virgem.
     -- Beber o sangue? - disse Dave, que ainda segurava Christian por precaução – Então a pessoa vai se tornar um vampiro também?
     -- Acho que não. Mas não lembro direito.
     -- Eu também não me lembro. - disse Adam – Vá ao meu quarto, Larry, e traga o livro sobre maldições e animais místicos.
     -- Sim, senhor.
     Ele saiu. Adam também deu ordem a todos os criados para saírem. No quarto, ficaram apenas ele, Christian, Bono, Dave e Glory.
     -- Estou com fome... - Christian choramingou.
     -- Vamos lhe dar algo assim que soubermos exatamente do que você precisa. Mas você vai ter que esperar.
     -- Você não sabe essas coisas de cabeça? - disse Bono – Achei que fosse um grande mago.
     -- E sou, majestade – ele falou aquilo com muita irritação – mas tenho dez anos a mais de vida do que você e já não me lembro do que estudei quando tinha a idade de Larry. É a segunda vez em toda a minha vida que me deparo com um vampiro, e a última vez foi antes de Larry nascer.
     Logo Larry voltou, trazendo um enorme e pesado livro. Adam logo encontrou a parte que falava sobre vampiros.
     -- Aqui está. - ele leu – Larry, você acertou tudo, muito bem. Agora, a pessoa mordida não se torna um vampiro. Se você beber o sangue todo, ela morre, e é isso o que deve fazer na lua cheia, e deve ser uma pessoa virgem. Você não precisará beber sangue nas outras noites, mas sentirá vontade. Poderá comer comida normal, mas o sangue humano será para você como um doce muito bom, que você vai querer desesperadamente comer. Se você morder alguém durante essas noites, e sugar o sangue todo, ela morre, como eu já disse. Se não sugar o suficiente para que ela morra, ela continuará a ser humana, mas ficará marcada, atrairá os vampiros. Essa pessoa só se tornará um vampiro se você permitir que ela beba seu próprio sangue. Apenas três gotas são o suficiente.
     -- Então, eu vou ter que matar uma pessoa hoje?
     -- Sim, um virgem. Nas noites de lua cheia, virgens se tornam irresistíveis para você. Por isso você atacou o Larry daquele jeito.
     Larry se afastou, apreensivo, e Christian tentava não olhar para ele, pois quando o fazia, sentia a fome aumentar de uma forma insuportável.
     -- É só isso? - disse Bono – Digo, Edge também faz sacrifícios, mas ganhou poderes e algumas outras coisas...
     -- Sim, há mais. Você pode dar adeus à luz do sol, Christian, pois se ela o tocar, você morrerá queimado. Só poderá andar à noite.
     -- Ele pode virar um morceguinho? - disse Glory, e Adam riu.
     -- Não, isso é lenda. Mas você pode conversar com os animais noturnos. Pode controlá-los. E também pode se desmaterializar, é daí que vem a crença de que os vampiros usam uma capa e voam... Você se torna uma espécie de nuvem preta que pode voar pelo ar, como fumaça. Mas não pode morder ninguém assim, tem que se transformar em humano. Ah, você nunca mais entrará em igrejas, nem tocará em crucifixos, e se jogarem água benta em você, você vai sentir muita dor. Nem tente fazer orações, pergunte depois a Dave o que acontece. - Dave pareceu aterrorizado só de pensar em fazer uma oração – Você pode hipnotizar pessoas por um período curto. Pode sentir o cheiro de alguém a quilômetros. E há outras coisas que você vai descobrir com o tempo.
     -- Que legal... - disse Dave, pensando se não teria sido melhor virar um vampiro.
     -- Não é legal. - disse Christian – O que faço agora? Estou morrendo de fome.
     -- E vai morrer mesmo, se não beber sangue. Terá que encontrar um virgem e sacrificá-lo.
     -- Mas eu não posso fazer isso! Não posso machucar alguém! Aquele dia, quando eu matei aquele lobo, eu já fiquei me sentindo péssimo... Se ele tivesse atacado a mim eu teria morrido, só fiz aquilo porque ele atacou a princesinha...
     -- Você não tem escolha. Não vai querer morrer assim, acredite em mim. Seria muito nobre da sua parte e Deus te aceitaria na mesma hora no Paraíso, mas você não vai querer experimentar o processo. E Glory sofreria demais. Você não vai querer deixar ela sofrendo, vai?
     Christian olhou para Glory, e baixou a cabeça.
     -- Tem razão.
     -- Então, faça o seu sacrifício.
     -- Mas...
     -- Você não precisa matar um inocente. - disse Bono – Temos muitos prisioneiros nas masmorras, vários deles condenados à morte. Com certeza alguns são virgens. Estará fazendo um favor ao matar eles.
     -- Eu... Não sei...
     -- Me deixem conversar com ele. - disse Dave – A sós.
     Bono se voltou para ele.
     -- Tem certeza?
     -- Absoluta. Não precisam se preocupar, não sou virgem. E controlo meus poderes melhor do que ele. Preciso falar sozinho com ele.
     -- Certo. - disse Adam – Vamos lá para fora. Mas não se demorem. Logo a lua começara a descer, e ele ficará cada vez mais fraco.
     Os outros saíram. Antes de sair, Glory correu até Christian e o abraçou. O garoto correspondeu, com lágrimas nos olhos, e ficou olhando para ela até que a porta se fechasse e ele ficasse sozinho com Dave.
     Poucos minutos depois, a porta voltou a se abrir. Todos estavam no corredor, e Glory andava de um lado para o outro. Dave saiu, seguido por Christian, que vinha de cabeça baixa.
     -- Ele vai fazer. - disse Dave – Bono, por favor leve Christian até as masmorras para que ele escolha a vítima. Mas é melhor que venham fazer isso aqui em cima, para não assustar os outros prisioneiros.
     -- Certo. - ele fez um sinal para Christian – Siga-me.
     Christian seguiu Bono em direção às masmorras. Glory estava impressionada.
     -- Como você conseguiu convencer ele tão rápido?
     -- Eu passei pelo mesmo que ele. Além disso, Christian sempre ouviu a mim antes de ouvir os outros. Eu sabia o que dizer.
     -- E você ainda sentia ciúmes dele...
     -- Isso foi há muito tempo. - ele abraçou Glory – Eu tinha muito medo de te perder naquela época. Hoje não tenho mais nada a temer.
     Pouco depois, Bono e Christian voltaram, trazendo uma moça jovem, que estava algemada e parecia muito assustada. Glory disse:
     -- Quem é essa?
     -- A vítima. - disse Bono – Ela foi condenada à morte por matar os três filhos de um camponês e praticar bruxaria. Não fará nenhuma falta, seria executada daqui a dois dias.
     Bono levou a mulher até o quarto. Christian entrou também, seguido pelos outros. Disse:
     -- Eu acho melhor... Desamarrar ela.
     -- Não acho que seja prudente. - disse Bono.
     -- Qual o problema? - disse Dave – É só uma mulher. Temos cinco homens aqui.
     -- Mesmo assim. Não é bom facilitar.
     Christian se aproximou da mulher, que não estava entendendo nada e parecia bastante assustada. Ela olhou para ele, e os dois se encararam por um tempo; e então a expressão de medo sumiu, e ela passou a olhar com um ar vazio.
     -- Pode soltar ela. - disse Christian, sem saber exatamente como fizera aquilo.
     -- Você a hipnotizou? - disse Glory.
     -- Acho que sim.
     Bono a soltou. Christian fez ela se sentar na cama, e ficou um tempo olhando para ela. Sentia cada vez mais fome, chegava a ficar tonto por alguns segundos.
     -- Faça logo, Christian. - disse Adam – Já está ficando tarde.
     -- Eu... Eu não sei como fazer.
     -- Apenas siga seus instintos, da mesma forma que fez quando a hipnotizou. Assim que começar, vai saber o que fazer.
     -- Certo. E-eu... Vou fazer.
     Ele se aproximou dela. Ela olhou para ele, sem nenhuma expressão. Ele tocou no pescoço dela, e algo lhe dizia o que tinha que fazer. Glory disse:
     -- Então, pra ele agora as pessoas são comida?
     -- Mais ou menos. Animais também são comida, mas muitas vezes os tratamos como companheiros. Além disso, para um vampiro, o ritual de beber o sangue é tanto um ritual de alimentação quanto um ritual sexual. Como eu disse, pode ser uma forma de reprodução. Morder alguém é o mesmo que fazer sexo.
     Nesse momento Christian parou, e ficou muito vermelho.
     -- Eu... Ahm... Eu prefiro fazer isso sozinho.
     Bono suspirou, impaciente.
     -- Christian, pelo amor de Deus...
     -- E-eu não vou conseguir com todo mundo me olhando desse jeito.
     -- Certo. - disse Adam – Vamos deixar vocês a sós. Mas não demore. Lhe daremos alguns minutos.
     Eles saíram, deixando Christian sozinho com a mulher, que ainda estava naquele estado de sonambulismo. Ele se sentou ao lado dela.
     -- Olha, eu... Desculpa, tá? Desculpa. Mas você foi muito má, então... Então eu tenho que fazer isso, sabe? Porque eu prometi ao rei Artur que iria proteger a princesinha Glory. Mas eu não queria fazer isso. De verdade mesmo. Desculpa.
     Do lado de fora, Glory estava sentada em um banco, agoniada. Bono brincava com uma adaga, e Adam e Larry conversavam algo sobre magia, rituais e vampiros. Dave se sentou ao lado de Glory e a abraçou pelos ombros.
     -- Não precisa se preocupar. Vai ficar tudo bem.
     -- Será?
     -- Tenho certeza. Mesmo que não queira, Christian vai fazer. Você viu como ele atacou o Larry aquela hora, isso é mais forte do que ele. Eu sei o que é isso, passo pela mesma coisa. Mesmo que não queira, ele vai fazer.
     -- Tadinho dele, Dave... Ele é tão bonzinho, sempre foi tão gentil com as pessoas, e agora vai ter que fazer isso todos os meses... Ele deve estar tão triste...
     -- Ele vai se acostumar, assim como eu me acostumei. Nem sempre matar alguém é uma coisa ruim, Glory. Eu nunca matei alguém que não merecesse morrer. Aquela mulher que ele vai morder, fomos eu e sir Michaell que a prendemos, junto de um grupo de mais dez ou onze pessoas. Todas elas praticavam bruxaria e cometiam crimes terríveis. Ela seria executada depois de amanhã. De certa forma, o que Christian está fazendo é uma coisa boa. Ele está vingando todas as pessoas que ela matou ou prejudicou.
     Glory se acalmou um pouco, mas ainda estava apreensiva. Achava que Christian estava demorando tanto. Mas mal pensara isso, e a porta do quarto se abriu. Christian apareceu, e embora parece arrasado, estava com uma aparência bem melhor do que a que estava minutos antes, mais forte e corado.
     -- Terminei. - ele disse.
     Adam colocou uma mão em seu ombro, reconfortando-o.
     -- Se sente melhor?
     -- Sim.
     -- Não está mais com fome?
     -- Não.
     Dentro do quarto, a mulher estava deitada na cama, sem vida. Adam entrou e a analisou: ela estava mais pálida do que ele jamais vira alguém ficar, e havia dois furos em seu pescoço, além de algumas gotas de sangue nela e no lençol. Larry também ficou olhando, e disse:
     -- Quanto sangue tem uma pessoa?
     -- Muito. - disse Christian – Litros e litros.
     -- E você bebeu tudo?
     -- Bebi.
     -- Como é? - disse Glory, também se aproximando da cama.
     -- Bom. Eu me senti... Ótimo. - ele baixou a cabeça – Mas também me senti triste.
     -- Você fez muito bem. - disse Dave – Agora, só precisa se preocupar com isso na próxima lua cheia.
     -- Você sentirá vontade de morder as pessoas nos outros dias. - disse Adam – Será uma vontade forte, mas não incontrolável. Você não precisa fazer isso.
     -- Não farei. - ele balançou a cabeça – De jeito nenhum.
     -- Christian... - Glory o abraçou – Que bom que você não morreu, irmãozinho. Eu fiquei tão triste quando achei que você tinha morrido.
     -- Eu vou ficar sempre com você, princesinha. - ele correspondeu ao abraço dela – Vou sempre proteger você.
     -- Sempre, mesmo. - disse Adam – Você não vai envelhecer, Christian, e é pouco provável que morra, a não ser que queira morrer. Armas humanas não podem te machucar. Da mesma forma é com Dave. Mesmo que seja ferido, basta fazer seu ritual, e se restaurará completamente.
     -- Eu não quero viver pra sempre. - ele olhava para Glory – Só o suficiente para estar sempre ao lado da princesinha Glory. Ela é a única razão da minha existência.
     Glory sorriu, e os dois se abraçaram novamente.
* * * * *

     Bono e Glory estavam ajoelhados diante do Rei Hewson, que falava as palavras tradicionais da cerimônia de coroamento. Quando ele terminou, o padre abençoou as coroas, concedendo a elas o poder divino. Dave assistia de longe, e quando o padre começou uma oração, ele saiu, pois aquilo o machucava. Sabia que iria demorar ainda algum tempo, então desceu até as masmorras, onde Christian aguardava, sentado em um grande barril de vinho.
     -- Já acabou? - o garoto perguntou, ansioso.
     -- Ainda não. - Dave se sentou em outro barril, próximo a ele – O padre está rezando, pelo jeito ainda vai demorar horas. Você não devia dormir um pouco?
     -- Já dormi a manhã inteira, até pouco depois do meio-dia. Meu corpo ainda não se adaptou a isso. - ele suspirou – Queria tanto estar lá em cima. Queria ver a princesinha se tornar rainha.
     -- É um grande momento. Mas vai poder vê-la hoje à noite.
     -- Eu sei.
     -- Deve estar sentindo falta dos seus jardins, não é?
     -- Estou. Majestade Paul disse que eu poderei continuar a cuidar deles, mesmo à noite, mas não é a mesma coisa. Não posso ver a beleza das plantas quando não há luz.
     -- Mas você enxerga muito bem no escuro, não é?
     -- Como se fosse dia. Mas é uma forma estranha de enxergar. As cores não são as mesmas. Sinto falta da luz do sol.
     Passos soaram, indo em direção a eles, e Gill apareceu na porta.
     -- O que estão fazendo aí?
     -- Estou esperando o padre parar de rezar. - disse Dave – E também fazendo companhia a Christian.
     -- Ei, morceguinho, como você está?
     -- Estou bem. - Christian pensou um pouco – Acho que estou com fome.
     -- Ih, nem vem...
     -- Não, é fome normal... Não almocei hoje. E não posso ir lá em cima.
     -- Vou pegar alguma coisa para você comer, então.
     Ela saiu. Dave disse:
     -- Você não teve mais vontade de morder ninguém?
     -- Tive. Às vezes... - ele fechou os olhos – O cheiro... É quase irresistível. Não é com qualquer pessoa, mas... Eu achava que fossem só mulheres, mas alguns homens também.O senhor, por exemplo, eu não sinto vontade de morder, nem a princesinha, nem o príncipe. Mas se Larry chega perto de mim, tenho que me controlar para não atacá-lo. Ele é irresistível. Já sonhei que estava mordendo ele.
     -- Uau, Christian. Que paixão violenta.
     -- Pára. - ele ficou vermelho, ou o mais vermelho que um vampiro era capaz de ficar – Já basta o príncipe dizendo essas coisas.
     -- Desculpe. Eu sei que não é nada disso. Mas você tem esses... Desejos com mais alguém?
     -- Alguns criados do castelo. Os virgens são melhores. Mas a cozinheira, ela é casada e tudo o mais, mas parece ter o sangue tão doce...
     Nessa hora Gill voltava, trazendo uma travessa com o que restara do almoço.
     -- Aqui está, Christian. Pedi uma carne mais sangrenta porque achei que você fosse gostar.
     -- Obrigado.
     -- Dave, a cerimônia com o padre já terminou, eles estão dizendo os juramentos e já vão receber a coroa.
     -- Eu vou lá. Depois a gente se vê, Christian.
     -- Sim, senhor.
     Gillian e Dave voltaram para o salão, onde Bono e Glory diziam as últimas palavras do juramento. Então, o rei colocou sua coroa em Bono, e a coroa que fora da rainha em Glory.
     -- Eles são os reis agora. - disse Gill.
     -- Sim. - disse Dave – Quero saber qual vai ser a primeira atitude de Bono como rei.
     O ex-rei se retirara para o trono secundário, e Bono e Glory se sentaram nos tronos principais. A sala estava em silêncio absoluto, todos os olhares dos súditos voltados para os dois.
     -- Está iniciada a primeira sessão real do trigésimo nono reinado do Reino do Norte. - disse Bono – Sir Michaell e sua esposa, aproximem-se.
     Sir Michaell e Hally se aproximaram, surpresos por serem os primeiros a serem chamados. Bono disse:
     -- Sir Michaell e senhora Hally, eu lhes entrego o título de Duque e Duquesa de Hagery. - o olhar de Hally quase fez Glory rir – Sir Michaell, mostre-me sua espada.
     -- Uau! - Gill sussurrou para Dave – Aposto qualquer coisa como a Hally vai começar a chorar.
     De fato, depois que Bono terminou a cerimônia de entrega do título, Hally estava chorando rios. Glory a abraçou, sorrindo, e Hally parecia que ia desmaiar de tanta emoção.
     Depois daquilo, Bono começou a entregar títulos e espadas aos novos cavaleiros, jovens garotos que haviam sido treinados no último ano. Depois entregou o título de sir a dois cavaleiros, e quando a cerimônia parecia ter chegado ao fim, ele disse:
     -- Esse será o último ato de hoje. - ele e Glory se olharam brevemente – Sir David Evans, aproxime-se.
     Surpreso, Dave se aproximou. Ajoelhou-se diante de Bono e Glory, como deviam fazer todos os súditos, mas odiava a idéia de ficar de joelhos diante de Bono.
     -- Sir Evans, eu o nomeio Gran Cavaleiro Imperial e líder de todos os cavaleiros desse reino. Mostre-me sua espada.
     Aquilo significava que, agora, Dave não era mais um cavaleiro como os outros: ele era o líder de todos os cavaleiros daquele reino e, consequentemente, de todos os cavaleiros de todos os outros reinos. Na prática, ele seria considerado o mais forte e experiente dos cavaleiros, e a única pessoa que poderia desfazer uma ordem sua seria o próprio rei.
     Em toda a sua vida, Dave nunca sonhara em ter tal título, por isso ficou algum tempo olhando para Bono, duvidando que ele estivesse realmente fazendo aquilo. Bono sorriu, e afinal Dave despertou, desembainhando sua espada e a colocando diante de Bono.
     A espada de Dave não era uma espada como outra qualquer. Ela tinha o poder das bruxas da floresta, e era inquebrável. Só de olhar para ela, era possível perceber que havia algo de muito diferente de uma espada comum. Bono daria a alma para ter uma espada como aquela. Ficou um tempo olhando para ela, e então disse as palavras rituais, que simbolizavam a entrega do novo título a Dave. Quando terminou, entregou a espada de volta para Dave, que a pegou como se a visse pela primeira vez.
     -- Obrigado, Majestade. - ele disse, fazendo uma reverência, e então se retirou.
     -- Essa sessão está encerrada. - disse Bono, e logo se retirou, com Glory.
     -- Dave! - disse Dick, correndo para Dave – Meu Deus, parabéns!
     -- Ahm... Obrigado...
     -- Por que não me contou que ia ser nomeado líder dos cavaleiros?
     -- Eu não sabia! Bono não me disse nada sobre isso, eu... Eu não esperava...
     -- Parabéns, Dave. - disse Gill – Você merece isso. É o cavaleiro mais forte que eu conheço.
     -- Talvez... Eu ainda não acredito que ele fez isso...
     -- Realmente – disse Dick – depois de tudo o que aconteceu, vocês deviam se odiar, e não confiar um no outro.
     -- Não necessariamente. Na guerra, você acaba muitas vezes se aliando com alguém que em outros tempos foi seu maior inimigo.
* * * * *

     Depois de anoitecer, Glory correu para ver Christian nos jardins, e Dave aproveitou para falar com Bono a sós.
     -- E então, cavaleiro – Bono disse, mal Dave entrara no quarto – como se sente com seu novo título?
     -- Tenho que te agradecer. - disse Dave – Nunca sonhei com tal coisa. Mas por que fez isso? Eu não mereço tal título. Existem muitos outros cavaleiros que estão na sua guarda há muito mais tempo.
     -- E você é melhor do que todos eles.
     -- Como pode saber?
     -- Porque eu já lutei com milhares de cavaleiros durante a minha vida, e venci todos sem dificuldades. Mas você... Você foi o único que eu não consegui vencer. Acho que poderíamos ficar lutando por dias sem que a luta tivesse um vencedor. E por isso eu o quero ao meu lado. Para que possa defender esse reino e Glory junto comigo.
     -- Farei isso por Glory, não por você. Jamais te aceitarei como meu rei, e só estou ao seu lado para poder ficar junto a ela.
     -- É uma pena que pense assim. - ele se virou para Dave – Você é um grande cavaleiro, The Edge. Eu gostaria que fossemos mais do que aliados estratégicos. Gostaria que fossemos amigos. Eu não tenho ressentimentos em relação a você.
     -- É claro, foi você que me matou, não o contrário. Eu não devia estar aqui hoje, Bono, e por sua culpa. Eu ainda tenho pesadelos com a minha morte, vejo você levando Glory para longe, imagino como a machucou quando estavam sozinhos na floresta. Eu posso ser seu aliado, mas jamais esquecerei o mal que causou a mim e a Glory.
     -- Eu sei disso. Talvez também não te perdoasse se tivesse acontecido o contrário. - ele segurou Dave pelos ombros – Mas estamos em uma nova vida agora. Eu sou o Rei Supremo, e você é o líder dos cavaleiros e meu homem de confiança. E amanhã à noite será lua cheia, e você sabe o que quero que faça.
     -- Já conversou com Glory sobre isso?
     -- Ela saberá na hora. Não acho que ela aceitará muito bem, mas nós a convenceremos.
     -- Não pense que vou obrigá-la a fazer algo assim. Se ela se recusar, eu não farei.
     -- Sabe quais consequências o aguardam se não fizer. - ele encostou os lábios no ouvido de Dave – Eu posso ser muito cruel quando quero.
     -- Pare com essas ameaças. - ele se afastou – E pare de me tocar desse jeito. Você é realmente muito estranho.
     -- Você nem imagina o quanto, cavaleiro.
* * * * *

     A noite do dia seguinte era de lua cheia. Logo que anoiteceu, Glory correu para os jardins, onde Christian conversava com Adam.
     -- Christian! - ela segurou a mão dele – Como você está?
     -- Estou bem por enquanto, rainhazinha. Mas estou com muita fome.
     -- O Bono disse que vai deixar você escolher o prisioneiro que quiser. Ele cancelou a execução de todos os prisioneiros virgens, para que você possa fazer seus sacrifícios.
     -- Eu sei, fui com ele nas masmorras outro dia, para ver quais eram os virgens... Mas e quando eles acabarem? Quando todos os prisioneiros virgens tiverem sido sacrificados, o que vou fazer?
     -- Deixe para pensar nisso depois, Christian. - disse Adam – Temos muitos prisioneiros, e mais chegarão. Caso aconteça de faltarem virgens para você, daremos um jeito.
     -- Isso mesmo, irmãozinho, não se preocupe. - ela olhou em volta – Ué, cadê o Larry?
     -- Eu não o deixei vir. Seria perigoso para ele.
     -- Eu não vou machucar o Larry, senhor Clayton. - disse Christian – Eu juro.
     -- Eu sei que não é sua intenção, Christian, mas você ainda não se controla direito e é melhor não corrermos riscos desnecessários. Se por acaso você perder o controle e morder Larry, mesmo que seja de leve, ele ficará marcado para sempre.
     Christian baixou a cabeça, parecendo muito triste. Nesse momento sir Michaell – agora Duque de Hagery – apareceu.
     -- Com licença, rainha, mago Clayton. Christian, tenho ordens de levá-lo até as masmorras para que escolha um prisioneiro para seu ritual.
     -- Eu achei que não fosse mais cavaleiro. - disse Christian, intrigado – O senhor não ganhou um título de duque?
     -- Sim, ganhei. - ele sorriu – Mas continuarei a ser um cavaleiro. Muitos duques e condes, até príncipes, são cavaleiros. Eu gosto de lutar.
     -- Ah, sim...
     -- Vamos? O rei disse para trazer o prisioneiro escolhido aqui para cima, para não alarmar os outros.
     -- Certo. Vamos.
     Dessa vez, Christian estava bem mais tranquilo, embora ainda ficasse triste por ter que fazer aquilo. Ele se retirou com sir Michaell para as masmorras, e Glory ficou sozinha no jardim escuro, com Adam.
     -- Onde está Larry? - ela disse, sentando-se em um banquinho.
     -- No quarto. Mandei que ele dormisse, não tem dormido direito nos últimos dias. Anda estudando muito e praticando muitas magias, e não quero que se esforce mais do que deve.
     -- Ele queria vir?
     -- Sim. Tem muita curiosidade sobre as habilidades de Christian e os rituais de sacrifício no geral. Mas achei que não seria prudente.
     -- Não acho que Christian fosse atacá-lo. Ainda falta muito para a meia-noite, ele ainda tem alto controle.
     -- Eu sei disso. Mas não quero arriscar. Larry exerce uma atração muito forte sobre Christian.
     -- Eu não entendo direito isso. Você não disse que, além de ser um ritual de alimentação, isso também era um ritual sexual? Então, o Christian só deveria querer morder mulheres.
     Adam sorriu e balançou a cabeça.
     -- Há muitas coisas que você não entende, princesa. Perdão, esqueço que agora você é rainha.
     -- Eu também esqueço... Mas o que eu não entendo?
     -- Coisas sobre os rituais, e sobre os seres humanos de uma forma geral. Coisas que você não entenderia mesmo se eu passasse a noite te explicando.
     Nesse momento Christian e o cavaleiro voltaram, e junto com eles vinha um jovem e belo rapaz, já hipnotizado. Christian não queria que as vítimas soubessem o que ia acontecer.
     -- Não me diga que esse homem é virgem. - disse Adam, pois o rapaz já devia ter mais de vinte anos.
     -- É sim. - disse Christian – Eu sinto.
     -- E por que ele está preso? - disse Glory.
     -- Ele matou um casal na cidade – disse Michaell – e roubou todo o dinheiro deles. O casal o havia abrigado alguns dias antes, mas o expulsaram após descobrirem que ele já fora preso antes também por roubo.
     -- Que horror...
     -- Vai fazer isso aqui – disse Adam – ou no seu quarto?
     -- Aqui. Fico mais tranquilo perto das minhas plantas. Mas gostaria de ficar sozinho, por favor.
     -- Tudo bem. Chame quando terminar.
     -- Sim.
     Quando eles saíam, Christian disse:
     -- Glory...
     -- Sim?
     -- Fique, por favor. Você pode.
     -- Tá bom. Eu posso, Adam?
     -- Claro. Mas não toque nele quando ele estiver bebendo o sangue. Ele pode te machucar sem querer.
     Glory prometeu que não o tocaria, e Adam e Michaell saíram, deixando-os a sós. Glory se voltou para Christian, curiosa. Ele fez o prisioneiro se deitar no chão, sobre a grama, e se ajoelhou ao lado dele. Ela disse:
     -- Por que quis que eu ficasse dessa vez? Achei que sentisse vergonha.
     -- E eu sinto, mas quero ter alguém vivo ao meu lado quando eu acabar. Me sinto tão sozinho. E você é a única em quem eu confiaria para ficar perto de mim.
     Ela sorriu. Ele se levantou e foi até ela.
     -- Sente-se. - ela se sentou no banquinho – Você não precisa olhar, tá? Eu não sei como é para quem vê, mas talvez seja um pouco assustador. Se você ficar com medo, é só olhar pro outro lado e esperar acabar. Mas não... Não toque em mim, como disse o mago Clayton. E também não me chame. Espere eu acabar para fazer qualquer coisa.
     -- Tá bom.
     -- E não precisa ter medo de mim. Eu não vou te machucar.
     -- Eu sei. Não tenho medo.
     Ele sorriu e se ajoelhou. Beijou a mão dela, e então se levantou. Respirou fundo e olhou para a lua cheia no céu. Então foi até o homem deitado no chão, e novamente se ajoelhou. O segurou, levantando-o sem dificuldade, e deixou que sua cabeça pendesse para o lado, expondo o pescoço. Glory olhava, muito curiosa. Então, Christian o mordeu.
     Glory não podia ver direito o que ele estava fazendo. Sabia que ele mordera o rapaz, mas por dedução, e não porque visse – Christian estava de costas para ela. Não parecia ter nada demais, ela não via motivos para ficar assustada. Mas no minuto seguinte, ela mudou drasticamente de idéia.
     Apesar de hipnotizado, o homem tinha alguma consciência. Quando Christian começou a sugar seu sangue, ele fez um som estranho, de algo parecido com dor, e tremeu com violência. Christian também fez um som, mas de satisfação, e passou a beber seu sangue com a vontade de um homem que atravessa um deserto durante dias e afinal encontra um oasis. Glory viu que o homem nos braços do garoto parecia sumir, secar, o sangue sendo sugado com mais rapidez de seu corpo do que ele poderia suportar. Christian, por sua vez, parecia absorver toda a energia do homem, parecia quase brilhar com a vida que entrava em seu corpo; e ele tocava no corpo dele como se temesse que ele sumisse – ou talvez, Glory pensou, com a mesma avidez que Dave a tocava nas noites de lua cheia.
     Por um momento, Christian se afastou, tomando fôlego, e Glory pôde ver o sangue pingando da boca dele e jorrando do pescoço do homem. Ele tapou a ferida com a mão e respirou fundo, parecendo ansiar pelo momento de concluir e ao mesmo tempo desejar que ele nunca chegasse. Então voltou a beber o sangue, sem conseguir conter alguns murmúrios de intensa satisfação. Com um último estremecimento, Glory viu o homem perder o que restava de vida em seu corpo, e o garoto ainda bebeu por alguns minutos, até que o corpo estivesse totalmente oco. Quando terminou ele lambeu sua mão, que estava encharcada de sangue, e o pescoço e o peito do homem, por onde haviam escorrido fios vermelhos. Quando não havia mais nada ele se deitou na grama, ofegante, de costas para o corpo que agora já não lhe servia.
     Glory não sabia se o que estava sentindo era medo, nojo ou qualquer outra coisa. Christian ainda tinha sangue em sua boca, e o limpou com a mão, engolindo o que podia. Ficou deitado ainda algum tempo, e então abriu os olhos e sorriu, parecendo mais feliz do que Glory jamais o vira. Mas logo o sorriso desaparecera, e ele limpou depressa o que restara de sangue em seu rosto, com um lenço. Então se sentou e olhou para Glory.
     -- Rainhazinha?
     Ela não respondeu. Apenas olhou para ele, parecendo muito assustada. Ele se levantou, e com a luz do luar batendo em cheio nele, Glory percebeu que ele estava muito mais corado, e que tinha gotas de suor pingando de seus cabelos e por seu rosto.
     -- Glory – ele foi até ela e se ajoelhou – eu te assustei?
     Ao invés de responder, ela baixou a cabeça. Christian tocou a mão dela.
     -- Sinto muito, rainhazinha. Não queria te assustar.
     -- Isso foi horrível. - ela disse, afinal, e estava quase chorando – Foi a morte mais horrível que já vi.
     -- Se você quiser, eu jamais farei isso novamente. Basta uma palavra sua, e eu me deixarei morrer na próxima noite de lua cheia. Eu só estou fazendo isso para ficar perto de você.
     -- Não. - ela olhou para ele – Eu não quero que você morra. E esse homem era mau. Ele não devia viver.
     Adam e Michaell voltaram nesse momento – Adam sabia que terminara, pois podia sentir que uma vida ali desaparecera.
     -- Como você está, Christian?
     -- Bem. - ele disse, muito triste, e olhando para o chão.
     -- Vou mandar os criados removerem o corpo. - disse Michaell – Se sente satisfeito, Christian?
     -- Sim.
     Ele olhou para Glory, que ainda tinha lágrimas nos olhos. Beijou a mão dela, e ela tocou no rosto dele. Então, para a surpresa dela, ele se dissolveu em uma névoa escura.
     -- Christian! - ela se levantou, e a névoa se afastou flutuando, até sair pela janela – Christian, espere!
     -- Deixe-o ir, Glory. - disse Adam – Ele precisa de um tempo.
     -- Mas não é perigoso ele sair? Está de noite, há coisas perigosas lá fora!
     -- Acredite, ele é a coisa mais perigosa que você poderia encontrar nesse reino. Deixe-o ir, ele estará de volta antes do amanhecer.
* * * * *

     Glory voltou para o quarto sentindo-se muito triste. Deitou-se em sua cama, e ficou olhando para fora, para a lua cheia que era a culpada de tudo. Então bateram na porta, e Dave entrou no quarto. Aquela noite era dele, assim como todas as noites de lua cheia.
     -- Glory?
     -- Aqui. - ela disse, com um suspiro. A última coisa que queria era se deitar com ele, ou com qualquer um.
     Dave trancou a porta e foi até a cama. Sentou-se próximo a Glory e ficou olhando para ela, e ela teve a impressão de que ele estava um pouco tenso.
     -- Como foi com Christian?
     -- Horrível. - ela voltou a olhar a lua – Ele quis que eu ficasse. Eu vi ele mordendo aquele rapaz, e ele fazia isso com tanta vontade... Foi horrível.
     Ele passou uma mão pelo rosto de Glory, tentando consolá-la. Mas ela estava inconsolável.
     -- Ele era tão bonzinho, Dave. Incapaz de machucar alguém. Por que isso tinha que acontecer com ele?
     -- Ele não teve escolha. Eu tive uma escolha, mas ele não. E ele continua sendo o mesmo de antes. Você sabe o quanto ele sofre por ter que fazer isso.
     -- Mas quando ele estava fazendo, ele parecia gostar.
     -- Porque é algo bom para ele, faz ele se sentir bem. Mas assim que ele faz, a culpa volta.
     Ela nada disse; ficou olhando para a janela, esperando que ele se deitasse e buscasse seus beijos. Mas ele não se moveu, e ela olhou para ele com curiosidade. Ele estava decididamente nervoso com alguma coisa.
     -- O que houve?
     -- Hum? Oh, nada.
     -- Você sempre chega desesperado...
     -- Eu...
     Antes que ele pudesse dizer, a outra porta, que dava acesso ao quarto de Bono, abriu-se, e Bono apareceu. Entrou no quarto de Glory e foi até eles, parecendo muito satisfeito.
     -- Imaginei que já estaria aqui. - ele disse, para Dave – Demorei?
     -- Não. - Dave enrubesceu – Cheguei há pouco.
     -- Bono? - Glory se sentou na cama – O que está fazendo aqui? Hoje é lua cheia.
     -- Eu sei, querida. - ele olhou pela janela e sorriu, tirando sua camisa – Uma linda lua cheia.
     -- O que está fazendo?
     -- Conte a ela, Edge.
     Dave baixou a cabeça. Glory não estava entendendo nada.
     -- O que está acontecendo?
     -- Conte você a ela. - disse Dave – Você é o responsável por isso.
     Bono riu, parecendo achar graça da hesitação de Dave.
     -- Está bem. - ele se apoiou na cama – Você sabe que sei usar magia, não sabe, Glory?
     -- Sabe?
     -- Sim, eu sei. Você já me viu fazer isso uma ou duas vezes, quando lutei contra Edge. Claro que meus conhecimentos não chegam aos pés dos de Adam, ou mesmo dos de Larry... Sou só um amador. Mas tenho algum conhecimento. E existe um feitiço que quero fazer.
     -- Qual?
     -- Quando me casei com você, eu e Edge fizemos um acordo. Eu não queria ver você triste, nem queria que me odiasse, então eu permitiria que ele tivesse você. Em troca, você não resistiria a mim... E jamais teria filhos dele.
     Glory nunca pensara que uma consequência de se deitar com Dave era que poderia ter filhos dele. Bono continuou:
     -- Claro que se você engravidasse, não teríamos como saber quem é o pai, a não ser que a criança fosse extraordinariamente parecida comigo ou com ele. Sendo assim, ela seria criada como meu filho. Só descobriríamos quando ela fosse adolescente, pois os filhos dele seriam amaldiçoados, como o pobre Christian. E isso poderia nos causar sérios problemas. Então, ele concordou que jamais teria filhos com você.
     -- Mas não tem como fazer isso. Como podemos saber se terei ou não filhos dele?
     -- Você poderia tomar algumas ervas que impedem a gravidez, mas não é meu desejo. Você me deu uma filha, e fiquei feliz com isso, mas quero um filho homem. Não apenas quero, como devo ter, pois sou o rei e preciso de um herdeiro. Então me lembrei de uma magia muito antiga, da qual tinha ouvido falar, e pesquisei bastante sobre ela. É um feitiço que faz com que um homem passe sua capacidade de reprodução para outro homem. Para ser mais claro, um feitiço que fará com que você nunca engravide de Edge, e que engravide de mim quando tiver que acontecer.
     -- E o que tem nesse feitiço?
     -- O procedimento é simples. Ou melhor, a parte difícil já foi feita. - ele tirou do bolso três pequenos frascos com um líquido dentro – Adam fez isso para mim. Nós três devemos beber. O feitiço deve ser feito em uma noite de lua cheia. Não precisei me preocupar com isso enquanto você estava grávida, e nem no primeiro mês após ter o bebê, mas agora não posso permitir que se deite com ele sem que tenha feito isso.
     -- Então, é só beber isso?
     -- Não. Primeiro bebemos isso, e depois eu e Edge nos deitamos com você. - ele fez uma pausa – Ao mesmo tempo.
     -- O que!?
     -- Claro que não é tão simples assim. Teremos que dizer algumas palavras rituais e fazer algumas coisas a mais... Edge já sabe o que fazer, você verá. Você só terá que nos aceitar, querida.
     -- Você não está falando sério. Como é que vou... Fazer isso com vocês dois ao mesmo tempo? É impossível!
     -- Não, não é. Não se preocupe, nós a ensinaremos. - ele se sentou na cama – Não precisa ter medo, ninguém vai se machucar.
     -- Mas... Mas... Eu não posso, eu...
     -- Ninguém vai ficar sabendo disso, querida.
     -- Deus vai saber, e ele não vai gostar disso, não vai gostar nem um pouco...
     -- Deus tem coisas melhores para se preocupar.
     -- M-mas... Dave, você não vai dizer nada? Vai concordar com isso?
     -- Eu não tenho outra escolha. - disse Dave – E não é tão terrível assim, Glory, será apenas uma vez. Eu também não quero engravidar você, não quero condenar uma criança inocente ao mesmo destino que eu ou Christian.
     -- Mas... Nem uma meretriz faria algo assim! O que vocês pensam que eu...
     -- Glory – Dave tocou na sua mão – é diferente. Não estamos fazendo isso por... Por algum desejo corrompido ou qualquer coisa assim. Estamos fazendo para evitar que você tenha um filho amaldiçoado.
     -- Exatamente. - disse Bono, com um sorriso malicioso – Acredite, querida, eu jamais faria isso se não fosse extremamente necessário.
     Dave quase mandou Bono se calar, mas estava mais preocupado com Glory. A menina estava em pânico.
     -- Não. - ela levantou – Não faria nem que minha vida dependesse disso. Jamais.
     -- Você pode escolher. - Bono também se levantou e foi até ela – Pode fazer, e amanhã fingiremos que nada aconteceu. Ou pode não fazer – ele segurou o rosto dela – e Dave não terá seu sacrifício essa noite.
     Ele fez ela olhar para Dave, que permanecia sentado na cama, parecendo tão assustado quanto ela.
     -- Ele não vai ter você essa noite, Glory, e eu não permitirei que mais um prisioneiro seja sacrificado. Será uma pena, perder meu mestre de cavaleiros logo depois de nomeá-lo... Principalmente de forma tão terrível. E você vai ver tudo, querida, vai ver a alma dele ser arrancada do corpo por demônios, vai ver ele sofrendo mais do que acredita que alguém possa sofrer...
     -- Pare! - ela estava quase chorando – Não faça isso, Bono, por favor...
     -- Ah, eu farei... Claro que ele podia me trair e tentar me matar. Resolveria todos os seus problemas, não é? Mas ele não pode, querida, pois vocês dois seriam mortos assim que saíssem daqui. Então, você tem uma escolha. Qual é a sua decisão?
     Ela hesitou por muito tempo. Bono aguardou pacientemente, mas a lua já subia, e Dave começou a sentir o corpo cada vez mais quente, ouvir as vozes do inferno que se aproximavam dele.
     -- Dave – ela disse, após muito tempo – você acha que devo fazer?
     -- Sim. - ele respondeu, e no estado em que estava, aceitaria qualquer coisa para que pudesse fazer seu sacrifício.
     -- Então eu... Eu aceito.
     -- Ótimo. - Bono já sabia que essa seria a resposta, e estava feliz por tudo ter caminhado conforme ele imaginara – Tire suas roupas e se deite, querida. Não vamos querer perder tempo, não é mesmo? Dave, seus olhos estão começando a ficar escuros. Não vá se deixar possuir agora.
     -- Estou tentando.
     -- Me deixe te ajudar com as roupas, querida. - ele ajudou Glory a tirar sua roupa de baixo – Muito bem. A cada dia que passa você está mais linda.
     Apesar de estar acostumada a ficar nua na frente de Bono e de Dave, despir-se com os dois olhando para ela a deixou muito envergonhada. Quando terminou, ela se deitou, escondendo-se debaixo das cobertas.
     -- Vamos logo, Edge. - ele tirou suas próprias roupas – Dispa-se.
     Dave levantou e começou a se despir, um pouco tímido. Tirou a camisa, mas hesitou na hora de tirar a calça. Bono foi até ele e colocou a mão em seus ombros, por trás, dizendo:
     -- Quer que eu te ajude com isso?
     -- Tire suas mãos de mim.
     Bono obedeceu, mas tinha um sorriso nos lábios que irritava Dave profundamente. Ele acabou de tirar a roupa, e se afastou de Bono o máximo possível.
     -- Deite-se, cavaleiro. - disse Bono.
     -- Não. Deite você primeiro.
     -- Mas que coisa, que diferença isso faz? - ele se deitou à direita de Glory – Pronto. Deite-se.
     Inseguro, Dave se deitou à esquerda da garota. Glory olhava fixamente para o teto. Bono ficou olhando para os dois por algum tempo, até que Dave disse:
     -- Vamos começar isso de uma vez.
     -- Eu estava esperando você pedir, cavaleiro. - ele sorriu e tocou primeiro em Glory, depois em Dave – Vamos. Você sabe o que tem que fazer.
* * * * *

     A lua já estava baixa no céu. Dave se virou com cuidado, para não acordar Glory. Bono respirou fundo, com completa satisfação, e se virou para Dave.
     -- Como se sente, cavaleiro?
     -- Bem, obrigado.
     -- Não foi tão ruim, não é? - ele tocou no rosto de Dave, com cuidado para não encostar em Glory – Não foi nada ruim.
     -- Foi a coisa mais estranha que já fiz na minha vida.
     -- Mas não foi ruim.
     -- Não, não foi.
     -- Diga que gostou.
     Dave sorriu.
     -- Você é mesmo estranho.
     -- Sim, eu sou.
     -- Só deixei você tocar em mim naquela hora porque...
     -- Por quê?
     -- Porque eu estava muito ocupado para reclamar.
     -- Claro.
     -- E eu não... Eu não gostei.
     -- Se você diz.
     -- E não faria de novo.
     -- Tudo bem.
     -- E ainda tenho minhas dúvidas de que você só estava fazendo isso pelo ritual.
     -- Estava. Juro. Acha que eu ia querer dividir minha esposa com você? Que ia querer te ver nu e tocar em você? Imagina.
     Apesar de saber que devia estar horrorizado com o que havia sido obrigado a fazer, e com a evidente excitação de Bono ao executar o ritual, Dave acabou rindo.
     -- Você é completamente louco.
     -- Eu sei.
     Os dois ficaram um tempo em silêncio, olhando-se. Bono disse, num sussurro.
     -- As lutas fizeram bem ao seu corpo.
     -- Obrigado.
     -- Fico feliz em saber que é tão bom para Glory.
     -- Farei qualquer coisa por ela.
     -- Você é um belo homem, David.
     -- Você também... Paul.
     Eles sorriram um para o outro, e então fecharam os olhos e adormeceram.

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